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IRACEMA

(José de Alencar )

      Prof. Teotônio Marques Filho

      www.olutador.com.br José de Alencar foi antes de tudo um inovador, o primeiro que,
destemidamente, se mostrou rebelde à tradição portuguesa. Sem dúvida um precursor da revolução
modernista de 1922. Uma das marcas registradas de sua obra é o sentimento brasileiro. O índio que ele
tanto cantou e exaltou, é a personificação de seu entranhado nacionalismo. Tanto que Machado de Assis
declara que "nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira".

      O seu estilo revela-se retórico, sonoro e brilhante, o que nada mais é do que o espírito de sua escola -
o Romantismo. As suas paisagens, além do sentimento brasileiro, têm cores maravilhosas da nossa
exuberante vegetação tropical. Ele não descreve cenas, quadros: pinta-os molhando o pincel nas mais
vivas e variadas tintas. Conhecia o Português e conhecia a Gramática, mas sua preocupação estava acima
disto: quis criar um estilo brasileiro, independente, pessoal, reflexo dos nossos modismos sintáticos e
vocabulares, um linguajar brasileiro. Isso ele conseguiu; se não para os seu conteporâneos, mas para os
pósteros que cada vez mais reconhecem sua originalidade e modernidade.

      A obra romanesca de Alencar costuma ser dividida pela crítica em quatro áreas: a indianista, a
histórica e a urbana.

      a) os romances indianistas apresentam três fases do índio: civilizado e dominado pelos
portugueses na luta pela conquista da terra - O Guarani; os primeiros contatos dos brancos com os
nativos na civilização do Ceará - Iracema; e o índio em seu estado natural, sem interferência do branco,
longe da civilização, em época indeterminada - Ubirajara.

      b) Os romances históricos evocam nosso passado com As minas de prata, o primeiro romance
histórico de nossa literatura; A guerra dos mascates, narrativa da famosa revolução de 1710, em
Pernambuco, e, ainda através das crônicas dos tempos coloniais e das novelas O garatuja e Alfarrábios.

      c) Os romances regionalistas focalizam as paisagens e tipos humanos do norte e do sul do país,
através de O sertanejo e O gaúcho, reproduzindo costumes típicos e folclóricos dessas regiões.

      O tronco do ipê e Til, considerados romances sociais, patenteiam também a corrente regionalista de
Alencar. Com Til, retrata os costumes dos ambientes paulistas nas grandes épocas do café. Com O tronco
do ipê, apresenta o panorama das fazendas do Rio de Janeiro.

      d) Os romances urbanos caracterizam a corte e o meio social carioca do Segundo Reinado. São
romances de amor, que espelham a mentalidade romântica da época, capaz dos maiores sacrifícios para
solidificar esse sentimento. Neles, o autor cria diversos perfis de mulheres, vivendo no trato íntimo da
sociedade, mas sem grande penetração psicológica. Exemplificam esse gênero: Cinco minutos, A viuvinha,
A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Lucíola, Diva, Senhora e Encarnação.

      Além de romancista, Alencar foi teatrólogo, merecendo destaque as comédias Verso e reverso, O
demônio familiar, As asas de um anjo, Noite de João além dos dramas Mãe e O jesuíta.

      Como poeta, deixa-nos o poema indianista Os filhos de Tupã.

      Iracema, romance de 1865, chamado por Machado de Assis de poema em prosa, chama a atenção,
desde o início, pelo trabalho com a linguagem.

      Em capítulos curtos, sobrepõem-se imagens sobre imagens, comparações sobre comparações, cada
uma mais bela, original e adequada, para sugerir o nascimento de um novo mundo.

      Como veremos a seguir, através do resumo do enredo, o livro de Alencar desenvolve a lenda da
fundação do Ceará (Estado em que nasceu Alencar) e a história dos amores de Iracema e Martim.

      RESUMO DO ENREDO


      "Numa atmosfera lendária, de exótica e delicada poesia, desenrola-se a história triste dos amores de
Martim, primeiro colonizador português do Ceará, e Iracema, jovem e bela índia tabajara, filha de
Araquém, pajé da tribo. Martim saíra à caça com seu amigo Poti, guerreiro pitiguara, e perdera-se do
companheiro, indo ter aos campos dos inimigos tabajaras. Encontra Iracema, que o acolhe na cabana de
Araquém, enquanto volta Caubi , seu irmão, que reconduziria o guerreiro branco, são e salvo às terras
pitiguaras. Iracema, porém, apaixona-se por Martim, traindo o segredo de jurema, que guardava como
virgem de Tupã. Acompanha o esposo, deixando na sua tribo um ambiente de revolta, acirrado pelos
ciúmes de Irapuã, destemido chefe tabajara. Desencadeia-se a guerra da vingança, e os tabajaras são
derrotados; Iracema confunde as venturas do amor com as amargas tristezas que despertam os campos
juncados de cadáveres de seus irmãos. Ao remorso e saudade outra dor se lhe acrescenta; o
arrefecimento do amor de Martim que, para amenizar a nostalgia da pátria distante, ausenta-se em longas
e demoradas jornadas. Num dos seus regressos, encontra Iracema às portas da morte, - exausta pelo
esforço que fizera para alimentar o filhinho recém-nascido, a quem dera o nome de Moacir, literalmente
na sua língua, filho da dor. Martim enterra o corpo da esposa e parte, levando o filho e a saudade da fiel
companheira.

      (Extraído do Pequeno Dicionário da Literatura Brasileira - Ed. Culturix)

      ORGANIZAÇÃO

      1) O gênero literário predominante na obra é o épico, caracterizado pela presença de um narrador,
pela observação e pela visão do mundo exterior. Embora predomine o épico, Iracema apresenta também
aspectos líricos, principalmente se se levar em conta a poesia de sua linguagem, marcada pelo ritmo e
sonoridade, além da configuração altamente subjetiva, revelada sobretudo pelo tom metafórico que
perpassa o romance.

      2) A técnica narrativa utilizada é a terceira pessoa.O narrador é onipresente e onisciente: sabe tudo
que se passa ao seu redor. Focalizando uma época que revela o início da colonização do Brasil, a visão em
terceira pessoa, é sem dúvida, a mais adequada e coerente.

      3) A linguagem é extremamente poética, o que nos faz imaginar as belezas, os deslumbres da mata
virgem, da natureza. Além disso, durante todo o enredo, há a utilização de símiles que nos fazem
visualizar , com maior precisão, o que o autor quer passar para o leitor.

      4) Seguindo critérios mais ou menos subjetivos, podemos dividir o romance em três partes:

      a) A primeira parte mostra o encontro de Iracema e Martim e o incontrolável amor que surge entre
eles;

      b) A Segunda conta a fuga de Iracema que abandona o lar, a família e os irmãos para viver com
Martim, numa cabana distante, no litoral, vivendo aí a sua gravidez e uma profunda saudade e angústia;

      c) A terceira relata o sofrimento de Iracema ao perceber que Martim não é feliz. Sofre calada até que
a morte a chama.

      5) Sem dúvida, a obra de José de Alencar se enquadra no estilo de época romântico em que se
destaca o indianismo, que foi uma das formas mais significativas assumidas pelo nacionalismo romântico.

      Podemos citar várias características do Romantismo, presentes na obra:

      a) O culto e a exaltação da natureza;

      b) A idealização de índio como um ser nobre, valoroso, fiel e cavalheiro;

      c) Sublimação do amor e idealização da mulher;

      d) Sentimentalismo amoroso configurado na temática amor e morte;

      e) A concepção amorosa a partir dos sentimentos puros e castos.


      6) Composto de trinta e três capítulos curtos, Iracema vem precedido de um prólogo e encerrado por
uma "carta ao Dr. Jaguaribe", em que Alencar expõe os motivos patrióticos e sentimentais que o levaram
a escrever o livro.

      7) A ação do romance se desenvolve no Ceará, nos primórdios do século XVII, e se apóia em fatos
históricos verdadeiros. Martim, o protagonista masculino da história, é Martim Soares Moreno, que deixou
o seu nome inscrito na colonização do Brasil. Sua amizade a Poti e Jacaúna, chefe dos índios do litoral, foi
decisiva para a conquista da região, que viria a ser o Ceará.

      PERSONAGENS

      1) Iracema - a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asas da graúna e
mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era mais doce que seu sorriso, nem a baunilha
rescendia no bosque como se hálito perfumado. Era mais rápida que a ema selvagem. Índia da tribo
tabajara, filha de Araquém. Demonstrou muita coragem e sensibilidade. Revelou-se amiga, companheira,
amorosa, amante, submissa e confiante. Renunciou tudo pelo amor de Martim. Representa bem o
elemento indígena que se casa com o branco para formar uma nova raça: a brasileira.

      2) Martim - o seu nome na língua indígena significa "filho de guerreiro". Era português e veio ao
Brasil numa expedição, quando fez amizade com Jacaúna, chefe dos pitiguaras, dos quais recebeu o nome
de Coatiabo - "guerreiro pintado". Tinha nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o
azul triste das águas profundas, os cabelos do sol. Corajoso, valente, audaz, representa bem o branco
conquistador, que se impôs aos índios na colonização do Brasil.

      3) Araquém - pai de Iracema, pajé da tribo tabajara, tinha os olhos cavos e rugas profundas,
compridos e raros cabelos brancos. Era um grande conselheiro, tinha o dom da sabedoria e da liderança.

      4) Andira - irmão do pajé Araquém. Provou ser um grande e impetuoso guerreiro. É o velho herói. É
feroz Andira que bebeu mais sangue na guerra que beberam já tantos guerreiros. Ele viu muitos combates
na vida, escapelou muitos pitiguaras. Nunca temeu o inimigo. Seu nome significa "morcego".

      5) Caubi - irmão de Iracema. Tinha o ouvido sutil, era capaz de pressentir a boicininga (cascavel)
entre rumores da mata; tinha o olhar que melhor vê nas trevas. Era bom caçador, corajoso, guerreiro
destemido que não guardou rancor da irmã, indo visitá-la na sua choupana distante.

      6) Irapuã - chefe dos tabajaras, manhoso, traiçoeiro, ciumento, corajoso, valente, um grande
guerreiro. Estava sempre lembrando a Iracema sobre a necessidade de se conservar virgem, pois ela
guardava o segredo de Jurema. O seu nome significa "mel redondo". De certa forma, Irapuã representa,
com sua oposição, um esforço no sentimento de guardar e preservar as tradições indígenas.

      7) Poti - guerreiro destemido, irmão do chefe dos pitiguaras. Prudente, valente, audaz, livre, ligeiro e
muito vivo. Tinha uma grande amizade por Martim a quem considerava irmão e de quem era aliado.

      8) Jacaúna - o grande Jacaúna, o chefe dos pitiguaras, senhor das praias do mar. O seu colar de
guerra, com os dentes dos inimigos vencidos, era um brasão e troféu de valentia. Era corajoso, exímio
guerreiro, forte. Seu nome tem o significado de "jacarandá-preto".

      9) Batuireté - avô de Poti, maior chefe. Tinha a cabeça nua de cabelos, cheio de rugas, Morava
numa cabana na Serra do Maranguab (sabedor de guerra). Batuireté significa "valente nadador".

      10) Jatobá - pai de Poti. Conduziu os pitiguaras a muitas vitórias. Robusto e valente.

      11) Moacir - o nascido do sofrimento, o "filho da dor". É, na alegoria de Alencar, o primeiro brasileiro
- fruto da união do branco com o índio. Mal nasceu, já exilava da terra que o gerou. Estaria nisso a
predestinação errante da gente nordestina?

      LINGUAGEM
      1)Embora seja ainda de linha acadêmica, a linguagem de Iracema vem perpassada de um tom bem
brasileiro; não só o farto vocabulário indígena o exemplifica, como também muitas construções sintáticas
que revelam bem o jeito brasileiro de usar a língua portuguesa.

      2) Destaca-se também, na linguagem de Iracema, o gosto por comparações com elementos do
mundo focalizado pelo autor e que se casa bem com a postura selvagem do índio, que vive integrado na
natureza. Esse recurso é freqüente livro, e não são poucas as passagens como esta: "O guerreiro pitiguara
é a ema que voa sobre a terra".

      3) O estilo de Alencar sempre primou pela exuberância do descritivismo, que se revela pela
adjetivação fértil e colorida. Dono de uma imaginação prodigiosa, Alencar sabe rechear um texto de
adjetivos e matizes que dão impressão de um quadro.

      4) Dado o caráter poético da linguagem utilizada, Iracema é um romance quase poesia. A linguagem
chega a aparecer ingênua, exatamente porque o autor quer captar o mundo selvagem do índio como ele
é: a sua maneira de pensar e exprimir, as suas imagens poéticas, a sua visão das coisas. Em suma, em
Iracema, Alencar procura adequar a linguagem ao mundo

      focalizado.

      5) Chamado de "poema em prosa" pela crítica, dado o ritmo e cadência de Iracema, mais de um autor
procurou demonstrar o caráter de poesia do livro. Realmente, sobretudo a belíssima abertura do livro é
marcada por um ritmo cadenciado, podendo as palavras ser distribuídas em versos de um poema
tradicional:

      Verdes mares bravios (6 sílabas)

      de minha terra natal, (7)

      onde canta a jandaia(6)

      nas frondes da carnaúba; (7)

      Verdes mares que brilhais (7)

      como líquida esmeralda (7)

      aos rios do sol nascente, (7)

      perlongando as alvas praias (7)

      ensombradas de coqueiros; (7)

      Serenai, verdes mares, (6)

      e alisai docemente (6)

      a vaga impetuosa, (6)

      para que o barco aventureiro (8)

      manso resvale à flor das águas.” (8)

      ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES

      1) Um dos propósitos de Alencar, ao conceber Iracema, foi, sem dúvida, mostrar como se deu a
formação do Ceará, seu Estado natal - a terra onde "canta a jandaia", como significa "Ceará" ao pé da
letra, e explica o autor: "Ceará é nome composto de cemo - cantar forte, calmar, e ara - pequena arara ou
periquito".

      Como se viu pelo enredo, Moacir, filho do cruzamento do branco (Martim) com o índio (Iracema), é o
"primeiro cearense". A conquista da terra pelo branco, ocorrida nos primórdios do século XVII, deu-se
através de lutas sangrentas em que os portugueses contaram com a valiosa ajuda dos índios pitiguaras,
que habitavam o litoral.

      2) Ao retratar o mundo selvagem e primitivo dos índios, Alencar reveste a sua prosa de um tom
poético e ingênuo, , tentando, assim dar uma visão da realidade focalizada a partir da ótica do índio: as
imagens, as comparações, a forma de exprimir mostram o índio integrado no seu “habitat” natural e como
que sugerem o nascimento de um mundo novo; penetrando nas entranhas da terra virgem e selvagem, o
branco conquistador iria fazer brotar uma nova raça.

      3) Conforme vem explicado em “Literatura comentada”(“Abril Educação”), “todas as imagens de que
Alencar se utiliza para se referir a Iracema são retiradas da natureza local, identificando Iracema
claramente com essa natureza, fazendo-a símbolo do Brasil e, por extensão, da América. Um crítico já
observou que Iracema é anagrama da América, isto é, Iracema tem exatamente as mesmas letras de
América, só que em outra ordem. Assim, simbolicamente, a morte da índia, no final da estória, pode
representar a aniquilação da cultura nativa pela invasora que conquista domina a terra”.

      4) Apresentando o índio integrado de forma harmoniosa à natureza, como é comum na visão
romântica, Alencar, obviamente filtrando a realidade pela ótica do português, não mostra claramente a
ação devastadora do conquistador branco. Conforme observa Zenir Campos Reis, da USP, “Martim, o
guerreiro do mar, vai pertubar a harmonia do índio no seu habitat natural. Seus silêncios encobriam a
palavra domínio. Para ele, a adesão à terra não podia ser senão momentânea. Seu objetivo era subjugá-
la, pela sedução ou pela violência. Ele era o primeiro agente de um processo de corrosão lento e
insinuante, violento às vezes, que se chamou, sucessivamente, catequese, progresso, desenvolvimento.”

      5) De sentido igualmente simbólico se reveste a oposição de Irapuã ao hóspede branco, protegido por
Araquém (Martim). Ao opor-se a ele, o guerreiro tabajara não quer defender o amor que nutria pela
virgem dos lábios de mel; sua resistência é, antes, em defesa da preservação da cultura indígena e do
“segredo de Jurema”. Do qual Iracema era guardiã. Violada a sua virgindade pelo invasor branco,
fatalmente as tribos seriam dizimadas e aniquiladas.

      Assim, embora possa parecer o “vilão da estória”, opondo-se a Martim, o

      gesto de Irapuã reveste-se de nobreza e grandeza, pois outro lado, a conduta de Iracema (e também
Poti), que se aliam ao conquistador branco, é passível de condenação. Como se viu, Iracema morre,
desfigurada pela dor e pelo estrangulamento cultural; Poti, descaracterizado e tornado cristão, recebe o
batismo de gente civilizada e passa a se chamar Antônio Felipe Camarão..

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