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D.

AFONSO HENRIQUES
Diogo Freitas do Amaral

DIOGO FREITAS DO AMARAL


D. AFONSO HENRIQUES
Biografia
12.ª edição
BERTRAND EDITORA
2000
Diogo Freitas do Amaral
Capa: D. Afonso Henriques, estátua de Soares dos Reis Fotografia: Foto Tó
-Estoril
Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa,
excepto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.

Nota do autor
Este livro não é obra de investigação, mas de reflexão e divulgação.
Não tem autoria de historiador, mas de cidadão. Não tem aspirações
científicas, mas cívicas. E não pretende defender nenhuma tese sobre o
magno problema dos factores da formação de Portugal, nem tão-pouco
retratar a história integral do País no século XII - mas apenas
compreender, e dar a conhecer melhor, a acção do principal protagonista
da nossa independência.
Por isso tem o carácter de biografia.
D.F.A.
Fotocomposição e montagem: Espaço 2 Gráfico Impressão e Acabamento:
Tilgráfica, S.A. Depósito Legal n.o 158337/00 Acabou de imprimir-se em
Dezembro de 2000 ISBN: 972- 25-1157-2
Índice
Nota do autor...2
Capítulo I
A Europa no século XII...5
Capítulo II
Nascimento e infância de D. Afonso...10
Capítulo III
Juventude e formação do infante...14
Capítulo IV
O infante arma-se cavaleiro...17
Capítulo V
O episódio de Egas Moniz...19
Capítulo VI
A revolta dos barões portucalenses...22
Capítulo VII
A batalha de S. Mamede...23
Capítulo VIII
As grandes opções do príncipe...26
Capítulo IX
Pressões sobre a Galiza...29
Capítulo X
A "capital" em Coimbra e o caso do bispo negro...34
Capítulo XI
A batalha de Ourique...38
Capítulo XII
O título de Rei e o primeiro filho...42
Capítulo XIII
Valdevez e a Conferência de Zamora...45
Capítulo XIV
A vassalagem ao Papa...49
Capítulo XV
As pretensas Cortes de Lamego...54
Capítulo XVI
O casamento com D. Mafalda de Sabóia...56
Capítulo XVII
Os filhos de D. Afonso Henriques...59
Capítulo XVIII
A conquista de Santarém...62
Capítulo XIX
A tomada de Lisboa...65
Capítulo XX
O feito de Martim Moniz e a trasladação de S. Vicente...70
Capítulo XXI
A conquista do Alentejo...72
Capítulo XXII
Desvios estratégicos: o desastre de Badajoz...79
Capítulo XXIII
A crise da sucessão...83
Capítulo XXIV
Os anos do fim...88
Capítulo XXV
D. Afonso Henriques: o Homem e a obra...93
Cronologia...97
Agradecimentos...99
Bibliografia seleccionada...103
5
Capítulo I
A Europa no século XII
D. Afonso Henriques nasce, segundo a melhor opinião, no ano de 1109.
Em que mundo lhe é dado nascer? A Europa vive então em plena Idade Média:
os países são monarquias, as economias são agrárias, as sociedades são
feudais, as mentalidades são religiosas, o poder espiritual pertence à
Igreja Católica, o chefe da cristandade é o Papa.
O clero dedica-se ao culto, à educação e à assistência; a nobreza vive
das taxas locais e dos rendimentos da agricultura, e assegura as
necessidades militares da defesa do reino e da conquista de novos
territórios- o povo é constituído essencialmente por trabalhadores
agrícolas - os servos da gleba e os escravos -, que vivem em economia de
subsistência, chefiados administrativamente pelos senhores da terra, e
enquadrados moralmente pelos bispos e párocos.
A carta geográfica da Europa está bem desenhada: apesar de alguma
confusão na Península Ibérica, já existe o Reino da França, o Reino da
Inglaterra, o Império Romano-Germânico, os reinos da Escócia, Noruega,
Suécia e Dinamarca, o principado da Polónia, o Reino da Hungria, e está
prestes a surgir o principado da Rússia- Roma é a cidade dos Papas. Nada
disto é muito diferente do que no nosso tempo nos habituámos a considerar
como Europa (mapa 1). Onde as semelhanças com a actualidade são poucas é
na Península Ibérica: não existem ainda nem a Espanha, nem Portugal. O
que há, no início do século XII, é a metade Sul dominada
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por emiratos árabes, e na metade Norte, sucedendo ao Reino das Astúrias,
os reinos de Leão, Castela, Aragão e Navarra, bem como o condado de
Barcelona (mapa 2).
Sabe-se porque é que isto é assim. É que, depois de a Península Ibérica
ter sido ocupada e governada durante oito séculos pelos romanos, essa
situação foi substituída pelas ocupações visigótica e muçulmana, a
segunda das quais, a partir do Norte de África, invadiu toda a Península
e penetrou no Sul de França, até à cidade de Poitiers.
Os romanos, que dominaram a Península Ibérica durante a maior parte da
sua ocupação, bem como os visigodos, eram povos convertidos ao
cristianismo.
Quer isto dizer, portanto, que a estreita faixa de território situada no
Norte da Península Ibérica, e que permaneceu imune à ocupação muçulmana
no século viii, era constituída por uma população essencialmente cristã.
Esta, em tempos de profunda religiosidade, não se conformou com a vitória
dos muçulmanos e projectou a sua desforra.
Era necessário partir à conquista do Sul e retomar a Península Ibérica
aos mouros: foi a esta campanha militar, que durou sete séculos, que se
chamou a Reconquísta Crístã. Iniciou-se em Covadonga, sob a chefia do Rei
Pelágio, no século viii, e só terminou em Granada, sob a direcção dos
reis Católicos, Fernando e Isabel, no século xv.
Quem vão ser os principais agentes dessa Reconquista? Os grandes
inspiradores serão os Papas; os grandes aliados serão a França e a
Inglaterra; os grandes executores serão os reis, os senhores feudais e os
bispos da Península Ibérica, nomeadamente os reis de Leão.
Destes, destacam-se sobretudo três grandes monarcas leoneses, que
conduzem a Reconquista até ao Sul: Afonso III, que ocupa Lamego, Viseu e
Coimbra (910); Fernando Magno que, após as incursões de Almançor para
norte, recupera o território até ao Mondego (1064), e Afonso VI que,
reunindo nas suas mãos os reinos de Leão, Galiza e Castela, se faz coroar
imperador, conquista Toledo, Valência e Saragoça, e depois ocupa
vitoriosamente
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Santarém e Lisboa, conseguindo fazer descer a fronteira cristã até ao
Tejo (1094).
Os muçulmanos, porém, recuperam Lisboa e Santarém logo em 1095, impondo
assim o regresso da fronteira à linha do rio Mondego.
É nesta altura, ou mais precisamente no ano seguinte,
1096, que Afonso VI de Leão - numa clara delegação de autoridade, em
busca de maior eficiência - decide confiar a Galiza e a terra
portucalense aos seus dois genros: o imperador leonês casa a filha mais
velha, Urraca, com o conde D. Raimundo de Borgonha, e a filha mais nova,
ilegítima, Teresa, com um primo daquele, o conde D. Henrique de Borgonha.
Ao primeiro casal atribui o governo da Galiza; ao segundo concede a
administração do Condado Portucalense. A diferença das zonas geográficas
tem uma razão de ser: é que D. Raimundo, um ano antes, mostrou ser fraco
lutador frente aos mouros e melhor será, portanto, colocá-lo mais a
norte; D. Henrique revelou ser um bom chefe militar, pelo que lhe assenta
logicamente um lugar na primeira linha do combate, mais a sul.
O Condado Portucalense é concedido a D. Henrique e D. Teresa em 1096, ano
do respectivo casamento: o território concedido era vasto - do rio Minho,
a norte, até ao rio Mondego, a sul. Para cima do Minho, o território era
galego; para sul do Mondego, a terra era dos sarracenos. A condição
implícita na concessão era, pois, a de não expandir o Condado
Portucalense para norte, usurpando terra que estava em mãos amigas, mas
alargá-lo o mais possível para sul, anexando o território ocupado pelo
inimigo.
A concessão do Condado Portucalense a D. Teresa e seu marido não foi dada
numa só vida, mas, pelo contrário, foi feita a título hereditário,
devendo passar por morte deles aos respectivos filhos e netos.
Por isso, falecido D. Henrique e afastada D. Teresa, o filho mais velho
deles, D. Afonso Henriques, sucedeu naturalmente na chefia do condado,
sem necessidade de confirmação ou renovação da concessão por parte do Rei
de Leão.
O casamento de D. Henrique e de D. Teresa teve lugar, como vimos, em
1096. Mas o casal, apesar de ter procriado três
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filhas (Urraca, Teresa e Sancha), teve que esperar treze anos até ver
nascer o seu único filho varão: D. Afonso Henriques veio à luz, com
efeito, apenas em 1109.
Chamaram-lhe Afonso em homenagem ao avô - o Imperador de Leão, Afonso VI
-, e Henriques por causa do pai, D. Henrique (Henriques significava
"filho de Henrique"). Na altura não se atribuíam apelidos familiares,
como hoje fazemos.
D. Henrique e D. Teresa, sem nunca praticarem actos de revolta ou
insubordinação contra o Imperador de Leão, desenvolveram inicialmente a
autonomia do Condado Portucalense, mas sempre no seio da monarquia
leonesa. Só mais tarde, com o filho deles, D. Afonso Henriques, essa
política se transformou numa verdadeira luta pela independência de
Portugal.
D. Afonso Henriques nasce, pois, em 1109. Nesse ano, qual é a situação
política da Europa?
O Imperador de Leão, Castela e Galiza (incluindo a terra portucalense) é
Afonso VI - o grande unificador dos reinos do norte peninsular, o
conquistador de Toledo, o homem que trouxe os cristãos até ao Tejo,
ocupando Lisboa.'
O Rei de França é Luís VI, o Gordo (1108-1137) - o verdadeiro
consolidador da monarquia capeta, que combateu vivamente o feudalismo e
repeliu a invasão do imperador germânico Henrique V.
O Rei de Inglaterra é Henrique 1, Beauclerc (1100- 113 5) quarto filho de
Guilherme, o Conquístador, que promulgou uma «Carta de Liberdades»,
importante precursora da "Magna Charta", do século seguinte.
O Imperador Romano-Germânico é Henrique V (1106-1125) - o homem que
conseguiu finalmente resolver com o papado a difícil
"querela das investiduras", na Concordata de Worms (1123).
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E na Santa Sé reina o Papa Pascoal II (1099-1118) - que se empenhou a
fundo na «querela das investiduras», lutando contra os imperadores
Henrique IV e Henrique V, mas não conseguiu resolvê-la.
No século XII a Europa está desassossegada: de 1109 a 1113 lavra mais uma
guerra anglo-francesa e, ao mesmo tempo, está em curso o conflito entre o
Papado e o Império, em que se joga o primado do poder espiritual ou do
poder temporal nos países europeus.
O século XII ficará sobretudo marcado como "o século das Cruzadas",
movimento geral de toda a Cristandade conduzido no sentido de libertar do
domínio muçulmano os Lugares Santos e, em especial, Jerusalém.
Quando nasce D. Afonso Henriques, a Primeira Cruzada já se efectuou: teve
lugar de 1096 a 1099 e alcançou um certo êxito (importantes conquistas
aos Turcos e tomada de Jerusalém). Mas as posições obtidas foram perdidas
pouco depois e uma Segunda Cruzada será lançada pelo Papa Eugénio III, em
1145 - já em pleno reinado do nosso primeiro monarca. Será, aliás, no
âmbito desta Segunda Cruzada que alguns milhares de combatentes
estrangeiros, nomeadamente ingleses, auxiliarão o Rei português na
conquista de Lisboa aos mouros. Alguns falarão então numa "Cruzada do
Ocidente", a par das cruzadas do Oriente. Estas continuarão ainda nas
décadas seguintes.
Toda a vida de D. Afonso Henriques decorrerá em pleno século XII, entre
1109 e 1185.
Que outras figuras conhecidas da história universal vivem no mesmo
período? Não muitas: em três reis de França, três reis de Inglaterra e
doze pontífices romanos, não se destaca nenhum nome verdadeiramente
importante, a não ser o do Papa Alexandre III, que aliás ficará para
sempre ligado à História de Portugal, por ter sido o subscritor da bula
Manifestís probatum. É neste período que nasce e morre assassinado, às
ordens do seu rei, o célebre arcebispo de Cantuária, Thomas Becket;
nascem também nesta época o futuro imperador dos Mongóis, Gengis Khan, e
o conhecido Rei de Inglaterra, Ricardo, Coração de Leão. Morre Santo
Anselmo, ilustre doutor da Igreja, nasce S. Francisco de Assis,
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grande santo que se pode considerar o precursor dos ecologistas, e é
canonizado Carlos Magno, o fundador do Estado francês.
Ainda no século xii produzem-se outros acontecimentos de bastante relevo:
emergem as primeiras cidades europeias; prossegue a construção de algumas
das mais belas catedrais (Chartres, Oxford, Mainz); são fundadas as três
primeiras universidades do mundo (Bolonha, Paris, Oxford); nasce o grande
filósofo árabe, Averróis; e dão os seus primeiros passos a poesia e a
música trovadorescas. O 1º Concílio de Latrão (1123) proíbe o casamento
dos padres católicos. A cidade de Moscovo aparece citada pela primeira
vez. Inicia-se a construção da Igreja de Notre-Dame de Paris, e da famosa
Ponte de Avignon. Aparecem as primeiras janelas de vidro nas casas
inglesas. Em 1160 é escrito o célebre poema épico celta, Tristão e
Isolda; dez anos depois surge o primeiro romance de cavalaria, Lancelote,
e em 117 6 são reduzidas a escrito as famosas Lendas do Rei Artur.
Neste contexto e nesta época, D. Afonso Henriques surgirá, em todos os
aspectos, como um homem do seu tempo: será um cavaleiro medieval, crente
fervoroso e feroz combatente; viverá uma vida épica, mergulhada em
batalhas gloriosas, em lendas míticas e em cantigas de amor; construirá
castelos, igrejas e mosteiros; e será sobretudo um rei-fundador,
determinado a criar um país e a dar-lhe condições de independência.
Monarca cristão do século XII peninsular, será principalmente um
militante da Cruzada do Ocidente, apostado numa luta sem quartel contra
os infiéis muçulmanos.
O retrato que dele fazem as crónicas antigas não deixa dúvidas sobre o
personagem: por um lado, «homem muito benévolo e devoto», "prudentíssimo
e dotado de claro engenho", "de nobre figura, belo rosto e olhar
agradável"; mas, por outro, homem "mui grande de corpo e de mui
assinalada valentia", "de força grande e coração muito maior", e "grande
cortador de espada" ...

Capítulo II
Nascimento e infância de D. Afonso

D. Afonso Henriques terá nascido em 1109. Esta afirmação está longe de


ser pacífica, uma vez que não chegou até nós nenhum documento
comprovativo da data do nascimento ou do baptizado. Assim, as opiniões
dos historiadores vão-se formando ou pela consulta directa das crónicas
antigas, ou pela tentativa de descobrir onde se encontrava amãe do jovem
príncipe nas datas em que se admite ter ele nascido.
As incertezas são muitas: a data preferida por maior número de
historiadores é 1109; mas também aparecem citadas
1100- 1105, ou 1106-1110, ou 1111. Para todos os efeitos, vamos aqui
tomar como boa a data de 1109. E mencionaremos, por curiosidade, que um
historiador português julga mesmo poder indicar, com algum grau de
certeza, o dia e o mês do nascimento: este teria ocorrido, provavelmente,
em 5 de Agosto de 1109.
Se as dúvidas e opiniões contraditórias são muitas a respeito da data do
nascimento de D. Afonso Henriques, maiores são
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ainda as incertezas e divergências quanto ao local do nascimento: segundo
a tradição foi Guimarães; mas vários estudiosos contestam-na, defendendo
antes que foi Coimbra ou Viseu, ou Astorga. Não me parece que haja neste
momento uma sedimentação consistente para se poder chegar a uma conclusão
clara: continuarei, pois, até melhor prova em contrário, a presumir que o
nosso primeiro rei nasceu em Guimarães (a Cidade-Berço) e que aí foi
baptizado, na Igreja de S. Miguel do Castelo.
Este jovem príncipe, filho de pai francês e de mãe leonesa tem uma
ascendência notável: ele é, nem mais nem menos, neto do Imperador de Leão
- o qual, por sua vez, descende em linha recta de Hugo Capeto, Rei de
França, fundador da dinastia dos Capetos, que dominou a época medieval
francesa.
Nasce bom e são, o príncipe D. Afonso? A lenda diz que não, sustentando
que veio à luz aleijado, e que só por um milagre de Nossa Senhora ficou
são e escorreito:
"Veio a Raínha (D. Teresa) a parir um filho grande e formoso, que não
podía ser uma mais bela criatura, salvo que nasce com as pernas tão
encolhídas, que, pelo parecer dos médicos e de todos, julgavam que nunca
podería ser são delas. (... ) Tanto que D. Egas Moniz soube que a Rainha
paríra, cavalgou à pressa, e veio a Guimarães, onde o Conde D. Henrique
estava, e pedíu-lhe por mercê que lhe desse o fílho que lhe nascera para
o poder criar, como lhe tínha prometido.
O Conde respondeu-lhe que não quisesse tomar tal encargo porque o filho
que Deus lhe dera nascera, pelos seus pecados, tolhido, de maneira que
todos acreditavam que nunca vingaria nem víría a ser homem.
D. Egas, quando isto ouviu, sofreu muito e disse:
- Senhor, antes cuido eu que por meus pecados aconteceu isto. Mas, já que
a Deus aprouve de ser esse o meu destino dai-me mesmo assim o vosso
fílho, seja qual for o seu estado.
E o Conde, embora tivesse grande relutância, pelo bem que a D. Egas Moníz
queria, de o encarregar de semelhante tarefa, por causa do aleijão da
criança, contudo deu-lha para lhe ser agradável.
E quando D. Egas víu a críatura tão formosa e com tal aleijão, teve
grande pena dela: e confíando em Deus, que lhe poderia dar saúde, tomou-a
e fê-la criar, sem menos ardor e cuidado que se fosse muito sã.
E estando D. Egas deitado uma noite dormindo, tendo já o menino cinco
anos, apareceu-lhe Nossa Senhora e dísse:
- D. Egas, dormes? Ele, acordando com esta vísão e voz, respondeu:
- Senhora, quem sois vós? Ela disse:
- Eu sou a Vírgem María, que te mando que vás a um tal lugar (dando-lhe
logo os sinais dele) e faz aí cavar, e acharás lá uma igreja, que noutro
tempo foi começada em meu nome, e uma imagem minha. Faz reconstruir a
igreja e a imagem feita à minha honra, e isto feito, farás aí vígília,
pondo o menino que crias sobre o altar: e sabe que se curará, e será são
de todo. E não trabalhes menos, de aí em díante, a criá-lo bem e a
guardá-lo como fazes, porque o meu fílho quer por ele destruír muitos
inimigos da fé.
Desaparecída esta vísão, fícou D. Egas Moniz muito consolado e alegre,
como vassalo que com são e verdadeiro amor amava o seu senhor e as suas
coisas.
E assim que foi manhã, levantou-se logo e foi com muita gente àquele
lugar que lhe fora dito: e mandando aí cavar achou aquela igreja e
imagem, pondo em obra todas as coisas que Nossa Senhora lhe mandara, à
qual aprouve, por sua santa piedade, logo que o menino foi posto sobre o
seu altar, ser logo curado e são das pernas, sem nenhum aleijão, como se
nunca tivesse tido nada.
Vendo D. Egas este tamanho prazer e milagre, deu muitos louvores a Deus e
à Senhora sua Mãe, criando e guardando de aí em diante, com muito maior
cuidado, o menino, de quem foi sempre o aio.
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( ... ) E por causa deste milagre, foi depois feito nesta igreja, com
muita devoção, o mosteiro de Cárquere." (Cárquere é hoje uma freguesia do
concelho de Resende, distrito de Viseu).
Como se vê, D. Afonso Henriques, segundo a lenda, foi à nascença uma
criança miraculada, o que evidenciava bem segundo a mentalidade medieval
- que estava predestinado por Deus para altos feitos patrióticos. Quem
tomou conta do jovem príncipe, desde a mais tenra idade foi D. Egas Moniz
- um grande fidalgo de Entre Douro e Minho, pertencente a uma das
famílias mais nobres e poderosas do condado Portucalense. (Há opiniões em
contrário: há quem entenda que o aio de D. Afonso Henriques não foi Egas
Moniz, mas antes Sociro Mendes, o Bom).
A família de Egas Moniz era de Ribadouro (região mais vasta que a actual
freguesia do mesmo nome no concelho de Baião, distrito do Porto), e
possuía terras em numerosas localidades no Norte de Portugal.
Quando D. Egas Moniz tomou conta do príncipe D. Afonso devia ter cerca de
35 anos de idade e tinha acabado de se casar, em segundas núpcias, com D.
Teresa Afonso, filha do conde das Astúrias (nobre leonês): é pois natural
que D. Afonso Henriques tenha crescido e brincado juntamente com os
filhos de Egas Moniz. Egas Moniz não era apenas um membro ilustre da
nobreza portocalense, um homem rico e poderoso, um cavaleiro capaz de
reunir algumas centenas de homens para combaterem o inimigo que lhes
fosse designado: era também um homem de honra, dotado de uma sã formação
moral, capaz de definir princípios de conduta exigentes e de se manter
fiel a eles na prática quotidiana.Numa palavra: foi uma boa escolha do
conde D. Henrique para preceptor do filho que um dia lhe havia de suceder
na chefia do Condado Portucalense. Para além de lhe dar uma boa educação
física e militar, incutiu-lhe sãos princípios morais que moldaram o
carácter do futuro rei.
Não há a certeza do local onde Afonso Henriques, com o seu aio, terá
passado os primeiros anos da sua mocidade: uns pensam que terá sido em
Ribadouro, outros entendem que foi sobretudo em Cresconhe, Sanfins do
Douro (distrito de Vila Real),outros ainda que terá sido em Britiande,
junto a Lamego.
Seja como for, uma coisa é certa: a partir de 1113, quando Afonso ia nos
seus quatro ou cinco anos, D. Egas é nomeado governador de Lamego, onde
ficará instalado até 1117. Podemos pois deduzir que o infante D. Afonso
terá estado entre os quatro ou cinco anos e os oito ou nove na região de
Lamego.
Muito provavelmente, ao aproximar-se dos dez anos de idade (1119), o
infante terá passado a residir em Guimarães, recebendo também a
influência espiritual e cívica do poderoso arcebispo de Braga, D. Paio
Mendes, que pertencia a outra das mais influentes famílias da nobreza
portucalense - a dos senhores da Maia . Tanto com este prelado como com
um dos seus sucessores, D. João Peculiar, manteve D. Afonso Henriques as
melhores relações pessoais e políticas - um dos motivos pelos quais, no
seu longo reinado, não houve qualquer contencioso grave entre a Igreja e
o Estado (um dos problemas mais difíceis da Idade Média europeia, como se
sabe).
Ao nascer, D. Afonso Henriques tem já na família três irmãs mais velhas:
chamam-se elas D. Urraca, a primeira, D. Teresa Henriques, a do meio, e
D. Sancha, a mais nova. Ignora-se se foram educadas junto do príncipe, ou
se este foi mantido isolado, em locais distantes. O que se sabe é que
alguns dos filhos delas - sobrinhos de D. Afonso Henriques - aparecerão
mais tarde a pelejar junto dele contra os mouros no sul do país.
Há quem diga que D. Afonso Henriques teve um irmão, filho ilegítimo, D.
Pedro Afonso - que o futuro rei de Portugal estimou e protegeu, e que
veio a ser mestre de Aviz, acabando Por professar em Alcobaça, onde terá
morrido em 1169: não se encontra, porém, confirmação documental desta
notícia.
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Faltam elementos que nos elucidem sobre o género de educação que ao
infante D. Afonso terá sido dada por Egas Moniz e por sua mulher, D.
Teresa Afonso. Mas sabendo-se que eram uma família nobre, portucalense,
católica, não é difícil concluir que lhe ensinaram o «galaico -português»
(língua que então se falava no Condado Portucalense) e talvez um pouco de
latim, que lhe deram as noções elementares da fé católica, ensinando-o a
rezar a Deus e à Virgem, e que o procuraram adestrar na ginástica e na
equitação.
Companheiros de brincadeira - que havia de incluir, por certo,
verdadeiros «torneios medievais» em miniatura ou «a fin gir» -, se não
eram as irmãs do príncipe, eram com certeza os filhos de Egas Moniz, mais
velhos os do seu primeiro casamento, da mesma idade que Afonso os do
segundo.
É pouco verosímil que D. Afonso Henriques, aos três anos de idade, tenha
sido levado a Astorga, junto de León, que era ao tempo um senhorio do
pai. D. Henrique encontrava-se nesse seu feudo em 24 de Abril de 1112,
quando faleceu. Diz a lenda que teve então, pouco antes de morrer, uma
conversa muito séria com o seu único filho varão, por isso seu presumível
sucessor, acerca da herança política que lhe deixava:
"Veio o Conde a adoecer, de maneira que bem conheceu não haver nele
esperança de vida. pelo que, vendo-se em tal ponto chamou seu fílho D.
Afonso Henriques, e fez-lhe uma fala mui de cavaleiro entendido e
esforçado, e muito conveniente ao tempo e feitos em que deixava seu
filho, dizendo desta maneira: - "Fílho, esta hora derradeira que Deus me
ordena para te haver de deixar com a vída deste mundo, faz-me que te veja
e fale com redobrado amor e sentido do nosso afastamento: e por isso
assenta no teu coração as mínhas palavras de pai, pois que após estas já
não hás-de ouvir outras.
Deves, filho, saber que o poderio que o Senhor Deus neste mundo ordenou
de alguns príncípais sobre outros submetidos a eles, foi dado de tal modo
que os maus sejam constrangidos, e os bons vívam entre eles em paz e
sossego, porque a conservação dos bons é a punição dos maus: pelo que,
filho, more sempre em teu coração a vontade de fazer justíça: vírtude é
que dura para sempre na vontade e corações dos justos, e dá igualmente a
cada um o seu direito, que é o maior louvor e merecimento que os
príncipes no seu governo podem alcançar, pois todo o governo e bem comum
consiste principalmente em duas coisas, em prémio e em pena. E assim como
os bons pela justiça se fazem melhores, recebendo prémio e galardão das
suas boas obras, assím os maus vêm a ser bons, ou ao menos a cessar os
seus males com receio da pena: e portanto, filho, faz sempre com que
todos tenham direito, tanto os grandes como os Pequenos, e nunca por rogo
nem cobíça, nem qualquer outra afeição, deixes de fazer justiça: pois no
dia em que um só palmo a deixares de fazer, logo no outro se arredará do
teu coração uma braçada.
Aplíca-te muito em saberes se os que têm cargo de ti fazem justiça e
direito correctamente, e se a fizerem, faz-lhes bem e mercês: mas se
fizerem o contrário, dá-lhes pena segundo o seu merecímento: nem
consíntas em modo algum que os teus homens sejam soberbos ou atrevidos em
mal fazer, pois perderás o teu valor e estima, se tais coisas não
proíbires: mas segue sempre a justíça, temendo e amando muito a Deus,
para que sejas dos teus amado e temido. Tendo Deus em tua ajuda, terás as
gentes em teu serviço; e sem ele não há poder nem saber que te aprovei
te. De sua mão somos isso que somos: e o que temos não teríamos, se da
sua mão e vontade o não tivéssemos: e portanto trata de conservar ao seu
serviço o que tiveres.
De toda esta terra que eu te deixo, daquí de Astorga até Leão, não percas
dela um palmo, que eu a ganhei com grande fadíga e trabalho.
Toma, filho, um pouco do meu coração, para que sejas esforçado e sem
medo: dos fidalgos sê companheiro, e dá-lhes dos teus dinheiros; e aos
concelhos dá agasalho e trata-os bem. E chama agora estes de Astorga, e
mandarei que te façam logo homenagem da víla e do castelo, e desde que me
levarem a enterrar, torna logo e não a percas, pois daqui conquístarás
toda a outra terra adíante. E manda-me com alguns vassalos meus e teus,
que me vão a enterrar em Santa Maria de Braga, que eu povoei.
Tudo isto, fílho, faz assim com a mínha benção, para que seJas como um
filho abençoado ao serviço de Deus, com muita honra e prosperidade."
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As concepções políticas e religiosas que inspiram este texto do século
xvi não são muito diferentes daquelas que vigoravam em Portugal no século
xii: a origem divina do Poder, a responsabilidade dos reis perante Deus,
a justiça como tarefa fundamental do governo dos povos, a dupla face da
justiça como prémio concedido aos bons e castigo imposto aos maus, a
necessidade de tratar igualmente bem todos os grupos sociais («assim
grandes como pequenos»), a especial protecção devida aos concelhos ou
municípios, etc.
D. Afonso Henriques cumpriu todos os encargos desta fala de seu pai,
inclusivamente levando-o a enterrar na Sé de Braga, onde ainda hoje se
encontra sepultado, juntamente com D. Teresa, sua mulher.
Só num ponto o infante, quando maior, se desviou das recomendações
atribuídas ao pai: de facto, não deu grande importância às terras
situadas perto de León. Pelo contrário, sedeado primeiro em Guimarães e
depois em Coimbra, Afonso Henriques seguiu uma estratégia político
-militar bem diferente: tentar alargar os limites do Condado Portucalense
para norte, invadindo a Galiza, e procurar estender a fronteira para sul,
conquistando o Ribatejo e o Alentejo. As cercanias de León deixaram pura
e simplesmente de o interessar.

Capítulo III
Juventude e formação do infante

O príncipe D. Afonso pouco terá privado com seus pais: com O pai, D.
Henrique, porque este morreu quando ele tinha apenas três anos; e com a
mãe, D. Teresa, porque ela andou constantemente envolvida na política
galega e leonesa, fazendo e desfazendo alianças, conquistando e perdendo
castelos, ganhando e recuperando terras - e não devia ser o género de mãe
com muito tempo e paciência para se ocupar da educação dos filhos. Era,
aliás, uma mulher muito bela e fascinante - «formosíssima», segundo os
cronistas -, a qual despertou paixões em vários homens ilustres e teve
uma vida amorosa agitada, o que a deve ter mantido igualmente afastada do
filho.
Falecido D. Henrique em 1112, toda a parte mais importante da juventude
de Afonso Henriques vai decorrer sob o governo da rainha D. Teresa (como
ela tanto gostava de se chamar): de 1112 a 112 8 decorrem os 16 anos de
governo de D. Teresa, e também os 16 anos mais significativos da educação
do jovem príncipe (dos três aos 19 anos de idade).
Mas há, no governo do Condado Portucalense pela rainha D. Teresa, duas
fases bem diferentes: a primeira dura nove anos e vai de 1112 a 112 1 - é
uma fase de lucidez, marcada pela continuidade da linha política de
autonomia relativa do Condado, definida pelo marido; a segunda dura sete
anos e vai de 112 1 a 112 8 - é uma fase de desorientação e desnorte,
caracterizada por uma política de submissão à hegemonia galega, que rompe
com a tradição de D. Henrique e dos condes portucalenses dos dois séculos
anteriores, causando um mal-estar crescente na nobreza minhota.
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Ora, a estas duas fases da governação de D. Teresa vão corresponder dois
períodos igualmente distintos na juventude de D. Afonso Henriques - o
período da infância, marcado por uma vida despreocupada e feliz,
sobretudo voltada para o crescimento saudável e para uma educação
esmerada; e o período da adolescência, caracterizado pela precoce
politização do príncipe, desde cedo envolvido nas malhas de uma
conspiração crescente, em vias de se tornar na revolta dos barões
portucalenses contra D. Teresa e contra a preponderância galega que ela
deixava afirmar-se em Portugal.
O primeiro período decorreu em boa paz, como vimos no capítulo anterior,
sob a orientação de D. Egas Moniz e de D. Teresa Afonso, sua mulher.
Foi a época dos primeiros passos, das primeiras palavras, dos primeiros
jogos; foi a época de Ribadouro, de Crasconhe, de Britiande e de Lamego;
foi a época de uma infância calma e descuidada, decerto na companhia dos
filhos e filhas do casal Egas Moniz e de outros amigos das redondezas.
O infante nem se terá dado conta da febril actividade ppolítica e militar
de sua mãe, da participação dela na Cúria Régia d Oviedo, em 1115, tinha
ele seis anos, ou das lutas de D. Teresa com sua irmã D. Urraca, no
contexto da complexa e anárquica política leonesa da época.
D. Afonso Henriques talvez nem tenha sabido do segundo casamento que a
mãe fez, na Galiza, com D. Bermudo Peres de Trava, filho mais velho do
mais nobre e poderoso fidalgo galego - D. Pedro Froilaz, conde de Trava?
Nem terá sido informado de como esse casamento depressa se desfez, se é
que alguma vez chegou a passar de projecto, ou se não foi apenas uma
irregular união de facto apadrinhada pelo poderoso clã dos Travas - que
com essa união pretendiam selar para o futuro uma aliança duradoira entre
a principal família da Galiza e a rainha de Portugal, perseguindo o velho
sonho da reunificação galaico-portuguesa.
Tudo lhe terá passado ao largo; tudo lhe terá sido mais ou menos
indiferente.
Mas no ano de 1120, tendo D. Afonso Henriques 11 anos, as coisas começam
a mudar.
D. Teresa volta-se para um irmão mais novo da família Trava, de seu nome
Fernão, e toma-se de amores por ele. Não se sabe ao certo se casam ou se
apenas passam a viver maritalmente: mas uma crónica antiga diz que mantêm
entre eles «um casamento sem Deus e sem direito», o que dá a entender que
se trata de mera união de facto.
Esta união tinha na época carácter incestuoso, pois, segundo o direito
canónico de então, bastava que a primeira relação com Bermudo tivesse
existido, ainda que ilícita, para tornar ilegítima a união com um irmão
seu.
E neste caso houve mesmo um duplo incesto: porque, entretanto, a filha
mais velha de D. Teresa, Urraca, casou pela mesma altura (1121-1122) com
o primeiro amante da mãe, Bermudo - que assim passava de concubino a
genro.
D. Teresa mostrou com tudo isto não temer as censuras eclesiásticas; mas
é fácil de adivinhar que elas existiram e foram, decerto, contundentes.
Para um rapaz de 11 anos, educado longe da corte e nos princípios rígidos
da fé católica, ver a sua mãe viúva esquecer rapidamente o pai e passar
de mão em mão por entre os membros da família Trava - não deve ter sido
uma experiência agradável. Aqui devem ter começado a germinar sentimentos
de revolta no peito do infante D. Afonso, quer contra a sua mãe, quer
contra o novo amante dela, Fernão Peres de Trava - sentimentos esses que
certamente lhe terão sido avolumados pelos comentários, que facilmente se
adivinham, do arcebispo de Braga, D. Paio Mendes.
Seja como for, D. Teresa regressa a Portugal e instala-se em Coimbra com
o amante, com quem passa a viver maritalmente: a partir de Janeiro de
1121, todos os documentos régios contêm
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a assinatura de Fernão Peres de Trava, que exerce jurisdição sobre
Coimbra e Portugal, isto é, sobre todo o território do Condado
Portucalense de então.
É manifesto que D. Teresa - ou fosse por amores, ou por uma recente
conversão à doutrina da unidade da Galiza com Portugal - investiu Fernão
Peres na máxima autoridade político-administrativa em terras portuguesas.
E o conde galego que já era o homem mais poderoso da Galiza («este
Conde... era naquele tempo o maior homem da Espanha que rei não fosse).
- tornou-se também, rapidamente, no homem mais poderoso de Portugal.
Podia ter usado todo este poder apenas para si e para D. Teresa, deixando
os altos postos da administração do Condado à nobreza portucalense, que
os detinha há várias gerações. Mas não foi essa a sua opção política:
inspirado pelo modelo dos reis Garcia e Fernando Magno - que tinham sido
reis da Galiza e Portugal unificados -, Fernão Peres de Trava quis
trabalhar para a unificação dos dois territórios e "galizificou" a
administração portuguesa. Ou seja, começou de imediato a substituir, nos
mais elevados cargos do Condado Portucalense, os portugueses pelos
galegos.
Logo em 112 1, foram afastadas as três principais famílias da nobreza de
Entre Douro e Minho: os senhores de Ribadouro, Maia, e de Sousa. Se
tivermos presente que o arcebispo de Braga, D. Paio Mendes, pertencia aos
senhores da Maia, podem concluir que, de uma assentada, o fidalgo galego
pôs contra si o alto clero e a nobreza principal do Condado Portucalense.
E repare-se: não se tratava apenas de lhes retirar funções honoríficas: o
que Fernão Peres fez foi afastar as principais famílias da nobreza
portuguesa de cargos que significavam poder político-militar e elevados
rendimentos económicos.
Começou aqui o espírito de revolta do clero e da nobreza minhotos contra
a hegemonia galega - e, portanto, também contra a rainha D. Teresa, que a
tudo dava cobertura.
Deve ser por esta altura que o jovem Afonso Henriques, com perto de 12
anos, e decerto vivendo já em Guimarães, é posto ao corrente dos
sentimentos do clero e da nobreza contra o conde galego: não se esqueça
que um dos primeiros a ser atingidos pela purga» contra os portugueses
foi D. Egas Moniz, aio e preceptor de D. Afonso Henriques. A queixa há-de
ter sido instantânea - embora provavelmente feita só contra Fernão Peres
de Trava, pois nos primeiros tempos ninguém se atreveria a murmurar
contra a própria mãe do infante.
Conciliábulos, críticas, conspirações - deve ter havido bastantes,
provavelmente na Sé de Braga. Tanto que, logo no ano seguinte (Verão de
1122), D. Teresa - inesperadamente - manda prender o arcebispo de Braga.-
Não se conhecem os motivos exactos deste acto de força inusual, mas "no
contexto do ano de 112 2, é provável que Diego Gelmírez (o arcebispo de
Santiago) tivesse persuadido a "rainha" de que Paio Mendes (o arcebispo
de Braga), conspirava contra ela".
Por ordem directa do Papa, o arcebispo é solto logo no Outono de 1122.
Mas a luta tinha começado: de um lado, o sonho da unidade Galiza -
Portugal, protagonizado pelo arcebispo de Santiago, pelos Travas e pela
rainha D. Teresa; do outro, o projecto de autonomia do Condado
Portucalense, sem hegemonia galega ou leonesa, assumido pelo arcebispo de
Braga, pela nobreza de Entre Douro e Minho e ... por quem? Por que chefe
político com pergaminhos régios?
O escolhido para o efeito só podia ser um - o jovem príncipe D. Afonso
Henriques, neto e bisneto de reis dos mais ilustres da Europa, que pelo
direito hereditário era naturalmente o sucessor natural de D. Henrique e
D. Teresa.
A Igreja de Braga, na sua luta já antiga contra a Sé de Santiago de
Compostela, e a nobreza do Norte de Portugal, na sua revolta recente
contra a hegemonia galega dos Travas, deram as mãos e escolheram D.
Afonso Henriques Como chefe? Ainda não: tinha apenas 12 anos. Escolheram-
no como símbolo e como"
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bandeira. Ele era o futuro chefe - quiçá o futuro rei -, em nome de quem
se podia começara lutar.
E a luta começou. Não conhecemos os pormenores dessa luta, entre 1122 e
1125: foram certamente três anos de muitas combinações e alianças.
Mas sabemos que um dos objectivos principais então escolhidos foi o da
preparação rápida e completa de D. Afonso Henriques para assumir, tão
cedo quanto possível, as responsabilidades que o esperavam.
Os esforços terão cabido, na parte civil, a D. Egas Moniz, agora já sem
necessidade da ajuda de sua mulher, porque se tratava de ministrar uma
educação viril, e, na parte religiosa, a D. Paio Mendes, arcebispo de
Braga.
Entre Guimarães e Braga vão apenas 20 quilómetros: as deslocações entre
uma cidade e a outra devem ter-se multiplicado.
O príncipe D. Afonso terá sido instruído, antes de mais, nas artes
marciais: a marcha, a equitação, a esgrima, o manejo da maça, da corda,
do arco e flecha, a luta corpo a corpo. Mas desta vez era preciso ir mais
longe, explicando-lhe a "doutrina da monarquia", um pouco de História, e
as noções elementares da política.
Como o provou depois pela vida fora, D. Afonso Henriques foi um bom aluno
dos seus mestres. De Egas Moniz terá recebido a preparação física e
política; de D. Paio Mendes terá colhido ensinamentos preciosos de
religião, de moral, e de política também; de ambos terá podido recolher a
noção de que se lhe preparava um importante destino», porventura um
"destino real".
Já nesta altura o infante D. Afonso devia revelar alguns dos traços mais
característicos da sua personalidade futura: era esperto e sagaz; era
firme e possuía autoridade natural - era são, alto, robusto; gozava de
boa saúde, física e mental; era determinado, voluntarioso, quase
obsessivo, e tinha uma energia inquebrantável.
Aos 12 anos foi escolhido pela nobreza minhota para defender os
interesses desta- aos 18 já mandava em todos - e até desautorizava o seu
aio e preceptor, Egas Moniz. Parafraseando Camões, D. Afonso Henriques
tinha nascido para mandar, mais que para ser mandado.

Capítulo IV
O infante arma-se cavaleiro

Para garantir o destino real que os seus próximos lhe preparavam, era
indispensável que D. Afonso Henriques fosse armado cavaleiro, entrando
assim no grémio dos cavaleiros medievais. Melhor: era necessário que ele
tivesse a ousadia, ou que alguém o levasse a tê-la, de se armar a si
próprio cavaleiro - como faziam os filhos dos reis com direito à
sucessão.
As atenções de Egas Moniz e D. Paio Mendes viraram-se então para o primo
direito de D. Afonso Henriques, o jovem Afonso Raimundes, futuro Afonso
VII de Leão e Castela. Este, num ambiente de incerteza quanto aos seus
direitos sucessórios, armara-se a si próprio cavaleiro, em Santiago de
Compostela, em 1124: não deviam eles levar o príncipe português a fazer o
mesmo?
Assim se fez, em 1125. Com mais um ano de mentalização, e deixando que
Afonso Henriques completasse os 16 anos - a idade da maioridade política,
na época -, convenceram-no a ir até à catedral de Zamora, em pleno reino
de León, e a armar-se a si próprio cavaleiro, no dia de Pentecostes.
E assim foi. Diz a Crónica dos Godos:
Na Sé de Zamora, junto ao altar de S. Salvador, em sí mesmo colocou pelas
próprias mãos as armas militares retiradas do altar, tal como é costume
dos reis fazer-se.
Este texto, apesar de singelo, dá-nos uma quantidade preciosa de
informações: que D. Afonso Henriques se armou cavaleiro; que o fez na
catedral de Zamora, junto ao altar de S. Salvador;
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que se armou cavaleiro a si próprio, como é costume fazerem os próprios
reis; e que o fez retirando as armas militares do altar, e colocando-as
sobre o seu corpo pelas suas próprias mãos.
Não as recebeu, portanto, das mãos do pai, que já tinha morrido, nem da
mãe, que devia estar ausente, nein do arcebispo de Braga, que estava
presente mas deve ter sido o principal inspirador de que a cerimónia se
processasse segundo o costume dos reis.
Que "armas militares" terá o príncipe retirado do altar para colocar em
si mesmo? Não o diz a cróníca: mas podemos alvitrar que terão sido a
espada, o escudo, o elmo e as esporas, Quiçá também o cinto de cavaleiro
e a loriga, uma espécie de saio de malha coberto de lâminas de ferro.
Por efeito directo e imediato deste acto, D. Afonso Henriques ingressou
na categoria dos militares adultos, com licença para participar na guerra
e para matar em combate. Passou a poder dispor de cavalo próprio e a
poder comandar um grupo autónomo de cavaleiros-vilãos e de peões. Ficou
adstrito aos deveres de honra e militares próprios da cavalaria medieval.
E, sobretudo, ficou consciente de que, como filho e neto de reis, tinha
começado a caminhada que o havia de levar ao trono de seu pai. Só não era
claro, na sua mente, se para isso teria ou não de esperar pela morte da
mãe: o futuro o diria.
Quem terá estado presente nesta cerimónia, que se pretendia solene? Além
do príncipe e do arcebispo de Braga, decerto estiveram lá juntos os
conjurados da revolta em andamento - Egas Moniz e os irmãos, de
Ribadouro; os da Maia- e os de Sousa.
Ausentes estiveram com certeza a rainha D. Teresa, os Travas, da Galiza,
e os demais nobres galegos ou portucalenses que alinhavam já com o
partido da mãe contra o partido do filho. Afonso VII, claro está, também
não devia estar perto: não era do seu interesse contribuir para valorizar
a pessoa do herdeiro de seus tios, que era já um foco polarizador de
sentimentos antigalegos e antileoneses.
Sabendo-se que Braga conduzia uma luta muito viva para ser uma sé
metropolita independente de Santiago de Compostela e de Toledo, e
sabendo-se também que o respectivo arcebispo abraçava a causa do
separatismo português, pareceria à primeira vista mais lógico que o local
escolhido para D. Afonso se armar cavaleiro com o significado político
inequívoco que se pretendia emprestar à cerimónia, fosse a Sé de Braga.
Porquê então Zamora?
Tem-se hoje em dia por certo que quem influenciou o infante e as outras
testemunhas presenciais a realizar o acto nesse local foi o próprio
arcebispo de Braga, D. Paio Mendes. As razões da escolha de Zamora são
obscuras. Mas talvez tenham a ver com o facto de o arcebispo se encontrar
lá no momento da cerimónia, por falta de condições de segurança em Braga,
ou com o facto de o senhorio da cidade de Zamora pertencer na época à
rainha D. Teresa,' sendo a cidade portanto terra de portugueses.
Contudo, não parece razoável admitir que o acto solene pelo qual o
príncipe português se armou cavaleiro, à maneira dos reis», tenha sido
praticado com o pleno conhecimento e concordância de D. Teresa e de
Fernão Peres de Trava:' o acto foi um desafio à autoridade e à política
de ambos, que o devem ter encarado com a maior preocupação.
Ou fosse por mera coincidência, ou antes por deliberada retaliação, a
verdade é que também no mesmo ano de 112 5 ocorreu uma segunda «purga» de
nobres portugueses, afastados de altos cargos administrativos do Condado
Portucalense - e desta vez muito maior e mais ampla do que a de 1121. São
agora atingidos os da Silva, os Ramirões, os de Lanhoso, os Guedões, os
da Palmeira, os de Azevedo, e muitos outros.
É toda a classe dirigente lusitana que se vê afastada, em bloco, dos
lugares de influência política e de poder económico no Condado
Portucalense, sendo substituída por gente de fora, da Galiza. A partir
daqui, e muito compreensivelmente, a indignação é geral e a preparação da
revolta vai crescer de intensidade.
D. Afonso Henriques é aliciado para a conjura, mas - com prudência e
habilidade táctica - mantém-se formalmente
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boas relações com a mãe, com quem continua a assinar documentos régios
até 1127.
A partir do Verão de 1127, dá-se uma separação física importante: D.
Afonso Henriques assume a autoridade do comando político-militar a norte
do Douro, deixando a D. Teresa as terras entre o Douro e o Mondego. O
filho instala-se em Guimarães, a mãe e o amante em Coimbra. E as duas
cortes vão conspirar abertamente uma contra a outra.
Entretanto, Afonso VII de Leão havia começado a reinar em 1126, por morte
de sua mãe, a rainha D. Urraca (irmã de D. Teresa e, portanto, tia de
Afonso Henriques). Sentindo necessidade de afirmar a sua autoridade sobre
vassalos irrequietos e insubordinados, trata primeiro de resolver os
problemas que tem em Leão e Aragão, e olha de seguida para os da Galiza.
Para segurar a tia, D. Teresa, e Fernão Peres de Trava, chama-os a um
encontro conciliador em Zamora, ainda em 1126 ou nos começos de 1127, do
qual resulta o estabelecimento de tréguas. Mas estas, como é lógico,
preocupam fortemente os barões portucalenses: não se estará a tramar uma
aliança leonesa-galaico-portuguesa, a fim de consolidar definitivamente a
hegemonia «estrangeira» sobre o Condado Portucalense?
E não será muito mais difícil combater contra os Travas e contra Afonso
VII simultaneamente, em vez de os atacar um de cada vez?
O príncipe, já armado cavaleiro e nominalmente à frente dos revoltosos, é
posto ao corrente das nuvens negras que se acumulam no horizonte.

Capítulo V
O episódio de Egas Moniz

Da insubordinação latente dos portugueses chegam ecos a Afonso VII, quem


sabe se transmitidos mesmo pelo conde de Trava. O rei leonês sente que
tem de vir a Portugal impor a sua autoridade e exigir um acto de
vassalagem a D. Afonso Henriques. Por isso se dirige a Guimarães e põe
cerco ao castelo.
D. Afonso Henriques, com 18 anos de idade, é apanhado de surpresa e não
está militarmente preparado para dar batalha ao primo e suserano, Afonso
VII de Leão e Castela. Mas também não lhe quer ceder: recusa-se a
praticar, pessoalmente, um acto de vassalagem.
Entra então em cena o seu aio e principal conselheiro político, Egas
Moniz. O episódio - não se sabe bem ao certo se é história, se é lenda -
é narrado nas crónicas antigas desta forma:
Ao cabo de pouco tempo, estando El-Rei D. Afonso de Castela, chamado
Imperador, em Toledo, e sentindo muito o pouco caso que dele fazia o
Príncípe D. Afonso Henriques, achando ele que toda a EsPanha lhe havía de
obedecer e respeitar o senhorio, determinou em conselho muito secreto
tornar a Portugal: e ajuntada muita gente o mais dissimuladamente que
pôde, abalou para a Galíza e chegou de surpresa a Guimarães, onde cercou
o Príncípe Dom Afonso, que dentro estava despercebido, nem a vila estava
abastecída, pelo que em Poucos dias a tomaría El-Rei de Castela se lhe
mantivesse o cerco.
Sobre isto, vendo Dom Egas Moníz, aio do Príncipe, o grande perígo em que
seu senhor estava, vestindo sua capa de
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pele, traje daquele tempo, cavalgou secretamente um dia pela manhã cedo
sem levar ninguém consigo, e foi ao arraial dos inimigos.
E deu o seguinte conselho a Afonso VII: - Senhor, não foste bem
aconselhado em vires aqui cercar esta vila, porque o Príncípe vosso primo
é tal cavaleiro, como vós sabeis ... e tem consigo dentro tanta gente e
tão boa, além da muita que tem por essas terras, toda obediente ao seu
querer e mandar, que grande será o esforço, e muito maior o risco, de
quem o forçar para lhe tomar a víla. (... ) E quanto ao que dizeis,
Senhor, que vosso primo vos respeite o senhorio e vá às vossas cortes, a
mim parece-me certo e conforme à razão. E, Senhor, ainda me parece mais:
que se vós partirdes daqui para vossa terra, de modo que não pareça que
vosso primo vos obedece pela força ou pelo medo, eu conseguirei convencê-
lo a que vá às vossas cortes onde vós quiserdes: e disto, Senhor, vos
farei preito e menagem.
Quando El-Rei de Castela ouviu isto, agradou-lhe muito de receber a
promessa de D. Egas Moníz acerca do caso, e ficou de partír no outro dia.
Até aqui, o narrador conta a iniciativa que, por sua conta e risco, sem
autorização superior, tomou D. Egas Moniz para livrar D. Afonso Henriques
do beco sem saída em que se encontrava, cercado no seu castelo por Afonso
VII.
Vejamos agora como reagiu D. Afonso Henriques quando soube do que se
tinha passado: No día seguinte, El-Rei de Castela levantou o cerco e
partíu com toda a sua hoste, como dissera a D. Egas Moníz. E o Príncípe
D. Afonso Henriques viu partír El-Rei e, espantando-se muito, porque não
sabia a causa, perguntou a Dom Egas que lhe parecía de tal levantamento e
partida de El-Rei de Castela, por que motivos entendia que isso
acontecera.
Dom Egas, então, contou-lhe tudo como era e como a coisa se passara.
Ouvindo isto, o Príncipe sentíu grande pesar e fícou muito indignado,
dízendo que antes escolheria ser morto do que fazer o que D. Egas
prometera, ou ir às cortes de El-Rei de Castela.
Esta passagem tem o maior interesse porque mostra D. Afonso Henriques,
pela primeira vez, a não seguir um conselho do seu aio e preceptor Egas
Moniz, de tão determinado que estava a não reconhecer a supremacia
política do rei de Leão e Castela.
A cena que se segue - nesta descrição que mais parece uma peça de teatro
em três actos - é bem conhecida, pois nos habituámos a ouví-la desde os
bancos da escola primária: Vindo o termo do prazo em que o Príncípe D.
Afonso Henriques havia de ír às cortes que se faziam em Toledo, segundo a
promessa que D. Egas fizera a El-Rei de Castela, D. Egas assumiu a
responsabilidade de tudo e partiu com sua mulher e filhos, e chegaram a
Toledo: foram descer ao Paço onde El-Rei estava. E ali se despiram de
todos os panos, salvo os de línho ( ... ); descalçaram-se todos, e
puseram baraços nos pescoços. E assim entraram pelo Paço, onde El-Rei
estava com muitos fidalgos e cavaleiros: e aproximando-se de El-Rei,
puseram-se todos de joelhos diante dele.
Falou então D. Egas Moniz, e disse: - Senhor, estando vós em Guimarães
sobre o Príncipe vosso primo e meu senhor, eu vos fiz a promessa que
sabeis, a qual eu fíz por ver que a sua pessoa e honra naquele momento
corria grande risco de se perder ( ... ). E eu, porque o críei desde o
seu nascimento, quando o vi em tamanho trabalho e perigo, tomei de mim
aquela ideia de ír até vós e fazer o que fiz.
Porém, e uma vez que D. Afonso Henriques não quis assumir o compromisso
prometido por D. Egas Moniz, este oferece a Afonso VII o sacrifício
supremo: - Por causa disto, Senhor, me venho apresentar ante vós, com
estas mãos com que vos fiz a promessa, e com esta língua com que vo-la
disse,- e mais vos trago aquí a minha mulher e estes
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moços, meus filhos. Para que, se a vossa íra houver por maior a minha
culpa do que o meu corpo pode expiar, por esta mulher e por estes moços,
de cuja fraqueza e idade a ira dos inimigos costuma apíedar-se, seja a
vossa indígnação satisfeita. Tomai, Senhor, se assim vos parecer, por
culpa de um só, vingança de muitos. (...) Para que se diga em todo o
tempo que mais cumpriu D. Egas do que errou.
Aqui termina o gesto honrado e cavalheiresco de Egas Moniz. Mas o
cronista ainda acrescenta dois apontamentos finais.
Um é o de que desde que Egas acabou de falar, ficou El-Rei muito irado, e
quería mandá-lo matar, dizendo que o havia enganado. Mas os fidalgos e
nobres ali presentes convenceram-no a perdoar Egas Moniz - pois ele e
todos os príncipes deviam desejar ter muitos como ele. E El-Rei perdoou
e, depois de lhe fazer muita mercê, mandou-o livremente tornar para
Portugal.'
O segundo apontamento é menos conhecido mas não é menos saboroso: Desde
que D. Egas Moniz assim partiu de El-Rei de Castela, quíte e livre da sua
promessa, e com toda a sua graça, fez o seu caminho para Guímarães. E
antes que aí chegasse, o Príncipe D. Afonso Henriques, sabendo da sua
vínda, saíu a recebê-lo com toda a sua corte e muito alegre, porque
sempre esperara que ele em Castela fosse morto ou desonrado. E tanto
quanto estas coisas lhe tínham dado pesar, assim lhe davam agora sobejo
prazer. Em Guimarães, depois de alguns dias, o Príncipe, para se
acautelar de não caír em outra tal míngua e desastre de se ver
cercado, não preparado como dantes, começou a abastecer os seus castelos
e vílas de todas as coisas necessárias para a sua defesa.
O saldo do «episódio Egas Moniz» fora, afinal de contas, bastante
positivo para D. Afonso Henriques: não cedera perante Afonso VII de Leão
e Castela, não fora derrotado militarmente, não perdera o seu principal
amigo e conselheiro pollítico - e aprendera a lição, mandando guarnecer e
preparar todos os seus castelos e vilas para não voltarem a ser apanhados
desprevenidos.
O Cerco de Afonso VII a Guimarães fez intercalar uma pausa na escalada
dos preparativos para uma confrontação física entre o partido do infante
D. Afonso e o partido da rainha D. Teresa. Mas, resolvido - e bem
resolvido - o problema do cerco, e afastada para longe a presença de
Afonso VII - com quem era ainda muito cedo para terçar armas -, tornava-
se agora inevitável esclarecer quem mandava em Portugal. O desenlace do
conflito durou menos de um ano.
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Capítulo VI
A revolta dos barões portucalenses
Armando-se a si próprio cavaleiro aos 16 anos, o príncipe D. Afonso
ganhou consciência da sua posição e do seu provável destino. Vencendo,
por um acto de natureza política, o cerco de Guimarães, deve ter-se
sentido, aos 18 anos, finalmente investido numa função de liderança: era
a primeira vez que não obedecia a Egas Moniz, ou a quem quer que fosse. A
sua própria vontade fora lei.
A partir daqui, o mandado torna-se mandante: e tudo vai começar a correr
de acordo com as ordens e instruções de Afonso Henriques. Está com 18
anos de idade: atingiu a maioridade civil, acha-se forte e capaz de
orientar as coisas. Pela primeira vez sente subir-lhe à cabeça um néctar
mais inebriante do que o vinho, um afrodisíaco mais poderoso do que o
sexo - o poder, isto é, a capacidade de mandar e de se fazer obedecer.
Está com ele a grande maioria da nobreza minhota: estão todos os
saneados» por Fernão Peres de Trava, mas não apenas esses. Muitos outros
se vão passando para o seu lado.
É significativo o apoio incondicional que recebe de seu cunhado D. Sancho
Nunes, filho do conde D. Nuno de Cela Nova (galego-leonês), casado com
sua irmã Teresa Henriques, a segunda. Apesar das suas origens, toma
partido por D. Afonso Henriques, e estará com ele até à batalha de S.
Mamede.
Mas D. Afonso Henriques não quer ficar indefinidamente à espera do
confronto militar: vai ser ele a procurá-lo e a abrir as hostilidades. A
partir de agora, a iniciativa será sua.Em fins de 1127, princípios de
1128, lança-se para o sul, abaixo do rio Douro, penetrando pela primeira
vez à frente das suas tropas nos terrenos de D. Teresa e de Fernão Peres
de Trava. Lança uma ofensiva contra dois importantes castelos que estavam
na posse destes: Neiva e Feira. Conquista-os para si. E não fica
inactivo: «Destes dois castelos fazia muita guerra a seu padrasto.
O poderio militar, a grande disciplina e o bom comando tornam preocupante
a ofensiva lançada pelo jovem príncipe. As hostes de D. Teresa sentem-se
receosas e pedem tréguas. Em Março de 1128 chega a ter lugar uma
tentativa de acordo, que se realiza em Vila Nova de Paiva (actual
distrito de Viseu). Mas em vão: as negociações ficam goradas. O caminho
para a batalha campal está desimpedido.
D. Afonso Henriques, com 19 anos de idade, está cheio de confiança em si
próprio. Para ele já não restam dúvidas: o confronto militar vai dar-se,
e ser-lhe-á favorável. Em breve assumirá a chefia do Condado
Portucalense.
Com efeito, em 27 de Maio de 1128, o príncipe faz uma ampla doação de
bens à Sé de Braga, e no documento que a titula escreve estas palavras
determinadas: «Quando tiver adquirido a terra portucalense ... ».'
Repare-se bem: D. Afonso não diz «se vier a adquirir», diz «quando tiver
adquirido». A firmeza do propósito não pode ser maior. O embate está por
dias.
Sabe-se, aliás, que a rebelião propriamente dita estalou no mês de Abril
em toda a província de Entre Douro e Minho, «dilatando-se pelo distrito
de Guimarães, pelo condado de Refóios de Lima, pelo território de Braga e
pelas terras, enfim, dos nobres que seguiam a parcialidade do infante».
Terá havido nesta altura algum encontro, alguma negociação, entre D.
Afonso Henriques e Fernão Peres de Trava? Depois das conversações de Vila
Nova de Paiva, não parece provável. No entanto, a lenda põe ambos a
dialogar:
23
Vieram ambos à fala, com a Raínha D. Teresa presente. E dísse o Conde D.
Fernão:
- Príncipe, não nos afadiguemos mais nesta contenda, mas juntemo-nos um
día numa batalha, eu e vós, quando quiserdes: e ou vós saíreis de
Portugal ou eu.
Respondeu o Príncipe D. Afonso: - Não devia agradar a Deus uma tal coisa,
que vós me queirais deitar fora da terra que meu pai ganhou.
Acudiu então a Raínha, sua mãe, dízendo: - Minha é esta terra, e será,
que meu pai ma deu e deixou. Disse então o Conde D. Fernão a ela:
- Não andemos mais neste debate: ou vós ireis comigo para a Galiza, ou
deixareis a terra a vosso filho, se tiver mais poder que vós.
Diz o cronista que no final desta conversa «se desafiaram para um dia
certo, e vieram juntar-se em Guimarães».
Terá sido assim? Será que o dia foi marcado de comum acordo? E será que
se tratou, afinal, de uma espécie de torneio medieval, destinado a apurar
quem tinha a sorte pelo seu lado ou, na linguagem de época, a averiguar
de que lado estava a vontade de Deus?
Não o sabemos ao certo. O que sabemos é que o confronto físico das duas
facções teve lugar no mês seguinte, no dia 24 de Junho de 1128, próximo
do castelo de Guimarães: foi a batalha de S. Mamede.

Capítulo VII
A batalha de S. Mamede

Chamou-se de S. Mamede esta batalha porque, segundo a tradição, teve


lugar nos campos da freguesia de S. Mamede de Aldão - que ainda hoje
existe e fica situada entre a freguesia de Guimarães (castelo) e a de S.
Torcato.
Alexandre Herculano, no seu romance histórico O Bobo, imagina como terá
sido, em Guimarães, a véspera da batalha. Só que ele inverte aí as
posições: em vez de colocar Afonso Henriques dentro do castelo - como
parece que terá sido -, instala lá D. Teresa e Fernão Peres de Trava,
pondo o príncipe do lado de fora, a cair sobre Guimarães com as suas
tropas, e a tentar fomentar algumas traições dentro do castelo, que acaba
por lhe abrir as portas, de forma sediciosa, logo depois da batalha.
Contudo, na sua Históría de Portugal - neste aspecto, mais credível -,
relata a versão tradicional, segundo a qual D. Teresa, «tendo marchado
para Guimarães com as tropas dos fidalgos galegos e dos portugueses seus
partidários, aí se encontrou com o exército do infante no campo de S.
Mamede».
Os cultores da história militar têm procurado fazer a reconstituição da
batalha, mas a verdade é que pouco ou nada têm conseguido descobrir de
verdadeiramente novo. Sabemos ao certo em que data ocorreu. Já quanto ao
local, as opiniões divergem. Para uns, o feito deu-se na localidade de
24
Santidanhas, hoje impossível de identificar; para outros, terá tido lugar
no Campo do Torneio, junto ao rio Celho; para um terceiro grupo, enfim, e
de acordo com uma tradição secular, a batalha deu-se em terrenos da
freguesia de S. Mamede de Aldão, num local sugestivamente crismado pela
população como "Campo da Ataca. A Câmara Municipal de Guimarães assinalou
o local com uma placa e uma escultura alusiva ao acto.
De onde vieram os contendores? Também pouco se sabe: a conjectura mais
credível propõe que as tropas lusitanas de D. Teresa viriam de Coimbra e
as hostes galegas de Peres de Trava, da Galiza, tendo-se ambas reunido a
norte de Guimarães, talvez na Póvoa de Lanhoso.
Quanto ao número de soldados presentes na batalha, as estimativas variam
bastante, mas a mais consistente aponta para 300 homens do lado de D.
Teresa e um máximo de 600 do lado de D. Afonso Henriques, dos quais 80 a
100 cavaleiros, não mais.
Do lado de D. Teresa sabemos que estavam: Fernão Peres de Trava, com toda
a autoridade militar que lhe fora delegada; o irmão Bermudo, cunhado de
Afonso Henriques (por ter casado com a irmã mais velha deste, D. Urraca);
alguns fidalgos de Coimbra, do Porto e de Baião, relativamente poucos; e
parte significativa da nobreza galega.
Do lado de D. Afonso Henriques as hostes eram mais numerosas e
representativas - estava o Entre Douro e Minho em peso: D. Egas Moniz e
seus irmãos Ermígio Moniz e Mem Moniz, de Ribadouro; Soeiro e Gonçalo
Mendes, de Sousa; Paio Soares e outros, da Maia; o já referido cunhado de
D. Afonso Henriques, casado com sua irmã Teresa Henriques, D. Sancho
Nunes, e quase todos os "saneados" de 1125, como os da Silva, os
Ramirões, os de Lanhoso, os Guedões, os da Palmeira, os de Azevedo, os de
Marnel, e tantos outros.Sobre o modo como se desenrolou a batalha temos,
pelo menos, duas versões. A primeira pode considerar-se lendária e é
dramatizada assim:
A batalha foí bravamente pelejada, e o Príncipe D. Afonso lançado do
campo desbaratado. E indo ele assim, a uma légua de Guímarães, encontrou-
se com D. Egas Moniz, seu aio, que o vínha ajudar e estar com ele na
batalha.
E, quando D. Egas o víu, disse: - Que é isto, Senhor? Como víndes vós
assím? Respondeu o Príncípe: - Venho mui desbaratado porque me venceu o
meu padrasto e a minha mãe, que estava com ele.
Dísse então D. Egas: - Não fizestes bem nem com razão, dardes a batalha
sem mim. Mas tornai lá, e eu convosco, e espero em Deus que hoje
prendamos vosso padrasto e vossa mãe. Recolhei a vós toda a vossa gente
que vem fugindo, e voltemos a pelejar.
E tornaram então outra vez à batalha, e venceram-na: e o Príncipe prendeu
alí o padrasto e a mãe.
A segunda versão, menos dramática mas porventura mais verdadeira,
considera que não houve duas fases de uma batalha, mas apenas, primeiro,
o afugentamento de um grupo de vigilância do partido do Príncipe e,
depois, a própria batalha em si, de que o grupo de D. Afonso Henriques
teria logo saído vitorioso.
Terminada a batalha com a vitória de D. Afonso Henriques e da sua gente,
outras duas versões disputam a narração do que se terá passado a seguir.
Diz a lenda: O Príncípe D. Afonso pôs então a sua mãe em ferros. E ela,
vendo-se assim presa, disse:
- Dom Afonso, meu filho, prendeste-me e deserdaste-me da terra e honra
que me deixou meu pai, e afastaste-me de meu marido. A Deus peço que
preso sejais vós, assím como eu me vejo agora. E porque
25
pusestes em ferros as mínhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar
com muitas dores do meu ventre e fora dele, com ferros sejam as vossas
pernas quebradas, e praza a Deus que assím seja.
E depois aconteceu a este Príncipe D. Afonso, sendo já Rei, que se lhe
quebrou uma perna ao sair pela porta de Badajoz, e foi preso de El-Rei D.
Fernando de Leão: e todos dizem que lhe isso aconteceu pela maldição que
lhe lançou sua mãe.
A versão dos historiadores modernos é no sentido de que nenhum documento
permite provar que D. Afonso Henriques tenha colocado a mãe a ferros ou a
tenha mandado presa para qualquer castelo. Antes pelo contrário: o que se
sabe é que D. Teresa e Fernão Peres de Trava foram expulsos do Condado
Portucalense para a Galiza onde D. Teresa recolheu a um convento em
que morreu dois anos depois, e onde o conde de Trava recolheu e educou
uma filha que tivera de D. Teresa, chamada Dona Sancha, a qual era,
portanto, meia-irmã de D. Afonso Henriques. Não se sabe se este alguma
vez a conheceu.
Qual a interpretação a dar à famosa batalha de S. Mamede? Embora, do
ponto de vista militar e social, S. Mamede tenha sido muito mais uma
batalha entre a nobreza portucalense e a nobreza galega, a verdade é que,
do ponto de vista político e jurídico, ela saldou-se por uma clara
vitória do príncipe D. Afonso Henriques contra a rainha D. Teresa.
E assim, o principal efeito da vitória foi a imediata assunção, por D.
Afonso Henriques, da posição incontestada de chefe do Condado
Portucalense. Curiosa e significativamente, o projecto separatista que o
animava levou-o a nunca se intitular conde de Portugal, mas a usar sempre
expressões de mais alta estirpe - como infante ou príncipe.
Poderá dizer-se que S. Mamede representou o momento principal da
independência de Portugal?
Alexandre Herculano aproximou-se bastante desta teoria ao declarar que,
por ser essa batalha uma luta dos barões portucalenses contra a hegemonia
galega na nossa terra, havia nela um "pretexto de nacionalidade que
servia de estandarte à revolução", pelo que S. Mamede "equivalia a uma
declaração formal de independência". E José Mattoso não anda muito longe
deste pensamento ao chamar ao dia 24 de Junho de 112 8, dia da batalha de
S. Mamede, "a primeira tarde portuguesa".
Em minha opinião, não há dúvida de que a batalha de S. Mamede foi o
início do processo que conduziu à independência de Portugal, porque nos
libertou de uma das dependências políticas em que então nos encontrávamos
- a dependência da hegemonia galega, representada pela poderosa
influência de Fernão Peres de Trava e do seu clã nos negócios do Condado
Portucalense, através da ligação amorosa com a rainha D. Teresa.
E não é certamente por acaso que uma crónica medieval se referia aos
galegos instalados em posições de poder no Condado Portucalense como
"estranhos" (alienígenae) e "exteriores à nação" (exteros natíone) .
Mas, se S. Mamede foi o início do processo da nossa independência, não
foi todavia o termo desse processo, pois não nos libertou, nem visava
libertar-nos, da outra (e mais forte) dependência política a que então
estávamos sujeitos - a dependência formal do Reino de Leão e Castela, em
que nos inseríamos como parte integrante.
Com S. Mamede, Portugal deixou de ser uma província da Galiza: mas
continuou ainda a ser, por alguns anos, um condado incorporado na
monarquia leonesa.
D. Henrique e D. Teresa nunca puseram isso em dúvida, nem lutaram contra
tal situação. Só D. Afonso Henriques encaminhou a sua acção política e
militar no sentido de nos libertar, primeiro, da hegemonia galega e,
depois, do domínio leonês.
Conseguido o primeiro objectivo em 1128, o segundo ia levar 15 anos a
alcançar.
26

Capítulo VIII
As grandes opções do príncipe

Afonso VII, rei de Leão e Castela, não reagiu à batalha de S. Mamede.


Considerou-a um mero facto interno da vida do Condado Portucalense,
traduzido na simples substituição de D. Teresa por D. Afonso Henriques na
situação de «conde de Portugal». Cometeu certamente um erro de análise:
mas a verdade é que, preocupado com o seu próprio casamento,'nada fez e
nada disse quanto aos acontecimentos de Guimarães.
Segundo Alexandre Herculano, Afonso VII "não podia olhar com indiferença
para esse grave sucesso". E tinha "dois meios de acudir ao mal: ou
restituía pelas armas à rainha fugitiva o poder de que seu filho a
privara ou, aceitando o facto consumado, exigia de Afonso Henriques que
se considerasse como simples lugar-tenente ou vassalo da coroa, qual fora
a sua mãe". Pois bem: o rei de Leão não fez uma coisa nem outra; fechou
os olhos e aceitou sem pestanejar que o novo chefe do Condado
Portucalense era o filho, já não era a mãe. Havia de pagar caro este
deslize.
Quem também não reagiu foram D.Teresa e o valido todo-poderoso, Fernão
Peres de Trava. Que a mãe de D. Afonso Henriques não tenha reagido - ou
por se encontrar doente, ou por não querer prolongar uma luta penosa
contra o seu próprio filho -, ainda se compreende. De resto, ela
ingressou logo num convento na Galiza, em 1128, e viria a morrer cedo, em
1130.
Agora que os Travas tenham desistido assim tão depressa do seu projecto
político de dominação do Condado Portucalense, e do sonho de unidade
galaico-portuguesa, como reis da Galiza, já é algo de mais
surpreendente.' De facto, nem a família Trava nem o arcebispo de Santiago
reagiram contra as consequências de S. Mamede ou procuraram tirar
desforra. Talvez isto nos diga alguma coisa sobre a força e amplitude da
revolta dos barões portucalenses, bem como sobre a impressão causada
pelas qualidades combatentes e de liderança demonstradas pelo jovem
príncipe português.
No Condado Portucalense, "expulsos de Portugal a rainha D. Teresa e o
conde Fernão Peres, toda a província seguiu a fortuna do vencedor", isto
é, foi geral a aceitação da nova liderança assumida por D. Afonso
Henriques. Um ou outro pequeno foco de contestação foram prontamente
dominados.
O primeiro acto do novo governante terá sido, de acordo com os documentos
disponíveis, a nomeação para os mais altos cargos políticos, militares e
administrativos do Condado Portucalense de todos os "barões" que haviam
sido demitidos em 1121 e 1125 por Fernão Peres de Trava e que, por isso,
tinham entrado em revolta. Na verdade, logo nos documentos régios de
1128, no próprio ano de S. Mamede, aparecem de novo todos os nomes
saneados nos últimos sete anos: o afastamento dos nobres galegos foi
geral e imediato.
Curiosamente, manteve-se da administração anterior o cunhado de Afonso
Henriques, Bermudo Peres de Trava, casado com D. Urraca, irmã mais velha
daquele, e que continuou com o governo de Viseu, apesar de ter apoiado D.
Teresa em S. Mamede. As ligações familiares entre D. Afonso Henriques e o
clã dos Travas mantiveram-se fortes - e não levaram nunca a soluções
radicais. Ninguém matou ninguém... Bermudo acabou por se revoltar em
1131, no castelo de Seia, mas a sua tentativa falhou e ele foi expulso de
Portugal.
Nas novas nomeações efectuadas por D. Afonso Henriques conta-se ainda,
como não podia deixar de ser, a confirmação do
27
couto de Braga ao respectivo arcebispo, D. Paio Mendes, a quem foram
concedidas numerosas outras mercês (Capela, Penafiel, Bastuço e outras
terras). O próprio arcebispo foi nomeado, além de capelão-mor do Condado,
chanceler-mor da Cúria Régia.
No ano seguinte, o castelo de Soure (actual distrito de Coimbra) é
concedido aos Templários, poderosa ordem militar europeia que assim faz a
sua entrada em Portugal.
À parte estas nomeações e concessões, a segunda metade de 1128 e todo o
ano de 1129 constituem um período calmo, não havendo notícia de que o
tenham perturbado quaisquer inquietações, nem a norte, na Galiza, nem a
sul, para baixo do Mondego.
Que se terá passado nestes 18 meses de inacção? Sem dúvida que D. Afonso
Henriques aproveitou para saborear e explorar a sua vitória; para
reorganizar à sua maneira a Cúria Régia; para recompensar amigos e
aliados. Mas não pode ter feito só isso. Algo mais deve ter ocupado o seu
tempo e os seus pensamentos.
Tenho para mim que 1129 deve ter sido uma pausa para reflexão
estratégica.
Na realidade, o jovem Afonso Henriques viu-se de repente, aos 19 anos,
investido numa posição de grande poder e responsabilidade: em menos de um
ano, recusara prestar vassalagem a seu primo, Afonso VII de Leão; fora
escolhido e aceite como chefe da revolta dos barões portucalenses contra
o poderio galego; derrotara militarmente Fernão Peres de Trava e a sua
coligação galaico-coimbrã; e sucedeu no trono a sua mãe, a rainha D.
Teresa. Não fora contestado nesta nova posição. E, para todos os efeitos,
era agora o conde da terra portucalense, o chefe indisputado dos
portugueses, o interlocutor único com o Rei de Leão e os demais poderes
da Ibéria.
A pergunta que inevitavelmente lhe deve ter acudido ao espírito foi esta:
que fazer? Que fazer, agora, com todo este poder que me caiu nas mãos?
Pelos seus próprios conhecimentos e pela reflexão dos amigos e
conselheiros mais próximos, dois pares de opções estavam naquele momento
abertas, no plano estratégico, à livre decisão política de D. Afonso
Henriques: por um lado, continuar, como seus pais, a respeitar fielmente
os compromissos feudais para com Afonso VII (reconhecendo-lhe supremacia,
participando na sua cúria, aceitando-o como Imperador de toda a Espanha)
ou, pelo contrário, tentar tudo para se libertar dessa situação e fazer
de Portugal um reino independente? Por outro lado, encaminhar a acção
político -militar do Condado Portucalense para, na base da condição
implícita com que ele fora concedido, respeitar a fronteira norte no rio
Minho e partir à conquista de novas terras para o sul, abaixo do Mondego,
ou, pelo contrário, segurando com firmeza a fronteira sul, tentar
conquistar o Norte, alargando o Condado pela Galiza adentro?
Estas eram as grandes opções estratégicas que importava tomar.
Quanto à primeira, o impulso já vinha de longe e tornara-se recentemente
demasiado forte para que pudesse haver duas opiniões: Portugal não devia
continuar, bem comportado, como condado integrado na monarquia leonesa,
antes devia caminhar, com toda a firmeza, e à medida do possível, para se
tornar num reino independente.
Quanto à segunda opção, as coisas não eram tão fáceis nem tão óbvias.
Se era verdade que o Condado Portucalense fora entregue a D. Henrique e
D. Teresa para combater os muçulmanos do Sul no quadro geral da
Reconquista Cristã, não era menos verdade que as investidas dos
sarracenos atravessavam um período de grande acalmia, não pondo em risco
a fronteira do Mondego, sendo certo que os pais de Afonso Henriques
tinham conseguido alargar as fronteiras iniciais do condado - Tui,
Toronho, Limia, ao norte, Astorga e Zamora, a nordeste -, encontrando aí
grande receptividade ao domínio português por parte das populações e da
nobreza.
No fundo, no fundo, tudo se resumiria - na cabeça do jovem Afonso
Henriques - a optar entre dois exemplos que lhe teriam sido apontados
vezes sem conta pelos seus aios, preceptores e conselheiros: seguir o
exemplo do avô Afonso VI, que tinha conquistado aos mouros Santarém e
Lisboa, ou seguir o
28
exemplo dos avós Garcia e Fernando Magno, que tinham unificado num só
reino a Galiza e Portucale?
Não custa a crer - embora não passe de mera conjectura
- que Egas Moniz, marcado pelo episódio da vassalagem ao Rei de Leão, e
forte guerreiro ansioso por combater os infiéis, representasse a corrente
partidária da conquista do sul; e que D. Paio Mendes, arcebispo de Braga,
sonhando ultrapassar e porventura dominar Santiago de Compostela,
encabeçasse a facção adepta da conquista do norte.
Como sempre costuma acontecer nestas coisas, as opiniões e os argumentos
de um lado e doutro terão acabado por se equivaler e anular: e D. Afonso
Henriques ter-se-á visto na necessidade de se isolar, no castelo de
Guimarães, para decidir sozinho.
Não é talvez impossível, à luz dos desenvolvimentos posteriores,
reconstituir aqui o essencial do que poderá ter sido o seu pensamento.
Afonso era neto de reis e filho de uma rainha; fora educado para reinar;
fora instruído para se armar a si próprio cavaleiro «segundo o costume
dos reis». Queria, pois, ser rei de Portugal. Tanto mais que à sua volta
só via reis - o Rei de Leão e Castela, seu primo direito; os reis de
Aragão e de Navarra; o Rei de França; os reis mouros. Porque não aceder,
também ele, a idêntica condição?
O objectivo seduzia-o, e não devia parecer-lhe inatingível: não eram reis
os governantes de Leão e Castela, de Aragão, de Navarra? Não havia a
tradição da multiplicidade de reinos na Península Ibérica? Não fora já um
reino independente a Galiza, incluindo Portucale? Não era hereditária a
própria concessão do Condado Portucalense? E não fora fácil para este
expulsar os "estrangeiros" que o tinham querido dominar? Tudo parecia
apontar, por conseguinte, para a viabilidade política da autodeterminação
do reino de Portugal.
Este seria, assim, o primeiro grande objectivo estratégico a atingir.
Quanto ao segundo, ele teria de subordinar-se logicamente ao primeiro: o
que é que contribuiria mais, e mais depressa, para a independência de
Portugal? Respeitar o statu quo a norte e alargar as conquistas a sul,
ou, pelo contrário, lançar uma guerrilha permanente sobre a Galiza e
deixar para mais tarde a guerra com os muçulmanos?
Partir desde logo à conquista do Sul equivalia a não pôr nada em causa
nas relações de Portugal com a Galiza e com o reino de Leão: era fazer a
vontade a Afonso VII. Diferentemente, para arrancar a este a
independência de Portugal, o que importava era tornar o relacionamento
Portugal-Galiza e Portugal-Leão tão conflituoso quanto possível, para
obrigar Afonso VII a negociar e a ceder crescentes graus de autonomia a
Portugal, até se atingir a independência.
O sonho dos avôs Garcia e Fernando Magno sobrepôs-se, assim, ao sonho do
avô Afonso VI: a Galiza teria prioridade político-militar; o Gharb
(território ao sul do Mondego, dominado pelos muçulmanos) ficaria à
espera de melhor oportunidade.
Uma vez tomada esta decisão, de antepor a conquista da Galiza à conquista
do Gharb, D. Afonso Henriques tirou dela a consequencia política imediata
que se impunha: entre D. Egas Moniz, partidário da conquista do sul, e D.
Paio Mendes, defensor da conquista do norte, foi o arcebispo de Braga o
escolhido para chanceler-mor. Egas Moniz só viria a ocupar um alto cargo
na Cúria oito anos depois, já com a estratégia toda virada para a
conquista do sul.
Este, o plano estratégico que terá sido decidido por D. Afonso Henriques
em 1128-1129.
No entanto, como quase sempre sucede com todos os planos, a realidade
veio a alterá-lo substancialmente: a conquista da Galiza não se consumou;
a conquista do Gharb depressa se tornou prioritária; e durante muitos
anos ambas tiveram de ser executadas em simultâneo.
Mas num ponto, pelo menos, o jovem príncipe português viu bem e viu
longe: tudo tinha de começar pela Galiza - perturbar, fustigar e
instabilizar o noroeste peninsular era a única forma de fazer dobrar a
vontade firme do poderoso Rei de Leão e Castela.
E foi assim que, após a pausa de 1128-1129, logo em 1130 D. Afonso
Henriques invadiu a Galiza. Era a primeira de uma longa série de várias
incursões, que se prolongariam por uma década e meia. Da primeira vez
tinha ele 19 anos; da última contava 34. Naquela, ainda era apenas conde
dos portucalenses- nesta, já era Rei de Portugal.
29
Capítulo IX
Pressões sobre a Galiza

De 1130 a 1137, vamos pois assistir, de acordo com a opção feita, aos
primeiros sete anos consecutivos de pressões sobre a Galiza -
nomeadamente sobre os territórios ou províncias da Galiza que pelo acordo
de 1121 tinham sido concedidos a D. Teresa: Toronho e Límia (hoje,
aproximadamente, a zona ao sul de Vigo e de Ourense).
D. Afonso Henriques, ao invadir terras e ocupar castelos na Galiza, não
estava apenas a demonstrar insubordinação e infidelidade para com Afonso
VII de Leão: estava também a procurar recuperar territórios que haviam
sido de sua mãe e que portanto se achava no direito de reaver para si.
A primeira invasão da Galiza deu-se no ano de 1130, mediante a ocupação
de Tui e de alguns lugares mais próximos. Não tendo encontrado
resistência, o ínfante regressou a Portugal satisfeito : tinha visitado
terra que considerava sua, e ninguém o perturbara nessa missão.
A segunda invasão da Galiza ocorre dois anos mais tarde, em fins de 1132
ou princípios de 1133. Mas desta vez as coisas não correm bem: o infante
D. Afonso encontra pela frente uma cara bem conhecida, o ex-amante de sua
mãe, Fernão Peres de Trava, que juntamente com outro conde galego,
Rodrigo Vela, formava a guarda avançada de Afonso VII para a defesa da
Galiza. O confronto acaba numa derrota para o chefe português, que se
retira para Portugal.
Mas D. Afonso Henriques não desanima e volta a insistir no ano seguinte:
em 1134 está de novo em Toronho e na Límia, e a sua incursão é de tal
modo bem sucedida que aí edifica um castelo - o único que, tanto quanto
se sabe, construiu na Galiza -, o castelo de Celmes . ( A localização da
povoação de Celmes, na Galiza, foi-me revelada pela Sr. Prof. Doutora
Gregoria Cavero Dominguez, da Universidade de León, a quem o agradeço
reconhecidamente.) Uma vez edificado, foi dotado de uma pequena
guarnição, que o ficou a defender, e o infante voltou a Portugal.
Afonso VII não perdoou a ousadia, pois considerava a Límia, como Toronho,
territórios seus, não incluídos no Condado Portucalense, e avançou sobre
o castelo de Celmes, que cercou, tendo derrotado e aprisionado os
militares portugueses que o guardavam. A notícia provocou na corte de D.
Afonso Henriques uma "tristeza intolerável".
Afinal, os territórios que tinham pertencido a D. Teresa não eram
reconhecidos ao filho, e o rei leonês tinha-os como seus: a luta pela
respectiva posse ia ser renhida e prolongada, e o resultado era incerto.
D. Afonso Henriques teve de aguardar mais três anos, até 113 7, refazendo
o ânimo dos seus homens e reorganizando o exército, até tentar nova
incursão na Galiza.
Mas, entretanto, outras coisas importantes vão acontecendo. No auge do
seu poder e prestígio, tendo rechaçado as ousadias do infante português e
tendo conseguido obter ou confirmar a vassalagem dos principais magnatas
de Leão, Aragão e Navarra, Afonso VII faz-se coroar imperador. Imperador
de Leão? Não: Imperador das Espanhas ou, como ele próprio prefere,
Imperador de toda a Espanha. A cerimónia ocorre em Leão, em cortes
extraordinárias convocadas expressamente para o efeito, no dia 4 de Julho
de 1135. Estão presentes todos os nobres de condição mais elevada, que se
reconhecem vassalos de Afonso VII. Com uma única excepção, que logo
assume tons de escândalo político: D. Afonso Henriques não vai, não está
presente, não presta vassalagem ao novo imperador. Mais um acto de
rebeldia
30
e separatismo, que é vivamente ressentido na corte leonesa, mas que na
altura não provoca nenhuma reacção imediata. Instala-se a animosidade
entre os dois primos: as posições de um e de outro começam a tornar-se
divergentes.
No mesmo ano de 1135, D. Afonso Henriques, já a viver menos em Guimarães
do que em Coimbra - nova "capital" do Condado Portucalense -, resolve
fortalecer e proteger mais eficazmente a sua fronteira sul. E toma a
importantíssima decisão de construir o castelo de Leiria - que servirá um
duplo objectivo: defender militarmente a cidade de Coimbra; e funcionar
como ponto de partida para futuras incursões em direcção a Santarém e a
Lisboa. A derrota de Celmes colocou na primeira linha das preocupações a
Reconquista, o avanço para o sul.
Decerto por isto mesmo, e talvez também pela sua avançada idade, D. Paio
Mendes, arcebispo de Braga, que fora o principal conselheiro político de
D. Afonso Henriques desde 1128, é agora substituído - em 1136 - por Egas
Moniz, nomeado "dapifer curiae", o equivalente ao cargo actual de
primeiro-ministro.
Entretanto, D. Afonso Henriques aproveita estes anos de paz para se
dedicar à administração interna do território: funda igrejas e mosteiros,
faz numerosas doações de bens da coroa, concede um foral a Seia.
1137 vai ser o ano da grande aposta na conquista total da Galiza. As
circunstâncias não podem ser mais propícias: do lado português, o
exército está reorganizado e muito aumentado; a leste de Leão, o Rei
Garcia Ramires, de Navarra, disposto a lutar pela sua independência,
propõe uma aliança a D. Afonso Henriques, combinando ambos atacar os
territórios de Afonso VII em simultâneo, um pelo oeste e outro pelo
leste; finalmente, e como se tudo isto fosse pouco, estala uma ampla
revolta da nobreza galega contra o Imperador de Leão, acontecendo que os
governadores de Toronho e da Límia, os condes Gomes Nunes e Rodrigo
Peres, se viram contra o seu suserano e prometem colaboração, senão mesmo
vassalagem, a D. Afonso Henriques.
Este sente que o momento é propício e, num repente, ocupa Tui e toma
posse dos numerosos castelos e terras que lhe são oferecidos pelos dois
condes galegos revoltados. Ainda encontra um foco de resistência em
Alariz, onde Fernando Anes se mantém fiel a Afonso VII, mas aquele é
militarmente derrotado.
Garcia de Navarra inicia o seu ataque pelo leste.
D. Afonso Henriques, entusiasmado, distribui as suas tropas pelos
numerosos lugares que se colocaram sob as suas ordens, e vem a Portugal
buscar reforços.
À frente de um novo exército, fresco e maior, rapidamente recrutado no
norte do país, volta de imediato à Galiza para explorar até ao fim as
condições que lhe são objectivamente tão favoráveis.
Os condes fiéis ao Imperador, Fernão Peres de Trava e Rodrigo Vela, saem-
lhe ao caminho e oferecem-lhe duro combate: é a batalha de Cerneja, de
que D. Afonso Henriques sai vencedor.
Nas hostes portuguesas vive-se um momento impar: o entusiasmo transforma-
se em euforia.
Na verdade, todo o sul da Galiza está nas mãos de D. Afonso Henriques. E
não apenas pela vitória das armas: também pela adesão voluntária dos
principais governadores da região e, presume-se, das respectivas
populações. Afonso VII está neutralizado pela guerra com Navarra, a
leste. Os territórios que pertenceram a D. Teresa - as províncias de
Toronho e Límia - estão agora finalmente nas mãos de D. Afonso Henriques.
O Condado Portucalense aumentou cerca de um terço!
E, como sugere Alexandre Herculano, dominado o sul da Galiza, porque não
sonhar com a conquista do norte?" E porque não também com Zamora, que
chegara a ser igualmente de D. Teresa? Com alguma sorte, o Condado
Portucalense quase poderia duplicar para o norte...
31
É neste preciso momento, no início do Verão de 1137, quando tudo parece
sorrir a D. Afonso Henriques, quando a sua estratégia de conquista do
Norte começa a resultar plenamente, que o azar cai em cheio sobre a
cabeça do infante português. Dois factos políticos muito graves exprimem
essa grande viragem.
Por um lado, chegam más notícias do sul: os mouros tinham atacado o
castelo de Leiria e, numa batalha violenta, em que 240 cavaleiros e
homens de armas portugueses morreram, tinham-se assenhoreado do castelo;
ao mesmo tempo, uma outra coluna sarracena havia derrotado um corpo de
tropas português em Tomar. Toda a fronteira sul ficava, assim, posta em
perigo: sem Leiria, o próximo alvo seria facilmente a cidade de Coimbra.
A situação era muito grave, e exigia atenção imediata.
Por outro lado, Afonso VII de Leão, tendo alcançado clara vantagem sobre
Garcia de Navarra, pôde virar-se para a Galiza e tirar desforra das
vitórias portuguesas. Sem perder tempo, dirigiu-se com o seu exército
para oeste, ocupou Tui, e preparou uma vasta ofensiva contra D. Afonso
Henriques: convocou toda a nobreza militar da Galiza para se juntar em
Tui com o fim de invadir Portugal pelo norte e exigir a submissão total
do infante português, senão mesmo destituí-lo da chefia do Condado
Portucalense. Era o xeque-mate.
Deste modo, D. Afonso Henriques - provavelmente instalado em Guimarães -
passa da euforia à mais profunda preocupação. De repente, está
encurralado num beco sem saída: se se mantém com as suas tropas na
Galiza, perderá o sul; se vem com os seus homens para Leiria, perderá o
norte.
A única saída plenamente vitoriosa seria constituir dois poderosos
exércitos, um para defender a Galiza e outro para recuperar e manter
Leiria. Mas isso é impossível, porque os recursos humanos do Condado
Portucalense não comportam tamanho esforço.
Provavelmente D. Afonso Henriques reúne-se em Guimarães com os seus
principais conselheiros políticos e chefes militares: deve ter então
realizado uma importante cúria régía (o equivalente ao que são hoje os
conselhos de ministros). Todas as
32
hipóteses terão sido ponderadas. Mas D. Afonso Henriques não tinha à mão
nenhuma solução fácil. E já não é só a Galiza que está em risco: a
própria existência do Condado Portucalense encontra-se ameaçada. Com
efeito, os portugueses não têm exército que possa desbaratar, em
confronto directo, as tropas do Imperador de Leão.
Este pretende mesmo invadir Portugal: mas, ao que parece, a nobreza
galega - dividida nas suas lealdades - reage lentamente e demora muito a
formar o grande exército que Afonso VII reclama. Também este se acha
assim, em dificuldades: recuperou a Galiza, mas não consegue, pelo menos
de momento, invadir Portugal.
Ambos se encontram naquilo que, na teoria dos jogos, se chama uma no win
situation: ninguém consegue ganhar.
É neste quadro que tanto D. Afonso Henriques como Afonso VII de Leão se
predispõem a negociar, ou seja, a encontrar um compromisso para o
conflito que os opõe. E os conselheiros de ambos assim o recomendam
vivamente. Nasce daqui o tratado ou pacto de Tui, de 4 de Julho de 1137,
pelo qual os dois primos fazem as pazes.
O pacto (a que não se deve chamar tratado, pois Portugal ainda não era, à
data, um país independente) é formalizado na cidade de Tui, com a maior
solenidade.
Assinaram-no, pela parte portuguesa, o arcebispo de Braga, D. Paio
Mendes, e o bispo do Porto, D. João Peculiar, e, pela parte leonesa, os
bispos de Segóvia, Tui e Orense. "É de crer que fossem estes prelados
quem trabalhasse então na concórdia dos seus príncipes. O pacto foi
assinado pelo infante D. Afonso, acompanhado por 150 homens bons
portugueses.
Que dizia o texto desse pacto? Essencialmente, três coisas: que o infante
prometia fidelidade e amizade ao Imperador, a quem nunca provocaria morte
ou dano; que o infante prometia respeitar os territórios do Imperador, de
tal modo que os não invadiria mais e, se algum dos seus barões o
invadisse, ele ajudaria lealmente a restituí-los ao Imperador; e que, se
os filhos do Imperador quisessem manter a paz, o infante ficava obrigado
a fazer o mesmo. Acessoriamente, o Imperador concedia ao infante, naquele
acto, uma honra (terra imune) - porventura Astorga - pela qual o infante
se constituía vassalo do Imperador, e que lhe deveria restituir em
qualquer ocasião em que lhe fosse requerida.
Vários problemas se podem pôr acerca deste pacto.
O primeiro é o de saber quem terá tomado a iniciativa de pedír as pazes -
a parte portuguesa ou a parte leonesa? Se é certo que D. Afonso Henriques
era quem estava em maiores dificuldades, não é menos certo que tão-pouco
Afonso VII conseguia reunir o exército com que pretendia invadir
Portugal. Provavelmente, a ideia do pacto nasceu dos bispos portugueses e
galegos que, concordando no essencial, terão conseguido influenciar os
respectivos príncipes.
O segundo problema interessante a discutir é o de saber se o acordo de
Tui foi um pacto de amizade entre dois principes que negociavam em pé de
igualdade, ou antes um pacto de vassalagem feudal entre um suserano que
ficava por cima (Afonso VII) e um vassalo que ficava por baixo (D. Afonso
Henriques). Ambas as opiniões têm sido defendidas, sobretudo com base na
análise textual do pacto.
Pessoalmente, e baseando-me sobretudo no contexto político, inclino-me
para o carácter de pacto de vassalagem feudal, porquanto os reis de Leão
sempre acentuaram, enquanto puderam, a sua suserania sobre os condes
portucalenses: foi assim com Afonso VI na própria concessão do Condado e
foi assim com Afonso VII na Conferência de Zamora, como adiante veremos -
ora, se nesta, em 1143, ainda o Imperador marcava a sua
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superioridade feudal sobre D. Afonso Henriques, por que não teria feito o
mesmo, por maioria de razão, seis anos antes, em Tui?
Terceiro problema, porventura o mais interessante dos três: o pacto de
Tui foi uma derrota política para D. Afonso Henriques, como pretendem
Alexandre Herculano e Gama Barros, ou uma assinalável vitória, como
sustentam Torquato de Sousa Soares e Veríssimo Serrão?
Para mim, a resposta é simples: o pacto de Tui foi uma derrota política.
Isso resulta claramente do texto do acordo, que só comporta obrigações
para o infante português e nenhumas impõe ao imperador de Leão. Mas o
mesmo resulta também do que na moderna teoria dos jogos se designa por
"lógica da situação".
De facto, qual era a situação de D. Afonso Henriques antes do pacto? Era
a de senhor absoluto de todo o sul da Galiza, nomeadamente das províncias
de Toronho e Umia, e suserano dos condes galegos Gomes Nunes e Rodrigo
Peres; vencedor da batalha de Cerneja; possuidor do castelo de Celmes e
de muitos outros que se haviam passado para ele; senhor da cidade de Tui
- e tudo isto sem contestação ou reacção imediata da parte de Afonso VII.
E qual foi a situação em que ficou D. Afonso Henriques depois do pacto?
Perdeu tudo o que tinha adquirido na Galiza, teve de devolver quanto
conquistara, e foi forçado a prometer que nunca mais invadiria os
territórios do Imperador e que, se algum dos seus homens os invadisse,
prontamente restituiria tudo.
Se isto não é uma derrota política, não vejo outro nome que se lhe possa
dar. Alguns historiadores portugueses não querem admitir, talvez por
preconceito patriótico, que D. Afonso Henriques tenha sofrido qualquer
derrota: mas isso não é verdade. Sofreu algumas: só que conseguiu muitas
mais vitórias, e nunca desanimou com as derrotas que teve: por isso
chegou onde chegou.
Uma das grandes qualidades de D. Afonso Henriques era não ficar
paralisado pelos reveses da sorte, e, depois de completada uma operação,
saber avançar logo para o objectivo seguinte. Trotsky conta, nas suas
Memórias, que o principal defeito de alguns dos seus camaradas
revolucionários era ficarem parados diante de uma dificuldade e não
saberem what to do next. Pois bem: o infante português não padecia desse
defeito.
Perdida a Galiza, desfeito o sonho da conquista do norte, ele percebeu
logo que era necessário partir à conquista do sul.
Por isso, ao regressar de Tui com os seus homens, D. Afonso Henriques não
devia vir triste e hesitante, mas forte e determinado. A sua palavra de
ordem, seca e clara, terá sido, para usar uma expressão utilizada mais
tarde noutro contexto: "Para Leiria, rapidamente e em força!"
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Capítulo X
A "capital" em Coimbra e o caso do bispo negro

Creio ter sido o ilustre historiador José Mattoso quem primeiro chamou a
atenção para o facto de, por volta de 113 1, D. Afonso Henriques ter
passado a residir a maior parte do tempo em Coimbra - o que implicou não
só a instalação da corte e a reunião da cúria régia nesta cidade, mas a
própria transferência da «capital» do reino de Guimarães para a cidade do
Mondego.
Não deixa de ser um pouco estranho que esta mudança se tenha dado em
plena campanha da Galiza, com o infante todo voltado para a conquista do
norte, em vez de ter tido lugar seis anos mais tarde, após o pacto de
Tui, quando as prioridades da governação ofensiva se voltaram
definitivamente para a defesa de Coimbra e, depois, para a reconquista do
sul (Leiria, Santarém, Lisboa).
Seja porém como for, o certo é que a transferência da "capital" do reino
para a linha meridional das suas fronteiras de então teve grande
significado: o príncipe libertou-se das pressões da nobreza senhorial de
Entre Douro e Minho, criou uma nova nobreza mais dócil, apoiou-se mais do
que inicialmente nos concelhos a que foi dando foral, fundou o Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra - que em breve se tornou em grande centro
espiritual e cultural do país -, organizou melhor uma plataforma
permanente de expedições militares em direcção ao sul e, por último - the
last but not the least -, promoveu a rápida integração num só bloco
social e político dos tradicionais condados de Portucale e de Coimbra,
fundindo e incorporando numa sociedade plural o norte cristão com o sul
muçulmano. (Inspiramo-nos, nesta síntese, em José Mattoso. Ver, em
sentido diverso, a opinião de A. H. de Oliveira Marques, segundo a qual a
integração do norte cristão com o sul muçulmano só teve lugar um século
mais tarde, com a fixação da «capital» em Lisboa, no reinado de D. Afonso
III: )
A fixação da "capital em Coimbra permitiu a D. Afonso Henriques cuidar
atentamente da defesa da cidade, com a construção ou reconstrução de
castelos em Montemor, Lousã, Miranda, Soure, Penela, Germanelo, Pombal
e, finalmente, Leiria, entre 1136 e 1142.
A seguir, e mais para sul, foram erguidos ou recuperados os castelos de
Ourém, Alcobaça, óbidos, Torres Novas, Ceras, Tomar, Zêzere e Almourol.
Já não era, agora, apenas a defesa de Coimbra que estava em causa: era a
construção de uma rampa de lançamento para o ataque aos grandes centros
nevrálgicos civis e militares da ocupação muçulmana - Santarém e Lisboa.
Já acima se disse que Coimbra fora, entre finais do século xi e
princípios do século xii, um importante pólo de presença moçárabe. Houve
luta de influências entre o clero "colonizador", proveniente do norte, e
o clero local, espiritualmente mestiço. É nesse contexto que tem
interesse recordar aqui uma das lendas mais curiosas que se formaram na
Idade Média sobre D. Afonso Henriques - a famosa lenda do "bispo negro".
Não há nenhuma certeza sobre a autenticidade desta história, antes tudo
leva a crer que ela nunca ocorreu, ou se passou noutra época e com outras
personagens.
No entanto, a verdade é que os cronicões portugueses a contaram todos
como se fosse um importante episódio da vida de D. Afonso Henriques. Por
isso a refiro aqui.
Após a batalha de S. Mamede, D. Afonso Henriques encontrava-se em
Coimbra, e terá prendido «(a ferros») sua mãe, a rainha
35
D. Teresa. Esta decidiu então escrever ao Papa, reclamando da malvadez e
crueldade do seu filho:
Depois disto, estando El-Rei D. Afonso Henríques em Coimbra, sua mãe se
queixou muito ao Santo Padre da prisão em que a tinha seu filho, havia já
tanto tempo. O Santo Padre teve aquela coisa por estranha e muito mal
feita, e determinou mandar a Portugal sobre o caso o Bispo de Coimbra,
que então lá estava em Roma, dando-lhe cartas e grandes instruções para
El-Rei D. Afonso, mandando-lhe que tirasse sua mãe da prisão; não o
querendo assím cumprir, que fosse interdito todo o reino.
Partiu o Bispo para Portugal. E depois de dar as cartas do Santo Padre e
transmítir a sua míssão, El-Rei perguntou ao Bispo que tinha o Santo
Padre que ver com ele ter sua mãe presa; e dísse-lhe que tivesse a
certeza que nem por mandado do Papa, nem nenhum outro, ele em modo algum
a soltaria, porque o tínha assim por melhor serviço de Deus e bem do seu
reino.
Quando o Bispo víu que outro recado não podia nem esperava achar em El-
Rei, encarregou-se de cumprír o que o Santo Padre lhe tínha mandado:
então excomungou toda a terra (portuguesa) e partiu de noite, fugindo.
Este o primeiro acto do drama. Mas D. Afonso Henriques não mostra medo
nenhum, e vai resolver o problema de forma rápida e eficaz:
Quando veio a manhã, disseram a El-Rei que estava excomungado, e toda a
sua terra. Ele ficou muito irado, e foi à Sé, onde fez entrar todos os
cónegos na Sala do Cabido, e disse-lhes:
- De entre todos me dai um Bispo. Eles responderam:
- Bispo temos; como vos daremos Bispo? Disse El-Rei:
- Esse que vós dizeis, nunca aquí será Bispo no resto dos meus dias. Mas,
se assim é, saíde todos pela porta fora, que eu acharei quem fazer Bispo.
Eles saíram. E El-Rei, junto à porta, viu vir um clérigo que era negro, e
disse-lhe: - Como é o teu nome?
O clérigo respondeu:
- Meu nome é Martim.
- E teu pai como se chamava?
- Suleima, disse ele. El-Rei perguntou-lhe:
- És bom clérigo, e sabes bem o oficio da Igreja? E ele respondeu:
- Não há dois melhores em toda a Espanha, nem que melhor o saibam.
Então lhe dísse El-Rei:
- Tu serás Bispo, D. Suleima, e faz já o necessário para que me dígas
missa.
- Senhor (disse ele), eu não sou ordenado como Bispo, para vo-la poder
dizer.
Respondeu El-Rei:
- Eu te ordeno como Bispo, para que ma possas dizer; e aparelha- te para
que logo ma digas, senão eu te cortarei a cabeça com esta espada.
E o clérigo, com medo, vestiu-se para dizer missa solenemente como Bispo.
Sabido este feito em Roma, cuidaram que El-Rei era herege, e o Papa
envíou-lhe um Cardeal que lhe ensinasse a fé.
Este episódio é muito curioso, não só pelo que revela da prática medieval
de serem os reis (e não o Papa) a nomear os bispos - costume que ainda
hoje se mantém na Inglaterra protestante -, mas sobretudo pelo facto de
aparecer em Coimbra um bispo negro. Que significará isto?
Segundo os especialistas, significa que se tratava de um sacerdote
moçárabe, filho de pai árabe (Suleima é o mesmo que Sulimão ou Zoleiman)
mas com nome próprio cristão (Martim ou Martinho). Os moçárabes eram,
como se sabe, os cristãos que viviam sob o domínio muçulmano e que, por
isso, se adaptavam a

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