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A oficina do sabor

por João Luiz Guimarães


Os cientistas ainda estão longe de fabricar em laboratório pratos refinados e banquetes
pantagruélicos. Mas já são capazes de reproduzir o gosto e o aroma existente em boa parte
dos alimentos naturais.

O aparelho que você vê aí em cima parece um liquidificador. Mas é uma boca artificial. Não
tem lábios, não sorri, não morde nada nem ninguém. Apenas mastiga, mastiga, mastiga. E o
mais curioso: nunca engole o que mastigou. A boca artificial foi inventada pela equipe do
bioquímico Terry Acree, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, para ajudar nas
pesquisas sobre o paladar humano, com o objetivo de criar sabores artificiais. Ela simula o
processo da mastigação e reproduz o mesmo ambiente que existe dentro da sua boca quando
você come: a temperatura, o grau de acidez e até a lubrificação, com uma saliva artificial.
Seu nome oficial é simulador retronasal de aromas.
Uma laranja como esta aqui ao lado entra nessa engenhoca e, lá, transforma-se numa
verdadeira colcha de retalhos, formada por um monte de substâncias de nome esquisito. São
essas substâncias, como os terpenos, os ésteres e os aldeídos, que fazem com que a fruta
tenha o sabor que a sua boca percebe como laranja. Agora você vai conhecer de perto essas
discretas personagens que governam o seu paladar.
Em busca do clone do gosto
Gosto se discute. E muito. Na verdade, melhor seria afirmar: sabor também se discute. O
que chamamos de sabor é a soma do que é percebido como gosto pela língua e como aroma
pelo nariz (veja no infográfico à direita). No mundo inteiro, grandes empresas e centros
universitários de pesquisa estão empenhados em recriar os 5 000 sabores identificados na
natureza. Já existem 2 000 disponíveis no mercado, reproduzíveis em laboratório.
Alguns dos ingredientes usados para clonar sabores já vêm prontinhos da natureza. Outros
têm que ser fabricados artificialmente, pois seria muito difícil, ou caro, utilizá-los em estado
original. Nem todas as substâncias naturais, por sua vez, precisam ser originárias do produto
cujo aroma ou gosto se quer reproduzir. Podem vir de outras fontes. O eugenol, uma
substância existente no cravo-da-índia, ao sofrer uma oxidação, reação química simples que
consiste em acrescentar oxigênio à composição da substância, vira vanilina, um componente
do aroma da baunilha.
Mas a vanilina não pode ser considerada um produto completamente artificial. Os técnicos
apenas pegaram o que já existia na natureza e deram uma mexida, de leve. Artificiais,
mesmo, são as substâncias inventadas em laboratório, como o aroma de fantasia conhecido
por tutti-frutti ou o sabor da Coca-Cola.
Embora o senso comum imagine que as coisas naturais são melhores do que as artificiais, na
realidade nem sempre é assim. Há substâncias artificiais que não causam dano à saúde, e há
naturais que são perigosíssimas. “Às vezes, é apenas uma questão de dosagem”, afirma o
químico aromista Moisés Galano. “A noz-moscada, uma especiaria largamente usada na
culinária em pequenas porções, se ingerida inteira pode até matar, porque possui muita
miristicina, uma substância tóxica.” Outra confusão muito comum é a de nomenclatura.
Aroma é a parte volátil, ou seja, os gases que se desprendem dos alimentos sólidos ou
líquidos, sentidos pelo nosso nariz. Por isso a palavra é usada tanto na indústria de alimentos
como na de perfumes, embora os perfumistas prefiram o termo fragrância.
Brincando de molécula
“O paladar sofre a influência de uma quantidade enorme de fatores”, esclarece Maria
Aparecida Azevedo, do Laboratório de Análise Sensorial da Faculdade de Engenharia de
Alimentos da Universidade Estadual de Campinas. “Além do aroma, que é fundamental,
também participam da formação do gosto a cor, a temperatura, a consistência e até mesmo
aspectos emocionais associados a determinados alimentos.”
Agora imagine que você é tão pequeno que consegue identificar cada molécula dos objetos
ao seu redor, isto é, os tijolinhos que compõem tudo o que existe. Uma gota de água se
apresentará aos seus olhos como um mosaico enorme composto por unidades de dois átomos
de hidrogênio e um de oxigênio. Qualquer substância diluída nessa gotícula aparecerá para
você como um tijolo diferente, misturado à estrutura do mosaico.
Conseguiu imaginar? Pois é isso que acontece quando você mastiga umalimento. As moléculas
responsáveis pelo sabor se diluem na água da saliva e flutuam como vapor até se prenderem
na mucosa olfativa de seu nariz. Ali, células especializadas “enxergam” as moléculas e
transferem para o cérebro a informação “sabor X”. As crianças sabem disso tudo
empiricamente. Quando as mães as obrigam a comer uma verdura desagradável, elas
apertam o nariz para não sentir o gosto. Lembra-se?
Microrganismos com sabor de tecnologia
A biotecnologia é outra personagem decisiva na produção de aromas. NoLaboratório de
Bioquímica da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade de Campinas
(Unicamp), um outro conjunto de pesquisadores chefiados pelos professores Gláucia Pastore
e Young Park conseguiu isolar, em um grupo de 2 500 amostras, quatro cepas de leveduras,
uma espécie de fungo usado para fermentar substâncias químicas e produzir aromas
naturais.
Um exemplo é o cheiro do queijo gorgonzola, que graças à ação das leveduras pode ser
obtido em duas semanas de fermentação e acrescentado diretamente no produto final. Pelo
método tradicional, é necessário esperar alguns meses até que o fungo habitualmente usado
no processo complete sua ação sobre o queijo de modo a produzir o sabor desejado. “A
mudança de patamar é só um começo”, diz a pesquisadora. “Nos próximos anos haverá um
crescimento significativo dessa área no Brasil, como já ocorre no Japão e em alguns países
europeus, pois trata-se de um processo totalmente natural de obtenção aromática. A
indústria de alimentos vai se sofisticar bastante.”
A previsão deve ser levada a sério, considerando-se de onde partiu. A equipe chefiada por
Young e Gláucia adquiriu experiência em biotecnologia alimentar desenvolvendo, há quase
dois anos, um novo e badalado açúcar natural de baixa caloria, o New Sugar, produzido a
partir da fermentação do açúcar comum. Adivinhe qual o agente catalisador desse processo.
Sim, um fungo. Ele foi batizado com o nome científico de Aspergillus niger.
Como o paladar e o olfato humanos não podem ser totalmente reproduzidos em toda a sua
complexidade, aromistas profissionais, que além de possuir formação em química ganham a
vida alugando o próprio nariz aos laboratórios, são contratados a peso de ouro pelas grandes
empresas do ramo, como a americana IFF e as suíças Firmenich e Givaudan. Essas empresas,
quase desconhecidas pelo grande público, são responsáveis por cerca de 80% de todos os
produtos vendidos no Brasil que têm gosto e cheiro, de chicletes a sabonetes.
Sabor que pesa no bolso
O que explica a enorme diferença de sabores disponíveis no mercado é a maior ou menor
fidelidade à composição química dos aromas. Enquanto na laranja do nosso exemplo eles
eram sessenta, em outras frutas, como o morango, chegam a 850. O brasileiríssimo aroma de
café torrado é mais complexo: há 1 500 moléculas no seu sabor.
Quanto mais perto os cientistas conseguirem chegar da fabricação do cardápio completo das
substâncias naturais, mais próximos estarão do sabor natural. “O aroma de banana possui
cerca de 200 substâncias, mas pode-se reproduzi-lo com cinqüenta ou com 190”, afirma
Milton Ferreira, diretor da divisão de aromas da Firmenich, com sede em São Paulo.
“Depende do grau em que o cliente deseja se aproximar do sabor original da fruta, e de
quanto pretende investir, pois há um aumento proporcional no custo final do aroma”. Ele
ainda adverte para outro desafio: “Não podemos nos esquecer da conservação. Os aromas
devem ser capazes de suportar o fogo, o congelamento e a estocagem”. Tudo isso para
depois sumir dentro da boca. A boca que mastiga, mastiga, mastiga e saboreia.
Para saber mais
Internet:
http://www.nysaes.cornell.edu/pubs/press/mouth.html
http://www.nysaes.cornell.edu/fst/faculty/acree/market/index.html

Boca que não come

A boca artificial inventada na Universidade Cornell reproduz em laboratório o que acontece quando você
mastiga

Laranja mecânica

O que faz uma laranja ter gosto de laranja é o resultado da combinação de sessenta moléculas diferentes,
classificadas em cinco grupos de substâncias químicas.

Terpenos
Participação: 90% a 96%. De sabor neutro, servem de veículo para outras substâncias.
Exemplo: d-limoneno

Ésteres
Participação: 2%. Fazem você sentir o sabor frutal.
Exemplo: acetato de octila

Aldeídos
Participação: 1,6%. Responsáveis pela sensação refrescante dos sabores cítricos.
Exemplo: decenal

Hidrocarbonetos
Participação: 1,5%. Acentuam as propriedades das demais substâncias.
Exemplo: alfa-pineno

Álcoois
Participação: 1,2%. Simulam o açúcar da fruta, dando a sensação de que ela está madura.
Exemplo: decanol
Da fruta ao cheiro
Veja como o aroma do morango – essencial para a sensação de sabor – é isolado e reproduzido em
laboratório.
1. Matéria-prima

Retira-se o suco da fruta, esmagando-a por prensagem. O suco é colocado em um recipiente vedado.

2. Concentração
Aspiram-se os gases desprendidos do suco. Um filtro de polímero os captura. O filtro é, então, mergulhado
num solvente. O líquido resultante é chamado de extrato do morango ou de óleo essencial.

3. Fracionamento
No cromatógrafo gasoso, um gás força a passagem do extrato do morango através de um tubinho finíssimo,
enrolado em forma de espiral. É o canalículo de sílica. No contato com o polímero que reveste o interior do
tubinho as moléculas se separam.

4. Enumeração
Moléculas maiores demoram mais para sair na outra ponta. Os diferentes tempos de saída são, então,
registrados. No gráfico que está saindo da impressora, cada pico representa uma molécula, as substâncias
diferentes que compõem o aroma do morango.

5. Identificação
Dentro de um equipamento chamado espectômetro de massas, as substâncias comcheiro separadas no
cromatógrafo são bombardeadas por um feixe de elétrons. Um computador analisa o padrão de
fragmentação. A partir disso, identifica a composição química exata de cada elemento e sua participação no
aroma completo do morango.

6. Reprodução
Com a receita química do aroma nas mãos, basta reproduzi-lo. Alguns ingredientes podem vir de fontes
naturais. Outros podem ser sintetizados em laboratório. O aroma é apresentado sob a forma líquida, em pó,
em pasta ou em microcápsulas. Aplicações: alimentos, detergentes, cremes dentais, tabacaria, rações
animais e remédios.
A fisiologia do paladar
O sabor é o resultado de informações da língua e do nariz.
A língua é ótima, merece todo o respeito, mas não é dona da chave do sabor. Ela só consegue distinguir os
quatro gostos básicos dos alimentos (veja desenho abaixo). Embora a percepção do gosto pela língua seja
muito importante, são certas partículas gasosas, chamadas de voláteis, que fazem você perceber a variação
sutil entre uma ervilha e um feijão.
Ao se difundirem durante a mastigação pela cavidade que liga a boca ao nariz, os voláteis atingem células
especializadas da mucosa do nariz, por onde passam todos os cheiros. Ali, em uma área de 1 centímetro
quadrado, são desencadeados impulsos elétricos em direção ao cérebro. Eis o paladar.
Aprenda a ler um rótulo
Os aditivos sempre aparecem em letras miúdas nas embalagens.
No tamanho, elas se assemelham àquelas famosas letras ilegíveis dos contratos leoninos. Mas você não
precisa ter medo delas. As misteriosas siglas e palavras que parecem querer se esconder no rótulo são na
verdade nomenclaturas técnicas para os aditivos, substâncias essenciais à manutenção do sabor e
do cheiro do produto industrializado. Alguns aditivos também estimulam outros sentidos que auxiliam o
paladar, como a visão e o tato.

Estabilizantes
Identificados pelas letras ET e mais alguma coisa. Por exemplo, o código ET.XXIX se refere ao tartarato de
sódio, usado em queijos fundidos e requeijão. Ajudam a conservar o produto.

Conservantes
São os P e mais alguma coisa. Exemplos: o P.IX, que significa propionato de cálcio, sódio e potássio, usado
tanto em picles quanto em chocolates. Também conservam oalimento.

Antioxidantes
Aparecem como A, seguido de um número romano. Exemplo: A.XIX, terc-butil-hidroquinona, usado em
gomas de mascar. Evitam que o produto se deteriore em contato com ar.

Acidulantes
São os H e mais alguma coisa. H.IV, por exemplo, identifica o ácido fumárico, usado em geléias de frutas.
Além de conservar, acentuam o sabor ácido do produto.

Corantes
São os C e mais alguma coisa. Exemplo: dióxido de titânio (C.IV), usado em refrescos em pó. Os corantes
devolvem a cor original do produto, estimulando a visão e ativando a memória gustativa.

Flavorizantes ou aromatizantes
São escritos por extenso, como aroma natural de alguma coisa, aroma reforçado, aroma reconstituído ou
aroma imitação. Exemplo: aroma imitação de baunilha. Principais responsáveis pela percepção do paladar.

Antiumectantes
São os AU e alguma coisa. Exemplo: sais de alumínio (AU.XI), usados em café solúvel e gelatinas. Repelem a
umidade nociva ao produto.
Edulcorantes ou adoçantes
São grafados por extenso. Exemplo: ciclamatos, aspartame, sacarina, usados em alimentos e bebidas
dietéticos. Acentuam a percepção do sabor doce. São usados mesmo quando o açúcar faz parte da receita.
Umectantes
São os U e alguma coisa. Exemplo: sorbitol (U.II), usado em biscoitos e similares. Mantêm o grau de umidade
necessário ao produto.

Espessantes
São os EP alguma coisa. Exemplo: goma-arábica (EP.V), usada em balas e chicletes. Interferem na percepção
tátil da boca, acentuando a textura do produto durante a mastigação.
Metamorfoses saborosas
Às vezes, os gostos e os aromas vêm de fontes inusitadas.
É fácil imaginar que não existe nada de canela no chiclete que tem esse sabor escrito no rótulo. O que
pouca gente sabe é que, para fazer o chiclete de canela, usa-se um produto natural completamente
diferente: a amêndoa. Simplesmente, fica mais barato para o fabricante. O químico aromista pega a
amêndoa, isola a substância desejada e a submete a uma reação de oxidação. Ou seja, acrescenta oxigênio
à sua estrutura molecular. O resultado é uma mudança nas suas propriedades, entre as quais o gosto e o
aroma, como você vê nos exemplos ao lado:

Da amêndoa sai um gosto de canela


Extrai-se o aldeído benzeno
Oxidação
Forma-se o aldeído cinâmico

Do cravo sai um gosto de baunilha


Extrai-se o eugenol
Oxidação
Forma-se a vanilina

Do limão sai um perfume de violeta


Extrai-se o aldeído benzeno
Oxidação
Forma-se a bionona

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