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AFONSO HENRIQUES
Diogo Freitas do Amaral
Nota do autor
Este livro não é obra de investigação, mas de reflexão e divulgação.
Não tem autoria de historiador, mas de cidadão. Não tem aspirações
científicas, mas cívicas. E não pretende defender nenhuma tese sobre o
magno problema dos factores da formação de Portugal, nem tão-pouco
retratar a história integral do País no século XII - mas apenas
compreender, e dar a conhecer melhor, a acção do principal protagonista
da nossa independência.
Por isso tem o carácter de biografia.
D.F.A.
Fotocomposição e montagem: Espaço 2 Gráfico Impressão e Acabamento:
Tilgráfica, S.A. Depósito Legal n.o 158337/00 Acabou de imprimir-se em
Dezembro de 2000 ISBN: 972- 25-1157-2
Índice
Nota do autor...2
Capítulo I
A Europa no século XII...5
Capítulo II
Nascimento e infância de D. Afonso...10
Capítulo III
Juventude e formação do infante...14
Capítulo IV
O infante arma-se cavaleiro...17
Capítulo V
O episódio de Egas Moniz...19
Capítulo VI
A revolta dos barões portucalenses...22
Capítulo VII
A batalha de S. Mamede...23
Capítulo VIII
As grandes opções do príncipe...26
Capítulo IX
Pressões sobre a Galiza...29
Capítulo X
A "capital" em Coimbra e o caso do bispo negro...34
Capítulo XI
A batalha de Ourique...38
Capítulo XII
O título de Rei e o primeiro filho...42
Capítulo XIII
Valdevez e a Conferência de Zamora...45
Capítulo XIV
A vassalagem ao Papa...49
Capítulo XV
As pretensas Cortes de Lamego...54
Capítulo XVI
O casamento com D. Mafalda de Sabóia...56
Capítulo XVII
Os filhos de D. Afonso Henriques...59
Capítulo XVIII
A conquista de Santarém...62
Capítulo XIX
A tomada de Lisboa...65
Capítulo XX
O feito de Martim Moniz e a trasladação de S. Vicente...70
Capítulo XXI
A conquista do Alentejo...72
Capítulo XXII
Desvios estratégicos: o desastre de Badajoz...79
Capítulo XXIII
A crise da sucessão...83
Capítulo XXIV
Os anos do fim...88
Capítulo XXV
D. Afonso Henriques: o Homem e a obra...93
Cronologia...97
Agradecimentos...99
Bibliografia seleccionada...103
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Capítulo I
A Europa no século XII
D. Afonso Henriques nasce, segundo a melhor opinião, no ano de 1109.
Em que mundo lhe é dado nascer? A Europa vive então em plena Idade Média:
os países são monarquias, as economias são agrárias, as sociedades são
feudais, as mentalidades são religiosas, o poder espiritual pertence à
Igreja Católica, o chefe da cristandade é o Papa.
O clero dedica-se ao culto, à educação e à assistência; a nobreza vive
das taxas locais e dos rendimentos da agricultura, e assegura as
necessidades militares da defesa do reino e da conquista de novos
territórios- o povo é constituído essencialmente por trabalhadores
agrícolas - os servos da gleba e os escravos -, que vivem em economia de
subsistência, chefiados administrativamente pelos senhores da terra, e
enquadrados moralmente pelos bispos e párocos.
A carta geográfica da Europa está bem desenhada: apesar de alguma
confusão na Península Ibérica, já existe o Reino da França, o Reino da
Inglaterra, o Império Romano-Germânico, os reinos da Escócia, Noruega,
Suécia e Dinamarca, o principado da Polónia, o Reino da Hungria, e está
prestes a surgir o principado da Rússia- Roma é a cidade dos Papas. Nada
disto é muito diferente do que no nosso tempo nos habituámos a considerar
como Europa (mapa 1). Onde as semelhanças com a actualidade são poucas é
na Península Ibérica: não existem ainda nem a Espanha, nem Portugal. O
que há, no início do século XII, é a metade Sul dominada
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por emiratos árabes, e na metade Norte, sucedendo ao Reino das Astúrias,
os reinos de Leão, Castela, Aragão e Navarra, bem como o condado de
Barcelona (mapa 2).
Sabe-se porque é que isto é assim. É que, depois de a Península Ibérica
ter sido ocupada e governada durante oito séculos pelos romanos, essa
situação foi substituída pelas ocupações visigótica e muçulmana, a
segunda das quais, a partir do Norte de África, invadiu toda a Península
e penetrou no Sul de França, até à cidade de Poitiers.
Os romanos, que dominaram a Península Ibérica durante a maior parte da
sua ocupação, bem como os visigodos, eram povos convertidos ao
cristianismo.
Quer isto dizer, portanto, que a estreita faixa de território situada no
Norte da Península Ibérica, e que permaneceu imune à ocupação muçulmana
no século viii, era constituída por uma população essencialmente cristã.
Esta, em tempos de profunda religiosidade, não se conformou com a vitória
dos muçulmanos e projectou a sua desforra.
Era necessário partir à conquista do Sul e retomar a Península Ibérica
aos mouros: foi a esta campanha militar, que durou sete séculos, que se
chamou a Reconquísta Crístã. Iniciou-se em Covadonga, sob a chefia do Rei
Pelágio, no século viii, e só terminou em Granada, sob a direcção dos
reis Católicos, Fernando e Isabel, no século xv.
Quem vão ser os principais agentes dessa Reconquista? Os grandes
inspiradores serão os Papas; os grandes aliados serão a França e a
Inglaterra; os grandes executores serão os reis, os senhores feudais e os
bispos da Península Ibérica, nomeadamente os reis de Leão.
Destes, destacam-se sobretudo três grandes monarcas leoneses, que
conduzem a Reconquista até ao Sul: Afonso III, que ocupa Lamego, Viseu e
Coimbra (910); Fernando Magno que, após as incursões de Almançor para
norte, recupera o território até ao Mondego (1064), e Afonso VI que,
reunindo nas suas mãos os reinos de Leão, Galiza e Castela, se faz coroar
imperador, conquista Toledo, Valência e Saragoça, e depois ocupa
vitoriosamente
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Santarém e Lisboa, conseguindo fazer descer a fronteira cristã até ao
Tejo (1094).
Os muçulmanos, porém, recuperam Lisboa e Santarém logo em 1095, impondo
assim o regresso da fronteira à linha do rio Mondego.
É nesta altura, ou mais precisamente no ano seguinte,
1096, que Afonso VI de Leão - numa clara delegação de autoridade, em
busca de maior eficiência - decide confiar a Galiza e a terra
portucalense aos seus dois genros: o imperador leonês casa a filha mais
velha, Urraca, com o conde D. Raimundo de Borgonha, e a filha mais nova,
ilegítima, Teresa, com um primo daquele, o conde D. Henrique de Borgonha.
Ao primeiro casal atribui o governo da Galiza; ao segundo concede a
administração do Condado Portucalense. A diferença das zonas geográficas
tem uma razão de ser: é que D. Raimundo, um ano antes, mostrou ser fraco
lutador frente aos mouros e melhor será, portanto, colocá-lo mais a
norte; D. Henrique revelou ser um bom chefe militar, pelo que lhe assenta
logicamente um lugar na primeira linha do combate, mais a sul.
O Condado Portucalense é concedido a D. Henrique e D. Teresa em 1096, ano
do respectivo casamento: o território concedido era vasto - do rio Minho,
a norte, até ao rio Mondego, a sul. Para cima do Minho, o território era
galego; para sul do Mondego, a terra era dos sarracenos. A condição
implícita na concessão era, pois, a de não expandir o Condado
Portucalense para norte, usurpando terra que estava em mãos amigas, mas
alargá-lo o mais possível para sul, anexando o território ocupado pelo
inimigo.
A concessão do Condado Portucalense a D. Teresa e seu marido não foi dada
numa só vida, mas, pelo contrário, foi feita a título hereditário,
devendo passar por morte deles aos respectivos filhos e netos.
Por isso, falecido D. Henrique e afastada D. Teresa, o filho mais velho
deles, D. Afonso Henriques, sucedeu naturalmente na chefia do condado,
sem necessidade de confirmação ou renovação da concessão por parte do Rei
de Leão.
O casamento de D. Henrique e de D. Teresa teve lugar, como vimos, em
1096. Mas o casal, apesar de ter procriado três
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filhas (Urraca, Teresa e Sancha), teve que esperar treze anos até ver
nascer o seu único filho varão: D. Afonso Henriques veio à luz, com
efeito, apenas em 1109.
Chamaram-lhe Afonso em homenagem ao avô - o Imperador de Leão, Afonso VI
-, e Henriques por causa do pai, D. Henrique (Henriques significava
"filho de Henrique"). Na altura não se atribuíam apelidos familiares,
como hoje fazemos.
D. Henrique e D. Teresa, sem nunca praticarem actos de revolta ou
insubordinação contra o Imperador de Leão, desenvolveram inicialmente a
autonomia do Condado Portucalense, mas sempre no seio da monarquia
leonesa. Só mais tarde, com o filho deles, D. Afonso Henriques, essa
política se transformou numa verdadeira luta pela independência de
Portugal.
D. Afonso Henriques nasce, pois, em 1109. Nesse ano, qual é a situação
política da Europa?
O Imperador de Leão, Castela e Galiza (incluindo a terra portucalense) é
Afonso VI - o grande unificador dos reinos do norte peninsular, o
conquistador de Toledo, o homem que trouxe os cristãos até ao Tejo,
ocupando Lisboa.'
O Rei de França é Luís VI, o Gordo (1108-1137) - o verdadeiro
consolidador da monarquia capeta, que combateu vivamente o feudalismo e
repeliu a invasão do imperador germânico Henrique V.
O Rei de Inglaterra é Henrique 1, Beauclerc (1100- 113 5) quarto filho de
Guilherme, o Conquístador, que promulgou uma «Carta de Liberdades»,
importante precursora da "Magna Charta", do século seguinte.
O Imperador Romano-Germânico é Henrique V (1106-1125) - o homem que
conseguiu finalmente resolver com o papado a difícil
"querela das investiduras", na Concordata de Worms (1123).
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E na Santa Sé reina o Papa Pascoal II (1099-1118) - que se empenhou a
fundo na «querela das investiduras», lutando contra os imperadores
Henrique IV e Henrique V, mas não conseguiu resolvê-la.
No século XII a Europa está desassossegada: de 1109 a 1113 lavra mais uma
guerra anglo-francesa e, ao mesmo tempo, está em curso o conflito entre o
Papado e o Império, em que se joga o primado do poder espiritual ou do
poder temporal nos países europeus.
O século XII ficará sobretudo marcado como "o século das Cruzadas",
movimento geral de toda a Cristandade conduzido no sentido de libertar do
domínio muçulmano os Lugares Santos e, em especial, Jerusalém.
Quando nasce D. Afonso Henriques, a Primeira Cruzada já se efectuou: teve
lugar de 1096 a 1099 e alcançou um certo êxito (importantes conquistas
aos Turcos e tomada de Jerusalém). Mas as posições obtidas foram perdidas
pouco depois e uma Segunda Cruzada será lançada pelo Papa Eugénio III, em
1145 - já em pleno reinado do nosso primeiro monarca. Será, aliás, no
âmbito desta Segunda Cruzada que alguns milhares de combatentes
estrangeiros, nomeadamente ingleses, auxiliarão o Rei português na
conquista de Lisboa aos mouros. Alguns falarão então numa "Cruzada do
Ocidente", a par das cruzadas do Oriente. Estas continuarão ainda nas
décadas seguintes.
Toda a vida de D. Afonso Henriques decorrerá em pleno século XII, entre
1109 e 1185.
Que outras figuras conhecidas da história universal vivem no mesmo
período? Não muitas: em três reis de França, três reis de Inglaterra e
doze pontífices romanos, não se destaca nenhum nome verdadeiramente
importante, a não ser o do Papa Alexandre III, que aliás ficará para
sempre ligado à História de Portugal, por ter sido o subscritor da bula
Manifestís probatum. É neste período que nasce e morre assassinado, às
ordens do seu rei, o célebre arcebispo de Cantuária, Thomas Becket;
nascem também nesta época o futuro imperador dos Mongóis, Gengis Khan, e
o conhecido Rei de Inglaterra, Ricardo, Coração de Leão. Morre Santo
Anselmo, ilustre doutor da Igreja, nasce S. Francisco de Assis,
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grande santo que se pode considerar o precursor dos ecologistas, e é
canonizado Carlos Magno, o fundador do Estado francês.
Ainda no século xii produzem-se outros acontecimentos de bastante relevo:
emergem as primeiras cidades europeias; prossegue a construção de algumas
das mais belas catedrais (Chartres, Oxford, Mainz); são fundadas as três
primeiras universidades do mundo (Bolonha, Paris, Oxford); nasce o grande
filósofo árabe, Averróis; e dão os seus primeiros passos a poesia e a
música trovadorescas. O 1º Concílio de Latrão (1123) proíbe o casamento
dos padres católicos. A cidade de Moscovo aparece citada pela primeira
vez. Inicia-se a construção da Igreja de Notre-Dame de Paris, e da famosa
Ponte de Avignon. Aparecem as primeiras janelas de vidro nas casas
inglesas. Em 1160 é escrito o célebre poema épico celta, Tristão e
Isolda; dez anos depois surge o primeiro romance de cavalaria, Lancelote,
e em 117 6 são reduzidas a escrito as famosas Lendas do Rei Artur.
Neste contexto e nesta época, D. Afonso Henriques surgirá, em todos os
aspectos, como um homem do seu tempo: será um cavaleiro medieval, crente
fervoroso e feroz combatente; viverá uma vida épica, mergulhada em
batalhas gloriosas, em lendas míticas e em cantigas de amor; construirá
castelos, igrejas e mosteiros; e será sobretudo um rei-fundador,
determinado a criar um país e a dar-lhe condições de independência.
Monarca cristão do século XII peninsular, será principalmente um
militante da Cruzada do Ocidente, apostado numa luta sem quartel contra
os infiéis muçulmanos.
O retrato que dele fazem as crónicas antigas não deixa dúvidas sobre o
personagem: por um lado, «homem muito benévolo e devoto», "prudentíssimo
e dotado de claro engenho", "de nobre figura, belo rosto e olhar
agradável"; mas, por outro, homem "mui grande de corpo e de mui
assinalada valentia", "de força grande e coração muito maior", e "grande
cortador de espada" ...
Capítulo II
Nascimento e infância de D. Afonso
Capítulo III
Juventude e formação do infante
O príncipe D. Afonso pouco terá privado com seus pais: com O pai, D.
Henrique, porque este morreu quando ele tinha apenas três anos; e com a
mãe, D. Teresa, porque ela andou constantemente envolvida na política
galega e leonesa, fazendo e desfazendo alianças, conquistando e perdendo
castelos, ganhando e recuperando terras - e não devia ser o género de mãe
com muito tempo e paciência para se ocupar da educação dos filhos. Era,
aliás, uma mulher muito bela e fascinante - «formosíssima», segundo os
cronistas -, a qual despertou paixões em vários homens ilustres e teve
uma vida amorosa agitada, o que a deve ter mantido igualmente afastada do
filho.
Falecido D. Henrique em 1112, toda a parte mais importante da juventude
de Afonso Henriques vai decorrer sob o governo da rainha D. Teresa (como
ela tanto gostava de se chamar): de 1112 a 112 8 decorrem os 16 anos de
governo de D. Teresa, e também os 16 anos mais significativos da educação
do jovem príncipe (dos três aos 19 anos de idade).
Mas há, no governo do Condado Portucalense pela rainha D. Teresa, duas
fases bem diferentes: a primeira dura nove anos e vai de 1112 a 112 1 - é
uma fase de lucidez, marcada pela continuidade da linha política de
autonomia relativa do Condado, definida pelo marido; a segunda dura sete
anos e vai de 112 1 a 112 8 - é uma fase de desorientação e desnorte,
caracterizada por uma política de submissão à hegemonia galega, que rompe
com a tradição de D. Henrique e dos condes portucalenses dos dois séculos
anteriores, causando um mal-estar crescente na nobreza minhota.
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Ora, a estas duas fases da governação de D. Teresa vão corresponder dois
períodos igualmente distintos na juventude de D. Afonso Henriques - o
período da infância, marcado por uma vida despreocupada e feliz,
sobretudo voltada para o crescimento saudável e para uma educação
esmerada; e o período da adolescência, caracterizado pela precoce
politização do príncipe, desde cedo envolvido nas malhas de uma
conspiração crescente, em vias de se tornar na revolta dos barões
portucalenses contra D. Teresa e contra a preponderância galega que ela
deixava afirmar-se em Portugal.
O primeiro período decorreu em boa paz, como vimos no capítulo anterior,
sob a orientação de D. Egas Moniz e de D. Teresa Afonso, sua mulher.
Foi a época dos primeiros passos, das primeiras palavras, dos primeiros
jogos; foi a época de Ribadouro, de Crasconhe, de Britiande e de Lamego;
foi a época de uma infância calma e descuidada, decerto na companhia dos
filhos e filhas do casal Egas Moniz e de outros amigos das redondezas.
O infante nem se terá dado conta da febril actividade ppolítica e militar
de sua mãe, da participação dela na Cúria Régia d Oviedo, em 1115, tinha
ele seis anos, ou das lutas de D. Teresa com sua irmã D. Urraca, no
contexto da complexa e anárquica política leonesa da época.
D. Afonso Henriques talvez nem tenha sabido do segundo casamento que a
mãe fez, na Galiza, com D. Bermudo Peres de Trava, filho mais velho do
mais nobre e poderoso fidalgo galego - D. Pedro Froilaz, conde de Trava?
Nem terá sido informado de como esse casamento depressa se desfez, se é
que alguma vez chegou a passar de projecto, ou se não foi apenas uma
irregular união de facto apadrinhada pelo poderoso clã dos Travas - que
com essa união pretendiam selar para o futuro uma aliança duradoira entre
a principal família da Galiza e a rainha de Portugal, perseguindo o velho
sonho da reunificação galaico-portuguesa.
Tudo lhe terá passado ao largo; tudo lhe terá sido mais ou menos
indiferente.
Mas no ano de 1120, tendo D. Afonso Henriques 11 anos, as coisas começam
a mudar.
D. Teresa volta-se para um irmão mais novo da família Trava, de seu nome
Fernão, e toma-se de amores por ele. Não se sabe ao certo se casam ou se
apenas passam a viver maritalmente: mas uma crónica antiga diz que mantêm
entre eles «um casamento sem Deus e sem direito», o que dá a entender que
se trata de mera união de facto.
Esta união tinha na época carácter incestuoso, pois, segundo o direito
canónico de então, bastava que a primeira relação com Bermudo tivesse
existido, ainda que ilícita, para tornar ilegítima a união com um irmão
seu.
E neste caso houve mesmo um duplo incesto: porque, entretanto, a filha
mais velha de D. Teresa, Urraca, casou pela mesma altura (1121-1122) com
o primeiro amante da mãe, Bermudo - que assim passava de concubino a
genro.
D. Teresa mostrou com tudo isto não temer as censuras eclesiásticas; mas
é fácil de adivinhar que elas existiram e foram, decerto, contundentes.
Para um rapaz de 11 anos, educado longe da corte e nos princípios rígidos
da fé católica, ver a sua mãe viúva esquecer rapidamente o pai e passar
de mão em mão por entre os membros da família Trava - não deve ter sido
uma experiência agradável. Aqui devem ter começado a germinar sentimentos
de revolta no peito do infante D. Afonso, quer contra a sua mãe, quer
contra o novo amante dela, Fernão Peres de Trava - sentimentos esses que
certamente lhe terão sido avolumados pelos comentários, que facilmente se
adivinham, do arcebispo de Braga, D. Paio Mendes.
Seja como for, D. Teresa regressa a Portugal e instala-se em Coimbra com
o amante, com quem passa a viver maritalmente: a partir de Janeiro de
1121, todos os documentos régios contêm
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a assinatura de Fernão Peres de Trava, que exerce jurisdição sobre
Coimbra e Portugal, isto é, sobre todo o território do Condado
Portucalense de então.
É manifesto que D. Teresa - ou fosse por amores, ou por uma recente
conversão à doutrina da unidade da Galiza com Portugal - investiu Fernão
Peres na máxima autoridade político-administrativa em terras portuguesas.
E o conde galego que já era o homem mais poderoso da Galiza («este
Conde... era naquele tempo o maior homem da Espanha que rei não fosse).
- tornou-se também, rapidamente, no homem mais poderoso de Portugal.
Podia ter usado todo este poder apenas para si e para D. Teresa, deixando
os altos postos da administração do Condado à nobreza portucalense, que
os detinha há várias gerações. Mas não foi essa a sua opção política:
inspirado pelo modelo dos reis Garcia e Fernando Magno - que tinham sido
reis da Galiza e Portugal unificados -, Fernão Peres de Trava quis
trabalhar para a unificação dos dois territórios e "galizificou" a
administração portuguesa. Ou seja, começou de imediato a substituir, nos
mais elevados cargos do Condado Portucalense, os portugueses pelos
galegos.
Logo em 112 1, foram afastadas as três principais famílias da nobreza de
Entre Douro e Minho: os senhores de Ribadouro, Maia, e de Sousa. Se
tivermos presente que o arcebispo de Braga, D. Paio Mendes, pertencia aos
senhores da Maia, podem concluir que, de uma assentada, o fidalgo galego
pôs contra si o alto clero e a nobreza principal do Condado Portucalense.
E repare-se: não se tratava apenas de lhes retirar funções honoríficas: o
que Fernão Peres fez foi afastar as principais famílias da nobreza
portuguesa de cargos que significavam poder político-militar e elevados
rendimentos económicos.
Começou aqui o espírito de revolta do clero e da nobreza minhotos contra
a hegemonia galega - e, portanto, também contra a rainha D. Teresa, que a
tudo dava cobertura.
Deve ser por esta altura que o jovem Afonso Henriques, com perto de 12
anos, e decerto vivendo já em Guimarães, é posto ao corrente dos
sentimentos do clero e da nobreza contra o conde galego: não se esqueça
que um dos primeiros a ser atingidos pela purga» contra os portugueses
foi D. Egas Moniz, aio e preceptor de D. Afonso Henriques. A queixa há-de
ter sido instantânea - embora provavelmente feita só contra Fernão Peres
de Trava, pois nos primeiros tempos ninguém se atreveria a murmurar
contra a própria mãe do infante.
Conciliábulos, críticas, conspirações - deve ter havido bastantes,
provavelmente na Sé de Braga. Tanto que, logo no ano seguinte (Verão de
1122), D. Teresa - inesperadamente - manda prender o arcebispo de Braga.-
Não se conhecem os motivos exactos deste acto de força inusual, mas "no
contexto do ano de 112 2, é provável que Diego Gelmírez (o arcebispo de
Santiago) tivesse persuadido a "rainha" de que Paio Mendes (o arcebispo
de Braga), conspirava contra ela".
Por ordem directa do Papa, o arcebispo é solto logo no Outono de 1122.
Mas a luta tinha começado: de um lado, o sonho da unidade Galiza -
Portugal, protagonizado pelo arcebispo de Santiago, pelos Travas e pela
rainha D. Teresa; do outro, o projecto de autonomia do Condado
Portucalense, sem hegemonia galega ou leonesa, assumido pelo arcebispo de
Braga, pela nobreza de Entre Douro e Minho e ... por quem? Por que chefe
político com pergaminhos régios?
O escolhido para o efeito só podia ser um - o jovem príncipe D. Afonso
Henriques, neto e bisneto de reis dos mais ilustres da Europa, que pelo
direito hereditário era naturalmente o sucessor natural de D. Henrique e
D. Teresa.
A Igreja de Braga, na sua luta já antiga contra a Sé de Santiago de
Compostela, e a nobreza do Norte de Portugal, na sua revolta recente
contra a hegemonia galega dos Travas, deram as mãos e escolheram D.
Afonso Henriques Como chefe? Ainda não: tinha apenas 12 anos. Escolheram-
no como símbolo e como"
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bandeira. Ele era o futuro chefe - quiçá o futuro rei -, em nome de quem
se podia começara lutar.
E a luta começou. Não conhecemos os pormenores dessa luta, entre 1122 e
1125: foram certamente três anos de muitas combinações e alianças.
Mas sabemos que um dos objectivos principais então escolhidos foi o da
preparação rápida e completa de D. Afonso Henriques para assumir, tão
cedo quanto possível, as responsabilidades que o esperavam.
Os esforços terão cabido, na parte civil, a D. Egas Moniz, agora já sem
necessidade da ajuda de sua mulher, porque se tratava de ministrar uma
educação viril, e, na parte religiosa, a D. Paio Mendes, arcebispo de
Braga.
Entre Guimarães e Braga vão apenas 20 quilómetros: as deslocações entre
uma cidade e a outra devem ter-se multiplicado.
O príncipe D. Afonso terá sido instruído, antes de mais, nas artes
marciais: a marcha, a equitação, a esgrima, o manejo da maça, da corda,
do arco e flecha, a luta corpo a corpo. Mas desta vez era preciso ir mais
longe, explicando-lhe a "doutrina da monarquia", um pouco de História, e
as noções elementares da política.
Como o provou depois pela vida fora, D. Afonso Henriques foi um bom aluno
dos seus mestres. De Egas Moniz terá recebido a preparação física e
política; de D. Paio Mendes terá colhido ensinamentos preciosos de
religião, de moral, e de política também; de ambos terá podido recolher a
noção de que se lhe preparava um importante destino», porventura um
"destino real".
Já nesta altura o infante D. Afonso devia revelar alguns dos traços mais
característicos da sua personalidade futura: era esperto e sagaz; era
firme e possuía autoridade natural - era são, alto, robusto; gozava de
boa saúde, física e mental; era determinado, voluntarioso, quase
obsessivo, e tinha uma energia inquebrantável.
Aos 12 anos foi escolhido pela nobreza minhota para defender os
interesses desta- aos 18 já mandava em todos - e até desautorizava o seu
aio e preceptor, Egas Moniz. Parafraseando Camões, D. Afonso Henriques
tinha nascido para mandar, mais que para ser mandado.
Capítulo IV
O infante arma-se cavaleiro
Para garantir o destino real que os seus próximos lhe preparavam, era
indispensável que D. Afonso Henriques fosse armado cavaleiro, entrando
assim no grémio dos cavaleiros medievais. Melhor: era necessário que ele
tivesse a ousadia, ou que alguém o levasse a tê-la, de se armar a si
próprio cavaleiro - como faziam os filhos dos reis com direito à
sucessão.
As atenções de Egas Moniz e D. Paio Mendes viraram-se então para o primo
direito de D. Afonso Henriques, o jovem Afonso Raimundes, futuro Afonso
VII de Leão e Castela. Este, num ambiente de incerteza quanto aos seus
direitos sucessórios, armara-se a si próprio cavaleiro, em Santiago de
Compostela, em 1124: não deviam eles levar o príncipe português a fazer o
mesmo?
Assim se fez, em 1125. Com mais um ano de mentalização, e deixando que
Afonso Henriques completasse os 16 anos - a idade da maioridade política,
na época -, convenceram-no a ir até à catedral de Zamora, em pleno reino
de León, e a armar-se a si próprio cavaleiro, no dia de Pentecostes.
E assim foi. Diz a Crónica dos Godos:
Na Sé de Zamora, junto ao altar de S. Salvador, em sí mesmo colocou pelas
próprias mãos as armas militares retiradas do altar, tal como é costume
dos reis fazer-se.
Este texto, apesar de singelo, dá-nos uma quantidade preciosa de
informações: que D. Afonso Henriques se armou cavaleiro; que o fez na
catedral de Zamora, junto ao altar de S. Salvador;
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que se armou cavaleiro a si próprio, como é costume fazerem os próprios
reis; e que o fez retirando as armas militares do altar, e colocando-as
sobre o seu corpo pelas suas próprias mãos.
Não as recebeu, portanto, das mãos do pai, que já tinha morrido, nem da
mãe, que devia estar ausente, nein do arcebispo de Braga, que estava
presente mas deve ter sido o principal inspirador de que a cerimónia se
processasse segundo o costume dos reis.
Que "armas militares" terá o príncipe retirado do altar para colocar em
si mesmo? Não o diz a cróníca: mas podemos alvitrar que terão sido a
espada, o escudo, o elmo e as esporas, Quiçá também o cinto de cavaleiro
e a loriga, uma espécie de saio de malha coberto de lâminas de ferro.
Por efeito directo e imediato deste acto, D. Afonso Henriques ingressou
na categoria dos militares adultos, com licença para participar na guerra
e para matar em combate. Passou a poder dispor de cavalo próprio e a
poder comandar um grupo autónomo de cavaleiros-vilãos e de peões. Ficou
adstrito aos deveres de honra e militares próprios da cavalaria medieval.
E, sobretudo, ficou consciente de que, como filho e neto de reis, tinha
começado a caminhada que o havia de levar ao trono de seu pai. Só não era
claro, na sua mente, se para isso teria ou não de esperar pela morte da
mãe: o futuro o diria.
Quem terá estado presente nesta cerimónia, que se pretendia solene? Além
do príncipe e do arcebispo de Braga, decerto estiveram lá juntos os
conjurados da revolta em andamento - Egas Moniz e os irmãos, de
Ribadouro; os da Maia- e os de Sousa.
Ausentes estiveram com certeza a rainha D. Teresa, os Travas, da Galiza,
e os demais nobres galegos ou portucalenses que alinhavam já com o
partido da mãe contra o partido do filho. Afonso VII, claro está, também
não devia estar perto: não era do seu interesse contribuir para valorizar
a pessoa do herdeiro de seus tios, que era já um foco polarizador de
sentimentos antigalegos e antileoneses.
Sabendo-se que Braga conduzia uma luta muito viva para ser uma sé
metropolita independente de Santiago de Compostela e de Toledo, e
sabendo-se também que o respectivo arcebispo abraçava a causa do
separatismo português, pareceria à primeira vista mais lógico que o local
escolhido para D. Afonso se armar cavaleiro com o significado político
inequívoco que se pretendia emprestar à cerimónia, fosse a Sé de Braga.
Porquê então Zamora?
Tem-se hoje em dia por certo que quem influenciou o infante e as outras
testemunhas presenciais a realizar o acto nesse local foi o próprio
arcebispo de Braga, D. Paio Mendes. As razões da escolha de Zamora são
obscuras. Mas talvez tenham a ver com o facto de o arcebispo se encontrar
lá no momento da cerimónia, por falta de condições de segurança em Braga,
ou com o facto de o senhorio da cidade de Zamora pertencer na época à
rainha D. Teresa,' sendo a cidade portanto terra de portugueses.
Contudo, não parece razoável admitir que o acto solene pelo qual o
príncipe português se armou cavaleiro, à maneira dos reis», tenha sido
praticado com o pleno conhecimento e concordância de D. Teresa e de
Fernão Peres de Trava:' o acto foi um desafio à autoridade e à política
de ambos, que o devem ter encarado com a maior preocupação.
Ou fosse por mera coincidência, ou antes por deliberada retaliação, a
verdade é que também no mesmo ano de 112 5 ocorreu uma segunda «purga» de
nobres portugueses, afastados de altos cargos administrativos do Condado
Portucalense - e desta vez muito maior e mais ampla do que a de 1121. São
agora atingidos os da Silva, os Ramirões, os de Lanhoso, os Guedões, os
da Palmeira, os de Azevedo, e muitos outros.
É toda a classe dirigente lusitana que se vê afastada, em bloco, dos
lugares de influência política e de poder económico no Condado
Portucalense, sendo substituída por gente de fora, da Galiza. A partir
daqui, e muito compreensivelmente, a indignação é geral e a preparação da
revolta vai crescer de intensidade.
D. Afonso Henriques é aliciado para a conjura, mas - com prudência e
habilidade táctica - mantém-se formalmente
19
boas relações com a mãe, com quem continua a assinar documentos régios
até 1127.
A partir do Verão de 1127, dá-se uma separação física importante: D.
Afonso Henriques assume a autoridade do comando político-militar a norte
do Douro, deixando a D. Teresa as terras entre o Douro e o Mondego. O
filho instala-se em Guimarães, a mãe e o amante em Coimbra. E as duas
cortes vão conspirar abertamente uma contra a outra.
Entretanto, Afonso VII de Leão havia começado a reinar em 1126, por morte
de sua mãe, a rainha D. Urraca (irmã de D. Teresa e, portanto, tia de
Afonso Henriques). Sentindo necessidade de afirmar a sua autoridade sobre
vassalos irrequietos e insubordinados, trata primeiro de resolver os
problemas que tem em Leão e Aragão, e olha de seguida para os da Galiza.
Para segurar a tia, D. Teresa, e Fernão Peres de Trava, chama-os a um
encontro conciliador em Zamora, ainda em 1126 ou nos começos de 1127, do
qual resulta o estabelecimento de tréguas. Mas estas, como é lógico,
preocupam fortemente os barões portucalenses: não se estará a tramar uma
aliança leonesa-galaico-portuguesa, a fim de consolidar definitivamente a
hegemonia «estrangeira» sobre o Condado Portucalense?
E não será muito mais difícil combater contra os Travas e contra Afonso
VII simultaneamente, em vez de os atacar um de cada vez?
O príncipe, já armado cavaleiro e nominalmente à frente dos revoltosos, é
posto ao corrente das nuvens negras que se acumulam no horizonte.
Capítulo V
O episódio de Egas Moniz
Capítulo VII
A batalha de S. Mamede
Capítulo VIII
As grandes opções do príncipe
De 1130 a 1137, vamos pois assistir, de acordo com a opção feita, aos
primeiros sete anos consecutivos de pressões sobre a Galiza -
nomeadamente sobre os territórios ou províncias da Galiza que pelo acordo
de 1121 tinham sido concedidos a D. Teresa: Toronho e Límia (hoje,
aproximadamente, a zona ao sul de Vigo e de Ourense).
D. Afonso Henriques, ao invadir terras e ocupar castelos na Galiza, não
estava apenas a demonstrar insubordinação e infidelidade para com Afonso
VII de Leão: estava também a procurar recuperar territórios que haviam
sido de sua mãe e que portanto se achava no direito de reaver para si.
A primeira invasão da Galiza deu-se no ano de 1130, mediante a ocupação
de Tui e de alguns lugares mais próximos. Não tendo encontrado
resistência, o ínfante regressou a Portugal satisfeito : tinha visitado
terra que considerava sua, e ninguém o perturbara nessa missão.
A segunda invasão da Galiza ocorre dois anos mais tarde, em fins de 1132
ou princípios de 1133. Mas desta vez as coisas não correm bem: o infante
D. Afonso encontra pela frente uma cara bem conhecida, o ex-amante de sua
mãe, Fernão Peres de Trava, que juntamente com outro conde galego,
Rodrigo Vela, formava a guarda avançada de Afonso VII para a defesa da
Galiza. O confronto acaba numa derrota para o chefe português, que se
retira para Portugal.
Mas D. Afonso Henriques não desanima e volta a insistir no ano seguinte:
em 1134 está de novo em Toronho e na Límia, e a sua incursão é de tal
modo bem sucedida que aí edifica um castelo - o único que, tanto quanto
se sabe, construiu na Galiza -, o castelo de Celmes . ( A localização da
povoação de Celmes, na Galiza, foi-me revelada pela Sr. Prof. Doutora
Gregoria Cavero Dominguez, da Universidade de León, a quem o agradeço
reconhecidamente.) Uma vez edificado, foi dotado de uma pequena
guarnição, que o ficou a defender, e o infante voltou a Portugal.
Afonso VII não perdoou a ousadia, pois considerava a Límia, como Toronho,
territórios seus, não incluídos no Condado Portucalense, e avançou sobre
o castelo de Celmes, que cercou, tendo derrotado e aprisionado os
militares portugueses que o guardavam. A notícia provocou na corte de D.
Afonso Henriques uma "tristeza intolerável".
Afinal, os territórios que tinham pertencido a D. Teresa não eram
reconhecidos ao filho, e o rei leonês tinha-os como seus: a luta pela
respectiva posse ia ser renhida e prolongada, e o resultado era incerto.
D. Afonso Henriques teve de aguardar mais três anos, até 113 7, refazendo
o ânimo dos seus homens e reorganizando o exército, até tentar nova
incursão na Galiza.
Mas, entretanto, outras coisas importantes vão acontecendo. No auge do
seu poder e prestígio, tendo rechaçado as ousadias do infante português e
tendo conseguido obter ou confirmar a vassalagem dos principais magnatas
de Leão, Aragão e Navarra, Afonso VII faz-se coroar imperador. Imperador
de Leão? Não: Imperador das Espanhas ou, como ele próprio prefere,
Imperador de toda a Espanha. A cerimónia ocorre em Leão, em cortes
extraordinárias convocadas expressamente para o efeito, no dia 4 de Julho
de 1135. Estão presentes todos os nobres de condição mais elevada, que se
reconhecem vassalos de Afonso VII. Com uma única excepção, que logo
assume tons de escândalo político: D. Afonso Henriques não vai, não está
presente, não presta vassalagem ao novo imperador. Mais um acto de
rebeldia
30
e separatismo, que é vivamente ressentido na corte leonesa, mas que na
altura não provoca nenhuma reacção imediata. Instala-se a animosidade
entre os dois primos: as posições de um e de outro começam a tornar-se
divergentes.
No mesmo ano de 1135, D. Afonso Henriques, já a viver menos em Guimarães
do que em Coimbra - nova "capital" do Condado Portucalense -, resolve
fortalecer e proteger mais eficazmente a sua fronteira sul. E toma a
importantíssima decisão de construir o castelo de Leiria - que servirá um
duplo objectivo: defender militarmente a cidade de Coimbra; e funcionar
como ponto de partida para futuras incursões em direcção a Santarém e a
Lisboa. A derrota de Celmes colocou na primeira linha das preocupações a
Reconquista, o avanço para o sul.
Decerto por isto mesmo, e talvez também pela sua avançada idade, D. Paio
Mendes, arcebispo de Braga, que fora o principal conselheiro político de
D. Afonso Henriques desde 1128, é agora substituído - em 1136 - por Egas
Moniz, nomeado "dapifer curiae", o equivalente ao cargo actual de
primeiro-ministro.
Entretanto, D. Afonso Henriques aproveita estes anos de paz para se
dedicar à administração interna do território: funda igrejas e mosteiros,
faz numerosas doações de bens da coroa, concede um foral a Seia.
1137 vai ser o ano da grande aposta na conquista total da Galiza. As
circunstâncias não podem ser mais propícias: do lado português, o
exército está reorganizado e muito aumentado; a leste de Leão, o Rei
Garcia Ramires, de Navarra, disposto a lutar pela sua independência,
propõe uma aliança a D. Afonso Henriques, combinando ambos atacar os
territórios de Afonso VII em simultâneo, um pelo oeste e outro pelo
leste; finalmente, e como se tudo isto fosse pouco, estala uma ampla
revolta da nobreza galega contra o Imperador de Leão, acontecendo que os
governadores de Toronho e da Límia, os condes Gomes Nunes e Rodrigo
Peres, se viram contra o seu suserano e prometem colaboração, senão mesmo
vassalagem, a D. Afonso Henriques.
Este sente que o momento é propício e, num repente, ocupa Tui e toma
posse dos numerosos castelos e terras que lhe são oferecidos pelos dois
condes galegos revoltados. Ainda encontra um foco de resistência em
Alariz, onde Fernando Anes se mantém fiel a Afonso VII, mas aquele é
militarmente derrotado.
Garcia de Navarra inicia o seu ataque pelo leste.
D. Afonso Henriques, entusiasmado, distribui as suas tropas pelos
numerosos lugares que se colocaram sob as suas ordens, e vem a Portugal
buscar reforços.
À frente de um novo exército, fresco e maior, rapidamente recrutado no
norte do país, volta de imediato à Galiza para explorar até ao fim as
condições que lhe são objectivamente tão favoráveis.
Os condes fiéis ao Imperador, Fernão Peres de Trava e Rodrigo Vela, saem-
lhe ao caminho e oferecem-lhe duro combate: é a batalha de Cerneja, de
que D. Afonso Henriques sai vencedor.
Nas hostes portuguesas vive-se um momento impar: o entusiasmo transforma-
se em euforia.
Na verdade, todo o sul da Galiza está nas mãos de D. Afonso Henriques. E
não apenas pela vitória das armas: também pela adesão voluntária dos
principais governadores da região e, presume-se, das respectivas
populações. Afonso VII está neutralizado pela guerra com Navarra, a
leste. Os territórios que pertenceram a D. Teresa - as províncias de
Toronho e Límia - estão agora finalmente nas mãos de D. Afonso Henriques.
O Condado Portucalense aumentou cerca de um terço!
E, como sugere Alexandre Herculano, dominado o sul da Galiza, porque não
sonhar com a conquista do norte?" E porque não também com Zamora, que
chegara a ser igualmente de D. Teresa? Com alguma sorte, o Condado
Portucalense quase poderia duplicar para o norte...
31
É neste preciso momento, no início do Verão de 1137, quando tudo parece
sorrir a D. Afonso Henriques, quando a sua estratégia de conquista do
Norte começa a resultar plenamente, que o azar cai em cheio sobre a
cabeça do infante português. Dois factos políticos muito graves exprimem
essa grande viragem.
Por um lado, chegam más notícias do sul: os mouros tinham atacado o
castelo de Leiria e, numa batalha violenta, em que 240 cavaleiros e
homens de armas portugueses morreram, tinham-se assenhoreado do castelo;
ao mesmo tempo, uma outra coluna sarracena havia derrotado um corpo de
tropas português em Tomar. Toda a fronteira sul ficava, assim, posta em
perigo: sem Leiria, o próximo alvo seria facilmente a cidade de Coimbra.
A situação era muito grave, e exigia atenção imediata.
Por outro lado, Afonso VII de Leão, tendo alcançado clara vantagem sobre
Garcia de Navarra, pôde virar-se para a Galiza e tirar desforra das
vitórias portuguesas. Sem perder tempo, dirigiu-se com o seu exército
para oeste, ocupou Tui, e preparou uma vasta ofensiva contra D. Afonso
Henriques: convocou toda a nobreza militar da Galiza para se juntar em
Tui com o fim de invadir Portugal pelo norte e exigir a submissão total
do infante português, senão mesmo destituí-lo da chefia do Condado
Portucalense. Era o xeque-mate.
Deste modo, D. Afonso Henriques - provavelmente instalado em Guimarães -
passa da euforia à mais profunda preocupação. De repente, está
encurralado num beco sem saída: se se mantém com as suas tropas na
Galiza, perderá o sul; se vem com os seus homens para Leiria, perderá o
norte.
A única saída plenamente vitoriosa seria constituir dois poderosos
exércitos, um para defender a Galiza e outro para recuperar e manter
Leiria. Mas isso é impossível, porque os recursos humanos do Condado
Portucalense não comportam tamanho esforço.
Provavelmente D. Afonso Henriques reúne-se em Guimarães com os seus
principais conselheiros políticos e chefes militares: deve ter então
realizado uma importante cúria régía (o equivalente ao que são hoje os
conselhos de ministros). Todas as
32
hipóteses terão sido ponderadas. Mas D. Afonso Henriques não tinha à mão
nenhuma solução fácil. E já não é só a Galiza que está em risco: a
própria existência do Condado Portucalense encontra-se ameaçada. Com
efeito, os portugueses não têm exército que possa desbaratar, em
confronto directo, as tropas do Imperador de Leão.
Este pretende mesmo invadir Portugal: mas, ao que parece, a nobreza
galega - dividida nas suas lealdades - reage lentamente e demora muito a
formar o grande exército que Afonso VII reclama. Também este se acha
assim, em dificuldades: recuperou a Galiza, mas não consegue, pelo menos
de momento, invadir Portugal.
Ambos se encontram naquilo que, na teoria dos jogos, se chama uma no win
situation: ninguém consegue ganhar.
É neste quadro que tanto D. Afonso Henriques como Afonso VII de Leão se
predispõem a negociar, ou seja, a encontrar um compromisso para o
conflito que os opõe. E os conselheiros de ambos assim o recomendam
vivamente. Nasce daqui o tratado ou pacto de Tui, de 4 de Julho de 1137,
pelo qual os dois primos fazem as pazes.
O pacto (a que não se deve chamar tratado, pois Portugal ainda não era, à
data, um país independente) é formalizado na cidade de Tui, com a maior
solenidade.
Assinaram-no, pela parte portuguesa, o arcebispo de Braga, D. Paio
Mendes, e o bispo do Porto, D. João Peculiar, e, pela parte leonesa, os
bispos de Segóvia, Tui e Orense. "É de crer que fossem estes prelados
quem trabalhasse então na concórdia dos seus príncipes. O pacto foi
assinado pelo infante D. Afonso, acompanhado por 150 homens bons
portugueses.
Que dizia o texto desse pacto? Essencialmente, três coisas: que o infante
prometia fidelidade e amizade ao Imperador, a quem nunca provocaria morte
ou dano; que o infante prometia respeitar os territórios do Imperador, de
tal modo que os não invadiria mais e, se algum dos seus barões o
invadisse, ele ajudaria lealmente a restituí-los ao Imperador; e que, se
os filhos do Imperador quisessem manter a paz, o infante ficava obrigado
a fazer o mesmo. Acessoriamente, o Imperador concedia ao infante, naquele
acto, uma honra (terra imune) - porventura Astorga - pela qual o infante
se constituía vassalo do Imperador, e que lhe deveria restituir em
qualquer ocasião em que lhe fosse requerida.
Vários problemas se podem pôr acerca deste pacto.
O primeiro é o de saber quem terá tomado a iniciativa de pedír as pazes -
a parte portuguesa ou a parte leonesa? Se é certo que D. Afonso Henriques
era quem estava em maiores dificuldades, não é menos certo que tão-pouco
Afonso VII conseguia reunir o exército com que pretendia invadir
Portugal. Provavelmente, a ideia do pacto nasceu dos bispos portugueses e
galegos que, concordando no essencial, terão conseguido influenciar os
respectivos príncipes.
O segundo problema interessante a discutir é o de saber se o acordo de
Tui foi um pacto de amizade entre dois principes que negociavam em pé de
igualdade, ou antes um pacto de vassalagem feudal entre um suserano que
ficava por cima (Afonso VII) e um vassalo que ficava por baixo (D. Afonso
Henriques). Ambas as opiniões têm sido defendidas, sobretudo com base na
análise textual do pacto.
Pessoalmente, e baseando-me sobretudo no contexto político, inclino-me
para o carácter de pacto de vassalagem feudal, porquanto os reis de Leão
sempre acentuaram, enquanto puderam, a sua suserania sobre os condes
portucalenses: foi assim com Afonso VI na própria concessão do Condado e
foi assim com Afonso VII na Conferência de Zamora, como adiante veremos -
ora, se nesta, em 1143, ainda o Imperador marcava a sua
33
superioridade feudal sobre D. Afonso Henriques, por que não teria feito o
mesmo, por maioria de razão, seis anos antes, em Tui?
Terceiro problema, porventura o mais interessante dos três: o pacto de
Tui foi uma derrota política para D. Afonso Henriques, como pretendem
Alexandre Herculano e Gama Barros, ou uma assinalável vitória, como
sustentam Torquato de Sousa Soares e Veríssimo Serrão?
Para mim, a resposta é simples: o pacto de Tui foi uma derrota política.
Isso resulta claramente do texto do acordo, que só comporta obrigações
para o infante português e nenhumas impõe ao imperador de Leão. Mas o
mesmo resulta também do que na moderna teoria dos jogos se designa por
"lógica da situação".
De facto, qual era a situação de D. Afonso Henriques antes do pacto? Era
a de senhor absoluto de todo o sul da Galiza, nomeadamente das províncias
de Toronho e Umia, e suserano dos condes galegos Gomes Nunes e Rodrigo
Peres; vencedor da batalha de Cerneja; possuidor do castelo de Celmes e
de muitos outros que se haviam passado para ele; senhor da cidade de Tui
- e tudo isto sem contestação ou reacção imediata da parte de Afonso VII.
E qual foi a situação em que ficou D. Afonso Henriques depois do pacto?
Perdeu tudo o que tinha adquirido na Galiza, teve de devolver quanto
conquistara, e foi forçado a prometer que nunca mais invadiria os
territórios do Imperador e que, se algum dos seus homens os invadisse,
prontamente restituiria tudo.
Se isto não é uma derrota política, não vejo outro nome que se lhe possa
dar. Alguns historiadores portugueses não querem admitir, talvez por
preconceito patriótico, que D. Afonso Henriques tenha sofrido qualquer
derrota: mas isso não é verdade. Sofreu algumas: só que conseguiu muitas
mais vitórias, e nunca desanimou com as derrotas que teve: por isso
chegou onde chegou.
Uma das grandes qualidades de D. Afonso Henriques era não ficar
paralisado pelos reveses da sorte, e, depois de completada uma operação,
saber avançar logo para o objectivo seguinte. Trotsky conta, nas suas
Memórias, que o principal defeito de alguns dos seus camaradas
revolucionários era ficarem parados diante de uma dificuldade e não
saberem what to do next. Pois bem: o infante português não padecia desse
defeito.
Perdida a Galiza, desfeito o sonho da conquista do norte, ele percebeu
logo que era necessário partir à conquista do sul.
Por isso, ao regressar de Tui com os seus homens, D. Afonso Henriques não
devia vir triste e hesitante, mas forte e determinado. A sua palavra de
ordem, seca e clara, terá sido, para usar uma expressão utilizada mais
tarde noutro contexto: "Para Leiria, rapidamente e em força!"
34
Capítulo X
A "capital" em Coimbra e o caso do bispo negro
Creio ter sido o ilustre historiador José Mattoso quem primeiro chamou a
atenção para o facto de, por volta de 113 1, D. Afonso Henriques ter
passado a residir a maior parte do tempo em Coimbra - o que implicou não
só a instalação da corte e a reunião da cúria régia nesta cidade, mas a
própria transferência da «capital» do reino de Guimarães para a cidade do
Mondego.
Não deixa de ser um pouco estranho que esta mudança se tenha dado em
plena campanha da Galiza, com o infante todo voltado para a conquista do
norte, em vez de ter tido lugar seis anos mais tarde, após o pacto de
Tui, quando as prioridades da governação ofensiva se voltaram
definitivamente para a defesa de Coimbra e, depois, para a reconquista do
sul (Leiria, Santarém, Lisboa).
Seja porém como for, o certo é que a transferência da "capital" do reino
para a linha meridional das suas fronteiras de então teve grande
significado: o príncipe libertou-se das pressões da nobreza senhorial de
Entre Douro e Minho, criou uma nova nobreza mais dócil, apoiou-se mais do
que inicialmente nos concelhos a que foi dando foral, fundou o Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra - que em breve se tornou em grande centro
espiritual e cultural do país -, organizou melhor uma plataforma
permanente de expedições militares em direcção ao sul e, por último - the
last but not the least -, promoveu a rápida integração num só bloco
social e político dos tradicionais condados de Portucale e de Coimbra,
fundindo e incorporando numa sociedade plural o norte cristão com o sul
muçulmano. (Inspiramo-nos, nesta síntese, em José Mattoso. Ver, em
sentido diverso, a opinião de A. H. de Oliveira Marques, segundo a qual a
integração do norte cristão com o sul muçulmano só teve lugar um século
mais tarde, com a fixação da «capital» em Lisboa, no reinado de D. Afonso
III: )
A fixação da "capital em Coimbra permitiu a D. Afonso Henriques cuidar
atentamente da defesa da cidade, com a construção ou reconstrução de
castelos em Montemor, Lousã, Miranda, Soure, Penela, Germanelo, Pombal
e, finalmente, Leiria, entre 1136 e 1142.
A seguir, e mais para sul, foram erguidos ou recuperados os castelos de
Ourém, Alcobaça, óbidos, Torres Novas, Ceras, Tomar, Zêzere e Almourol.
Já não era, agora, apenas a defesa de Coimbra que estava em causa: era a
construção de uma rampa de lançamento para o ataque aos grandes centros
nevrálgicos civis e militares da ocupação muçulmana - Santarém e Lisboa.
Já acima se disse que Coimbra fora, entre finais do século xi e
princípios do século xii, um importante pólo de presença moçárabe. Houve
luta de influências entre o clero "colonizador", proveniente do norte, e
o clero local, espiritualmente mestiço. É nesse contexto que tem
interesse recordar aqui uma das lendas mais curiosas que se formaram na
Idade Média sobre D. Afonso Henriques - a famosa lenda do "bispo negro".
Não há nenhuma certeza sobre a autenticidade desta história, antes tudo
leva a crer que ela nunca ocorreu, ou se passou noutra época e com outras
personagens.
No entanto, a verdade é que os cronicões portugueses a contaram todos
como se fosse um importante episódio da vida de D. Afonso Henriques. Por
isso a refiro aqui.
Após a batalha de S. Mamede, D. Afonso Henriques encontrava-se em
Coimbra, e terá prendido «(a ferros») sua mãe, a rainha
35
D. Teresa. Esta decidiu então escrever ao Papa, reclamando da malvadez e
crueldade do seu filho:
Depois disto, estando El-Rei D. Afonso Henríques em Coimbra, sua mãe se
queixou muito ao Santo Padre da prisão em que a tinha seu filho, havia já
tanto tempo. O Santo Padre teve aquela coisa por estranha e muito mal
feita, e determinou mandar a Portugal sobre o caso o Bispo de Coimbra,
que então lá estava em Roma, dando-lhe cartas e grandes instruções para
El-Rei D. Afonso, mandando-lhe que tirasse sua mãe da prisão; não o
querendo assím cumprir, que fosse interdito todo o reino.
Partiu o Bispo para Portugal. E depois de dar as cartas do Santo Padre e
transmítir a sua míssão, El-Rei perguntou ao Bispo que tinha o Santo
Padre que ver com ele ter sua mãe presa; e dísse-lhe que tivesse a
certeza que nem por mandado do Papa, nem nenhum outro, ele em modo algum
a soltaria, porque o tínha assim por melhor serviço de Deus e bem do seu
reino.
Quando o Bispo víu que outro recado não podia nem esperava achar em El-
Rei, encarregou-se de cumprír o que o Santo Padre lhe tínha mandado:
então excomungou toda a terra (portuguesa) e partiu de noite, fugindo.
Este o primeiro acto do drama. Mas D. Afonso Henriques não mostra medo
nenhum, e vai resolver o problema de forma rápida e eficaz:
Quando veio a manhã, disseram a El-Rei que estava excomungado, e toda a
sua terra. Ele ficou muito irado, e foi à Sé, onde fez entrar todos os
cónegos na Sala do Cabido, e disse-lhes:
- De entre todos me dai um Bispo. Eles responderam:
- Bispo temos; como vos daremos Bispo? Disse El-Rei:
- Esse que vós dizeis, nunca aquí será Bispo no resto dos meus dias. Mas,
se assim é, saíde todos pela porta fora, que eu acharei quem fazer Bispo.
Eles saíram. E El-Rei, junto à porta, viu vir um clérigo que era negro, e
disse-lhe: - Como é o teu nome?
O clérigo respondeu:
- Meu nome é Martim.
- E teu pai como se chamava?
- Suleima, disse ele. El-Rei perguntou-lhe:
- És bom clérigo, e sabes bem o oficio da Igreja? E ele respondeu:
- Não há dois melhores em toda a Espanha, nem que melhor o saibam.
Então lhe dísse El-Rei:
- Tu serás Bispo, D. Suleima, e faz já o necessário para que me dígas
missa.
- Senhor (disse ele), eu não sou ordenado como Bispo, para vo-la poder
dizer.
Respondeu El-Rei:
- Eu te ordeno como Bispo, para que ma possas dizer; e aparelha- te para
que logo ma digas, senão eu te cortarei a cabeça com esta espada.
E o clérigo, com medo, vestiu-se para dizer missa solenemente como Bispo.
Sabido este feito em Roma, cuidaram que El-Rei era herege, e o Papa
envíou-lhe um Cardeal que lhe ensinasse a fé.
Este episódio é muito curioso, não só pelo que revela da prática medieval
de serem os reis (e não o Papa) a nomear os bispos - costume que ainda
hoje se mantém na Inglaterra protestante -, mas sobretudo pelo facto de
aparecer em Coimbra um bispo negro. Que significará isto?
Segundo os especialistas, significa que se tratava de um sacerdote
moçárabe, filho de pai árabe (Suleima é o mesmo que Sulimão ou Zoleiman)
mas com nome próprio cristão (Martim ou Martinho). Os moçárabes eram,
como se sabe, os cristãos que viviam sob o domínio muçulmano e que, por
isso, se adaptavam a