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Até prova em contrário

A inocência é um grande patrimônio pessoal, no que se refere à Lei. Há um princípio,


praticamente universal, de que toda pessoa é inocente até prova em contrário. Será que é
mesmo?
Na realidade, não é bem isso o que acontece – senão, vejamos. Tomemos, a título de
exemplo: você, meu caro leitor que, sem conhecê-lo, tenho a certeza absoluta de que se trata
de pessoa honesta, correta, sem antecedentes criminais, sem nada que deponha contra a sua
pessoa.
De repente, você escorrega numa casca de banana. Em outras palavras, sem saber
como e por quê, você se vê envolvido em alguma trágica situação de natureza criminal, sem
que tenha nada a ver com o peixe.
Seguindo na mesma linha: suponhamos que você resolveu dar de presente de
aniversário a seu filho uma viagem para os Estados Unidos, para conhecer o Disney World;
você embarca com ele, sua esposa e outros filhos para uma viagem de lazer absoluto. Alguém
que você conheceu antes do embarque, uma pessoa simpática, elegante, de certa idade, de
cabelos grisalhos e que estava em trânsito, pediu o especial favor de receber, quando
desembarcar em Orlando, uma pequena soma de dinheiro que alguém irá lhe entregar e que
fará a fineza de entregar à filha dele, que mora em Nova York, por onde você vai passar
também alguns dias, conforme lhe contou.
Você, na maior inocência, não tem dúvida em fazê-lo. Ao desembarcar, com toda
família, depois de passar os trâmites da imigração e alfândega, lá está outro simpático e
sorridente cavalheiro que o espera portando uma placa com o seu nome. Você se dirige a esta
pessoa e recebe dele uma pequena maleta. Mal deu tempo de pegar essa encomenda e você
sente um braço pesado no seu ombro, com alguém lhe gritando em inglês: “You are under
arrest!”.
Mais tarde, você vem a saber que a maleta continha “apenas” US$ 1.500,00; e,
debaixo, bem camuflado, estava um saquinho preto contendo valiosíssimos brilhantes recém
roubados de uma importante joalheria – fato publicado em destaque em todos os jornais. Daí
para a frente, sua vida vira um pesadelo.
Seu nome, sua fotografia e toda sua família aparecem nos jornais e nos canais de
televisão dos Estados Unidos; em minutos, tudo é retransmitido para o Brasil. E aí se levanta a
maior tempestade que você jamais pôde imaginar. Os jornais e a televisão descrevem você
como suposto cúmplice de uma atividade criminosa.
Os jornalistas menos sérios já não mais se referem a você como suspeito, mas
escreverão que “segundo informações que receberam de alguma fonte oculta, a suspeita
sobre fulano (você) é muito grande”. Outros escreverão que “se for confirmada a participação
de fulano (você), ele pegará 20 anos de cadeia...”. Ninguém toma conhecimento de seus
protestos de inocência. Você está detido, separado de sua família, incomunicável.
Entrementes, perante seus amigos no Brasil, no banco que você trabalha como
gerente de agência, seu nome já está sujo. Apesar de todos manifestarem surpresa perante a
imprensa, afirmam: “quem poderia imaginar que aquela pessoa que parecia tão correta, fosse
fazer alguma coisa dessas...”. Aí você contrata um advogado, que lhe custa uma pequena
fortuna, que transferida de suas economias.
Decorridas algumas semanas, ocorre um milagre e descobrem que você é realmente
inocente. Foi uma simples vítima. O erro, que identificou você como suposto criminoso, passa
despercebido e, quando muito, aparece em uma pequena notícia a respeito nas páginas
internas de algum jornal.
Quando retornar ao Brasil, você sempre será olhado com desconfiança, porque a
mancha que existe sobre o seu nome será indelével.
Não costumo fazer referência a assuntos profissionais aos meus cuidados. Mas como o
assunto é público, sem medo de infringir as regras de ética profissional que me impõem sigilo
e discrição, faço menção ao caso da Família Lichewitz.
Os pais, pessoas de idade, são gente normativa, correta, que nunca teve qualquer tipo
de problema. A filha, professora de Educação Física. Um terremoto abalou a vida deles. Vieram
a Israel participar do Bar Mitzvá de um neto do casal, aproveitaram para fazer um passeio e
visitar vários lugares, realizando um sonho do casal de conhecer este país.
Não cabe aqui, no pouco espaço disponível, relatar tudo o que está acontecendo com
eles. No momento em que escrevo estas linhas, o assunto está ainda em fase primária de
investigação. Eles sofreram os vexames de uma detenção e foram liberados por ordem judicial
e recebidos na residência de um parente, com as restrições impostas em decorrência de uma
prisão domiciliar.
Posso, de momento, afirmar com toda a segurança que se trata de um clássico caso de
pessoas de boa-fé que foram envolvidas com toda a inocência, desafortunadamente, graças a
vil, maldosa e irresponsável manobra de traficantes de drogas.
Logo após a detenção deles, acompanhei a avalanche de correspondência que
apareceu em vários sites da internet – um verdadeiro linchamento moral –, onde “grandes
entendidos” já os julgaram previamente e, com absoluta falta de responsabilidade, referiram-
se a eles, alguns em tom irônico, outros ridicularizando-os, dizendo que “com toda certeza
alguma coisa de errado eles fizeram...”.
Felizmente, a exceção foi de um único jornal israelense, que publicou uma falsa
notícia, inventada por um afobado e irresponsável repórter, que escreveu ter a moça
desembarcado em Israel com a mochila contendo drogas... fato que jamais ocorreu e que ele
inventou. Aí, houve também alguns irresponsáveis e afoitos repórteres que traduziram a
notícia para o português, deliciando-se com o “furo jornalístico” que, de imediato, foi
publicado.
Em contraposição, é de se louvar a seriedade de jornalistas brasileiros,
correspondentes aqui em Israel de jornais e televisão, que acompanharam pessoalmente o
caso, divulgando-o de forma correta e expondo a Família Lichewitz como inocentes vítimas
que caíram numa armadilha.
Ao contrário do exemplo acima referido do gerente de banco que ficou com o seu
nome indelevelmente manchado, tenho a certeza de que esta família, ao retornar ao Brasil,
será recebida com todo o carinho e dignidade que lhes corresponde.
Nunca é demais advertir de que cada um, nos dias perversos em que vivemos,
devemos todos nos cuidar, não só de simpáticos desconhecidos, mas também da língua
comprida de outros irresponsáveis.

Marcos Wasserman é advogado em Israel, Brasil e Portugal, e é presidente do Centro Cultural Israel-
Brasil em Tel Aviv. E-mail: mlwadvog@netvision.net.il

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