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Lado B — Segunda Temporada

Copyright © 2010 Enrique Coimbra


Todos os direitos reservados

— 1ª Edição —

Arte & Capa


Enrique Coimbra

Projeto Editorial
Enrique Coimbra

_______________________________

Coimbra, Enrique
Rio de Janeiro, 2010
I. Literatura Juvenil II. Título

Lado B - Segunda Temporada, por Enrique Coimbra está licenciada sob Creative Commons
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enriquecoimbra@yahoo.com.br
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“Agradeço aos meus leitores, que divulgaram,
impulsionaram e adoraram essa obra. Sem seu apoio,
Lado B não seria nada além de uma voz inaudível.
Vocês são meus ouvidos.”

Prólogo

Incrível como a vida pode se transformar fatalmente em menos de um ano. O ar resfriado


tomou conta da boca de meu estômago como a Halls preta congelava minha boca. Um aperto
sem fim que sufocava minhas tentativas já frustradas de encontrar meus tijolinhos amarelos
para seguir o caminho certo.

Eu acreditava que tinha conseguido aceitar que minha amizade com Helen havia acabado
de vez, mas evitava pensar sobre. Um ano novo se aproximava, afinal. Assim como as aulas,
que me deixavam um pouco menos ansioso para retornar à penitenciária de educação e
pressão social. Mas eu era um novo Éron, eu sabia que poderia lidar com isso.

Novas amizades, novas esperanças e uma nova rotina. O que não me agradava nisso tudo
era o calor de 37°C do verão em Dourado. Se bem que esse calor acendia o fogo da paixão, da
diversão e da paquera. E era isso o que eu buscava, alguma coisa que não me fizesse pensar
no que me fazia mal.

Dizem que quem brinca com fogo faz xixi na cama. Prefiro dizer que quem brinca com
fogo se torna invulnerável ao Inferno. Não era à toa que eu ainda estava de pé depois de
tantos incêndios: eu era a causa de todos.
Sumário

1. O Escuro Dia de Natal .......................................................................... 05

2. O Aquecimento .................................................................................... 12

3. O Réveillon ........................................................................................... 22

4. A Vadia da Maçã Envenenada ............................................................. 36

5. O Diabo Veste Jeans ............................................................................. 43

6. Ponte Para Terapia ............................................................................... 53

7. Amargo Fevereiro ................................................................................. 61

8. Carnaficina ............................................................................................ 70

9. Poeira .................................................................................................... 80

10. As Sete Letras ...................................................................................... 91


Episódio Um
O Escuro Dia de Natal

E
u não entendia o motivo, mas naquela tarde de véspera de Natal eu só gostaria de
estar na praia. Com Forever Young tocando em meus ouvidos pela banda Youth
Group, tentei me perguntar o porquê. Olhar o mar debruçado sobre o píer,
enquanto o Sol brilhava amarelo dentro da enorme tela rosa que era o céu, me deprimia, ao
mesmo tempo em que me aliviava. Tudo que eu passei durante o ano martelava minha
cabeça como um grito de culpa. Promessas de amizade eterna se acabaram, um namoro
fracassado com a única pessoa que amei, os jogos com sentimentos alheios e os beijos
homossexuais cortavam minha mente e meu coração como facas envenenadas de remorso.
Todo o trabalho que tive pra deixar de ser mais um idiota foi em vão, já que eu tinha me
tornado o maior de todos os estúpidos. Me deixei levar por falsas companhias e manipulações
sociais do meu próprio colégio, onde prometi começar uma nova vida. Tantas futilidades e
preocupações imbecis ocupavam quem eu queria ser. Eu estava me tornando o que queriam
que eu fosse. E achei que era isso o que eu queria.
Toda essa transformação de personalidade, todo esse problema do primo da França, toda a
raiva da minha existência, tudo se resumia a estar naquele píer, sentindo a brisa salgada
lamber meu rosto.
Crianças passeando com balões flutuantes e pais atenciosos me fizeram indagar: o que eu
perdi? Será que se meus pais fossem mais atenciosos e menos frios eu teria feito tudo que fiz?
É claro que eu queria jogar a culpa em cima de alguém. Eu já estava com meus dezesseis
anos, tinha esse direito.
— Alô? — atendi desprevenindo, após meu celular vibrar em meu bolso. Eu não tinha
recebido ligações de ninguém importante durante o segundo resto do ano letivo, por que me
ligariam naquele momento?
— Oi, Éron. É o Dril.
— D-Dril? — gaguejei, surpreso. — Por que está me ligando?
— Acho que precisamos conversar. — ele estava cauteloso. Ele sempre era cauteloso com
suas palavras. Sabia usá-las e conhecia seus efeitos, seus impactos.
— Eu acho que deixei tudo claro no Clube quando —
— Eu não deixei muitas coisas claras. — ele me interrompeu. — Olhe para trás.
Me virei: segurando o celular, ele estava atrás de mim, sorrindo. Seus cabelos negros e
lisos voavam para todos os lados e seus óculos quase-meia-lua ainda eram pouco reflexivos.
Com um aceno, resolvi acompanhá-lo até a pizzaria M&D. Ele tinha o que falar e eu deveria
ouvir.
Nos sentamos em uma daquelas mesas separadas para casais, perto de uma das enormes
janelas de vidro que tomavam conta de quase todas as paredes, nos entregando a visão
perfeita do Sol brilhando do lado de fora e do pouco movimento de pessoas na véspera de
Natal.
— Vai pedir alguma coisa? — ele perguntou, me encarando por cima dos óculos.
— É, vou. Eu não comi hoje. Me senti...
— Enjoado? — ele arriscou um palpite natalino.
— Entediado. Natal, pra mim, nunca foi uma boa época. Parentes sempre ficavam pela
minha casa e coisas do tipo. Agora que serei eu, meu pai e minha mãe, não estou tão triste.
Apenas entediado. E a sua véspera, como está?
— Nostálgica.
Lancei um sorriso um pouco forçado e gesticulei no ar para o garçom. Pedimos uma
gigante de mussarela e duas latinhas de Sprite.
— Você está desconfortável. — ele já havia deduzido isso, mas só nessa hora tomou
coragem pra falar. — Eu não estou com raiva de você, apenas —
— Não é pela raiva. Eu me sinto um pouco — eu queria falar culpado, mas ia parecer que
eu queria me tornar a vítima. — transtornado. Eu deixei você e mais um cara numa balada.
Decidi ficar sozinho. Não me sinto bem.
— Está arrependido?
— Nem um pouco. — fui sincero. Eu não estava arrependido por ter fugido. Não tinha de
ficar mentindo para as pessoas sobre minha sexualidade inexistente ou ter de fingir para
esses caras que eu sentia algo por eles quando, na verdade, eu só estava buscando o furacão
de sentimentos que Hugo causou em mim.
Dentre as resoluções do ano que se aproximava, uma delas era: não sentirá por nenhum
homem o que sentiu pelo seu primo, então pare de procurar.
— Nem arrependido pela maneira que fez com que meu namoro fiasco com o Paulo se
transformasse num tsunami apenas para mostrar, pra quem quer que fosse, que você podia
ter feito o que fez e que possui todo o controle do mundo nas mãos?
— Exatamente. — reconheci. — Sei que não deveria ter feito o que fiz da maneira que
fiz, mas eu não sei de onde isso vem.
— Você sabe. Você só fica se negando. No dia que admitir que alguma coisa em você não
está de acordo com a maneira que está agindo, vai saber que há sempre uma saída mais legal.
Ele estava me chamando de gay?
— De qualquer forma, Dril, você sabe que quando um não quer, dois não se beijam. Eu
não tenho toda a culpa pelo seu término de namoro.
— Mas você sente a culpa, de qualquer maneira.
Levantei minha sobrancelha num sinal imbecil de deboche, torcendo para que ele não
tivesse reparado.
— Então era isso que você tinha pra me falar, Dril?
— Não. Ainda tem a segunda parte.
Sendo a primeira um sutil sermão, a segunda poderia ser qualquer coisa. E eu merecia
todas as flechas que ele queria atirar em mim. Eu não era um santo e estava muito longe de
ser. Eu era apenas um adolescente influenciado pelos hormônios, fazendo coisas sem nexo
apenas por... confusão. Tá, não era só isso.
A pizza chegou antes de ele começar a falar. Cortada em quadradinhos, comecei a comer
espetando o garfo descartável na própria bandeja. Eu não tinha cerimônia para comer pizza.
Tentando ser um bom cavalheiro ou um príncipe, sei lá, Dril abriu minha latinha e colocou
um canudo nela. Agradeci cerrando os olhos e sorrindo sem abrir a boca cheia.
— O que eu quero falar pode parecer anormal, mas acho que preciso que você saiba antes
que eu tome alguma decisão.
Ainda mastigando, confirmei com a cabeça. Poderia parecer que eu não estava ligando
para o que ele ia falar, pois eu já esperava uma daquelas declarações melosas de como eu era
importante. Eu me importava. Mas eram coisas que não teriam futuro. Eu estava no meu
lado mais confuso, quando o conheci. Sentado naquela pizzaria, eu estava do outro lado.
— Eu larguei a faculdade de administração pra fazer cinema, o que é o meu sonho.
Engoli a pizza rapidamente:
— Caraca! Isso é ótimo, Dril! De verdade, correr atrás do que você quer e saber que é isso
que te motiva! Nossa, que bom!
Ele sorria. Eu estava feliz por ele. Administração não era sua vontade, era a de seus pais,
então por que fazer isso? É se torturar.
— Eles não aceitaram. Mas eu nem ligo mais. Olhe pra mim, posso me cuidar.
— Não, você está certo. Eles deveriam saber o que é bom pra você de verdade. Os pais
têm essa coisa de querer que os filhos sejam da maneira que idealizaram, acho que pra
realizar as vontades frustradas deles.
— Exatamente... — alguns segundos de pausa para eu colocar na boca mais alguns
pedaços de pizza. Dril não havia comido ainda, o que me fez perceber que ia abrir a boca
para me dar uma notícia ruim.
— A outra coisa que eu tenho pra te falar — a cautela em sua voz estava maior. — não é
tão boa. Ruim por um ponto de vista, boa por outro.
— O que é? — considere-me preocupado.
— Não pense que eu sou um irresponsável ou imaturo pelo que —
— Pare de enrolar. Eu posso lidar. Você está com AIDS? Problemas com drogas?
— Não! Claro que não!
— Então não é algo ruim. — joguei mais pedaços de pizza na boca, segurando o riso.
— Eu fui convidado pra rodar um longa-metragem. Na Alemanha.
Quase me engasguei com o quadradinho que eu tentei engolir.
— Sério, Dril? — eu estava perplexo.
— É. Mas eu tenho uma proposta pra te fazer.
Tomei um gole de Sprite para empurrar a pizza.
— Proposta?
— Você sabe que eu adoro você e tenho uma queda enorme por ti. Se você me disser que
existe alguma chance de termos algum tipo de relacionamento que não seja o de amizade, eu
deixo de ir pra Alemanha. Eu deixo de ir pra onde for. Eu fico.
A surpresa se tornou decepção. Ir para a Alemanha era o melhor que ele poderia fazer
para si mesmo e para mim. Aprender fazendo um filme em outro país, com novas chances,
novas pessoas, e trocar tudo por mim, um garoto de dezesseis anos que nem sabia o que
queria pra vida era, além de burrice, falta de responsabilidade.
— Dril, isso é —
— Éron, existe alguma chance? — sua voz estava firme. O tempo todo.
— Não. Nenhuma.
Minha resposta foi fria, seca, mas útil para o que ele precisava e não sabia, porque além de
me tirar um peso, de colocar um ponto final na história, fez com que ele despertasse para a
maior cagada que poderia estar cometendo em toda a sua vida. Não que eu não confiasse em
seus sentimentos por mim, eu é que não confiava nos meus sentimentos por ele. Toda a
minha confusão sobre a minha sexualidade parecia menor, mas ao mesmo tempo eu sabia
que eu nunca sentiria por ninguém mais, muito menos por um “cara comum”, o que eu senti
pelo Hugo, o meu maldito primo.
Dril pegou um pedaço de pizza e colocou na boca, mastigando devagar demais.
Obviamente estava abalado com a rapidez da minha resposta, até por saber que era sincera.
Quando o assunto acaba, o que fazer? Antes que pudéssemos ter algum outro pra começar, as
luzes se apagaram repentinamente, fazendo com que a pizzaria fosse iluminada apenas pelos
raios laranja do Sol, que se recolhia no horizonte do mar. Quando o assunto acaba, é melhor
deixar o universo conspirar.
— O que houve aqui? — perguntei para ninguém, no meio de todos os murmúrios.
— Será que foi só aqui? — era Dril, recuperando um pouco de emoção em suas palavras.
— Não faço a mínima ideia.
— Quer ir embora? — ele perguntou. — Eu tô com o carro aqui perto —
— Boa noite a todos. — uma grave voz o interrompeu, vindo do balcão de pagamento. —
Me chamo Cláudio e sou o gerente da pizzaria M&D. Gostaria de pedir calma, pois ao que
parece, a falta de energia não foi só aqui. Ligarei agora para a distribuidora de energia para
saber a previsão de volta. Até lá, vocês têm duas opções: uma delas é continuar aqui na
pizzaria e terminar suas pizzas com calma e paciência, ou aproveitar a pouca iluminação
natural restante e voltar para suas casas. Agradecemos sua preferência.
— Nós deveríamos estar em um shopping agora. Pode ser um ataque zumbi. — expliquei
animado, imaginando como seria ficar trancado num shopping, estourando a cabeça de
mortos famintos.
— Zumbis não são reais. — observou Dril, quase achando graça do óbvio.
— Mesmo assim não deixaria de ser excitante.
Aguardamos alguns minutos em silêncio, sem saber exatamente o que fazer ou falar.
Estávamos sem graça. Eu por ter de dizer não, e ele por ter achado que eu diria sim. Foi
quando a voz voltou a falar:
— Péssimas notícias. Foi um blackout geral. Toda Dourado está às escuras. Aconselho a
irem para casa, pois a previsão de volta de energia é de, no máximo, 24 horas. Aos clientes
que quiserem terminar sua pizza com calma, ficaremos aqui até o último sair, mas saibam
que são os últimos clientes da noite. Um feliz Natal a todos.
O burburinho inundou a pizzaria. Muitas pessoas foram ao caixa para pagar suas contas,
iluminados por lanternas de emergência da pizzaria.
— Vai querer ir para casa? — Dril me perguntou, abrindo a carteira.
— Agora que tudo ficou interessante? Se houver zumbis lá fora, eu precisarei de armas.
Vamos pra delegacia catar uns fuzis e munição.
— Não quer ficar aqui? — ele não estava entendo a mensagem.
— Vamos para a praia, caminhar, colocar assuntos em dia... pela última vez antes do
apocalipse.
Ele hesitou antes de responder com uma bela proposta:
— Já viu o céu de uma praia à noite? — sacudi a cabeça, meio sem entender. Não achei
que ele tivesse me visto, já que ficara bem mais escuro. — Deixe-me pagar a conta e eu irei
te mostrar um show maravilhoso.
Ele enfrentou as poucas pessoas que pagavam suas contas enquanto eu o observava de
longe, me perguntando se eu tinha tomado a decisão certa. Eu sabia que tinha, mas parte de
mim estava um pouco esquisita por saber que ele estava saindo da minha vida
definitivamente. Nem tivemos tempo para nos conhecermos de verdade. Não tivemos
convívio real.
Quando voltou, me pegou pela mão para me guiar por entre as mesas, iluminando-as com
a luz do celular, o que era irônico já que ele era o míope da história. Do lado de fora da
M&D, e escuridão se fazia presente. No horizonte, os raios de Sol, quase sem cor, se erguiam
na vertical enquanto seu corpo afundava no mar.
— Vamos. — ele ainda segurava minha mão quando começou a me guiar. Vencendo mais
uma barreira de preconceito próprio, permiti que sua mão colasse na minha. Caminhando
pelo calçadão, desviávamos de poucas pessoas que se aventuravam naquela véspera de Natal.
Ao longe, no píer, as luzes de bateria ainda brilhavam nas lojas e lanchonetes, só que aquele
não era o nosso destino.
— Aqui. — ele disse, me levando para a areia.
— Meu tênis vai ficar cheio de areia, Dril! — reclamei, andando sobre a areia fofa como
se fosse caco de vidro.
— Seu cabelo também. — ele disse, se deitando na areia. Eu não conseguia ver seu rosto,
mas via o movimento de seu corpo pelo pouco brilho estelar.
Me deitei. Sem reclamar exteriormente, por dentro eu o amaldiçoava. Me arrependi
quando olhei para o céu, possuído por uma escuridão perfurada por pontos brilhantes, que
piscavam entre branco, azul e vermelho. Aquelas eram as estrelas que sempre estiveram ali,
mas que eu nunca parei para admirar.
— Dril, isso é lindo. — eu estava bobo. Era lindo demais. Os desenhos que elas
formavam, a maneira como estavam divididas aleatoriamente no espaço... Quantas delas
existiam ali?
— Apenas olhe, Éron. Só isso.
Me calei. Eu sabia que tinha muitas coisas para falar, o problema é que eu não sabia o quê,
exatamente. Era como se eu estivesse sentado, pronto para escrever numa página de diário
sobre o dia maravilhoso, mas sem saber como fazê-lo.
O tempo se perdeu. Não sabia exatamente quantas horas ficamos deitados ali,
simplesmente admirando a paisagem cintilante e hipnotizante. Uma penumbra que não
intimidava, mas que enfeitiçava, instigava.
— Éron.
— Oi. — eu quis enxergar seu rosto, mas não podia.
— Eu estou feliz por ter esse momento contigo. E acho que estou satisfeito. Você está
certo. Sempre esteve.
— Por que está me dizendo isso agora?
— Porque só agora eu percebo o quão longe você está. Apesar de estarmos aqui, lado a
lado, eu não te sinto presente em emoção. Não quer dizer que você seja uma pedra, mas é
que o sentimento que eu tenho por você é como um único ponto brilhante ali em cima, e
você é a imensidão negra onde eu tentei brilhar. Não há como. Não eu.
— Não sei se alguém conseguiria. — eu fui sincero.
— Mas o espaço é iluminado pelo Sol todos os dias. E você sabe que o Sol existe na sua
vida. Só precisa deixá-lo nascer.
Eu me surpreendia com a inteligência e as experiências de Dril. Ele era como um daqueles
adolescentes contidos de séries de TV, que falavam como psicólogos ou filósofos. Todas as
dicas e conselhos vêm em metáforas e analogias, nunca diretamente. O meu Sol? O que ele
queria dizer com isso?
— Eu não entendi muito bem, mas eu sei que o que você disse te torna firme na sua
própria decisão a partir de agora. Vamos seguir nossos caminhos, formar nossos futuros.
Quem sabe a gente não se esbarra, um dia? Você lá, recebendo prêmios com filmes
maravilhosos e eu aqui, ganhando... — e eu tinha planos para o futuro? — Eu não sei ainda,
mas eu ganharei alguma coisa.
Nós rimos um pouco, para o meu conforto.
— De qualquer forma, Éron, há mais estrelas na escuridão do espaço do que nós podemos
ver.
— E há coisas que o dinheiro não compra, como essas suas frases filosóficas de tiozinhos
da terceira idade.
Mais alguns risos, os que ainda restavam.
— O que vai fazer quando chegar em casa? Comemorar o Natal com seus pais? —
perguntei.
— Não. Estou sozinho agora. Eu nem sei o que fazer hoje. Você?
— Eu também não tenho muito pra fazer. Só aquela cena boba em casa, com meus pais.
Se você quiser ir pra lá, eu —
— Antes de terminar essa frase, pense bem no que vai dizer. — ele interrompeu. —
Entendo que acha que eu vou sofrer por estar sem meus pais ou sem você, mas eu me dou
bem assim. Eu estou bem. Adiar esse afastamento seria um pouco burro das nossas partes...
Concordei mentalmente. Não que não seria doloroso para mim também, mas ele saiu da
confusão muito mais ferido do que eu. Ele precisava desse tempo de recuperação. Não
precisava ser mais machucado por mim, nem por si mesmo. Tudo que eu fiz pesava, mas
estava passando, tinha de passar. Mas nós também tivemos momentos agradáveis e eu
preferia guardar isso em minhas memórias, tentando substituir o sentimento de culpa.
Meu celular tocou. Era minha mãe, provavelmente preocupada com meu estado no meio
do escuro. No escuro.
— Oi, mãe.
— Está tudo bem com você, Éron? — mães são previsíveis.
— Tô bem sim, estou na praia com um amigo.
— Não vai vir para casa? Já passou das nove.
— Irei já. O Dril vai e levar em casa, fique tranquila. — ele sussurrou em meu ouvido que
me levaria de carro. — Ele está de carro.
— Então tudo bem, não demore. Não vamos ficar até meia-noite acordados, seu pai está
cansado.
Claro que ele estava.
— Tá, em breve estarei aí. Fique tranquila.
— Cuidado.
— Sempre.
Assim que ouviu o barulho do celular sendo fechado, Dril perguntou:
— Quer ir agora?
— Talvez. Você quer?
— Pra mim não há diferença. É um ponto.
— Então a gente não tem muito pra fazer aqui. — murmurei, me levantando devagar.
Após ficar de pé, cutuquei-o para que soubesse que eu estava estendendo minha mão para
que levantasse também. Talvez de propósito, ele colocou todo seu peso ao aceitar o apoio, me
derrubando em cima dele, tão perto como não deveria ser.
— Me desculpe. — se ele estava sendo cara de pau, era um bom ator.
— Tudo bem. — eu sabia que tinha de me levantar, mas se eu fosse brusco, como se
estivesse fugindo, ele suspeitaria de: a) eu tinha nojo dele, ou b) eu queria tirar a roupa dele,
mas estava de drama apenas para que ele não perdesse a viagem para Alemanha. Ele estaria
errado nas duas.
Apoiado na areia, me levantei devagar. Já de pé, estendi a mão novamente. Dessa vez ele
levantou normalmente, se apoiando nas pernas. Sacudi meu corpo para que a areia caísse e
minutos depois estávamos a caminho do carro dele. O que ele tinha de tão estranho? Ele era
míope, pra começo de conversa, mas sabia exatamente por onde andar, e nem morava em
Dourado. Segundo: mesmo ele sendo jovem, ele parecia ser mais maduro e extremamente
mais velho, baseado em suas formas de apreciar o que estava ao seu redor, fossem palavras,
locais criados pelo homem ou paisagens naturais. Quem quer que fosse ficar com ele em sua
nova vida, teria sorte. Eu deveria ter sorte, mas eu era a má sorte dele. Eu achava que tinha
nascido pra sofrer, de certa forma, pois tomava atitudes que feriam as pessoas e depois
acabavam me ferindo. Era como uma roda com uma pequena lâmina presa: você inicia o giro
e a lâmina corta quem está depois de você, mas quando ela for terminar o ciclo, a velocidade
estará mais alta ao te atingir, e o corte vai ser muito mais profundo. Eu precisava começar a
pensar mais, antes de agir.
— Aqui. — eu só podia ver o reflexo do brilho das estrelas no carro. A visão não era a
mais clara, mas dava pra enxergar legal. Pelo menos pra mim.
Poucas pessoas caminhavam pela orla. Isso me fazia pensar em naqueles que, se a luz não
tivesse acabado, estariam trabalhando na véspera de Natal. Por experiência própria, eu sabia
que ganhar dinheiro para ficar longe da família, em certos momentos, era algo muito válido.
Mas e aqueles que gostariam de ficar com os familiares? Tudo bem, Natal nunca foi uma data
super importante pra mim — tirando a parte dos presentes — mas para o resto do mundo era
um dia de união. E seu estava indo para minha casa naquela noite, era para a última tentativa
de termos algo para chamar de familiar.
Dentro do carro, com luzes acesas, eu reparei no olhar triste de Dril. Estava em pedaços.
Mas eu não ia me culpar. Dores vêm e vão, assim seria com ele. Comigo foi assim. O percurso
até minha casa, guiado por mim, foi sem conversas.
Parando na minha calçada, ele segurou minha mão.
— Nunca se esqueça de mim. — pediu.
— Nunca se esqueça de você. — devolvi, esperando que ele entendesse o que eu quis
dizer.
Desci do carro de maneira suave e fechei a porta sem olhar para trás. Caminhei um pouco
e parei perto da entrada. Ele ficou estacionado por alguns segundos até acelerar e fazer com
que suas luzes sumissem no horizonte escuro. Era o fim de um ciclo. Era um ponto final.
Dentro de casa, nada parecia diferente, tirando as decorações natalinas iluminadas apenas
pelas velas. Lavei minhas mãos e fui para a cozinha, sem ninguém lá. A mesa posta, segurava
um panetone sem algumas fatias. Nenhum sinal do bolo de chocolate que minha mãe
preparava todos os anos, por saber que eu odiava panetone. Resolvi bater na porta do quarto
dos meus pais.
— Oi, filho. — era minha mãe. Sempre ela.
Ela escancarou a porta e voltou para a cama, onde parecia tentar dormir com a luz de
emergência. Meu pai comia uma fatia de panetone num pratinho, enquanto assistia TV pelo
celular.
— Achei que teríamos uma ceia, ou algo assim. — comentei.
— Seu pai decidiu não esperar.
— Pra que esperar? Tenho que aproveitar o meu tempo de férias. E não tem luz. — ele
explicou, com aquele tom machista, gordo e líder de ser. Minha mãe não estava contente
com aquela situação, mas não falava nada. Ele era ignorante demais pra perceber.
— Então eu vim pra casa à toa? — indaguei, meio que os chamando para comer comigo.
— Não. Não fiz seu bolo, mas tem biscoito dentro do armário. Se quiser pedir uma pizza...
deve ter algum lugar funcionando hoje.
Tentei me fazer acreditar que ela se importava, porque eu sabia disso, mas era tanto
descaso... Um ano antes nós éramos a família calada e feliz. Feliz?
— Tudo bem. — desisti. — Boa noite.
Me joguei sobre minha cama, mesmo sem luz alguma, e tirei meu par de tênis. No celular,
Cold Water, pela banda The Reindeer Section, começou a tocar. A escuridão me acolhia e
escondia as lágrimas que rolavam pelo meu rosto. Lágrimas de desistência, de cansaço pela
busca da felicidade ou da compreensão. Eu sabia que as dores eram para o crescimento, mas
era duro demais suportar aquilo sozinho. E eu não tinha ninguém.
Episódio Dois
O Aquecimento

S
e eu tivesse ganhado um real para cada minuto de tédio que passei até o dia 28, eu
estaria muito, mas muito rico. Ficar em casa com meus pais era, de longe, a pior
coisa do mundo. Não que eles estivessem presentes o suficiente para me irritar, mas
saber que estavam lá e que não se lixavam pra nada, já fazia o trabalho. O réveillon estava
próximo e eu não tinha ideia do que fazer para não ficar atado àquela inércia maldita que
minha vida estava se tornando. Mas alguém teve essa ideia por mim:
— Festa? Mas já? — eu estava surpreso. Adriele tinha acabado de chegar de viagem e já
estava com uma festa em seus planos. E pensou em mim, claro.
— Vai ser o melhor aquecimento para o réveillon que você vai participar. Eu não
conheço o dono da mansão, mas ele é, tipo assim, mega rico. Agora você imagina: uma
mansão, adolescentes, bebidas, adolescentes, drogas, adolescentes e uma mansão! Vai ser
perfeito! Você tem de ir comigo!
Uma mansão com adolescentes, bebidas, adolescentes, drogas, adolescentes e uma mansão
era a dose necessária para alguém cometer alguma merda. Não ia faltar gente transando pela
última vez do ano, pessoal entrando em coma alcoólico, estupros, brigas e luxúria. Eu não
estava pra esse clima.
— Eu não sei não. Por mais que minhas férias estejam sendo entediantes, não sei se quero
ter esse tipo de aquecimento. Eu não sei se quero esse fogo de volta na minha vida.
— É óbvio que você quer, Éron! Quem não quer? Prefere ficar nessa sua fase God of War
o dia todo, se culpando e se lamentando de como se sente só? Ah, qual é! É sua chance de
conhecer novas pessoas, novas bocas pra beijar!
— Aposto que não vai ter ninguém como eu por lá... — eu estava procurando desculpas.
— Então seja essa pessoa. Vamos!
Hesitei.
— Vamos. — me rendi.
— AH! EU SABIA! VOCÊ É DEMAIS! AAAH! — ela estava gritando de felicidade ou de
alívio?
— Se controle, Adriele. Em qual lugar vamos nos encontrar?
— Quer passar aqui em casa? Já são cinco da tarde, deve estar rolando alguma coisa. Você
se arruma e pega o táxi pra cá.
— Seus pais não estão? — os pais sempre são o problema, para mim.
— Saíram com a minha irmã. Eles foram comprar os presentes que não ganhamos de
verdade. Estou aqui com o Tales, o namorado da minha irmã.
— Ok, passo aí em uma hora. Esteja pronta!
— Com certeza. Te mando meu endereço por SMS. Beijos.
Por mais que eu soubesse que era inútil pedir para que uma menina ficasse pronta em
uma hora, eu pedi. Eu sabia que minha viagem de táxi ia ser à toa. Mas tudo bem, íamos ter
diversão. E eu não sabia o porquê de continuar negando isso pra mim mesmo.
Desci do táxi com uma radiante jeans branca, uma t-shirt verde com desenhos roxos e, é
claro, meu par de All Star roxos. Pedi para que o motorista esperasse, sabendo que ele teria
de ir, mas valeria a tentativa. Talvez, por algum milagre ou fogo na calcinha, ela poderia
estar pronta para irmos. Toquei o interfone.
— Oi? — era um homem do outro lado. Só podia ser o namorado da irmã dela, o tal Tales.
— Aqui é o Éron, amigo da Adriele. A gente vai sair e tal.
— Se surpreenderia se eu te dissesse que ela não está pronta? — brincou, simpático.
— Nem um pouco. — revirei os olhos.
— Eu vou liberar o portão, pode entrar. — ele disse, como se nos conhecêssemos há
milênios.
O estalo do portão indicou que estava destravado, então o empurrei para abri-lo e voltei
para dispensar o taxista, pagando-o. Adentrei no quintal da bela casa de Adriele, cercada de
flores multicoloridas e muita grama, com caminhos de pedra que levavam para as diversas
áreas do terreno, como a garagem, a piscina mais ao longe e a própria casa, com uma linda
varanda de piso cinza, montada com mesa e cadeiras brancas de ferro.
Na porta, dentro da varanda, um garoto alto e queimado de Sol me encarava encostado
num pilar, me esperando. Quando me aproximei mais, sorriu e fez um sinal de positivo com
a mão. Caminhei mais rápido e logo ele esticou a enorme palma para me cumprimentar:
— Prazer te conhecer, Éron. Ouvi falar de você durante toda a viagem.
Eu não sabia o que dizer, exatamente. Ele não parecia ser do tipo simpático por ser tão
alto quanto Hugo, ter cabelo escuro cortado bem rente à cabeça e por ser bastante malhado.
Era típico daqueles héteros “pegando-toda-mina-na-balada-tá-ligado-mano?”.
— E ela falou coisas ruins sobre mim? Aposto que sim. — brinquei, enquanto entrávamos
na sala de estar. A decoração da sala dela era como cenário Jurassic Park, com plantas no
lugar de dinossauros.
A parede oposta à porta era vermelha, bem viva, com vários vasinhos de plantas bem
verdes, pra dar contraste, presos na parede. Era bem bonita. À esquerda, um lindo móvel
feito de madeira clara suportava a televisão LCD de algumas dezenas de polegadas e um
estéreo meio antigo, mas de grande porte. De frente para a TV, porém um pouco mais
afastados, dois sofás bege: um de dois lugares e outro de três, ambos ocupando
harmoniosamente o espaço da sala de estar. No chão, um tapete colorido, muito brega.
— Senta aí. — Tales era daquele tipo: namoro a sua filha, então a casa será minha. Não
era pra menos, afinal ele viajou com a família. Eu achava meio perigoso um cara como ele
ficar sozinho com uma adolescente de dezessete ou dezoito anos. Ele deveria ter por volta de
vinte e eu poderia apostar que ele não era nem um pouco virgem. E não deixaria a pobre
coitada da Alessandra ser também, não é? — Quer tomar alguma coisa?
— Valeu, mas não quero nada não. Vou só esperar a Adriele.
Me sentei.
— Quer que eu vá chamá-la?
— Adoraria. — sorri.
Ele atravessou a porta corrediça ao lado da TV para um enorme corredor bem iluminado.
Segundos depois ele estava de volta:
— Ela está saindo do banho agora, mandou beijos.
— Claro que ela fez isso. — sorri para mim mesmo, sacudindo a cabeça negativamente.
— Quer ver alguma coisa? — ele se sentou ao meu lado, com uma almofada de distância
no sofá de três lugares.
— Eu queria ver a festa agora... — brinquei. — Mas nem vou ficar me lamentando.
Quando ela aparecer, eu arranco a cabeça dela e tudo vai ficar bem.
Ele riu um pouco.
— Que tipo de festa é essa? — perguntou, nem um pouco curioso. Ele queria puxar
assunto. O motivo eu não sabia, mas estava começando a suspeitar de que toda aquela
simpatia não era natural.
— Uma das típicas festas dos adolescentes daqui: gente ficando bêbada, se beijando,
tomando banho de piscina... Nada de outro mundo.
— Nunca fui numa festa desse tipo.
— Você nunca foi a uma festa. — devolvi. — Todas as festas são como as de Dourado. A
diferença é que em outros locais as pessoas fingem mais.
— Não tem como beber na festa de casamento dos seus pais, por exemplo. — ele rebateu,
achando que teria argumentos contra os meus.
— E quem disse que festas de casamento são festas? — após ver a cara de “tem razão”
dele, continuei: — Festas de casamentos são comemorações. Uma festa é quando todo
mundo quer perder a linha, quer experimentar o que é luxúria de verdade, experimentar
algo novo que nunca é novo.
— E vocês são desse tipo? O tipo pecadores?
— Se prometer não contar aos pais dela nem aos meus, nós somos o pecado. Boa parte
dessas pessoas que frequentam festas como as daqui são pecados. Sabem seduzir, são
preguiçosos, muito orgulhosos... eles não precisam mais do pecado, porque eles são a essência
daquilo. É o que os torna humanos.
— Nossa... que filosofia. — eu sabia que ele estava surpreso pelas minhas palavras e
ideias, assim como eu também estava. Quando eu começo a falar feito uma matraca
filosófica, percebo que eu sei mais das coisas do que eu acho que sei. Ou prefiro. É muito Dril
no sangue. — Tem quantos anos, Éron?
— Dezesseis. E você?
— Dezesseis?! Você parece ter uns dezoito! E com esse papo todo, te daria uns vinte. Eu
tenho dezenove.
— Te daria vinte e dois.
Ele riu. Tales tinha um jeito engraçado de rir porque as bochechas, queimadas pelo Sol,
ficavam meio rosas, o que dava a ele uma cara de urso de pelúcia espancador de índios.
— Se importa se eu tirar a camisa? — perguntou, me pegando de surpresa. — É que eu tô
morrendo de calor.
Calor? Bem, eu estava de calça jeans e ele com um bermudão e uma regata, mas eu não
estava sentindo calor algum. Tá, a temperatura poderia aumentar se...
— Não, tudo bem.
Ele se levantou e puxou a regata pela cabeça. Tive que admitir que ele era uma escultura
bonita de se olhar, mas não senti nada de mais. Em outras palavras, o alarme não apitou. O
que foi mais um alívio.
— Vou pegar refrigerante, tem certeza que não quer? — deixou os dentes à mostra, num
sorriso largo.
— Agora eu quero. — nunca é tarde pra querer se refrescar.
Ele saiu para o corredor e virou à direita, então eu tive um momento para colocar as
ideias em ordem. Em primeiro lugar, ele estava sendo simpático comigo porque queria
alguma coisa. Ele ouviu falar de mim durante a viagem, ou seja, ele ouvia a Adriele.
Provavelmente eram íntimos até, mas eu tinha certeza que, pelo lado dela, não rolaria nada
com ele, ainda mais por ser namorado de sua irmã. Logo ele me parecia ser o tipo que quer
conquistar a confiança do melhor amigo daquela que quer ficar, leia Adriele.
Conclusão: Tales tinha algum interesse em Adriele, irmã de sua própria namorada, e
queria me usar para se aproximar dela. Ou era isso ou estava completamente alterado e
paranóico, o que não seria uma grande surpresa.
Ele voltou com dois copos quadrados cheios de... Sprite!
— Não acredito que é Sprite! — exclamei. — Muita coincidência.
— Por quê? — perguntou, depois de tomar um gole.
— Porque é meu refrigerante preferido. Adoro quando o universo conspira a meu favor.
Bebemos em silêncio, quando Adriele apareceu na porta do corredor, finalmente.
— Estou pronta, gato!
— Aleluia! Te dei uma hora pra se arrumar, o que estava fazendo que demorou tanto?
— Coisas de mulher, meu amigo. — ela me abraçou. — Tales, estamos indo. Tem certeza
que não quer vir com a gente?
Lancei-lhe um olhar de surpresa. Convidar o namorado da irmã pra ir com a gente era
uma das piores ideias que já tinha saído daquela boca.
— Não.
— Não mesmo, Tales? Eles vão demorar e você precisa conhecer novas pessoas, se
enturmar! Ficar aqui sem nada pra fazer é tenso demais. Vem com a gente.
Eu sabia que ele ia aceitar o convite, e desejei estar com um revólver na mão porque um
tiro na boca dela seria a solução mais aceitável. Será que ela estava querendo laçar o cara?
Quanta vadiagem...
— Tudo bem, eu vou. Vou tomar um banho e prometo não demorar tanto quanto
Adriele. — ele mandou pra mim, seguindo para o corredor em seguida.
— Ok, está com maconha na cabeça ou LSD nas veias? — indaguei.
— Ah, qual é! Vai dizer que ele não é uma doçura de pessoa?
— Ele parece ser, ainda mais por eu achar que ele está se dando pra você, literalmente.
Ela riu.
— E por que você acha isso, Éron?
— Todos os sinais: ser simpático com o melhor amigo e aceitar sair pra uma festa lotada
de gente podre com dois menores. Até porque você parece estar dando corda também.
— Você tá maluco? É a primeira vez que a minha irmã acerta no namorado, sabe? Ele é
confiável, comportado, engraçado, atencioso. Eu nunca faria alguma coisa que pudesse
detonar o namoro dele com a Alessandra! Eles estão felizes, e assim deve continuar. Mas
admito que ele é muito gostoso.
Ela estava sendo sincera sobre ela, mas e ele? Ah, qual é, não existia certeza de que ele
não estava querendo. O que eu havia presenciado e sentido me dizia que ele era daquele cara
meio canalha, que se amarrava em uma garota mais nova.
Como tinha dito, ele não demorou muito e saiu do banho com um estilo pouco
chamativo, dentro de uma jeans preta e uma simples camiseta branca. Ele não era nada de
mais, se não pelo sorriso, pelo corpo ou pela simpatia.
Desci do táxi discutindo com Tales para ver quem ia pagar, até decidirmos dividir. Já
conseguiu começar a noite me deixando um pouco irritado, mesmo que não tivesse sido de
propósito. Adriele estava divagando, talvez pensando em como seria a casa ou as pessoas, mas
não havia surpresa: mansão de três andares, branca e muito bem desenhada. A entrada, tanto
a da garagem quanto a da casa, era cercada por um belíssimo jardim de rosas amarelas, que
acentuavam o caminho. E as pessoas, como esperado, eram como nós conhecíamos: se
agarrando em plena garagem, a dois, a três, a quatro, sem ligar para quem estavam beijando.
Eles só queriam beijar. Qualquer coisa.
— Tem duas meninas se beijando ali. — indicou Tales, tentando engolir a surpresa. De
que mundo ele saiu?
— E três meninos ali. — notifiquei, para que entrasse no clima. — Isso não deveria ser
tão normal. No colégio então...
— Já fizeram isso? — perguntou, enquanto atravessávamos o mar de pessoas da garagem.
Optei por não responder, para não deixá-lo mais desconfortável, mas Adriele, educada e
cheia de classe, atirou:
— Ele já.
— S-sério? — agora ele estava surpreso. — Você é gay?
— Como se fosse fazer alguma diferença, né? — ironizei, mas ele não entendeu. — Eu
nunca fui gay. — Adriele me lançou um olhar de descrença. — Não mesmo. Eu só passei por
uma fase. Está no meu passado agora, serviu pra aprender umas lições.
— Éron, conta outra. — paramos perto da entrada lateral da casa para pegar algumas
garrafinhas de Ice. — Você beijou homens, isso não é ser gay? Na minha terra é.
— Sua terra não é das mais inteligentes, Adriele. — devolvi. — Me colocaria como gay se
eu sentisse desejo sexual por um homem, tipo assim, ficar excitado, querendo transar com
eles. Mas eu não sinto isso. Eu apenas os beijava porque alguns me... me atraíam. Só isso.
— E com mulheres? Você fica excitado? — Tales fez uma pergunta inteligente.
— Também não, e é isso que me faz ter esse monte de dúvidas. Obrigado. — agradeci à
menina que nos entregou as garrafinhas de Ice.
— Então você não é hétero. — ressaltou Adriele.
— Eu nunca disse que era, disse?
— Bom argumento. — ela refletiu, bebendo.
— Então você é bissexual? — Tales estava bem confortável com a surpresa. Logo achei
que estava tentando ser descolado ou sem preconceitos na frente da menina que queria catar.
— Bissexual tem a mesma definição: sentir desejo sexual, no caso, por ambos os sexos.
Nem isso eu tenho, já que não sinto por nenhum dos dois.
— MEU DEUS! — exclamou Adriele, nos dando um susto. — Você é lésbica!
Tales começou a rir. Eu não ria exteriormente, mas por dentro eu estava morrendo.
— Que bom que você tem certeza disso. — devolvi.
— Bem, eu nunca tive uma comprovação de que você não tem uma vagina aí, no meio
das pernas. — ela bebeu de novo.
— Eu não tenho seios, Adriele.
— Por isso você é lésbica! — ela riu, levando o Tales junto.
— Tá, não interessa. Vamos arranjar o que fazer. Ficar aqui fora só se nós formos nos
pegar, o que não vai acontecer, né? — alguém percebeu minha indireta para outro alguém?
— Tem razão. — Tales apoiou. — Quero saber o que fazem pra se divertir.
Eu e Adriele nos entreolhamos. Caminhamos para dentro da casa, pela cozinha. O balcão
havia virado cama de motel, sem o sexo nu. Era coisa de esfrega-efrega escroto que as pessoas
sexuais faziam. Eu não era sexual, mas eu queria diversão. E divertir. Ainda andando,
atravessamos um corredor longo, que nos guiou à sala de estar. Mais garotos do que garotas
cheiravam cocaína em cima da mesinha de centro, em bandejas prateadas de bordas
douradas e brilhantes. Outros, sentados em poltronas e no sofá, sozinhos ou acompanhados,
aproveitavam a batida da música.
Ao avistar o alvo, Adriele deslizou como o tapete mágico do Aladdin e sentou em seu
colo, de lado, começando um beijo que parecia estar em chamas. Tales não estava surpreso,
então era o meu trabalho fazê-lo arregalar os olhos. Avistei o grupo de cinco mais próximo
de mim. Três garotas, dois garotos, número ímpar. Eu era a soma para par. Comecei por
abraçar os garotos por cima de seus ombros, me colocando entre eles, de frente para a
menina do meio. Agora cada um tinha o seu. Enquanto seus finos lábios rosados se abriam
para a minha boca, seus olhos cinza se fechavam para me sentir, me imaginar, enquanto que
eu apenas jogava.
Nosso beijo era menos molhado do que eu estava acostumado, porém me agradou mais do
que muitos outros. Foi então que houve uma troca de bocas, quando uma das meninas
começou a me beijar. Eu não abri os olhos momento algum, pois considerava a maior
penalidade durante uma “ficada”. Minutos depois, senti que um dos garotos se virou para
mim, e eu sabia exatamente o que ele queria fazer. E eu sabia que não ia gostar.
— Não, cara. — eu disse, educadamente. — Não.
Me soltei e caminhei para onde estava Tales, que parecia ter assistido tudo de camarote,
sentadinho nas costas do sofá maior.
— Diversão, Tales. — eu ria um pouco, como um vencedor. O mesmo sorriso estúpido
que eu me lembrava muito bem de ter pegado de alguém do meu passado.
— Nossa, eu estou surpreso. — eu poderia dizer, já que estava sorrindo e de boca aberta.
— E aí, de que lado você está? Quer se juntar à festa ou prefere se manter aí, parado?
— Eu não irei trair a —
— Eu sei, eu sei. Não tô falando de traição. Só estou falando pra gente subir, arranjar
alguém pra bater um papo, ou um lugar no qual a gente possa fazer isso.
— Vai abdicar sua diversão pra me manter ocupado? — ele estava tentando ser irônico.
— E quem disse que essa é minha única forma de diversão? — ele se calou, ainda
sorrindo. — Vamos.
Subimos os degraus de madeira polida rapidamente e caminhamos por alguns corredores
opostos para achar um lugar onde papos ou jogos estivessem rolando. A cada porta, fosse um
banheiro, uma sala de jogos, um quarto ou uma suíte, encontrávamos gente fazendo mais do
que beijar na boca. Eles beijavam milhares de outras partes do corpo que eu tive nojo só de
ver.
— Quando eu tinha dezesseis anos, eu nunca me imaginaria num lugar como esse. Não
vendo essas coisas. — ele não estava dando esporro, mas parecia estar se lamentando.
— Tudo tem seu tempo. Aqui.
Abri a porta, devagar. Finalmente um quarto sem gente seminua ou babada. Dois
meninos e três meninas estavam sentados numa cama king size, em círculo, com muitas
garrafas de muitas marcas famosas de bebidas com um considerável teor de álcool.
— Vamos sentar com eles. — eu disse.
— Sem conhecê-los?
— Vamos passar a conhecer. Relaxe, seja natural.
— Ei, gente. — cumprimentei ao me sentar na cama. Tales me seguiu. Logo nos
acomodamos no círculo. — Tudo bem com vocês?
— Tudo sim. — um garoto muito branco expeliu fumaça do nariz. — Quem é você?
— Éron. Esse é o Tales, um colega. Do que estão falando? — para parecer interessado, é
necessário entrar no assunto de cara, mas sem ter o tom de voz de intrometido. Até porque,
um rosto limpo de espinhas — ou quase — ajuda demais. Se tiver olhos verdes e cabelos
loiros então...
— Sobre ex-namoradas. — falou outro garoto, usando terno.
— E ex-namorados. — soltaram duas meninas, em uníssono. Ambas eram falsas louras,
por observação. Será que nem os cabelos poderiam ser virgens?
— Namorei só uma vez, mas tive experiências de vários tipos. — para se colocar dentro
de um grupo sendo um desconhecido, deve se sentir seguro para expor suas experiências. —
Boa parte dessas saíram pela culatra.
— Está falando de mim, Éron?
Reconheci a voz de imediato, nem precisando me virar. Ele parecia mais maduro, mais
frio, menos imbecil, meloso e chorão.
— Kevin. — cumprimentei. Ele não se deu o trabalho de se sentar com a gente, mas ficou
de pé, do lado oposto da cama, me encarando de braços cruzados. — Não estou falando de
você, mas sobre o que fiz.
— Vocês se conhecem? — perguntou uma das meninas, com o rosto mais oval, de pele
levemente morena e cabelos estonteantemente bonitos, com cor de chocolate. Como eu não
tinha percebido-a antes?
— Eu desejo não ter conhecido. Ele arruinou minha vida. — talvez Kevin não tivesse
mudado tanto, afinal.
— Você arruinou sua vida. Eu fui sincero, só isso. Mas eu não vim aqui hoje pra discutir
com você, Kevin. É uma festa, e eu só quero diversão. Pode ficar de boa com isso?
— Então é assim? — ele estava com todo aquele ar de drama em cima de uma coisa que
poderia ser mínima para ambos. — Me usa e me joga fora?
— Quando eu te usei?! Eu estava confuso sobre tudo!
— Gente, vamos cair fora. Eles precisam conversar. — era o fumador.
— Não, não saiam. — pedi. — Não há o que conversar. Kevin está aumentando um caso
que não passa de uma confusão boba. Eu nunca menti pra ele e nem o farei agora. Eu mudei,
estou com uma vida nova, então o aconselho a fazer o mesmo.
— Eu vou descer. — disse a menina de cabelos cor chocolate, me fazendo um sinal de
“vocês precisam conversar” com a cabeça e o olhar. — Venham, meninas.
Ela não parecia ser como o resto das pessoas ali, era diferente. Seu vestidinho azul-bebê
mesclado com rosa lhe deixava mais magra do que já era, me levando a acreditar que poderia
ser alguma modelo que trabalhava pelo mundo. E tinha um carisma totalmente familiar, algo
que eu desconfiava se já havia conhecido antes.
— Se importa se ficarmos? — perguntou o fumador. — Não estamos a fim de dividir
bagulho lá embaixo.
— Tudo bem, podem ficar. — as meninas fecharam a porta assim que terminei a frase. —
É papo de homem, mesmo.
— Papo de homem? — sabe aquelas crianças pirracentas que ficam debochando de tudo
que a outra criança diz? Apresento-lhes Kevin, a maior criança do mundo. — Você foi um
covarde, isso sim! Um veadinho covarde! E virgem!
— Virgem?! — os garotos, incluindo Tales, perguntaram em uníssono.
— O que minha virgindade tem a ver com esse assunto? — eu estava perdendo a
paciência, quando comecei a coçar a cabeça, mantendo a pose de superioridade.
— Tudo. Isso torna a confusão mais interessante. — o garoto de terno estava se
divertindo.
— Sério, Kevin, chega. Volte pra festa, pegue alguém e esqueça que eu existo, pelo amor
de “deus inexistente”.
— Não! Eu não vou! Eu não vou porque eu sofri, Éron! EU SOFRI! Passei dias e dias
tentando superar aquele trauma que você me jogou! Aquele carma! Toda essa dor, ai meu
Deus, como eu gostaria de esquecer! Mas você esfrega isso na minha cara de propósito
porque você não presta! É uma criança, imaturo, idiota, totalmente desprovido de qualquer
dignidade ou amor ao próximo que —
— EU ESTOU NAMORANDO! — gritei, não suportando mais tanto “mimimi”.
— N-namorando? — ele estava mais espantado do que vampiro ao ver Edward Cullen.
— É, Kevin! Segui em frente! Eu não gosto de você e nunca gostei de verdade! Você foi
um affair, algo que vem e passa! Valeu pelo momentos legais, mas não temos mais nada, nem
iremos ter algum dia!
— Q-quem é ele? Como vou acreditar? — totalmente desnorteado, ele falava como uma
velha após derrame cerebral.
Mas a pergunta era boa: quem eu estava namorando e como eu ia provar?
— Tales, me beije. — pedi, torcendo pra ele dizer que sim, já me arrependendo pelo
pedido.
O que me deu vontade de rir e chorar, foi o fato de ele nem ao menos ter titubeado. Me
segurou pelos ombros e me beijou, com firmeza e curiosidade. Legal, então as peças se
encaixaram na minha cabeça: Adriele não era o alvo dele. Tales não estava sendo simpático
comigo para chegar até ela. Ele me queria. Deve ter sentido minha aura de “tenho um
passado bissexual” e ficou curioso, atraído. Ou talvez tenha sido apenas a cor dos meus olhos.
O importante eu já sabia, e teria de resolver, mas antes eu teria de solucionar o caso Kevin-
Bebê-de-Colo.
— Então é isso? — seus olhos estavam inflamados. Não por vontade de chorar, mas por
raiva.
— É, Kevin. Caia fora da minha vida. — reconsiderei o pedido. — Quer saber, não
precisa cair fora da minha vida. Deixe que eu saio da sua. Vamos, Tales.
Ao nos levantarmos da cama, o garoto de terno se pronunciou, pagando de bom amigo:
— Olha, eu conheço o Kevin há mais tempo que você, então eu quero que você peça
desculpas.
— Não era você que estava rindo até agora de toda a situação? — e não era mesmo?
— Até você quebrar o coração dele.
— O coração dele nunca esteve bem, provavelmente por causa do antigo primo-amor
dele. Recomendo a busca pela solução desse problema com uma terapeuta especialista em
regressão. Pode ser coisa de vida passada. Passar bem.
Quando eu ia colocar o pé pra fora da suíte, o garoto agarrou o meu braço. Ele era um
pouco maior do que eu e um pouco mais largo também. Senti que queria me machucar. E
conseguiria, se tentasse, mas não sem perder um olho ou uma orelha. Eu tinha dentes muito
fortes.
— Não toque nele! — Tales se meteu, empurrando o uso-paletó-sou-fashion pra longe.
— Ou o quê?! — comparando os dois, Tales era maior e bem mais desenvolvido, falando
de academia.
— Ou isso! — Tales desferiu um soco de direita certeiro no garoto, que caiu adoidado.
— Gente, quanto barulho! — disse o fumadão, todo embaçado.
— Vem, Tales, não precisamos disso. Temos problemas maiores pra resolver. — o peguei
pelo braço e corri com ele para baixo, tão rápido quanto podíamos.
Eu ria. Sádico, eu sei. A primeira pessoa que vi, foi Adriele, se agarrando com dois
meninos orientais. Pena dela, mas o tempo estava acabando e nós precisávamos sair antes de
uma merda maior acontecer.
— Adriele, vamos embora. — pedi, suave.
— Por que está fugindo, Éron? — era Tales, sem entender o motivo da correria.
— Você bateu nele. Sabe quantos caras iguais a ele tem aqui? Olhe ao redor! Vários! E ele,
provavelmente, tem amigos. Isso se não for o dono da festa. Ele vai acabar com a gente!
— O que tá pegando? — Adriele largou os caras, porque sabia que eu nunca pediria uma
coisa dessas sem que fosse por um bom motivo.
— Eu bati num cara. — Tales confessou.
— Você bateu em quem? — indagou a menina que estava com a gente na cama, a de
cabelos cor de chocolate.
— Não temos tempo de explicar, vamos pra fora! Vem comigo!
Ela não discutiu e nos acompanhou.
— Cadê os táxis? — Adriele perguntou para ninguém. — Éron, ligue para um!
— Não precisa, eu levo vocês. — era a menina. Ela sorria pra mim, com dentes grandes,
porém muitíssimo bem encaixados numa boca perfeitamente desenhada por um bom
dentista.
— Ok. Vamos lá. — ela poderia dar o nosso endereço para o Terninho depois, mas eu
preferia acreditar que ela não o faria, pois eu sabia que de alguma forma, ela era diferente
deles. Ela só estava naquele lugar porque não tinha ninguém menos sexual para conversar,
alguém que alcançasse seu nível de pensamento. Até chegarmos.
Dentro do Mercedes GLK, Adriele se arremessou no banco da frente, explicando os
caminhos, o que era simples. Eu não conseguia olhar para Tales diretamente, porque eu sabia
que tinha feito algo de errado. Eu não sentia nada por ele, nada mesmo, mas eu tinha traído a
confiança de Adriele e da irmã dela, que eu nem ao menos conhecia.
— Me desculpe, Tales. — cochichei. — Fiz errado, foi pra me livrar dele, foi a única
solução que consegui pensar.
— Não tem problema, Éron. Está tudo bem. — ele não parecia envergonhado, apesar de
parecer pesado, também pela culpa. — Você não me obrigou a nada.
— Eu sei, mas a Alessandra —
— Ela não precisa saber, ok? Ninguém precisa. Consegue guardar esse segredo?
Uma história se repetindo?
— Eu... consigo. Consigo sim.
— O que estão cochichando aí atrás, heim? — Adriele era a destruidora de momentos
emocionais.
— Nada. Ah, e qual o seu nome? Está nos ajudando e nem nos conhecemos...
— Ana. Me chamo Ana. — ela sorriu pelo retrovisor.
— Oi, eu sou Éron. Esse é o Tales e essa chata aí contigo é a Adriele.
— Chata é sua bunda.
— Pelo menos eu tenho!
Rimos um pouco, antes de pararmos em frente à casa de Adriele.
— Sabe, jamais imaginei que vocês chegavam assim tão cedo de uma festa. — disse Tales,
descendo do carro.
— Isso porque não temos o costume de darmos socos em pessoas que nem ao menos
conhecemos. — lembrei-o.
— E você tem que me contar essa história, Tales. — Adriele saiu do carro. Também saí,
para me sentar no banco do carona, na frente. — Obrigado, Ana. O que fez pela gente,
mesmo sem saber a história, foi bem legal.
— Tudo bem. — Ana sorriu. — A gente se esbarra.
Adriele piscou o olho. Enquanto o carro se movia, agora na direção da minha casa, eu
percebia a expressão de Tales. Ele me parecia satisfeito.
— Por que decidiu ajudar? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
— Eles são diferentes de mim. Muito. E eu sinto que você não é do tipo que se meteria
numa briga se não fosse por algo muito importante.
— Na verdade, foi o Tales que entrou numa briga.
— Se acertou com o Kevin?
— Tales acertou um amigo dele. E isso foi um ponto final.
— Entendo. Agora você está livre pra continuar sua vida, no caminho que escolher.
— É. Talvez eu esteja. — sorri pra mim mesmo. — Pare o carro.
Ela encostou em uma calçada.
— Eu não sei o motivo, e espero que não me pergunte — comecei. — mas eu não sei o
que deu em mim. Assim que te percebi, seus olhos castanhos, seu cabelo que tem cor de
chocolate, seu jeito... nossa, eu senti algo que eu não sentia há certo tempo. Não é papo de
safado ou coisa do tipo, até porque a gente se conheceu hoje, mas eu precisava dizer. Espero
não estar parecendo o Kevin, mas eu gostaria que soubesse que eu creio que você é diferente
das pessoas que estamos acostumados. Sei que aquele tipo de festa não é o seu tipo de festa.
Eu ainda não sei como definir isso.
Ela sorriu. Colocando o cabelo atrás da orelha.
— Também senti algo assim. Algo estranhamente...
— Familiar. — completei.
Nos encaramos por alguns segundos, antes que as nossas bocas se encontrassem dentro de
um abraço aconchegante. A pureza, a leveza com que me beijava era algo que apenas uma
mulher poderia me oferecer. Não por ser mulher, mas por conter um tipo de essência
diferente da dos homens. Era por ela ser quem era. Era a essência de sua personalidade que
me tranquilizava, que amenizava a correria daquela noite. Era ela, não seu sexo. E foi ali que
eu entendi que não havia por que correr tanto de relacionamentos com homens ou
mulheres, pois o que eu estava buscando era muito além da limitação social. Era muito além
do que meu corpo podia perceber. Era o que minha alma precisava.
— A gente se fala. — ela me entregou um papelzinho no qual acabara de anotar o
número de seu celular. — Me liga.
Mais um beijo. Doce, reconfortante.
— Eu fico aqui.
— Não quer que eu o leve até sua casa?
— Fica a uns três minutos a pé, tudo bem. Preciso caminhar um pouco. Te ligo em breve.
— Tudo bem. Boa noite, então.
Desci do carro contemplando seu sorriso branco. Ao se afastar, coloquei nos ouvidos
meus fones e andei pela rua, iluminada pelos compridos postes de ferro. Na minha cabeça,
Death Cab For Cutie tocava Soul Meets Body. E era o momento exato de admitir pra mim
mesmo que algo novo estava nascendo.
Com toda certeza eu ia ligar para ela, o que era minha prioridade, mas a culpa por ter
meio que traído a Alessandra com o Tales me queimava vivo. Afinal, não é sempre assim? Os
erros sempre se repetem, mas de uma forma diferente das anteriores.
Os acertos valiam mais, e era nisso que eu pensava quando abri a porta da minha casa e
voltei à minha realidade cotidiana, para as mentiras de sobrevivência que eu fingia não ligar.
Episódio Três
O Réveillon

P
or ter ficado na internet durante a madrugada, acordei às três da tarde no dia 31.
Meu quarto estava frio por causa do ar-condicionado, mas o Sol brilhava forte
demais do lado de fora, o que me fazia sofrer só de pensar no calor. Me levantei,
ainda enrolado no edredom, e afastei minhas cortinas. Através das janelas de vidro, olhei
para a rua, radiante e mais movimentada do que deveria estar. Dourado é um daqueles
lugares onde as pessoas de outros lugares sem praia escolhem para passar o réveillon. Claro
que o melhor réveillon era o de Copacabana, mas Dourado era mais escondida, familiar e
super segura. Segura porque não havia lugar para quem não podia pagar.
Deixei tocar Mais Um Dia, do Jay Vaquer enquanto eu me olhava no espelho de corpo
inteiro atrás de minha porta. Sem muitas olheiras, com cabelos mais cacheados do que
deveriam e mais loiros do que eu me lembrava dos dias anteriores. Brilho de uma nova
perspectiva? Esperança? Eu não era desse tipo, mas a minha virada ia ser divertida, até
porque eu ia estar com Adriele e Ana, se ela aceitasse meu convite.
— Topa? — perguntei para Ana, esperançoso ao celular.
— Eu ia tirar o dia para ficar com um amigo, mas por que não? Adriele vai?
— Vai. Então, leve o seu amigo. Ela é uma menina livre, solteira, pronta pra ficar com
alguém.
— Com ele não vai rolar. Ele é “babadeira”.
— Jesus, o que está acontecendo com o mundo? — brinquei. Ela riu.
— Eu te pego que horas? — era eu quem deveria estar perguntando isso.
— Tipo assim, você tem dezoito anos? — ela não podia ser menor de idade se dirigia!
— Tenho dezessete. Faço dezoito em novembro. Isso não tem a ver. Aqui em Dourado é
totalmente normal.
— Não importa. Eu sou um cavalheiro e eu faço questão de buscar você, mesmo de táxi.
Ela riu de uma maneira diferente, estranhamente carismática, porque enquanto ria, ela
engolia o ar para soltar mais uma risada. Um ponto que passei a admirar nela, a bizarra risada
afetuosa.
— Devo estar pronta às...?
— Dez? — arrisquei. — Mas esteja pronta.
— Ah, pára de mamar. Tudo bem, eu vou estar pronta.
— Ótimo. Me mande seu endereço por SMS. Nos vemos à noite.
— Um beijo.
— Outro. — sorri, ao perceber que estava ficando bobão.
Ela era especial, diferente, era como eu. Ela, simplesmente, não se encaixava totalmente,
mas sabia aproveitar o local onde estava. Sem abusos, sem excessos, apenas com risadas e
papos interessantes. Eu tinha certeza de que ela era assim.
Me sentei na cadeira do computador e liguei para Adriele.
— Oi, Éron. — um homem com o celular da Adriele? Só podia significar uma coisa: ela
transou com ele.
— Quem é? — eu estava com medo da resposta.
— É o Tales. Não reconhece minha voz? — alguém se achando íntimo? — Ela saiu pra
comprar roupas com a irmã e esqueceu o celular aqui. Quer deixar recado?
— Não, não, só peça pra ela me ligar quando chegar, ok? Precisamos acertar as coisas para
a virada e tal.
— Vocês vão fazer o quê? — era claro que eu não ia dar mole e sanar a curiosidade do
cara que estava curioso demais sobre sua própria curiosidade sexual. — Praia?
— É. Convidei a Ana pra ir comigo. Ela vai levar um amigo, sabe, pra fazer companhia
pra Adriele.
— Vocês estão ficando? — ele engrossou a voz de forma sutil.
— Você ainda está namorando? — devolvi, com sadismo.
— Se você está perguntando isso por causa do beijo —
— Você está pensando no beijo? — interrompi. — Esqueça esse beijo, Tales. Vai dar
merda pro nosso lado.
— Eu não vou falar pra ninguém.
— Nem eu. Então vamos cortar o assunto. Peça para que ela me ligue, tá bom?
— Tá. Só me diz uma coisa... não me beijou de propósito, beijou?
— O que quer dizer? — eu não tinha entendido mesmo.
— Que aquilo já estava na sua mente pra fazer.
— Não fui eu que neguei o beijo, né? Não, eu não estava planejando nada, eu falei. Jamais
ia estragar o relacionamento da Alessandra. Isso ia arranhar minha amizade com a Adriele.
— me senti muito ofendido.
— Eu acredito em você, Éron. — ele estava sendo sincero.
— Antes de falar de mim, se pergunte o porquê de ter me puxado pro beijo assim que
pedi, por não ter me dado um soco ou me jogado contra a parede.
— Eu não sou o Hulk. — com mais alguns meses de malhação, chegaria perto. — Não
faria isso.
— Beleza, vou desligar. Acho que também preciso de roupas novas. — fugir do assunto
era a salvação.
— Quer companhia? — tentando ser prestativo, amigável ou tentando me seduzir? — Eu
tô aqui sozinho. Sempre me largam.
— E os pais dela?
— Foram comprar flores. — ele soltou uma risada. — Como se essa casa precisasse de
mais.
Eu poderia estar sendo um babaca total, mas eu ainda conseguia ver um pouco de
sinceridade no Tales. Eu queria lhe dar uma chance, sei lá, para que voltássemos ao normal
antes do beijo acontecer. Não que tenha mudado muita coisa pra mim, além da culpa, mas eu
não sabia como aquilo estava funcionando pra ele. Eu me lembrava de como aconteceu com
o Hugo e como eu me senti depois, então eu não podia fazer o papel de Darth Vader.
— Ah, tudo bem. Te vejo em uma hora em frente à Delirium.
— O que é isso? — como alguém que frequenta shoppings não conhece a melhor loja de
calças?
— Uma loja. Segundo piso, pergunte a algum segurança. Todo mundo conhece.
— Ok. Te vejo lá. Abraço.
Mais tarde, ele já estava em frente à loja, tinha chegado antes de mim.
— Eu estou atrasado? — perguntei, sabendo que eu tinha saído mais cedo de casa.
— Não, eu estou adiantado. — ele sorriu. — Quer tomar alguma coisa?
— Milk-shake. — começamos a andar para a praça de alimentação. — O último do ano.
Sabendo como eu era chato com negócio de dinheiro, ele pagou o dele e eu paguei o meu.
De chocolate, é óbvio.
— Ovomaltine, Tales? Você precisa se livrar da Matrix.
— Qual o problema com o melhor sabor de milk-shake do mundo?
— Melhor? — debochei. — Chocolate é o melhor! Sabe, bem forte, que dá vontade de
beber água depois.
— Se dá vontade de beber água depois, por que tomar milk-shake?
— Pelo prazer. O gosto, a textura, a temperatura... me sinto poderoso com um copo de
milk-shake assim como um escritor se sente confortável com um copo de café.
— Pelo prazer? — ele riu, de forma irônica. — Existem outras formas de ter prazer, Éron.
Pena que você ainda não conhece...
— Nem conhecerei tão cedo. Sexo é para pervertidos. Eu ainda prefiro o chocolate. —
tomei um gole.
— Sexo com chocolate, que tal? — ele estava com um sorriso safado na cara, como se ele
já tivesse feito algo do tipo. Preferi não perguntar.
— Nojento. Mas cada qual com seus problemas. É o prazer que importa. Como ele chega a
cada pessoa não é o ponto. — ele não respondeu, mantendo o sorriso depois de tomar um
gole do ovomaltine. Parecia forçado demais. — Tá tudo bem contigo?
— Acho que não. — o sorriso começou a desaparecer. Estava verdadeiramente sem graça.
— Quer conversar? — Éron sendo o compreensivo... Até quando eu ia só ouvir?
Ele concordou com a cabeça. Nos sentamos perto da enorme janela do shopping, na praça
de alimentação. De lá, podíamos ver a orla, o céu e os morros.
— O que te preocupa?
— Sabe quando você acredita estar vivendo uma coisa, mas no fundo da sua alma você
sabe que está todo errado? Que todo o seu caminho foi meio à toa, sem uma direção bem
definida?
Eu sabia exatamente. Mas não ia compartilhar.
— Você está sem direção, é isso? — arrisquei.
— Também. — ele hesitou. — Eu tô diferente do que estava antes.
— Antes? — indaguei.
— Antes do nosso beijo.
Ah, então era isso, outra grande merda realizada por Éron Brascher, palmas pra mim.
Estava na hora de convencê-lo de que a vida dele era boa do jeito que era, e não caminhando
para o mesmo lado que eu. Não era preocupação com ele, mas sim com a duplicação da culpa
que eu ia sentir caso ele resolvesse largar a namorada pra viver como eu vivia.
— Olha, Tales, aquilo mal foi um beijo. Não rolou sentimentos, não rolou nada.
— Você tem razão, mas matou uma curiosidade que eu tinha há tempos. E, pelo amor de
Deus, jamais conte isso a alguém, ok? Por favor.
— Tudo bem. Eu só não quero que você largue a Alessandra e —
— Quem falou em largar a Alessandra? — ele parecia surpreso.
— Eu achei que você, mudando de vida, ia largá-la. O que não aconselho.
— Eu não largaria a Alessandra, eu gosto dela. — estava se justificando. Sinal de que sim,
ele largaria. — Mas se eu tivesse a chance de ter algo com... com você, eu poderia pensar.
— Não é assim que isso funciona. Você se sente perdido porque está mentindo pra si
mesmo, precisa se soltar, admitir quem é de verdade. Do que gosta de verdade.
— Eu não sou gay. — ele se defendeu, sério. Me vi na conversa com Dril na M&D.
— Não disse que era. Só disse para fazer o que acha que deve, o que sua mente pede. —
fazer o que a mente pede é melhor do que deixar o coração levar o cérebro no papo. O órgão
vermelho e palpitante só sabia encher minha vida de merda, me largando depois.
— Mas... e a gente? — eu não acreditei no que ouvi.
— Não existe a gente, Tales. A gente nem se conhece! Seja lá o que aconteceu contigo, o
que eu acredito ser apenas uma confusão momentânea, você tem a Alessandra e traí-la é pior
do que terminar de vez. Antes de fazer qualquer coisa, me prometa que vai pensar nisso.
— Qualquer coisa o quê? — estava se fazendo de sonso.
— De tentar alguma aventura imbecil.
— Com um homem?
— Com alguém.
Ele se calou por alguns segundos. Eu tinha perdido a vontade de tomar milk-shake. Óbvio
que eu me sentia como o Hugo. E era óbvio que Tales tinha transformado a “curiosidade”
num caso de vida ou morte. Por que, na minha vida, nenhuma pessoa era o que parecia?
Quem ia imaginar que Tales, aquele cara totalmente pitboy, poderia ter esse tipo de queda
homossexual? Como?!
— O que você sentiu durante o beijo? — perguntei por curiosidade, mesmo sabendo que
ela matou mais de um milhão de gatos. E suas respectivas heterossexualidades.
— Era um misto. — ele estava sendo sincero, mas hesitava a cada palavra que vinha
depois: — Eu sentia ansiedade. Eu sentia... não sei, algum tipo de conforto e desconforto ao
mesmo tempo... eu não sei exatamente o que senti. Você sentiu alguma coisa?
— Não. — era verdadeiro. — Eu não senti nada.
Ele mordeu o lábio inferior e sacudiu a cabeça positivamente, sem me olhar nos olhos.
— O que eu faço agora, Éron? Como saber o que fazer?
— E você pergunta isso pra mim? Não há fórmula. Eu não sei o que acontece depois, mas
sei que cada decisão é importante porque suas consequências são enormes. O medo que
alguém importante descubra, o arrependimento, a sensação de sujeira na pele... É como
desenterrar um cadáver. Além de ser um crime, o cheiro nunca é agradável.
— Sabe qual é a pior parte? — ele ainda não me encarava. — Eu não me arrependo.
Sorriu para ninguém e tomou todo o resto de milk-shake, com grandes goles. Eu não
conseguia mais tomar uma gota, achando que poderia vomitar com o contato do chocolate
com a minha língua. Era como se uma bexiga de água gelada estivesse bem em cima do meu
estômago, me arrepiando. E eu lembrei as últimas vezes que senti algo assim: quando perdi a
Mirla, quando rompi a amizade com a Helen e depois que beijei Hugo pela primeira vez.
Lutei contra as lembranças, afinal, era o último dia do ano, eu não podia ficar me
segurando a emoções antigas. A vontade de chorar veio em seguida. Eu quis correr para o
banheiro, vomitar, sangrar... Por quê? Eu já tinha superado, eu estava animado! Consegui
passar o segundo semestre sem derramar uma gota de lágrima durante as aulas, quando a via
entrando na sala, se sentando, me ignorando e quando subia na moto do estranho namorado
cabeludo dela. Por que eu queria chorar, então?
— Você tá bem? — ele me perguntou. Eu sentia o inchaço repentino em meus olhos. As
lágrimas não iam demorar a chegar.
— Não. Valeu pela companhia, mas eu assumo daqui. — me levantei. — Não me siga. —
soltei, assim que soube que ele ia levantar da cadeira cromada.
Corri pelos corredores do shopping. As luzes, as pessoas, os sons, tudo parecia distante,
intocável, enjoativo. Foi quando eu senti a primeira lágrima pular de meu olho esquerdo, se
arrastando pela minha bochecha e tocando o meu pé, em seguida. E o mesmo ocorreu com
todas as outras que a acompanharam.
Entrei no banheiro mais próximo e me tranquei numa das cabines, sentando na tampa de
um vaso sanitário. Eu não fazia barulho, mas as lágrimas estavam ali, trazendo de volta o que
eu estava fazendo questão de guardar, de engolir. Quando uma represa arrebenta, tudo ao
seu redor é carregado pela força da correnteza.
Não sei quanto tempo perdi ali, assistindo as imagens em minha cabeça. Não sei quanto
tempo perdi remoendo aquilo. Mas eu sabia que não podia continuar, nunca mais. Se eu
estava passando por aquilo bem naquele lugar, naquela hora, era para exorcizar de vez a
negatividade que tinha tomado minha alma, o que eu não assumi. Isso acabou me possuindo,
me controlando. Então eu precisava expelir.
Me ajoelhei no piso cinza escuro, levantei a tampa do vaso e vomitei tudo que estava
dentro de mim, de uma vez só. Meus olhos arderam, minha boca salivou. Eu cuspi, por
último. Levantei, as pernas tremendo, apertei o botão de descarga. O tornado de água levou
pelo cano tudo que eu não queria em meu corpo, tudo que precisava ser reciclado. Não era a
definição do fim dos sentimentos, mas sim da parte negra que eles criaram. Que eu criei. A
parte que me fazia mal, me atacando como um parasita, se alimentando de meu coração.
Lavei minhas mãos, minha boca e meu rosto em uma das torneiras, fora da cabine. Ao me
olhar no espelho, soube que estava pronto para o novo ano, e que ele traria algo espetacular
pra mim, algo reservado. Eu merecia, depois de tanta dor, depois de tantas mentiras.
Para me distrair, coloquei os meus pensamentos nas roupas que eu queria comprar. Cada
cor tinha um significado especial para receber as energias de um novo ano, o fim e início de
um ciclo. Vermelho pra paixão (como se eu precisasse), verde para dinheiro (mais?) e
amarelo para sucesso (em que área da vida?). Branco era universal, então uma calça dessa
cor, cheia de bolsos, tamanho 38, já me servia muito bem. Uma camisa azul neon, com um
ideograma japonês amarelo-limão fluorescente para felicidade. Aproveitei e levei um par de
All Star cano médio, azul turquesa, para combinar. Eu estava pronto.
Coloquei as sacolas de compras no quarto e conectei o celular ao computador para
sincronizar algumas músicas de uma nova playlist. Alguém bateu na porta:
— Entra. — eu disse.
Minha mãe se sentou na cama, sem cerimônias ou enrolação.
— Seu pai me fez uma proposta súbita. — começou ela. — Conseguiu uma casa de praia
em Rio das Ostras. Eu e ele estamos indo.
— Não pensaram em me chamar? — ironizei.
— Você quer ir? — ela devolveu. — Sei que tem compromissos, então não queríamos te
tirar disso. Mas tem lugar ainda.
— Não, obrigado. Podem ir. — eu não estava com raiva, apenas seco. Como se eles
tivessem se importado comigo. O que eles queriam era apenas entre os dois, e eu preferia
manter minha mente muito longe disso.
— Tudo bem. Deixei dinheiro na mesa da cozinha pra sair, comer... — ela se levantou. —
Estamos partindo. Seu pai já está no carro.
Nossa, quanta consideração o meu pai tinha comigo. Emocionante.
— Tchau. — lancei, frio.
Ela não discutiu, fechando a porta. Não falou quando voltaria ou como eu faria caso
precisasse de contato. Grande surpresa. Eles podiam me encher de dinheiro, mas não iam
afastar meus olhos da verdade: minha mãe era capacho do meu pai. Consequentemente, eu
era capacho daquela relação. E eu nem tinha meu próprio cartão de crédito.
Às sete da noite, resolvi ligar para Adriele. De novo.
— Aleluia! — exclamei. — Como alguém tem um celular e não anda com ele?
— Ficaram me apressando pra sair, acabei esquecendo. Era algo importante?
— Claro. Eu quero saber a que horas iremos para a praia. Eu marquei com a Ana às dez,
então eu pensei —
— Ana? — ela estava com aquela voz de irmã mais nova que descobre que o irmão está
“namorando”. — Estão saindo?
— Hoje vai ser o primeiro encontro oficial. Surpresa?
— E eu achando que você era a Rainha do Deserto1. Pra tudo há uma surpresa.
“Espere até descobrir quem realmente é o Tales...”
— Ela é uma garota legal. Não tem problema, né?
— Claro que não. Ela salvou sua bunda e a do Tales.
— Então, se quiser levar algum garoto...
— Não, nem preciso. Eu arranjo por lá. Só que a minha irmã e o Tales vão pra lá também.
— Com você? — só me faltava.
— Não! Jamais! Eles devem ir umas onze horas, para esperar os fogos. A gente só vai ter
que ir pro final da praia, para ficarmos mais seguros e tal. Não quero que minha irmã saiba
que sou essa vadia louca que você conhece.
— O Tales sabe. — a lembrei. — Não acha que ele já contou pra ela?
— O Tales? Não, ele é confiável. Ele sabe guardar um segredo.
Sabia sim.
— Te vejo na praia, então. Eu busco a Ana e a gente se vê lá no mirante às dez e quinze,
beleza?
— Ok. Estou animada! Beijocas.
Durante meu banho e enquanto me arrumava, eu sentia um frio no estômago, de
ansiedade. Mais do que mudar de ano com a Adriele, minha amiga, eu ficava feliz por poder
estar com a Ana, ouvindo aquela risada gostosamente bizarra. Mal podia me segurar quando
saí de casa correndo e peguei o primeiro táxi que vi. A casa dela ficava perto da mansão do
cara que deu a festa de aquecimento, só que um pouco mais ao sul, num residencial. Ela me
esperava na calçada, do lado de fora do condomínio, encostada na gigantesca grade de ferro
negro que separava a rua do lugar colossal.
— Uau. — eu disse, quando desci do táxi e a admirei dentro do vestido xadrez azul e rosa,
um pouco acima dos joelhos. Nos braços, uma pequena bolsa branca. Os olhos pareciam
brilhar, os cabelos cintilavam marrons e seu sorriso, totalmente certo, se expandia pra mim.
— Você está linda.
— Ah, valeu. — ela parecia não levar a sério. — Tem certeza de que não quer ir de carro?
— Não jogue isso na minha cara o tempo todo. — sorri.
Ficamos em silêncio. Ela parada, com os braços soltos na frente do corpo, segurando a
bolsa com ambas as mãos. Eu fiquei me balançando, pra frente e para trás. Queria tocá-la, só
algo totalmente fraternal me impedia, como se eu fosse parecer um ninfomaníaco. Resolvi
quebrar o gelo. Me aproximei devagar e passei meus braços por ela, enrolando-a. Ela
retribuiu, acertando sem querer minha cabeça com a bolsa, antes do abraço acontecer.
— Me desculpe. — ela começou a rir daquela forma que só ela sabia fazer.
— Não foi nada. Vamos lá.
Abri a porta traseira do táxi para ela, como um daqueles idiotas que levam as meninas
para bailes, me sentando ao seu lado depois.
— A Adriele vai? — ela perguntou, após eu dizer para onde iríamos ao motorista.
— Sim. Ela vai. Vamos nos encontrar na praia mesmo. — ela concordou com a cabeça. —
Então, o que você gosta de ouvir?
— Ah — ela riu um pouco. — você não deve gostar...
— Diga. Quem sabe eu não conheço? Eu ouço um monte de bandas que pouca gente
conhece, pode ser o mesmo contigo.

1
Ironia direta com as drag queens do filme Priscilla – A Rainha do Deserto.
— Bandas eu ouço poucas mesmo, destaque para Maroon 5.
— Sério que você curte Maroon 5? Eu curto também. Primeira banda em comum.
— É, mas eu prefiro MPB. Tim Maia, Pedro Mariano, Cássia Eller... até Gretchen eu ouço
um pouco.
Comecei a rir.
— Você só pode estar zoando com a minha cara. Impossível alguém ouvir Gretchen.
— Sério, muita sedução no olhar, cara. — ela usava essas frases de efeito como ninguém,
mantendo um nível cômico e sério ao mesmo tempo. Eu só tinha vontade de rir o tempo
todo, por mais que não estivesse estampado na minha cara.
— Tipo assim, não existe letra.
— Você ouve Britney Spears? — esperta.
— Bom argumento... Mas isso não define.
— Tá, não interessa, bonito. Curte MPB?
— Não posso dizer que não curto, até porque eu não fico nessa coisinha imbecil que
adolescente só gosta de pop. Eu curto letras e melodias. Só não me venha com pagode,
funk ou forró. Você não ouve isso, né?
— Ah, tem uns pagodes que eu escuto...
— Desceu o nível, vou te empurrar pra fora do táxi!
Começamos a rir como dois totais chapados. Tão pouco tempo de “amizade” e eu sentia
algo tão grande dentro de nós. Não era possível gostar tanto de alguém assim, do nada, mas
com ela... Sabe aquela energia contida, que você sabe que está lá, mas não sabe como ativar?
Era exatamente isso. Eu tinha a energia, nós tínhamos sincronia, só não sabíamos como isso
podia ser colocado pra fora.
Minutos depois, estávamos na praia. Lotada. Paguei o táxi, e ela não reclamou. Sabia que
isso fazia com que eu me sentisse útil.
— A Adriele nos encontrará no mirante daqui a pouco. — avisei.
Subimos o mirante e nos sentamos num dos bancos mais vazios, ao ar livre. De lá,
podíamos ver boa parte da praia e do mar. As colinas ao redor eram marcadas pelos pontos
brilhantes das luzes das casas e lojas. A brisa do mar refrescava. Poderia ser super romântico
se não estivesse cheio de pessoas podres pelo caminho.
— E então, por que estava naquela festa? — ela perguntou, quebrando o silêncio.
— Eu queria diversão. — percebendo que eu não dei uma explicação decente, completei:
— Por mais que eu goste de festas e me divirta nelas, eu não estava com vontade de ir. Mas a
Adriele usou o argumento certo que despertou esse meu lado mais festeiro. É uma relação de
amor e ódio. E você?
— Minhas amigas me chamaram. Eu não tinha o que fazer. Em casa eu tenho mais
problemas do que fora, então eu prefiro ficar bastante tempo fora, pra qualquer coisa.
— Problemas em casa? Acho que sei como é. Meus pais me lembram zumbis.
— Minha mãe ainda acha que eu sou uma criança boba, sabe? Fica toda hora perguntando
o que eu quero comer, fica dizendo que eu sou magra demais e é muito temperamental. A
gente vive discutindo.
— Não tem vontade de mudar essa situação? — indaguei.
— Você não tem? — ela devolveu, rápida.
— Eu tento. Juro pra você. Acho que a minha mãe ainda está ligada a mim, mas o meu pai
meio que atrapalha, sabe? Ele é um porco rosado, só serve pra me dar dinheiro.
— Minha mãe só serve pra isso. — ela riu. — É sério. Ela enche minha paciência. Agora
que ela está se aposentando, vai passar os dias me infernizando. Eu não aguento ficar calada,
respondo logo. E aí tudo começa.
— Já pensou eu não respondê-la?
— Já ficou com raiva?
— Constantemente. Mas se não tem jeito, de que adianta? Gera mais estresse. Lá em casa
eu nem respondo porque não há diálogos. Mas eu me acostumei ao silêncio. No seu caso, que
é bastante diferente do meu, eu te aconselho e relevar. Acho que o silêncio pode dizer mais
do que ofensas. Vocês podem estar meio que acostumadas com essas brigas, e isso não pode
acontecer.
Ela refletiu por alguns segundos.
— Bom ponto de vista. Prometo que vou pensar sobre.
— Tem namorado?
Eu não sabia se podia fazer esse tipo de pergunta, ainda mais depois do primeiro beijo. Ela
não era o tipo de trair, e eu sabia disso. Mas precisava perguntar. Nunca se sabe quando
alguém tem rolos ou pegações, né?
— Se eu tivesse não teria te beijado. — ela sorriu.
— Eu sei que não. Mas eu precisava perguntar.
— E você, tem namorada?
Eu tive. A segunda maior vadia do mundo, Mirla.
— Eu gostei de alguém.
— Tá, essa não é a resposta pra minha pergunta... mas acho que sei o que quer dizer.
— Ah, é?
— É. — ela hesitou. — Eu gos... gostei de um garoto há algumas semanas atrás. Sabe, não
era um simples carinho ou aquela vontade de ter uma ficada, pois eu sentia penetrando meu
corpo, sabe? Eu sentia em cada milímetro da minha pele... eu não sei, eu acho que não teria
chances com ele. Eu tenho certeza que não terei.
— Como pode ter tanta certeza? Ele te disse que jamais ficaria com você?
— Ele é gay e eu não sou um homem.
É, esse detalhe complicava um pouco a relação.
— São amigos, ao menos?
— Somos. Não só isso. Temos uma conexão imensa. Eu o conheço demais, sei cada ato
seu, assim como ele conhece os meus. Mas pra mim nunca vai ser mais uma amizade. Ele
sempre vai ter um lugar guardado dentro do meu peito.
— Uma coisa que eu aprendi é que não existem gays totais. Assim como não existem
héteros totais.
— Não dê um exemplo próprio como regra. — ela riu, sutilmente. — Algumas pessoas
realmente nascem assim, não podem mudar a essência delas, nesse sentido. Você consegue,
ou conseguiu, mas é porque essa é a sua essência, de pertencer a sentimentos, não a pessoas.
— Você captou tudo isso agora? — eu estava surpreso. Que interpretação fiel sobre mim.
— Ao mesmo tempo emque eu tenho essa ligação com ele, com você eu tenho uma coisa
que eu não consigo definir, por mais que queira. Parece que eu entendo você, que eu vejo
através do que podem ver... eu não deveria estar dizendo isso, porque soa pretensioso, mas é
a realidade. E eu não deveria estar falando de outro cara com você. Nós nos beijamos e
estamos no nosso primeiro encontro.
Ela sorriu enquanto coisas rolavam pela minha loura cabeça. Eu poderia contar pra ela
sobre o meu desgraçado primo que veio da França ou a amizade maravilhosamente cruel que
tive com Helen. Até mesmo o fiasco com a Mirla. Ou eu poderia ficar quieto e não abrir o
jogo, esperando ter um recomeço com ela. Por que eu sempre escolhia o caminho mais
masoquista?
— Eu posso dizer que boa parte dos meus problemas atuais, tanto em relacionamentos
quanto psicológicos, vieram de um cara. — comecei, firme na decisão de abrir o jogo. — O
nome dele é Hugo, e é meu primo. Ele não mora no Brasil, e em uma de suas visitas, quando
eu tinha perdido a namorada e minha melhor amiga, acabamos nos beijando. Depois disso,
eu só conseguia pensar em como me senti durante o fato.
— E aí? — ela questionou depois que silenciei.
— E aí que a minha busca pelo sentimento recomeçou depois que ele voltou para França.
Isso me gerou dor, não só em mim. Então aqui estou.
— Parece que nos unimos pela vontade de “começar” de novo. — ela sorriu pra mim, e eu
entendi o que aquele sorriso significava. Era um convite.
Passei minha mão direita por baixo dos fios de cabelo chocolate e a segurei pela nuca,
puxando seu rosto para perto do meu. Nossos lábios se chocaram como penas no ar. Nossas
línguas não se mexiam muito, mantendo a falta de ousadia sexual da relação, mas nossos
toques nos completavam. Com a outra mão, deslizei para sua barriga, deixando-a descansar
ali, naquela reta magérrima. Suas mãos me seguravam pelos ombros, me trazendo para mais
perto. Nossos rostos viravam de um lado para o outro, bem devagar. Mas sempre há um
“empata-foda” pra acabar com todo o clima.
— Existem motéis super baratos na Avenida Triunfo, arrumem um quarto. — era
Adriele, parada em nossa frente feito uma pomba-gira despachada na encruzilhada.
— Que-roupa-é-essa? — perguntei, segurando o riso.
Uma saia rodada branca com babados horríveis. Se Adriele não fosse quem fosse, diria que
roubou a roupa de uma baiana viciada em maconha, nuggets de frango e Cartoon Network.
Ana só ria.
— Oi, Ana. — Adriele beijou-a na bochecha, rapidinho.
— Então, para onde vamos? — me levantei, estendendo a mão para Ana. — Quer
procurar alguma vítima para alojar seu bebê alien, Adriele?
— Na verdade, eu tenho companhia. — ela parecia receosa. — Mas antes de abrir o jogo,
preciso que você me prometa não ficar furioso.
Ela me encarava com olhos molhados. Se ela falou em ficar furioso, não podia ser coisa
boa. Nem ruim. Só podia ser coisa terrivelmente horrorosa.
— O que é que —
— Trouxe nosso açaí. — me interrompeu a menina de cabelos ondulados e mega louros.
Uma franja cobria parte de sua testa oval, que por sua vez se mantinha atada a uma tiara
verde fluorescente.
— Helen?! — realmente, ficar furioso era pouco. Eu só precisava de uma metralhadora
pro dia nascer feliz.
— Éron. — ela sorriu, meio sem jeito. — Adriele não te contou que eu vinha com vocês?
— ela estava tentando se fazer de a) santa do pau oco; b) vadia sem noção ou c) todas as
alternativas anteriores.
— Óbvio que não, olha para a minha cara. — eu não precisava ser simpático. E não o
estava sendo por causa da ânsia de vomito que queria deixar de ser ânsia e pular pra fora da
minha boca como um jatinho particular bem na cara dela.
— Me desculpe, me desculpe. — Adriele fazia uma falsa cara de choro. — Eu sei que
deveria ter contado, mas achei melhor chegar de surpresa. Eu acho que vocês dois têm coisas
para resolver, então façam antes que o ano chegue ao fim.
— E quem você pensa que é pra tomar uma decisão que cabe apenas a mim?! — eu sentia
o ódio subindo pela minha cabeça, como pressão.
— Eu só quero ajudar! — Adriele bancando de vítima ao lado da rainha das víboras, que
só assistia.
— Então não ajude! — caminhei para longe delas e acabei por me lembrar, já um pouco
afastado, que havia deixado Ana lá. Para ficar constado que o poder de Helen era me deixar
fora de mim, esquecer o mundo, incluindo a menina que poderia estar com a chave para a
minha nova nova nova vida.
Quando voltei para fazer com que Ana me acompanhasse, ela veio falando:
— Acho que vocês precisam conversar. — ela estava visivelmente chateada por tê-la
esquecido.
— Me desculpe, mas eu não quero. — encarei as duas. — Não hoje.
— Por que eu sinto que estou incomodando? — Ana sacudia a cabeça, olhando para o
vazio. Levou a mão à testa.
— Não é você. São elas.
— Elas?! — Adriele fazendo a sofrida.
— Que tipo de amiga faz uma coisa dessas?
— E só queria te ajudar, Éron!
— Tudo bem que suas intenções são puras, mas isso é traição! Você não pensou no que
isso causaria!
— É claro que eu pensei! — ela estava à beira de gritar. — Eu só pensava no bem que isso
poderia fazer para os dois! Até a Helen está sofrendo!
Eu senti meu coração explodir em batidas, mas eu não podia ficar parado massageando
minha mente com tal afirmação. Seria bancar o perdedor. Eu preferi fingir que ele não
existia.
— Que se dane! — exclamei. — Droga. — levei a mão à cabeça, ardendo num misto de
raiva e amor. Mas era um amor diferente, quebrado, sujo. Meio como algo não resolvido.
Então eu refleti: e se aquela fosse a minha chance de acabar com tudo de vez? De colocar
mais um ponto em meus dramas? Talvez o que estava me fazendo mal não era a falta da
Helen, mas a falta do fim definitivo, de falar o que eu sentia.
— Tá tudo bem? — Ana colocou a mão em meu ombro, sussurrando. — Quer ir embora?
— N-não. Tudo bem. — respirei fundo. — Olhem, querem saber de uma coisa? Tudo
bem. Tudo bem mesmo.
Helen arregalou os olhos e esboçou algo que poderia ser um sorriso. Mas eu não era um
especialista em répteis para dizer a diferença.
— Posso passar a noite numa boa. Sem problemas.
Eu não estava mentindo ou afirmando algo para elas, mas era pra mim. Eu estava me
fazendo acreditar no que eu dizia. Ana sorriu para mim. Abracei-a pela cintura e tentei me
normalizar.
— Para onde iremos? — perguntei.
— Pizza, talvez? — Helen se pronunciou, sorrindo.
— Por mim tudo bem. — Adriele estava contente.
Caminhamos pela orla para a M&D. Nítido meu incômodo com a presença de Helen, pois
me remetia a lembranças tolas e dolorosas, porém eu tinha de me acostumar. Não havia feito
isso durante o segundo semestre?
Nos sentamos em uma das mesas da frente, coladas à colossal janela de vidro temperado
que substituía uma parede de concreto, nos dando total visão da praia e de quem passasse por
ali.
— Mussarela. Gigante. — falei. Ana concordou, com um sorriso doce. Ela se sentia
deslocada, e era um erro que eu precisava reparar logo.
— Ah, eu prefiro calabresa. — pronto, Helen já queria iniciar a terceira guerra mundial.
— Metade mussarela, metade calabresa, ok? — se alguém tinha que levar um Nobel, era
Adriele, forçando a paz entre dois assassinos de corações veteranos.
No rádio, Van She tocava Changes enquanto fazíamos o nosso pedido. Após isso,
começamos a discutir como dividir o pagamento. Eu podia pagar tudo, assim como Ana,
Adriele ou Helen. Todo mundo sabia disso. Mas mesmo assim...
— Ok, eu pago a minha parte e a da Ana. — pisquei para a menina mais meiga daquela
mesa.
— Eu pago a da Helen. — Adriele foi rápida no gatilho, como se fosse a chance para que
provasse o quanto a sua amizade era valiosa. Foi quando eu comecei a juntar certos cacos de
uma teoria que eu preferia não acreditar.
— Seus pais sabem que está aqui, Helen? — perguntei, realmente curioso.
— Sabem. Depois que terminei o namoro, meio que ganhei certas liberdades, ao invés de
ficar em casa, presa.
— Seus pais são mega estranhos. — uma risada anormal e babaca saiu da boca de Adriele.
Boa parte das outras pessoas lançou olhares de desprezo para ela, que não ligou.
— Vocês estão saindo? — Helen indagou sem cerimônia, aparentando confusão.
— Estamos. — respondi.
— Você não é, tipo assim, gay?
Raios de ira voaram de meus olhos para Adriele, enquanto eu fantasiava como seria
gostoso explodir a cabeça dela com álcool, gasolina, pregos e fósforos.
— Você contou pra ela?! — tentei manter a calma ao questionar.
— Ela é minha melhor amiga — arregalei os olhos. — e eu achei que todo mundo já
sabia...
— Isso não importa! Era uma coisa nossa! — eu estava a ponto de gritar. — Sabe o que
está acontecendo? Você quer provar pra Helen que sua lealdade pertence a ela, por isso a
trouxe. Quer mostrar que nós dois não passamos de amiguinhos sem sal, e que com ela tudo
fica mais legal! É isso!
— Éron, por que está falando uma coisa dessas? — Helen, fingindo surpresa.
— Cala a boca, chupadora de wookie2. A conversa ainda não chegou ao prostíbulo.
Ambas engoliram seco.
— Quer que eu saia, Éron? — sussurrou Ana. — Poderão conversar à vontade.
— Não, Ana. Eu acho que eu vou sair com você. A gente come alguma coisa em outro
lugar.
Me levantei, assim como Ana.
— E a pizza? — Helen falava por Adriele, que se matinha olhando para o nada.
— Você paga, já é costume. Vamos, Ana.
Eu e Ana saímos de lá juntos. Andando pela orla, ela começou a me perguntar coisas que
eu não achei que perguntaria, mas estava contente por tê-lo feito.
— Você ainda a ama?
— Eu amo uma Helen que não existe mais, Ana. Essa coisa que está no corpo dela não é a
mesma pessoa que eu amei.
— Então toda essa raiva vem das palavras não ditas? Do sentimento que você não expôs?
— Sim. — hesitei. — Tenho tantas coisas que quis dizer mas não consigo, sabe? O que era
amor, se transformou no ódio que veio pela dor. Acredite em mim, é uma dor indescritível.

2
Raça de seres peludos, similares a humanos primitivos, da saga Star Wars.
Uma sensação de que nada do que você viveu é real, e que qualquer pessoa vai trair sua
confiança. É horrível.
Acabamos voltando para o mirante, onde nos abraçamos. Sentir seu corpo tão frágil, me
fazia um homem mais forte. Era como se ela fosse alguma jóia que eu tinha que cuidar. Eu
estava confortável, limpo e, principalmente, sem culpa alguma, sem remorso. Estava fazendo
a coisa certa para mim mesmo sem ir contra a corrente aniquiladora da sociedade. Quando
foi que eu me tornei o Buda?
Quando nos beijamos novamente, senti um frio subir pela minha espinha. Um frio
gostoso, tranquilo. Era o eu que eu mais gostava em mim. Mas algo estava errado com ela. O
beijo foi perdendo a animação e um sinal pra mim foi dado: eu tinha feito algo de errado.
— O que houve? — perguntei. Ela olhava para a estrada, lotada de pessoas.
— M-me desculpe. — ela gaguejou, escondendo o rosto em meu peito.
— Pelo quê? — acariciei sua cabeça. — Viu alguém que não deveria?
Ela não respondeu. Provavelmente tinha visto alguém especial demais. O tal garoto que
ela gostava? Eu não precisava perguntar. A abracei mais forte.
— Quer procurar um lugar pra comer?
Ela fez que “sim” com a cabeça, sem me encarar. Eu não era tão masoquista ou homicida
pra voltar para a M&D, então só nos restava algum dos outros restaurantes de pizza-não-tão-
boa para preenchermos nossos estômagos. Acabamos em Camerón. O lugar me lembrava um
forno gigante, com parede de tijolos expostos e a céu aberto, em sua maior parte. Tochas
davam um toque rústico enquanto garçons vestidos de chefs entregavam os pedidos.
Com nosso pratão de batatas fritas regado por ketchup, voltamos a sorrir:
— Eu nunca tive muita paciência pra sites de relacionamento na internet. Eu só vivia
neles por ser um lobo solitário desesperado por atenção e companheirismo.
— E conseguiu? — ela me perguntou, apontando a batata para meu rosto.
— Não. — rimos. — É forçado demais.
— Mas é pra isso que serve. — ela comeu a batata. — Eu tenho, mas eu ainda conseguirei
viver sem. Eu adoro olhar a vida das pessoas, ver fotos, ler perfis...
— Fofocar. — completei.
— Eu não colocaria dessa forma.
Rimos mais um pouco. Por mais que ambos quisessem evitar o assunto de nossas relações
com outras pessoas, sabíamos que não dava. Eu queria entender o que acontecia com ela, e
ela comigo. E tínhamos noção de que a maneira mais fácil (fácil?) de resolver o assunto era
encarando de frente, colocando em pratos limpos o que nós realmente tínhamos pra dizer.
— O que pretende fazer? — perguntei. — Não quer falar nada pra ele?
— Eu quero. Tenho tantas coisas pra falar...
— Por mais que acredite que não haverá diferença, te digo que vai haver sim. Se você se
livrar logo desse peso que está levando, vai se libertar pra experimentar algo novo.
— Vai fazer o mesmo? — senti um pouco de ironia, pela primeira vez. Considerei.
— Vou. — era verdadeiro.
Olhei no celular e constatei que faltavam apenas dez minutos para a meia-noite, então
precisávamos correr.
— Vamos, temos contas para acertar. — me levantei de súbito.
— Temos que pagar o —
— Joguei uma nota de cinquenta em cima da mesa e corri para fora do restaurante
levando Ana pela mão.
Adriele e Helen estariam no fim da praia, perto dos píeres onde os amassos rolavam
soltos, longe dos olhares de sua irmã. O vento levantava meus cabelos enquanto eu ria,
sentindo minhas bochechas ficarem frias. Desviávamos das pessoas da estrada e ríamos, ao
mesmo tempo. Faltava pouco para começar o ano novo e eu não queria começar daquele
jeito, com mágoa dentro de mim. Eu precisava expulsar o demônio que eu e Helen criamos.
E ela também tinha o direito de falar, caso tivesse algo.
— Tem ideia de onde elas possam estar? — Adriele quase gritou.
— Tenho! Perto da areia!
Mudamos a rota para areia. Ali perto, uma tenda de música eletrônica conhecida tocava
alguma coisa. Paramos de correr e passei a observar o que acontecia ao meu redor.
— Ali! — exclamei.
— Éron, te encontro em breve.
Ana me deu um selinho e correu para longe, voltando parte do caminho. Ela sabia o que
tinha de fazer. As pessoas tinham se juntado na areia, esperando o céu pipocar em cores.
Helen me viu, e se apressou para me encontrar.
— Preciso falar com você. — soltamos, em uníssono.
Impossível não rir. Irônicas situações da vida.
— Você primeiro. — pedi, contendo o sorriso. Só de ter decidido desabafar, eu me sentia
mais calmo, com bom humor.
— Eu queria muito pedir desculpas, Éron. Meu deus, como eu fui estúpida em ter feito o
que eu fiz. Você era o meu melhor amigo, a única pessoa que realmente se importou comigo
e eu joguei tudo pela privada. Fui uma cadela total, e admito isso.
Seus olhos, já molhados, refletiam o início de estouro de fogos das barcas no meio do mar
de Dourado.
— Eu te amo, Éron! — a primeira lágrima rolou em seu rosto. — Nossa, e como eu amo!
Eu peço perdão por tudo que fiz e peço... eu peço para esquecermos o passado, os nossos
erros e voltarmos a construir aquela amizade perfeita que tivemos.
Eu assenti, e entendi o que ela quis dizer, mas a minha mudança havia sido intensa,
interna, total.
— Helen, não existem chances nesse mundo que me façam voltar a tentar alguma
amizade com você. — mais lágrimas, acompanhadas de soluços fracos. — Não é por vingança
ou por falta de vontade, mas é porque, quando você me deixou sozinho, eu sofri tudo que eu
achei que nunca sofreria. Mais do que perder a Mirla, mais do que perder um dos meus pais,
perder você era como arrancar com um alicate vários pedaços da minha pele. Sofri por
meses. Acreditei que você tinha me superado totalmente, e você superou, só que agora que
você está sozinha, você percebeu o quanto eu era importante, o quanto você era importante
pra mim, que eu seria capaz de qualquer coisa pra te ver sorrir.
Ela fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. Eu não tinha vontade alguma de chorar,
pois todas as minhas lágrimas foram gastas por meses de dor e sofrimento causados por
ninguém menos do que aquela loira na minha frente. A que comeu meu coração.
— Helen, eu tive de me adaptar, e agora aqui estou. Sou o resultado da sua escolha, da sua
traição, da dor que eu senti por você. Por mim. Que isso lhe sirva de lição para pensar muito
bem antes de colocar alguém na frente de suas amizades, porque segundas chances podem
deixar de existir. Adriele realmente se importa com você, então jamais faça com ela o que
você fez comigo.
Ela concordou com a cabeça, e me pediu, o rosto vermelho:
— P-posso te abraçar?
Abri meus braços e ela voou sobre mim. Me apertou muito forte, enquanto eu apenas
sentia seus soluços em meu peito. Os estalos dos fogos no ar estavam em sincronia com as
batidas de meu coração. Eu estava sereno, limpo, desintoxicado.
— Estamos em paz? — ela perguntou, me soltando.
— Estamos. — sorri.
Adriele assistia tudo de longe, desconfiada. Acenei para ela, com um largo sorriso no
rosto.
— Agora eu tenho que encontrar uma pessoa especial. — peguei o celular do bolso. —
Não se esqueça dessa conversa.
— Mesmo se eu quisesse esquecer você, eu não conseguiria. — o seu sorriso sumiu.
Cruel da minha parte? Não. O que eu aprendi de tudo isso é que cada pessoa tem uma
escolha. Se ela vai ficar no chão, traída, magoada e ferida, a escolha é dela. Mas se ela vai
usar essa dor como um alimento para superação e se levantar, como um bom guerreiro, é
outra decisão. Eu escolhi estar de pé. Ela precisava fazer a escolha dela. Não tinha feito
quando me abandonou? Aposto que pode novamente.
Voltei para a estrada e peguei o celular para ligar para Ana, mas não precisei, pois ela
caminhava vagarosamente na minha direção, sorrindo.
— Feliz ano novo, gata. — dei um selinho, enquanto enrolava meus braços em volta dela.
— Feliz. Falou com a Helen?
— Falei, falei. Tudo ocorreu melhor do que eu esperava. Me sinto, sei lá, mais jovem.
Ela se calou, de repente.
— Falou com o tal? — eu não podia deixar o assunto morrer.
— Falei. Está tudo bem agora. Eu tenho você.
Sorrimos antes do nosso primeiro beijo do ano. Seu corpo magro era o meu refúgio e sua
boca era a chave pra minha comunicação com o “Eu” interior dela. Quando meus dedos
deslizaram por seus cabelos e ombros, me perguntei se eu estava voltando a ser quem era,
quando estive com Mirla. Talvez. Só que numa versão turbinada, revisada e ampliada.
E feliz por estar junto da única menina do mundo que conseguia me fazer sentir da
mesma maneira que Helen um dia fez: em casa.
Episódio Quatro
A Vadia da Maçã Envenenada

J aneiro estava sendo um mês de calor infernal. As casas e lojas derreteriam se não
tivessem os aparelhos de ar-condicionado. Eu sabia porque mal ficava em casa. Era
por volta do décimo dia do novo ano, quando me encontrei com Ana pela milésima
vez, para tomar um milk-shake no Solar, o shopping da cidade. Quando ela sorria pra mim,
com os dentes ajeitados durante quatro anos de aparelho, eu me esparramava, literalmente.
Ela era o tipo ideal de “amiga que se pode beijar na boca”, pois era isso o que eu sentia.
Acima de tudo, éramos amigos. Eu havia lhe contado todos os meus problemas, e ela os dela,
que giravam em torno de discussões com a mãe e traições de colegas de escola.
Descobri também que sua autoestima era muito baixa. Se achava feia demais, magra
demais, cabeçuda demais, mas só se deixava levar pelos comentários feitos por crianças
quando estudava com um bando (maior) de imbecis. Adolescentes são cruéis, mas crianças
conseguem ser perversas. Esse tipo de gozação a marcou. Ela não tinha um cabeção ou era
feia. Ela, realmente, era muito magra, mas uma magreza que tinha tudo a ver com seus
cabelos, marrons de chocolate, e suas roupas, geralmente vestidinhos levemente coloridos.
Sua risada, acima de tudo, era engraçada e carismática. Ana sempre afirmava: “parece que
eu tenho um ovo na boca”, mas não era bem isso que parecia. Parecia que tinha engolido
felicidade líquida. E meu trabalho era fazê-la rir mais.
— E Adriele — Ana tomou um gole do milk-shake de morango, após uma sequência de
risadas. —, ela te ligou?
— Ligou algumas vezes. Não atendi nenhuma.
— Não quer ouvir o que ela tem a dizer?
— Ela me traiu. — eu estava calmo, bem tranquilo, falando como se Adriele e Helen não
fossem mais do que eram: piranhas bem intencionadas. — Contou um segredo para Helen à
toa, só pra se provar mais amiga dela do que minha. Não acho que isso tenha conserto.
— Nem perdão? — Ana tomou outro gole.
— Eu a desculpo, mas isso não faz tudo ficar bem de novo.
— Respeito essa decisão. Penso o mesmo sobre minha mãe.
Terminamos nossos respectivos milk-shakes. Ela olhou o celular rapidamente, assustada.
— Preciso ir pra casa. A velha está enchendo meu saco pra ajudar na escolha do
apartamento pra nossa mudança.
— Mudança? — indaguei surpreso. — Por que não me disse nada?
— Porque não vou sair de Dourado. É uma mudança de rua. Ela quer ficar mais perto da
orla.
— Quer que eu vá contigo?
— Se quiser virar presunto...
Rimos. Ela jogou o copo de milk-shake no lixo e me deu um selinho, antes de deixar a
praça de alimentação às pressas. Já que eu estava lá sem nada pra fazer — e cheio de dinheiro
no bolso —, por que não comprar alguma coisa?
Caminhando para a loja de games, quem eu encontrei no caminho? Quanto mais eu não
rezava, mais Satanás colocava demônios em meu caminho.
— Éron! — exclamou Adriele, ao bater seus olhos em mim. — Preciso falar com você.
— Fale. — eu não parei de andar.
— Podemos tomar alguma coisa?
— Não. Fale logo.
— Por favor, eu só quero dar uma palavrinha. Eu tenho esse direito. Se não quiser olhar
na minha cara, eu vou aceitar totalmente.
Parei de andar e resolvi ouvir.
— Tudo bem.
Nos sentamos no café mais próximo. Antes de colocar minha bunda na cadeira, ela pediu
uma xícara de chá verde.
— Pode começar. — eu praticamente ordenei.
Ela suspirou.
— Imagino que deve estar chateado por eu ter chamado a Helen, mas saiba que meus
sentimentos eram verdadeiros.
— Chega de pagar de santa, Adriele. — interrompi. — Eu vi o seu rosto quando eu e
Helen estávamos compactuando pela paz. Apesar do sorriso, senti uma ponta de ciúme.
Chega dessa de ficar mentindo. Admita agora que você queria mostrar que nossa amizade
nunca seria como a sua com ela.
Seus olhos se encheram d’água, só que eu percebi a barra sendo forçada.
— Ela ainda te ama, Éron. Invejo isso. Eu queria que ela me amasse tanto quanto te ama.
Franzi o cenho.
— Vem cá... você é lésbica?
— Claro que não!
— Então qual é o motivo de tanto amor e admiração? Espírito de porco, barata ou babaca?
— Ela é tudo que eu sempre quis ser, Éron! E é minha amiga agora!
— Ela é uma garota que trocou o melhor amigo por um projeto de motoqueiro mais
peludo do que o Chewbacca de Star Wars. Uma garota que destruiu boa parte do que eu era!
— E isso não te transformou em algo melhor?
— Com muito custo!
Ficamos em silêncio. Ela recebeu a xícara de chá.
— Eu não te odeio, nem guardo ódio de você. Muito menos dela. Não agora. Mas eu,
simplesmente, não preciso de você ao meu lado.
— Por que você é quem tem uma namorada agora?
— Não compare meus atos com os de Helen.
— Eu não a citei.
Ela assoprou o chá e tomou um gole.
— Eu estou me afastando de você porque eu percebi que eu fico instável. Percebi que
minha amizade contigo era por causa da diversão que você é capaz de me fazer ter. Eu não
vou mentir: gosto menos de você. Antes era porque você era gente boa, achei que podia
confiar, mas depois de saber que você contou algo meu para Helen, eu duvido de tudo que
diz.
— Não fiz de maldade.
— Mas fez.
Ela ficou sem argumentos.
— Se tudo que você tinha pra falar era isso, sem ao menos reconhecer onde errou, eu só
peço pra que siga sua vida. Você tem a Helen só pra você, agora. Apenas tenha cuidado. —
me levantei e ajeitei a camisa. — Se ela fez o que fez comigo, que fui o melhor amigo,
imagina então o que ela faria com você.
Deixei o local apressado. A vontade de fazer compras tinha ido pro inferno e tudo que eu
queria, no momento, era a minha cama. Eu não estava triste. Me sentia livre. Só parecia que
cada vez que eu tocava no assunto, eu me cansava. Drenava minha energia.
Não tinha ninguém em casa quando cheguei. Bom pra mim. Tranquei o quarto e liguei o
ar-condicionado. Tirei meu tênis e joguei em algum lugar. Janeiro me lembrava que as férias
estavam chegando ao fim e isso me perturbava. Somando, eu sabia que algo estava para
acontecer naquela tarde, algo ruim.
Por horas, fiquei navegando na internet, com a boca cheia de bolinhos de baunilha. Só
deixei o Twitter de lado, quando o meu celular tocou.
— Alô?
— Éron! — Ana estava apavorada, com a voz ofegante e chorosa. — Éron, que bom que
atendeu!
— Ana, calma!
— Não dá, Éron! Eu preciso de ajuda! — ela começou a soluçar, enquanto chorava.
— O que foi? — perguntei, quase ficando desesperado também.
— É a minha mãe! Por favor, você tem que me buscar.
— Tudo bem, eu vou! Só me diz —
— Eu moro no bloco A, apartamento 602! — ela engoliu seco. — Vou ligar pra portaria, é
só se apresentar! Por favor, venha logo! — ela chorou mais ainda.
— Tudo bem, eu tô indo!
Ela desligou. Eu não sabia que conseguia ser tão rápido para calçar um par de tênis. Corri
para fora e peguei o primeiro táxi que vi, com o celular na mão. Tive uma sensação de déjà
vu anormal, como se eu já tivesse vivido aquilo outra vez. Minutos depois, joguei o dinheiro
por cima do banco do motorista e saí do táxi, às pressas.
— Seu nome? — perguntou um dos porteiros.
— Éron Brascher.
— Apartamento 602, bloco A. — indicou, após consultar o computador.
O que eu teria que fazer quando chegasse lá? Raptá-la? Não importando o que fosse, eu
estava preparado para matar ou morrer. Não, não era um déjà vu. Era a coragem de encarar
qualquer coisa por alguém que se gosta. Incluindo a mim mesmo.
Em frente à sua porta, no sexto andar, eu bati três vezes. Ninguém respondeu. Esmurrei a
porta com força, quando Ana abriu e se jogou em meus braços, mas alguém a puxava para
trás.
— Vem aqui! — era a mãe dela, puxando-a pelos cabelos.
Briga covarde, já que a mulher tinha bem mais gordura do que Ana. Ou eu. O que eu
senti quando vi seus dedos gordos pegando-a pelos fios de cabelo era o que pode ser
comparado à Guerra do Iraque. E eu era um homem-bomba.
— Solta ela, sua puta! — coloquei Ana de lado, e chutei a barriga da mãe dela com toda a
potência de minha perna. Ela gemeu, largando Ana e recuando dois passos. — Ana, desça.
Segure um táxi, eu vou já.
— O que vai fazer com ela? — o rosto de Ana não estava mais como a Lua, radiante.
Estava inchado, os olhos e nariz muito vermelhos e seus braços decorados com hematomas
super escuros. Eu não conseguia abrir meus punhos.
— Ana, desça. Me espere.
Ela obedeceu e foi, ainda chorando. Encarei a mulher que segurava a barriga, no local do
chute.
— QUEM VOCÊ PENSA QUE É?! — ela berrou.
Eu não tinha palavras, pois sabia o que fazer. Fechei a porta atrás de mim e andei até a
sala, passando por ela.
— Eu só vou falar uma vez e espero que me ouça. — murmurei. Minha face doía de tão
contraída.
— QUEM VOCÊ PENSA QUE É?! ESSA É MINHA CASA!
Ela veio pra cima de mim com tudo, me derrubando. Por ser mais rápido, rolei para o
lado e a acertei um soco em suas costelas. Ela mugiu.
— Eu disse que só falarei uma vez, sua porca! — me levantei e me aproximei da TV. —
Você pensa que a sua filha é o quê?! Acha que ela é um saco de areia, que você pode bater
quando bem entende? Escuta só, vadia, ela é mais do que isso. — eu sentia gotas de saliva
saltarem de minha boca enquanto falava, mas minha garganta estava seca.
— NÃO ME DIGA O QUE FAZER NA MINHA CASA!
Ela arremessou um vasinho de porcelana que estava em cima da mesinha de canto, me
acertando de raspão, rasgando minha pele de leve, acima da orelha. A dor era inexistente, a
ira era sólida.
Quando esticou seu braço para pegar o gato da sorte de vidro, eu me apressei e chutei seu
braço. Dessa vez, ela não gemeu. Com a outra mão, puxou minha perna com uma habilidade
descomunal, me derrubando. Só ouvi o estalo de minha cabeça contra o piso de madeira.
Com o gato nas mãos, ela o quebrou sobre meu peito, rasgando minha camisa.
Era uma luta onde não existiam vencedores, que ambos sairiam destruídos dali, talvez
mortos. E eu tinha alguém me esperando, a princesa que eu tinha de salvar da brutal mãe-
dragão-obesa. Era hora de terminar o clube da luta. Tentei fazer a mesma manobra de antes,
rolando no chão para sair de seu alcance, só que ela foi mais esperta: me segurou pelo pé,
com um fino caco de vidro na outra mão. Eu era o mais rápido da briga, e com minha
elasticidade natural, rodei como um bom jogador de capoeira e acertei seu rosto com o outro
pé. Ela cuspiu sangue no ar e tombou de lado.
Me levantei e a fitei. A vaca não estava desacordada, só que não era mais hora de briga.
Pulei sobre seu corpo e saí daquela maldita prisão. Que tipo de coisas aquela baleia azul fazia
com Ana? Quando me perguntei isso, preferi não ter resposta. No espelho do elevador, eu vi
o estrago que ela tinha me causado: camisa cheia de sangue, me impedindo de ver qualquer
corte, além de completamente rasgada. Da minha cabeça, uma fina linha rubra descia para
meu pescoço, que latejava. O que mais me incomodou foi “o que aconteceria dali pra frente?”
O problema seria passar pelo portão sem que os porteiros me vissem, banhado em
menstruação. Acelerar o passo era a única chance.
— Ei! — chamou o porteiro, quando passei. Merda.
Sem me virar, perguntei:
— O que foi?
— O senhor está sangrando.
Olhei de rabo de olho para o chão, todo marcado de vermelho. Meus tênis já não tinham
outra cor.
— Tudo bem, só me cortei.
Continuei meu caminho, apressado, fugindo da análise dele. Ana estava no táxi mais
próximo, no banco de trás e ao me ver chegando, o motorista se precipitou:
— Não vai sujar meu banco não, né?!
— Eu te pago o dobro.
Ele calou a boca, voltando para seu lugar. Bati a porta com força.
— Está bem? — perguntei para Ana.
— A-acho que sim. — gaguejou. — Você está sangrando.
— Não, está tudo bem. Vou te deixar em casa e irei ao hospital.
— Em casa, Éron? Eu não tenho casa. Eu nunca tive.
— Agora tem. — sorri, abraçando-a de leve.
Os cortes no peito começaram a arder quando falei o destino para o motorista. A viagem
foi calada, até minha casa. Pedi para que o taxista aguardasse enquanto eu a deixava lá
dentro. Meus pais não estavam, porém eu não ligava para a reação. Ela estava bem, era o que
valia.
— Acha que ela vai chamar a polícia, Éron? — Ana me perguntou, enquanto eu
destrancava a porta do quarto de hóspedes, que servia como porão.
— Ela não é louca, perderia sua guarda. E ainda veria o Sol nascer quadrado. Esse quarto a
gente ajeita, vai ser o seu. Até lá, pode dormir no meu.
— Eu quero ir contigo ao hospital. — ela estava verde de preocupação.
— Eu estou bem. Fique aqui.
— O que eu direi ao seus pais, quando chegarem? Por favor, me deixe ir com você.
— Se te virem assim no hospital, vai dar merda. Deixe de ser teimosa, fiquei aqui.
Ela concordou, cabisbaixa. No caminho para o Hospital Geral de Dourado, liguei para
minha mãe. Só soube fazer perguntas idiotas, então desliguei na cara dela, de saco cheio.
Deixei duas notas de cinquenta para o motorista, acompanhadas pelo meu dedo médio,
levantando num gesto obsceno e muito expressivo. No hospital, me perguntaram como eu
havia feito o corte e onde estavam meus responsáveis, mas eu apenas ignorei. Inventei que
eu tinha caído em cima de um vasinho de vidro na janela, e tudo ocorreu bem. Ou eu achei
que sim. Levei alguns pontos no peito, em cinco cortes pequenos. Na cabeça nenhum, havia
sido apenas um arranhão.
Minha mãe chegou uma hora depois, ofegante.
— Éron, o que aconteceu? Você está bem?
— Eu estou melhor, mãe.
— Pelo amor de Deus, me diz o que houve!
— Mãe, sem surtar, ok? — ela respirou. — Eu te conto em casa, só me tire daqui.
Afobada, foi assinar a papelada. Em seu carro, o silêncio dominou o percurso para nossa
casa, até eu quebrar o gelo.
— Uma amiga vai morar com a gente por algum tempo.
Com o susto repentino, perdeu o controle sobre o carro por um instante, quase batendo
no motoqueiro que passava ao nosso lado.
— O quê?!
— A mãe dela a espancou! O que você queria que eu fizesse?
— Éron, isso não é problema seu! Ela deve fazer por onde.
— Nossa, então existe razão para puxar alguém pelos cabelos e encher de porrada? Ser
acertado por um vaso de porcelana na cabeça e um gato chinês da sorte foi por que eu
mereci, mãe? Ajudar alguém é crime?! Permitir tortura é legal?!
— Eu não disse isso!
— Não com essas palavras! É por causa de gente como você, como a mãe da Ana e como o
taxista que o mundo é a merda que é!
— Olha as suas palavras, Ér —
— Não enche, mãe. Ela vai ficar lá, querendo ou não.
— Não temos espaço para mais um! — ela estava à beira de gritar comigo.
— Não temos?! — agora era eu quem estava levantando o tom de voz. — Pro Hugo teve
espaço, né?! Ninguém considerou a minha maldita opinião, então é a minha maldita vez de
não considerar a de vocês! E se não gostarem, podem me expulsar, porque eu vou ficar com
ela até que esses problemas sejam resolvidos!
Minha mãe desistiu de discutir, provavelmente por estar sem argumento ou por pela
reflexão com sua injustiça. Talvez ambos. Quando chegamos, desci do carro calado. O efeito
da anestesia estava passando e a ardência vinha com tudo em meu peito. Minha cabeça doía
demais. Andei com urgência para o meu quarto e encontrei Ana dormindo, como um anjo
sobre minha cama. Na hora, eu não sabia se o que eu sentia era alívio ou tristeza por ela estar
passando por tudo aquilo. Ela não merecia.
Fechei a porta devagar. Sentados em volta da mesa da sala de jantar que pouco usávamos,
eu e minha mãe esperamos o meu pai chegar pela noite vazia. Apenas a luz da luminária,
suspensa acima da mesa, nos tornava visíveis.
— O que está acontecendo? — ele perguntou, ao passar pela porta. — Parece reunião do
CSI.
Expliquei toda a história para eles, evitando o fato de que Ana era minha ficante, para não
gerar preocupações sexuais desnecessárias.
— Temos de chamar a polícia. Essa mulher não pode sair assim, sem sofrer nada. — meu
pai reclamou. Pela primeira vez senti orgulho daquela brilhante cabeça careca.
— Te garanto que ela deve estar com mais dores do que eu, agora. — ironizei para
quebrar a tensão, mas o que ganhei foram olhares de tédio.
— Eu concordo com seu pai. A polícia tem que resolver esse caso. E você se defendeu,
não vai sofrer nada de mais. E a temos como testemunha.
— Não estão esquecendo que é ela quem deve decidir isso? — ressaltei. Eles se
entreolharam. — Vou perguntar para Ana assim que ela acordar. Está exausta.
— Então o faça. — meu pai se levantou. — Estaremos esperando.
Antes que ele saísse, eu joguei mais uma verdade no ventilador:
— Engraçado como a gente só se reúne aqui, nessa sala, quando uma merda acontece.
Nunca para comemorarmos.
Eles sentiram o peso de minhas palavras. Enquanto a gravidade agia, me levantei e passei
por meu pai, fechando a porta atrás de mim. Bati de leve na porta de meu quarto três vezes.
Ana estava acordada, sentada na ponta da cama, admirando o vazio.
— Oi, Éron.
Entrei e fechei a porta atrás de mim.
— Se sente melhor? Quer um banho?
— Me sinto melhor. Eu não quero tomar banho. Eu só quero ficar aqui. Como foi no
hospital?
Me sentei ao seu lado.
— Alguns pontos no peito, nada muito sério. Eu só preciso trocar essa camisa horrível de
hospital. — uma pequena pausa. — Preciso te perguntar uma coisa. Sei que é cedo, mas é
preciso.
— Quer saber se eu quero denunciar minha mãe. — concordei com a cabeça. — Sabe, eu
estava pensando sobre isso. Todos esses anos... eu só aguentava porque estávamos
acomodadas àquilo. Você me acordou, Éron. Me mostrou que minha vida não tem de ser
como estava sendo, que eu posso fazer mais, eu mereço mais. — mais uma pausa. — A minha
resposta é sim. Estou pronta pra isso.
Dei um sorriso de lado e a abracei, gemendo um pouco por causa da dor. Agora era
preciso preparar o emocional para o cabo de guerra. Mas antes:
— Ana, e o seu pai? — ela me olhou, surpresa. — O que aconteceu com ele?
— Não falo com meu pai há muito tempo. Ele não aguentou minha mãe e foi embora.
— Sabe que sua mãe vai perder a guarda, e se você não ficar com seu pai, eu não sei pra
onde vão te mandar...
Ela entendeu o que quis dizer.
— Vamos dar um passo de cada vez. — disse ela, mirando o vazio.
Me ergui.
— Vou tomar um ar. Qualquer coisa, estou na rua. Meus pais já sabem que você vai ficar
aqui, e estão de boa com isso.
Ela agradeceu com os olhos. Peguei meus fones de ouvido e caminhei através do gramado
exterior. A noite estava estrelada e fresca, com uma leve brisa vinda da praia.
Acompanhando meus passos, a música M62 Song, da banda Doves me trazia melancolia. O
sentimento ruim que eu senti à tarde poderia ter sido sobre Ana e sua mãe, mas ainda estava
comigo, não tinha ido embora. Foi quando meu celular vibrou, e tudo ficou claro.
— Alô? — atendi, sem olhar quem era.
— Éron, é o Hugo. Eu estou voltando.
E então a sensação ruim se confirmou.
Episódio Cinco
O Diabo Veste Jeans

A
acordei às sete da manhã. Não tinha dormido direito durante toda a semana que
passou por causa da maldita ligação. Eu não estava pronto pra nada. Nada
mesmo.
— Gato, você quer mesmo limpar esse quarto? — me perguntou Ana, pela terceira vez.
Ela era do tipo que acordava quando alguém perto dela acordava também. Tá, é mentira. Ela
dormia até meio-dia, mas naquela manhã sentiu minha vibe e acordou também. — Você não
pode mover essas caixas com os pontos aí...
— Eu e minha mãe iremos ao hospital amanhã pra ver se já podem tirar esses remendos,
então significa que eu estou bem.
— É, mas olhe esse quarto.
Era brutalmente bizarra a quantidade de caixas e trecos colocados no nosso antigo quarto
de hóspedes, que nunca foi antigo por quase nunca ter sido usado como um quarto. Servia
mais como um depósito de entulho. Saber que Hugo teria de dormir no mesmo quarto que
eu, não me agradava. Nem era drama de minha parte ou medo, e sim algo como nojo ou
estresse. E, além de tudo, eu tinha em Ana a amiga que eu podia beijar.
— Vai me ajudar ou não? — era a pergunta final.
— Óbvio que vou, mas acho que você deve ir com calma.
— Xiu. — brinquei. — Ajude mais, fale menos. Toma.
Entreguei uma máscara para que ela não respirasse poeira. Coloquei a minha e comecei
pelas caixas de cima, as menores. Eu evitava falar, mas Ana tinha um problema sério com
silêncio.
— Então, esse Hugo é o mesmo cara que você me falou no réveillon, correto?
— É. — monossilábico é estilo de vida.
— E você não gosta mais dele, né?
— É.
— E ele te incomoda?
— Arrã.
— E você —
— Sabe o que eu não pensei? — notei, interrompendo-a propositalmente. — Eu não sei
onde colocar essas caixas.
Ana me olhou desapontada, não sei se foi pela interrupção e falta de ânimo pra falar dos
meus problemas sentimentais ou pela burrice de ambos não terem pensado num outro local
para as caixas.
— Veja o que tem dentro delas. — ela deu a ideia. — Dependendo do que for, jogue fora.
— Já entendi o porquê de estar me perguntando esse monte de coisas. — me sentei em
cima de uma caixa grande. — Está tentando não pensar na sua mãe, né?
— Bingo. — ela se sentou ao meu lado.
— Está tudo bem agora. Seu pai e você estão entrando numa boa, sua mãe vai ser
julgada... você fez o que tinha de fazer.
— Eu sei, eu sei. Eu só acho que estou com medo de começar uma nova vida.
— O que quer dizer?
— Meu pai mora em Niterói, Éron. Eu vou começar tudo de novo.
— E isso não é bom?
Ela não respondeu. Óbvio que o motivo de sua relutância era eu. Tínhamos passado por
um turbilhão de emoções juntos e eu fui o cara que a abrigou. A minha casa era dela.
Compramos novas roupas, sua própria toalha, sua própria escova de dentes... Como eu tinha
dito, ela era a amiga que eu podia beijar, mas mesmo assim era a minha “namorada
informal”, porque ninguém perguntou a ninguém se um queria namorar o outro. Como se
fosse preciso.
— Éron, eu pedi aos seus pais que não te contassem, pra evitar sofrimento, mas ficou
decidido que eu vou para a casa do meu pai amanhã.
A surpresa foi interior, com meu coração estalando.
— Amanhã? — coincidentemente, era o dia que Hugo ia chegar. Maravilha, vamos
louvar. — Por que a pressa?
— A juíza achou melhor. Eu concordei. Não posso ficar vivendo às custas de seus pais. E
quanto mais cedo eu recomeçar, acho que menos dor eu vou sentir.
Um beijo em seus lábios, dos mais carinhosos que eu já pude dar para um ser humano.
— Tudo bem, você está certa. Acho que —
Fui interrompido quando a caixa cedeu debaixo de nós dois, nos derrubando por cima de
um monte de coisas empoeiradas.
— Que merda! — exclamei, no chão. Ana só ria, daquele jeito que só ela sabia.
Me virei para ver sobre o quê eu havia caído: álbuns e mais álbuns, de capas grossas e
escuras.
— Conseguimos destruir uma caixa! — ela exclamou. — Ai, álbuns.
Ana pegou o de capa vinho. Curioso, eu o observei com ela. Justamente nesse álbum
estavam as fotos de toda a minha família reunida, quando eu era menor. Em uma delas, os
fios louros inconfundíveis se faziam fantasmagoricamente brilhantes.
— Você parece tão triste nessa foto... — ela comentou.
Eu estava. Me lembrei exatamente como fora aquele dia, quando Hugo cuspiu dentro de
minhas luvas roxas preferidas, no inverno. Eu as usava quando a foto foi tirada. Ele sorria, o
mal em seus olhos. O animal nunca prestou.
— É, eu não estava feliz. — fechei o álbum na mão dela. — Quer saber? — Joguei o
álbum dentro do quarto, em algum lugar com mais poeira, puxando-a pelo braço para fora
dali. — Vou deixar o quarto para o Hugo limpar.
— E qual é o motivo de tanta raiva?
— Eu não sou empregado dele.
Bati a porta com força, ao mesmo tempo em que a campainha tocou.
— Quem será? — Ana me perguntou.
— Vou abrir. — murmurei, imaginando uma possível e desagradável resposta.
Com a mão na maçaneta, girei, com o coração batendo mais rápido que um tambor.
— Bom dia! — exclamou a gorda mulher de coque e vestido longo, que ia até o chão,
cobrindo todo o seu corpo, inclusive seus braços e pescoço. — Gostaria de dar uma
palavrinha com o senhor.
— Sobre...? — levantei uma sobrancelha. Me senti um imbecil.
— Sou uma Testemunha de Jeová e gostaria de —
— Tchau. — bati a porta na cara da mulher.
— Nossa, que cruel, Éron. — afirmou Ana. — Só porque é ateu, não precisa ser tão
grosseiro...
— Não é pelo fato de ela ser uma testemunha de Jeová ou sei lá quem. É pelo fato de ela
quase ter me matado do coração. Vamos esquecer isso.
Quando dei o primeiro passo na direção da cozinha, a campainha tocou de novo. Eu
estava com tanta raiva que poderia tirar os pontos de meu próprio ferimento, emendar e
enforcá-la.
— Eu sou ate —
Parei de falar quando “Ele” estava ali, estacionado na porta, com uma mala em cada mão.
Não, não era Deus. Mas poderia ser. Os cabelos louros mais cintilantes do que já foram, mais
compridos e apontados para os lados. Estava dentro de uma calça jeans perfeitamente
ajustada em suas coxas e uma camiseta branca por baixo da jaqueta xadrez. Seus olhos, tão
mais claros, eram monstruosamente artísticos e encantadores.
— Oi, primo. — ele me cumprimentou, parado.
— Mas que diabos você está fazendo aqui? — tentei ser violento. Sem efeito.
— Surpresa. — ele entrou, com mala e tudo. — Quem é você?
— Eu sou Ana. Sou amiga do Éron.
— Ah, prazer. Sou Hugo. — ele estendeu a mão. Ela retribuiu o gesto. — Vou guardar as
malas.
Caminhando na direção do meu quarto, eu avisei, em tom de tédio:
— Você não vai dormir, aí, Hugo!
— O quê? — ele parou.
— Você vai limpar o quarto de hóspedes. Lá é o seu novo local de repouso.
— Minha tia está de acordo com isso? — ele estava me desafiando.
— Eu não a obedeço, Hugo. Ela não precisa estar “de acordo”.
— Eu não te obedeço, Éron. Eu não preciso estar “de acordo”. — ele sorriu.
— Mas o quarto é meu. E não há espaço pra você. Ana já dorme aí comigo.
— Você é Ana? — ela fez uma careta. Como ele tinha coragem pra ser tão sonso?!
— Caia fora. — o empurrei na direção do quarto dos meus pais. — Coloque seu lixo ali,
no quarto deles. É o dobro do tamanho do meu. E eles não se importarão.
— Éron, qual o motivo pra tanto rancor?
Eu desejei tanto um terremoto... Algo como a terra se abrindo e Hugo caindo para o
fundo infinito do inferno! Sonso era pouco para descrever como era sádico, frio e
mesquinho. Como eu tinha conseguido ficar a fim de um cara como ele?
— Vou ver se a testemunha de Jeová está ali fora. — abri a porta e olhei para todos os
lados.
— Por que, Éron? — coitada da Ana, dentro de um maldito jogo mongolóide.
— Pra ver se ela exorciza o Hugo de volta para o Capeta.
Ele voltou, após colocar as malas no quarto dos meus pais. Ana estava sentada na poltrona
e eu no braço, com aquela cara de tédio que apenas modelos e gente muito rica consegue
fazer. Ela estava surpresa, possivelmente por ver que Hugo não era a pessoa mais normal do
mundo, nem só pela beleza fora do comum.
— Eu tô com fome. — murmurou ele. — Achei que estariam tendo um super café da
manhã, como costumávamos ter quando eu vim pra cá...
— Você veio de surpresa, se não lembra. — Ana estava aprendendo a jogar.
— O que ela faz aqui? — ele a ignorou, perguntando de maneira bruta, para provocar.
— Eu poderia te perguntar a mesma coisa. — devolvi.
Silêncio geral. Se eu não soubesse que o cara encostado na parede da sala era o Hugo,
afirmaria que quase estava com ciúme de Ana. Ah, tá bom.
— Ótimo. — resmungou ele. — Vou me ajeitar pra alguma coisa. Essa troca de fusos me
deixa um confuso e com fome. O que querem comer?
— Eu te ajudo, Hugo. — Ana estava tentando manter uma paz que não precisava existir.
— Se der mole, Ana, ele vai colocar veneno na manteiga. Eu só vou ficar sentado,
olhando.
— E o que vai querer, seu estressadinho? — ele já estava a caminho da cozinha. Ana o
seguiu.
— O que eu quero você não vai saber fazer. — me joguei na cadeira, apoiando meus
cotovelos na mesa da cozinha.
— O que eu faço, primo, eu faço direito. E gostoso. — ele procurava panelas ou
frigideiras, enquanto Ana pegava o queijo, o presunto, a mortadela, manteiga etc.
— Ninguém pegou o pão de hoje? — Ana interrompeu, ao verificar que ninguém pegou o
pão na porta. Foi a nova conquista da família: pagar ao padeiro para que deixasse o pão na
porta durante todos os dias do ano. — Vou lá fora pegar.
Ana saiu, me deixando sozinho com Hugo. Eu não deveria me sentir desconfortável perto
dele, mas sem Ana eu tremia. Alguma coisa dançava dentro de mim como a chama de uma
fogueira, como se um poço sem fundo estivesse no meu estômago. Ele não me olhou.
— Você ainda não me disse o que vai querer.
— Por que está pagando de legal? — cutuquei. — Se sente culpado por alguma coisa?
— E se eu me sentir? — me lançou um rápido olhar.
— Não me leve a mal, mas eu já não acho que você tenha alguma coisa pra fazer por aqui.
Por que, ao invés de atrapalhar minha vida, você não cria uma?
Ele não respondeu. Achou uma frigideira (ou eu sei lá qual era o nome daquela panela
preta) e a lavou.
— O que eu quero, você não sabe fazer. — reafirmei, me levantando.
No corredor, enquanto ia para meu quarto, esbarrei em Ana, que trazia a sacola de pães
na mão.
— Aconteceu alguma coisa? — indagou, preocupada.
— Não. Podem tomar café. Eu vou ficar no quarto.
Ela concordou com a cabeça.
— Tá tudo bem mesmo? — ela sabia que eu estava mal com aquilo.
— A gente conversa depois. Tome seu café.
Me sentei em minha cama, com a porta fechada, e refleti sobre o porquê de eu estar da
maneira que estava. Ficar com Ana era a melhor coisa que estava acontecendo em tempos.
Me sentia entendido, confortável. Quando Hugo colocou o pé na minha casa, é claro que
fiquei surpreso, mas eu não me senti fraco, querendo correr pra ele. Isso era porque eu a
tinha.
Enquanto ela estava na cozinha, comigo e com ele, ela me impedia de sentir as emoções
que senti por ele. Ela era como uma esponja: todos os sentimentos que eu gerava iam pra ela.
Só para ela. Mas quando ela foi buscar os pães, eu comecei a tremer. Meu coração queria
bater mais rápido, começou a me faltar ar...
O que me deixaria com um problema de quase dois metros de altura, era a viagem de
Ana. Ela ia se mudar, para Niterói. A distância não era um problema, claro que não, mas o
problema era ter que aguentar ficar com o Hugo um dia inteiro, durante semanas inteiras,
sem ter vontade de nocauteá-lo com um pedaço de ferro ou sem ter vontade de abraçá-lo
bem forte. Como eu ia me impedir sem ela?
Uma hora inteira se passou desde que eu encontrei Ana no corredor. Uma hora dá pra
tomar o café, um banho e ainda passear com diabos da Tasmânia no Haiti! Mas conhecendo o
Hugo, poderia adivinhar o que ele estava fazendo. E o motivo.
Fui até a cozinha: vazia e limpa, sem um farelo de pão ou faca melada de manteiga na pia.
Uma das minhas sobrancelhas se levantou num movimento instintivo. Passei pela sala e
nada. Então fui ao quarto dos meus pais. Ambos estavam sentados na cama, assistindo a
alguma coisa. Juntos e calados.
— Ok — comecei, num tom de ironia. —, vamos fingir que vocês não estão escondendo
nada de mim e que o Hugo não te convenceu a fazer alguma coisa que você jamais faria.
— Por que acha isso, primo? — Hugo arreganhou aquele sorriso de vitória sádico.
Me aproximei dos dois e olhei em volta deles. Eu sabia que estavam escondendo algo. Eu
sabia que Ana, por mais que soubesse que era algo que eu não aprovaria, estava tentando
fazer com que o imbecil mudasse de ideia. Ao mesmo tempo, ela não conseguia dizer não pra
ele. Pra resistir, era preciso meses de prática da técnica “HUGO, CALA A BOCA, CACETE!”.
— Sério? — soltei, pegando a garrafa de vodka que estava debaixo do travesseiro onde
Ana se apoiava. — Onde arranjou isso, Hugo?
— Por que a culpa sempre tem que ser minha? — que cínico.
— Ah, qual é. O Éron nos conhece. Sabe que eu não traria bebida pra cá porque não
bebo. Só resta você, o primo punk e bissexual. Ou eu diria gay?
— Agora é assim? — ele estava se fazendo de vítima. — Anda espalhando nossas
intimidades?!
— Intimidades? — eu ri, sarcástico. Percebi surpresa no olhar dele ao ouvir minha risada.
Não me esperava tão... resistente. — Onde arranjou isso?
— Isso é porque você mora aqui. — ele se ajeitou no travesseiro novamente, fingindo me
ignorar, olhando para a TV.
— Isso estava aqui em casa?! Impossível.
Totalmente impossível. Eu conhecia a cozinha como ninguém e nós não tínhamos um
bar. E a bebida não era minha, com certeza. Um segredinho sujo de meus pais?
— Pode olhar ali, no canto do quarto, ao lado da mesinha de apoio. Tem um frigobar.
— Frigobar?! — agora sim, eu estava surpreso. E ele gostava disso.
Corri para dar uma olhada. Dentro do frigobar, mais duas garrafas de vodka e três latinhas
de cerveja.
— É sério, Éron. — era Ana. — Alguém anda bebendo por aqui.
Me sentei na cama, desolado, com a vodka na mão. Meu pai já tinha um jeito de
cachaceiro e até acreditava que ele bebia algumas cervejas vez ou outra, mas ter um frigobar
inflamável no próprio quarto era demais. E minha mãe, com toda a certeza do mundo, não
era do tipo de pessoa que se amarrava numa “birita”. Estranho ela compactuar com tal coisa.
Ana, meio que lendo meus pensamentos, se aproximou, se sentando ao meu lado:
— Preocupado?
— Acho que eles estão com algum problema. — comentei, em voz baixa.
— Por que não conversa com eles? Pode jogar a culpa no Hugo.
— O que tem eu? — ele sentou do outro lado.
— Ela disse “pênis de graça”. Tá com fome? — ironizei.
— Sabe, eu tava pensando em algo divertido pra fazer com essa garrafa. O que acham?
Ana não respondeu, o que era uma resposta clara: “topo se você topar, Éron”. E, mais uma
vez, eu me perguntava o porquê de me limitar tanto. Eu podia ficar bêbado, não podia? Se
meus pais enchiam a cara e faziam fuzuê dentro do quarto, por que eu não podia fazer meu
pequeno inferno?
— Qual é a sugestão, Hugo? — ele sorriu.
Minutos depois, estávamos dentro do táxi, indo para a Reserva Florestal de Dourado, com
a maldita garrafa de vodka na bolsa de Ana.
— Maldita sugestão, Hugo. — bufei.
— Quem falou sobre a reserva não fui eu. — ele piscou pra Ana, que não retribuiu. Ele
achou que eu não estivesse vendo.
— Vai ser divertido. — ela forçou um sorriso. — Não precisamos perder a linha, ok? A
gente só precisa —
— Se divertir. — completou Hugo.
Eu era o chato, nerd e cafona dos dois. Mas era o Éron, namorado de Ana, primo
amaldiçoado de um exu chamado Hugo. A minha diversão seria pendurá-lo pelas próprias
tripas numa cruz, encher seu corpo de álcool, arrancar os dedos de seus pés e, por último,
atear-lhe fogo, começando pelo cotoco de dedão. Cheguei a babar.
Descemos no arco de entrada da reserva. O caminho à frente era de terra amarela e muito
seca, cercada de grama verdejante e baixa. Mais no horizonte, árvores delimitavam a trilha
de terra. Passamos pela guarita do guarda sem sermos notados (nem sabíamos se tinha
alguém lá) e seguimos a trilha.
— Acho que a gente deve se meter por essas árvores. Se nos virem com essa garrafa, vão
tirar a gente daqui e vai dar uma merda gigante. — Ana estava preocupada, com razão.
— Vem. — Hugo nos pegou pela mão e nos arrastou árvores adentro. Tudo era verde e
extremamente calmo. A reserva ficava na parte mais remota de Dourado, perto dos
condomínios mais caros da cidade. Era um sobe e desce de morros que me cansava só de
pensar.
— Aqui tá bom, né? — meus pulmões estavam murchos depois de quinze minutos
caminhando.
— Ótimo. — Ana se sentou no tronco de uma árvore que se assemelhava a um banco,
formando um triângulo de “assentos”. Ela largou a mochila à sua frente.
— Vamos beber. — Hugo, é claro.
— Como você consegue ser tão infantil? — ela parecia irritada com o descaso e o ânimo
dele. Era como se nada no mundo fosse importante pra ele, além dele mesmo.
— Infantil? — ele abriu a garrafa facilmente. — Você ainda não viu nada.
— Alguém se lembrou de trazer copos? — perguntei.
Hugo se colocou à minha frente e começou a beber diretamente da garrafa, em goles
diretos. Foram três. Ininterruptos.
— Quem precisa de copos? — ele murmurou, os olhos vermelhos. — Próximo.
Indo contra minha própria vontade, estendi a mão para a garrafa. Se aproximou de mim
sem necessidade, e a pressionou contra o meu peito, dizendo “é sua”, sem emitir som algum,
apenas mexendo os lábios.
Tal frase me lembrou da vez em que bebi na rua com Kevin e Adriele. Tanto os
acontecimentos quanto os erros tinham uma tendência imensa de repetição na minha vida.
Ou talvez, o que eu não resolvia, apenas voltava para encher o meu saco. Meus lábios
tocaram a garrafa e o álcool lavou minha boca e garganta, queimando, dando sede. Mas era
bom. Era reconfortante.
— Sua vez. — passei a garrafa para Ana.
Ela não falou nada, apenas tomou com uma careta. Quando tirou a garrafa da boca, soltou
uma risadinha única, daquelas que eu me deliciava de ouvir.
— Que risada estranha. — zoou Hugo, pegando a garrafa da não dela.
— Pelo menos ela tem uma sincera. — parti em defesa.
— Gatos, relaxem. — ela mexeu na bolsa. — Ao invés de ficarem se atacando, vamos nos
divertir, ok? Eu não quero pensar no amanhã. — ela pegou o celular. — Ter que pensar em
como minha vida vai ser com meu pai é muito tenso.
— Vai ligar pra quem? — Hugo perguntou, depois de tomar mais três goles. Ele não fazia
careta ou coisa do tipo, apenas ingeria, o que me deixou curioso pra saber se ele usava algum
tipo extra de droga, além do álcool. Foi aí que comecei a suspeitar que ele já era muito mais
rodado do que eu.
Ela chegou mais perto de mim, com o celular na mão, e respondeu:
— Pra Pitty.
Ela me beijou com tudo quando começou a tocar 8 ou 80 em seu celular. Eu não sabia se
era a bebida ou se era só o clima do momento, mas estávamos mais selvagens. Ana passou a
perna por cima das minhas e se sentou em meu colo, ainda me beijando com tudo. Sua
cabeça se movimentava para os lados enquanto eu mordia seus lábios devagar. Um beijo
apaixonado, que transbordava segurança.
Parou de me beijar. Abri meus olhos e a encarei. Hugo estava ao seu lado, encarando-a
também. Eu sabia o que ele queria fazer e sabia que o olhar que ela me lançou era um pedido
de permissão. Podia ser o álcool em meu corpo ou a sensação do beijo e do momento, do
clima por estar naquela floresta, cercado apenas por pássaros, árvores, mato e música, mas eu
permiti. Logo, Hugo e Ana estavam colados um no outro, num beijo suave. Ela ainda em
meu colo, mas beijando-o. Era estranho estar como espectador da minha própria namorada
num beijo com o primeiro homem que eu gostei, mas aquilo me parecia aceitável naquele
momento.
Quando menos esperava, a mão de Hugo subiu pela minha nuca, me puxando para perto
dele. Foi quando sua boca se soltou da de Ana e tocou a minha, com força. A bebida se
contorceu no meu estômago, enquanto todo o meu corpo se arrepiava. Não era por prazer ou
medo. Era por familiaridade. Eu conseguia me sentir seguro com seu beijo da mesma forma
que era com Ana e eu sabia que havia sentido tal coisa antes, no nosso primeiro. O que eu
falei sobre repetições?
Outra boca se juntou às nossas. Ana estava ali, ao mesmo tempo com os dois, e os dois ao
mesmo tempo com ela. Era um beijo triplo. Pode me chamar de mentiroso, mas o que estava
acontecendo ali não era putaria, pra mim. Eu estava com excesso de sensações, com o dobro
de intensidade que quando eu estava com um deles separadamente. Era um homem e uma
mulher. Ambos eram meus. Eram o meu equilíbrio naquele momento.
— Esse vai ser o nosso segredo. — comentou Ana, se separando do beijo.
— Eu não sabia que você podia ser tão vadia. — Hugo sorriu, mirando-a. — Agora eu
gosto de você.
Ana devolveu o sorriso, tímida.
— E você, primo, quem diria... — Hugo continuava ácido, mas de certa forma, eu gostava
dele assim. — Existe mesmo um demônio dentro desse rostinho de anjo? — Naquele
momento.
— Qual é? Vocês não vão ficar mudos agora, né? É culpa?
Olhei para Ana, que entendeu perfeitamente o que eu queria dizer. Não estávamos
culpados. Estávamos satisfeitos.
— Só porque você não vai ter o que quer, não significa que estejamos culpados. Muito
pelo contrário. — lancei, pedindo a garrafa para Hugo com um sinal de mão. — Algum de
vocês está bêbado?
— Eu. — Ana levantou a mão, rindo. — Dá pra jogar Dance Dance Revolution no chão,
de tanto que ele se mexe...
— Ótimo, assim fica mais fácil pra eu estuprar você. — Hugo riu.
— Teria de passar por cima do meu cadáver. — brinquei. Eu já não sentia a ponta de
meus dedos. E eu sabia que ia começar a falar besteira.
— Isso a gente dá um jeito. — Hugo chegou tão perto que me deu a impressão de que ia
se deitar em cima de mim. — Há sempre um jeito, primo.
— Por que você não me chama de Éron?
— Por que primo te incomoda tanto? — ele se sentou direito, entre mim e Ana. — Eu
não sei, eu só não gosto de dizer seu nome.
— Uau, que tapa na cara. — Ana gemeu, rindo demasiadamente. Ela estava com álcool
até o cálcio dos ossos.
Hugo não conteve e riu um pouco. A risada, dessa vez, era tão sincera e gostosa que eu
esbocei um sorriso de canto, cerrando meus olhos. Quando Hugo não estava rindo por
sadismo, com toda certeza ele estava: a) fumado b) excitado ou c) bêbado.
— Não é que eu tenha dado um fora... eu só, sei lá, eu não gosto de falar seu nome. — seu
sorriso sumiu, substituído por um olhar tímido de garoto com doze anos, que logo fez
questão de esconder olhando para os lados, naquela imensidão verde da floresta.
O silêncio só não era total porque Ana não parava de rir. Quando ela recuperava o fôlego,
olhava para alguma coisa e ria descontroladamente, como que possuída por um bufão. Eu
tentava manter meu foco, porém estava cada vez mais difícil. O tempo parecia se arrastar, ao
mesmo tempo em que o chão iniciava movimentos ondulares. Eu tinha vontade de levantar,
só que meu corpo não obedecia meus comandos. Então eu coloquei peso nas costas e caí.
Deitado, tudo parecia menos psicodélico, mais tranquilo.
Uma fresta nas folhas das árvores deixava um único feixe de luz acertar meu olho
esquerdo com a precisão de um cirurgião. E aquilo não me incomodava. Então pensei em
tudo ao meu redor. Pensei no tempo que perdi pra conhecer aquela reserva. Pensei no tempo
que perdi lamentando amizades inexistentes e popularidade fútil. Só que eu realizei que esse
tempo perdido não estava perdido, já que eu me lembrava dele como uma lição. Os erros
deixam de ser erros quando se aprende algo deles. Quando há ganho no fim do cálculo, o que
resta é o 100% de acerto. E os outros 200% da dor pra acertar.
— No que está pensando? — Hugo se deixou cair ao meu lado, apoiando a cabeça nas
mãos.
Seu cotovelo dobrado estava tocava meus cabelos. Foi quando eu “despertei” de minhas
conclusões. O silêncio era total, dessa vez. Sem pássaros, sem risadas, sem vento. Eu já nem
sabia quanto tempo havia passado desde que me deitei ali na grama.
— Eu tava pensando nas coisas que tive de enfrentar pra estar aqui hoje, vivendo essa...
essa vida. — minha língua estava mole, então eu parecia um retardado falando.
— Engraçado... eu acho que estava pensando a mesma coisa.
Apesar de sua voz estar praticamente normal, eu sabia que ele não estava sóbrio. Era
impossível.
— Ana...
— Ela dormiu, Éron...
— Você acabou de me chamar de Éron! — exclamei, me sentindo o dono da razão.
— E daí?
— Você disse que... que não gosta de me chamar de Éron.
— E eu não gosto.
— Posso saber o motivo?
Ele suspirou. Perdi a noção do tempo até ele responder:
— Eu não sou esse saco de gelo que você acha, Éron. Eu tenho... eu tenho medos. Medo
de coisas que você não conseguiria entender, porque nem eu mesmo entendo. Eu tenho
medo de perder a minha individualidade, de perder a minha capacidade de... sei lá, eu acho
que tô bêbado. — ele quase se engasgou ao rir, até ficar sério de novo: — Eu não quero me
tornar dependente das pessoas.
Uma pequena pausa.
— Mas faz com que elas se tornem dependentes de você. — minhas palavras se soltaram
de minha boca solenemente.
— Eu acho que te devo desculpas.
— Desculpas aceitas.
— Eu não te pedi desculpas. Eu disse que te devo. — assinalou ele.
— Nossa, só um cavalo é capaz de quebrar um momento tão íntimo como esse.
Ele riu pra si.
— Sabe, Hugo? — me virei para encará-lo. Ele fez o mesmo, suas bochechas rubras. —
Acho que essa é a conversa mais sincera que já tivemos.
— Acho... — ele voltou a olhar para o céu através das copas das árvores. — acho que é a
nossa única conversa.
O analisei pela última vez e voltei a olhar o céu também. O raio de Sol que me atingia já
não acertava mais meu olho. Quanto tempo se passou ou algum sinal de que aquela conversa
fora real desapareceu quando dormi, na grama, ao lado das duas pessoas no mundo que
foram capazes de me fazer sentir algo até mais forte do que eu sentia pelos meus pais ou
mesmo pela Helen. Eles eram muito mais.

— Já estava na hora de acordar, dorminhoco. — disse Ana, assim que abri meus olhos.
Estávamos no banco de trás de um táxi.
— Estamos... — levei a mão à testa, que latejava. — indo pra casa?
— Estamos. — Hugo estava ao lado de Ana. Os dois pareciam bem. — Já está com
ressaca?
— Não... minha cabeça dói. — Ana e Hugo seguraram uma risada.
— O que aconteceu enquanto eu dormia?! — eu estava com medo da resposta, mas antes
a cabeça doendo do que outra parte do corpo.
— Hugo te trouxe até o táxi no colo e tal, mas enquanto desviávamos de galhos na
floresta, ele esqueceu da sua cabeça e um galho te acertou gostoso.
Eu ri.
— Achei que ia querer explodir meus olhos. — Hugo estava surpreso por eu não ter
soltado uma de minhas ameaças que nunca se realizavam.
— Não, está tudo bem. Eu só preciso de um banho.
Ana agarrou meu braço, sorrindo. Eu a abracei, e ficamos assim até chegarmos em casa. Já
havia escurecido e as luzes estavam acesas, sinal de que minha mãe fazia alguma coisa para
comermos.
Hugo ficou do lado de fora, acertando as contas com o taxista, enquanto eu e Ana
entrávamos em casa, sendo recebidos carinhosamente pela minha mãe:
— Onde diabos vocês estavam até essa hora?!
— Eu também te amo, mãe. — eu e Ana a evitamos na cara de pau, passando direto. —
Hugo vai te explicar tudo, ok?
Eu e ela rimos antes de nos beijarmos, no caminho para o meu quarto.
— Eu sabia que você não ia deixar a falta de cuidado dele em branco. — ela entendeu a
mensagem.
Ana foi a primeira a tomar banho. Em seguida eu, é claro. Por último Hugo, que
contornou a situação toda com a minha mãe e estava na cozinha experimentando os bolinhos
de arroz dela. Ele era um especialista.
— Está tudo bem? — Ana se sentou ao meu lado. Estávamos de pijama, na beira de minha
cama, olhando para o vazio da TV ligada. Eu podia contar nos dedos as vezes que ela foi
usada.
— Não posso mentir. — sacudi a cabeça negativamente. — Você vai embora amanhã,
Ana. O que eu vou fazer sem você aqui?
Ela suspirou. Não como se estivesse de saco cheio, mas de paixão, de paciência.
— Éron, apenas continue seu caminho. Não está sendo fácil pra mim também.
— Mas como explicar essa distância? Vai me deixar um buraco, sabe? Eu tenho tantas
coisas pra te mostrar, todo um mundo pra conhecer com você...
Ela pegou minhas mãos com as dela, bem menores, olhou em meus olhos e me abraçou
em seguida.
— Eu só vou embora tranquila porque sei que você não está sozinho. Por mais que você
ainda não enxergue, você tem alguém que pode cuidar de você. Alguém que gosta tanto de
você quanto eu, mas que tem tanto medo que não se abre, não se permite.
Fiquei sem entender muito bem, mas captei a mensagem. Entendi que era tão difícil para
ela, com aqueles olhos marejados, assim como era pra mim. Tínhamos um elo, uma união
fora do comum que, fisicamente, ia se romper. Mas o que sentimos um pelo outro não iria
acabar tão facilmente.
— Quem sabe a gente não se vê novamente? A vida não acaba aqui. — ela sorriu, mesmo
querendo chorar.
Eu a abracei com força, contendo as minhas lágrimas. Fechei os olhos e tentei acordar de
um pesadelo. Mas não, não era um pesadelo. E não era um erro. Eu aprendi uma lição com
aquela mulher. Eu acertei comigo e com ela. O que tínhamos pra evoluir, estava evoluído. E
completo.
— Eu te amo. — soltamos em uníssono, selando tais palavras com um beijo tão forte, tão
marcante e úmido que me senti beijado pela primeira vez. Amando pela primeira vez.
— Posso entrar? — pediu Hugo, educado.
Confirmamos com a cabeça.
— Trouxe bolinhos de arroz.
Ana fez desaparecer a lágrima que descia pelo seu rosto com as costas da mão e sorriu.
Nós três nos sentamos na cama, encostados na cabeceira, assistindo ao clipe de Somewhere
Only We Know, da banda Keane, que havia acabado de começar. E que já poderia estar no
fim.
Episódio Seis
Ponte Para Terapia

U
ma movimentação fora do comum me despertou, no dia seguinte. Passei meus
olhos por todo o quarto e lá estava Hugo, tirando as roupas de suas malas e
acomodando-as em meu armário.
— O que você tá fazendo? Cadê a Ana? — a segunda pergunta era a prioridade.
— Eu tô me mudando pro seu quarto, primo. E ela já foi. São duas da tarde e ela preferiu
não te chamar. Disse que ia doer e blá, blá, blá.
Me sentei na beira da cama, coçando a cabeça.
— Eu já tô sentindo falta...
Ele me ignorou. Continuei, mal me importando se ele estava ou não prestando atenção:
— Nós praticamente casamos nesse tempo em que ela esteve aqui comigo. Dormíamos
juntos, comíamos juntos, acordávamos juntos... nossa, como eu sinto falta.
— Se você acha que viveu uma vida de casado, experimente engravidar alguém. —
sadismo sincero na língua. Eu captei algo no ar.
— Hugo...
— Primo. — ele não sorriu.
Franzi o cenho de maneira amável, como um “você pode confiar em mim, mas cuidado
com o que vai dizer”. Largou algumas mudas de volta na mala e se arrastou, praticamente,
para se sentar ao meu lado.
— É aquela coisa toda da minha tia. — ele começou. — Não da sua mãe, mas da minha.
Sabe, querem porque querem que eu tenha uma namorada. Brasileira. Eu não tenho muitos
amigos daqui e não curto a galera velha que anda com eles. — ele suspirou, quase
imparcialmente. — Aí me apresentaram Alina, meio brasileira, meio francesa. Da minha
idade. Menos solitária do que eu. Ela é uma garota bonita, então não demorou pra que a
gente terminasse na cama. Hoje ela ligou pra cá. Eu vou ser pai.
Ele se forçava a me encarar. Eu via em seus olhos a vergonha do que me contava. Ele
sabia que estava ferrado. Sabia que ele estava arrependido. O problema era que ele não
acreditava nisso.
— Camisinha existe. — assinalei, como um bom pai. A ficha caía lentamente.
— Você vai saber quando fizer: a camisinha é a última coisa que você pensa em colocar
em algum lugar.
Eu não tinha argumentos ou cabeça pra pensar em algo. Na verdade, eu não queria. Aos
poucos eu fui sentindo a realidade pesar sobre mim. O analisava rapidamente a cada
segundo. Ele namorava o chão do quarto.
— O que vai fazer? — tentei controlar a raiva que iniciava o processo de crescimento.
— Em relação a...?
— Seu filho. Sua futura esposa.
— Sei lá.
Saltou da cama para a mala. Tentou guardar as mudas de roupa, mas não conseguiu, e
arremessou-as para todos os lados, sem emitir som algum. Que tipo de pessoa era Hugo? O
que ele queria, afinal? Qual era o motivo de ele ser tão “errado”? Já nem tentava perder meu
tempo tentando compreender aquela cabeça confusa. Eu tinha um buraco negro pra
preencher.
Deixei meu quarto, evitando pensar nele. Consegui. Passei a pensar nela. Ela não era do
tipo de pessoa que iria embora sem se despedir. Não fazia parte da personalidade de Ana.
Mas era compreensível, já que o que tínhamos era forte demais. Ela evitou mais dor para
ambos. “Evitou”.
— Você não tem uma vida profissional pra cuidar? — perguntei à minha mãe, que lia
jornal no balcão da cozinha e tomava café, vestindo apenas pantufas azuis e uma camisola de
seda rosa. Saquei uma garrafa de suco de soja, sabor maçã.
— Não acordei muito bem. E tive de aprontar seu pai para levar Ana para Niterói.
— Isso que é animação. — enchi um copo e logo coloquei na boca. — Parece que hoje
todo mundo acordou broxa.
— Falando em broxa, mandei o Hugo para o seu quarto. — quase cuspi o suco pelo nariz
quando ela ligou “broxa” a “Hugo”. — Tá passando mal?
— Não, não. — engoli às pressas. — Não tem problema. Ele tá se comportando. — é, com
uma criança esperando pra nascer numa garota que ele, provavelmente, só viu uma vez. Ou
melhor: transou uma vez. Acho que gente como ele vai pelo cheiro.
— Aconteceu alguma coisa?
— Além do fato de eu estar meio mal pela partida da Ana? Nada.
Ela voltou os olhos para o jornal. Me virei para a pia e tomei o resto do suco rapidamente.
Larguei o copo e avisei, com uma ideia em mente:
— Eu tô com uma vontade muito grande. Preciso de dinheiro. — ela sorriu, descansou a
caneca no balcão, e ao lado da mesma, abriu a carteira.
— Cuidado. — estendeu as notas de cinquenta e vinte. — Irei à igreja.
Peguei as notas e as enfiei no bolso do pijama. Segundos depois que eu me liguei que
minha mãe havia dito igreja.
— O que você vai fazer numa igreja?
— Rezar. Não é o que se faz numa igreja? — ela mantinha os olhos no jornal. Tomou um
lento gole de café.
— Nossa, há quantos anos você não vai à igreja? Por que isso agora?
Ela descansou a caneca outra vez.
— Eu acho que preciso ir. É algo de dentro.
— Se sente pesada? Culpada? — sim, eu estava me referindo às garrafas de vodka no
frigobar.
Ela não demonstrou nada além do que eu via: uma mãe culta, de camisola.
— Vai gastar o dinheiro, Éron. Eu só preciso rezar.
Mordi o lábio inferior, concordei com a cabeça e caminhei para o quarto de novo, pra
guardar o dinheiro na carteira e pegar algo pra vestir. Quando abro a porta, eu não vejo meu
quarto: eu vejo o Massacre da Serra Elétrica 2000, estrelando Hugo. Todas as minhas roupas,
e até o que provavelmente não era meu, descansavam no chão, na cama e em tudo quanto
era espaço. No meio de toda a bagunça que meu quarto se transformou, sentado no cantinho
do chão, o nosso protagonista.
Fechei a porta sem fazer alarde, tranquei-a, para que minha mãe não interrompesse, e
cheguei perto dele da forma mais pacífica do mundo. Dentro de mim, Jason Voorhees já
segurava uma machete bem afiada. Só que eu não ia morrer se tentasse entender o lado
mongolóide de meu primo.
— Hugo, que merda é essa? — eu ainda estava calmo. Uma palavrão mantinha a minha
calmaria, mas tornava tudo muito mais expressivo.
— Me desculpe. Eu vou guardar depois.
Ele estava envergonhado. É, quando Hugo não encarava alguém com um sorriso safado
no rosto e um ar de ditador do sexo, ele estava envergonhado. De uma hora pra outra, a
calma falsificada se tornou real. Fui tomado por certa compaixão. Suspirei e me sentei ao seu
lado.
— Você está se cagando de medo. — afirmei.
Ele não me respondeu, mas arremessou minha cueca do Mickey Mouse para o outro lado
do quarto. Jason sacou a faca de novo.
— Essa é minha cueca preferida. — avisei.
— Eu vou guardar. — ele abaixou a cabeça, em seguida.
— Ao invés de gastar sua tensão em minhas roupas, por que não faz algo mais produtivo?
Tipo pintura?
— A única pintura que eu faria agora seria pichação no quarto daquela vaca. Com o
sangue dela. — se ele começasse a babar espumar, eu ia sair correndo, pegar uma frigideira e
descer o cacete na cabeça dele. Mas eu estava vacinado. Eu conhecia a peça. E mais uma vez,
sem poder explicar, eu sabia o que faltava pra ele.
Hugo fazia parte do grupo de pessoas que são tão complexadas, que ao invés de possuírem
um distúrbio psicológico, possuíam uma lista inteira de demências. Ou então um encosto
muito poderoso. Eu não sabia muito da vida dele na França e nem como ele lidava com
aquilo, mas crescer sem os pais deveria ter sido uma missão quase impossível. Mesmo com os
meus vivos, me senti sem ambos durante muitos anos de minha vida.
— Já reparou que a raiva é sua única amiga? — estava na hora de ser cruel para
demonstrar carinho. Por mais que eu negasse, eu sentia carinho por ele. Carinho derivado de
pena, mas sentia.
— Como se isso fosse importante. — era aquele discurso frio pra armar defesa. Arrã.
— Você age sem pensar, se deixa levar por essa vibe de fazer as coisas agora, pra não ficar
pensando no futuro ou olhar pra dentro de si mesmo e perceber que aquilo é errado, que
deveria ser bem pensado —
— Obrigado, mas eu não preciso de um pai, Éron.
— Realmente. — concordei. — Você precisa de um amigo.
O peguei de surpresa. Foi incrível ver seus olhos brilharem sem intenção. Foi incrível eu
me pegar sorrindo pra ele. Me levantei com um pulo e estendi minhas mãos.
— Vem, Hugo. Eu quero te levar num lugar.
— Pra on —
— Vem. — interrompi. — Você precisa de ar.
— Suas roup —
— Vem. — mexi os dedos da palma da mão, chamando-o.
Atendeu e me deu as suas. O puxei do chão com força, mas perdi o equilíbrio quando meu
chinelo agarrou em algumas das peças do chão, nos levando a cair em cima da cama. Seu
corpo sobre o meu e o impacto quase me fizeram perder o ar.
— Tá tudo bem? — perguntou, ainda em cima de mim.
— Eu tô... sem ar! — exclamei. Ele rolou para o lado e voltou a me encarar.
— Machucou? Juro que ouvi alguma coisa quebrando...
— Eu também... ai, peraí. — enfiei minha mão por baixo da minha bunda e peguei o meu
celular. A tela exterior estava partida. — Que merda...
— Desculpa... se não fosse por mim a gente nem teria caído...
Hugo pedindo desculpas e sendo gentil? Quase peguei a minha câmera para fazer com que
ele repetisse e eu gravasse. Ele era muito mais legal quando estava triste.
— Não... tudo bem. — joguei o celular no chão. — Adeus Samsung, olá Apple.
Ambos rimos um pouco. Continuei deitado ali, aproveitando a situação pra relaxar um
pouco. Ele continuou me encarando, também rindo. Quando me sentei de frente para ele,
resolvi perguntar:
— Algo errado? — revirei meus olhos. Ele ia ter um filho! É claro que algo estava errado!
— Sei lá... você tem sido legal comigo.
— Você também. Mas eu sei que isso vai acabar assim que você ficar melhor. Então eu
vou aproveitar ao máximo.
Peguei o embalo e me levantei da cama. Antes de dar o primeiro passo pra procurar o que
vestir, ele me segurou pelo braço, ainda sentado.
— Você... — ele ia me dizer algo. Ele ia. Algo que ia fazer toda a diferença no seu modo
de me tratar. Algo dele, de dentro da alma. Algo que eu considerava extremamente
importante saber, mas não fazia ideia do que poderia ser. — precisa de ajuda pra achar
alguma roupa? — Mas ele não me disse nada. — Eu lembro de ter jogado algumas peças em
certos lugares...
— Não. — eu ri da minha ingenuidade. — Pode deixar que eu acho alguma coisa.
Procure também, e vá tomar banho agora. Minha mãe nem está no quarto, então você usa o
banheiro deles.
Não trocamos palavras enquanto procurávamos peças. Não que a situação estivesse tensa,
mas não tínhamos muito que falar. Mas tinha um lugar que eu precisava muito ir. Antes,
sozinho, lembrar e me martirizar sobre Ana. Mas Hugo meio que fez parte, de alguma forma.
E ele precisava se martirizar também. Por que não atuar como masoquistas num mesmo
lugar?
Em menos de uma hora estávamos prontos.
— Vamos precisar do carro da sua mãe? — perguntou Hugo, no meu quarto bagunçado.
— Nossa, quanta intimidade. — ele me olhou sem entender. — Não, a gente não vai
precisar. Vamos de táxi. Ou prefere ônibus?
— Ônibus? Pra onde estamos indo?
O ignorei totalmente e peguei mais algumas notas em bolsos de calças. Dava pra ir, voltar
e comer tranquilamente. E Hugo nunca saía sem dinheiro. Me indagava quanto ele trazia nas
viagens, já que eu não o via sacar reais ou qualquer nota. Traficante não seria uma surpresa.
— Eu acho melhor vocês irem com o meu carro. — minha mãe apareceu na porta, ainda
com a camisola. Alguma coisa estava muito errada com ela pelo fato de ser quase quatro da
tarde e ela ainda estar com roupas de dormir. Igreja, cadê você?
— Mas o Hugo não sabe dirigir pelo Rio de Janeiro.
— Pra isso existe o GPS, Éron. — minha mãe estava genial, indo contra minhas ideias.
— É, mas se eu usar o GPS, ele vai saber o local. Dãr.
— Não se você programar em português e mudar o idioma depois pra alemão. Seus cursos
devem ter servido pra alguma coisa. — ela jogou o cartão do carro para Hugo, que o pegou
no ar. — E quero essa bagunça arrumada quando voltarem. Vocês, meninos, parecem que se
arrumam dentro de um furacão...
Quando minha mãe saiu do quarto, Hugo estendeu o cartão pra mim.
— Programe o GPS. Prometo que não vou tentar espiar ou coisa do tipo. Se é uma
surpresa, é uma surpresa.
Levantei a sobrancelha direita e aceitei. Depois de programar, mudei o idioma para o
único que eu entendia. Claro, porque não poderia ser inglês (porque todo mundo sabe falar
inglês), francês (ele morava na França) ou o próprio português. Alemão eu apostei que ele
não sabia. Ninguém sabe alemão.
Assim que o carro começou a se mover, coloquei o álbum Lucky, da banda Nada Surf,
para tocar.
— Que banda é essa? — ele perguntou.
— Nada Surf. Uma das melhores. — respondi com orgulho.
Hugo esperou a primeira música acabar pra dar sua opinião:
— Não achei grande coisa.
— Cala a boca e escuta. — mudei para a sétima música. — Isso é divino.
— Divino? — ele riu.
— Olha, a culpa é sua por eu estar sem celular pra escutar minhas músicas preso num
maravilhoso mundo encantado proporcionado por fones de ouvido.
— Foi você que caiu.
— Foi você que bagunçou o quarto. Consequentemente, por eu ter tropeçado numa peça
de roupa jogada no chão por sua pessoa, foi sua culpa eu ter caído e destruído o meu querido
celular.
Mais duas músicas até ele falar novamente:
— Tá, você tem razão. A culpa foi minha.
Concordei, mesmo que de brincadeira. A culpa não foi de ninguém. Mas percebi certo
tom brincalhão em sua voz.
— Vou compensar hoje, ok?
— Ah é? — eu ri. — Como?
— Surpresa. — ele piscou pra mim.
Sacudi a cabeça negativamente, sorrindo. O dia estava sendo agradável. Menos uma dor
pra suportar sozinho.
Coloquei Whose Authority pra tocar quando já estávamos perto. Na verdade, perto
demais.
— Um bosque? — ele riu quando leu Bosque da Barra no arco de entrada, que dava para o
estacionamento. Estávamos na Barra da Tijuca. E no Bosque da Barra. — Por que não
trouxemos uma cesta de piquenique também?
— Não seja irônico. Vai valer a pena.
— Espero que sim, porque passar uma hora e pouca ouvindo Nada Surf pra terminar num
bosque me parece estranho. — ele sorriu ao ver minha cara de reprovação. — Eu tô
brincando. Sobre o bosque.
Ignorei totalmente a piada e desci do carro, seguido por ele, que foi resolver assuntos de
estacionamento com o guarda local enquanto eu observava o mapa. Ele veio logo atrás.
— Está com medo de se perder, primo?
— Na verdade eu quero achar um local. Faz tempo que não venho aqui... achei. Vamos.
— O guarda disse que o bosque vai fechar em duas horas.
— Relaxa — bati no peito dele de leve, já caminhando pela trilha de areia e pedrinhas,
contornada por grama e árvores. —, não vamos levar tanto tempo.
Caminhamos pela trilha como duas pessoas completamente normais. Já era um começo.
Flores, verde, micos pulando de galho pra galho, borboletas nos cercando... a natureza era
incrível. E tudo me remetia a um dia gostoso de verão, quando essa estação não era tão
quente. Meus pais em shorts, eu de chapéu e bolsa com suco e sanduíches. Caminhamos pela
mesma trilha, que só ficou mais bonita com o tempo.
Depois de uns cinco minutos andando, avistei o que eu buscava: a gigantesca área
gramada partida por um lindo lago. À nossa frente, uma ponte vermelha. A ponte. Pouco
acima do lago, abraçada por lindas plantas que trepavam em sua madeira. Tão linda quanto
eu lembrava.
— É aqui.
Olhamos ao redor. À nossa frente, no resto da parte gramada, palmeiras de diversos tipos
se agrupavam abaixo da enorme Lua mordida no céu, à luz do fim do dia. Patos boiavam no
lago, seguindo a nossa direção. O azul do alto estava harmoniosamente saturado, sem nuvem
alguma. Era como uma daquelas fotos tiradas pelas agências de viagens, de pontos turísticos
de Nárnia.
— Uau. — foi tudo que Hugo conseguiu dizer, e foi o que me despertou do
“encantamento”. A temperatura tinha caído de maneira anormal. Senti frio.
— Eu te disse que valeria.
— Nossa, isso é... uau. — ele mirava a Lua e a paisagem à nossa frente, maravilhado. —
Eu já me sinto bem melhor. É como se eu não —
— Precisasse pensar. — completei. — É. Esse lugar serve pra isso. Não precisamos pensar
em nada.
Ele tocou meu ombro.
— Está com frio, primo?
— Não. — menti.
— Você está tremendo.
Eu estava mesmo. Havia apenas uma leve brisa gélida me envolvendo, mas já era
suficiente pra eu tremer e ficar todo arrepiado. A camisa azul de malha não ia me proteger
do frio. E ninguém pensou que um casaco poderia ser útil ali. Nem mesmo Hugo estava de
casaco.
— Vem cá. — falou, se aproximando para me abraçar de lado.
— Ei, o que é isso? — relutei.
— Não leve a mal. Eu só vou esquentar você. — ele estava falando sério. Sem ironias,
piadas ou maldade. Ele estava falando sério.
— O que me deixa desconfortável. — me apoiei nos braços da ponte e abaixei a cabeça.
Hugo se aproximou de mim e repousou a mão em minhas costas.
— Você me disse que ia aproveitar ao máximo esse dia comigo. Não que eu esteja
querendo levar toda essa... sei lá, magia pra um outro nível, mas é que não estamos apenas
como Hugo e Éron aqui. Temos problemas e monstros pra curar por dentro. E eles voltarão
quando a gente colocar os pés em casa, você sabe.
— Em qual ponto quer chegar?
— Você não é o único que quer aproveitar esse dia. Eu só... merda. — ele ia falar o que
queria desde que me puxou pelo braço, no quarto. Ele precisava falar. Mas ele não conseguia.
— Não precisa dizer. — fiquei de pé novamente, o encarando. — Eu entendi. É a nossa
paz. Amanhã devemos voltar àquela relação conturbada que temos. Mas hoje... hoje é
diferente. Eu sei o que quer dizer. E sei como é difícil pra você dizer isso. Só não quero que
você ache —
— Eu não acho mais nada. Não por hoje.
Ele estendeu o braço novamente. Dessa vez, aceitei o abraço. Ficamos juntos por vários
minutos, até eu me sentir mais aquecido. Era totalmente estranho estar tendo um dia lindo
com o Diabo em pessoa, mas eu não precisava entender tudo. Eu podia me dar a chance de
apenas sentir o que ele estava me passando e tentar me curar da dor de estar sem Ana. Ia
trazer o melhor dos dois. Então meus braços envolveram-no.
Acabamos sentados na grama, abraçados, do outro lado da ponte, com a escuridão caindo.
O guarda passou de bicicleta avisando que já estavam fechando o bosque. Então caminhamos
para fora, ainda grudados. Era o melhor calor do mundo.
— Do jeito que tá, até eu suporto uma viagem ao som de Nada Surf.
Dei uma leve cotovelada em sua costela.
— Olha lá como fala, Hugo.
Rimos.
— Não, sério. A gente podia comer alguma coisa antes de pegar a estrada. Não tem um
shopping por aqui?
— Tem o Barra Shopping aqui perto. E se, ao invés de irmos pra lá, a gente passasse num
drive-thru, pegasse algumas esfihas e partíssemos pra praia? A gente não vai pegar o pôr do
Sol, mas caminhar numa areia diferente da de Dourado é uma boa.
— Tanto faz. Vamos pra lá, eu só quero comer.
Quase todos os carros já tinham saído quando deixamos o bosque para trás e seguimos a
estrada para a Praia da Barra. Compramos quinze esfihas de queijo no drive-thru e
estacionamos na parte mais deserta da orla. Mesmo assim, pessoas ainda jogavam vôlei,
pedalavam e caminhavam como se o Sol ainda estivesse acima de nós.
Com o saquinho de esfihas na mão, Hugo desceu do carro. Tirei meus tênis e os deixei no
banco antes de descer.
— Vai de calçado pra areia, Hugo?
Ele franziu o cenho e estendeu o saco de esfihas para mim. Enquanto o segurava, Hugo
tirou seus tênis e continuou sua caminhada, os segurando com a mão esquerda. O
acompanhei até achar um local vazio, menos iluminado pelas luzes dos postes. O mar não
estava muito calmo, o que fazia o som das ondas ser ainda mais relaxante.
— Isso é totalmente gay. — Hugo chutou a descontração do momento. — Me sinto
naquele filme dos gays surfistas.
— Que filme? — eu realmente não sabia. Ele corou.
— Esquece. — pegou o saco de minha mão, disfarçando.
— Anda vendo filmes gays, Hugo? — comecei uma crise de risadas que durou por vários
minutos, invalidando a chuva de reclamações dele. Quando consegui parar de rir, ele já
estava com a quarta esfiha na boca.
— Sério, só você. — soltei, com aquela vontade de querer rir outra vez.
— Pra tudo. Pro bem, pro mal, pelo sim, pelo não. Só eu. — eu já não sabia se ele estava
se desculpando ou se gabando.
Voltei a encarar a imensidão de água enquanto mastigava uma esfiha, tentando não
pensar em nada além do frio que cortava meus ossos. E ele sabia disso. Ele me via tremer,
mesmo que eu não deixasse isso claro. Descobri, então, que Hugo me observava. Toda sua
obsessão em me fazer infeliz e me tirar do sério poderia ser fruto do seu medo. Só que eu
tinha medo também! De tudo! Eu achei que quando Ana partisse, eu ia me quebrar em mil
pedaços, e só não quebrei porque eu estava me centrando. Meus pés estavam no chão e
minhas mãos na cabeça. E com ele ali, toda a situação apontava para o final errado, para a
bagunça. Mas eu não permiti.
— Da próxima vez que sairmos, vou enfiar um casaco na sua bunda. — ele passou seu
braço direto por cima de meus ombros e se aproximou de mim. Seus dedos estavam muito
gelados. Eu apenas sorri.
— Tá tudo bem, Hugo?
— É. Até amanhã.
— Eu só gostaria que se lembrasse desse dia, de como ser legal pode ser legal. Você não
precisa ser um monstro o tempo todo. Pelo menos não comigo.
Nos encaramos seriamente.
— O que você não entende, primo, é que Hugo é um monstro por natureza. O tal legal
que você acredita que existe em mim é apenas parte do meu humor. Te agradeço por isso,
mas não espere que eu me transforme num príncipe.
Eu soltei uma gargalhada baixa.
— Eu não espero mais.
Voltei a admirar o mar. Senti que me observou por mais alguns segundos até olhar as
ondas se desfazerem sobre a areia. Eu não sabia se era da minha cabeça ou de algum quiosque
por perto, mas eu tive certeza de estar ouvindo Lie to Me tocada por Shane Mack. E as luzes
só faltaram se apagar.
Episódio Sete
Amargo Fevereiro

C
omo esperado, o resto de janeiro e o início de fevereiro foram como um imenso
fim de semana chuvoso: você sabe que o frio que sente só serve para ficar na
cama, dormindo. E pra ganhar um novo celular. Passamos uma semana quase em
silêncio total após termos voltado da Praia da Barra. Na semana seguinte, Hugo conseguiu
recuperar seu humor ácido e suas piadas de mau gosto como se nós, como bons amigos, fosse
uma memória amassada na lixeira do meu quarto. Ou melhor, do nosso. Ele passou a dormir
no colchão ao lado da minha cama. Definindo dormir com Hugo: manter o primo mais novo
acordado até três da manhã, bancando o escroto inconveniente até sentir sono pra deixar o
pobre em paz.
Sabe, naquela altura do campeonato eu parei de me importar com a forma que me tratava.
Eu só não respondia as “quase-ofensas” com violência física e tortura psicológica porque ele
me despertava pena. E só. Amor, carinho, esse tipo de coisa, parecia sumir a cada dia que
passava. A cada segundo que corria por nossos dedos, milhões de litros de compaixão se
perdiam num oceano de desilusão. Não saberia dizer se foi efeito Ana ou se foi um poder
excepcional de meus anticorpos.
Falando em Ana, esperei alguma ligação durante dias, mas nada. Já era hora de parar de
choramingar e continuar a minha vida. Eu a entendia nesse ponto. Ela era o tipo de garota
que se ligasse, ia se ferir demais, sabendo que me feriria de mais. Ambos não tinham muito
ferro no corpo pra suportar tanta dor, então passei a usar as minhas tentativas de “Hugo-
Quem?” para Ana, só que com um nome mais bonitinho, como “Ana-te-ama-siga-em-frente-
babaca”. É.
Ele tinha me acordado cedo, na semana anterior ao carnaval. Eu o ignorei efetivamente e
me mantive direcionado para o chocolate quente das dez da manhã. Em cima da bancada da
cozinha, um panfleto de abertura dupla, com o brasão do colégio Bertha Lutz: notícias do
início do ano letivo e lista de nomes da nova turma. Legal, só pra destruir minha vida. Mais
uma vez.
— Você ainda vai para o colégio, primo? — Hugo zoou, se sentando à minha frente. Eu
lia o panfleto apoiado na mesa da cozinha, com meu chocolate fervendo ao lado.
— Vou. — respondi.
— Achei que você fosse um gênio. Um daqueles caras que acabam tudo rápido. — ele
estava sendo mais ofensivo que o normal. E estava começando a dar no saco.
— Eu não sou, Hugo.
— Aquela sua namorada ainda estuda contigo? — ele estava começando a pegar pesado
até no tom de voz. Ele não sorria. — Aquela que fez você virar “veado”.
Bati a mão na mesa com força, fazendo a minha caneca do R2D2 virar e espalhar
chocolate em brasas por todo o tampo branco espelhado.
— Nunca mais fale de qualquer uma dessas garotas novamente! Eu ando aturando esse
seu maldito mau humor sem motivo calado! — peguei um pano úmido para limpar a
bagunça. — Só pare com isso.
— Carnaval é semana que vem. — ele voltou a sorrir, ignorando minha atitude “666”. —
Sua mãe me falou que ia sair com o seu pai pra um spa ou algo do tipo, o que você acha da
gente —
— Sem chance! — soltei, jogando a caneca e o pano na pia com força. Enquanto lavava as
mãos, continuei: — A última vez que a gente conversou sobre carnaval eu ganhei um beijo
homossexual.
— Depois que resolveu sair comigo, viu uma mutante azul, conheceu uma garota legal e
ainda me assistiu espancar um palhaço careca. Eu me lembro muito bem.
— Não interessa. Olha, se quiser sair, rala peito daqui, mas eu não vou com você. E
mesmo que eu mude minha opinião, vou estar longe de você. Não conte comigo.
Ele sacudiu a cabeça negativamente e se retirou. Quase que ao mesmo tempo, minha mãe
entrou em casa, ainda com o paletó do trabalho. O dia já estava começando de maneira
estranha.
— O que está fazendo em casa, mãe? — peguei o panfleto e me sentei numa poltrona da
sala.
— Não sei... estou pensando em me demitir. — disse ela, da maneira mais natural que
essa frase poderia ser.
— Como assim? O que está acontecendo?
— O que está acontecendo? — ela largou a bolsa no aparador ao lado da porta e voltou a
falar após um suspiro: — Eu estou ficando cansada demais, só isso.
— Mãe... eu encontrei uma garrafa de vodka dentro do frigobar do seu quarto. — era
hora de abrir o jogo e entender o que estava se passando de minha própria casa. — Isso tem a
ver com seu emprego? Você é alcoólatra ou algo assim?
Ela riu.
— É claro que não, Éron. — ela se sentou na poltrona ao lado da minha e se virou para
me encarar. — É por isso que estava faltando uma garrafa, né?
— Então era sua? — a decepção estava em minha voz. — Você está bebendo dentro de
casa? Eu achei que só o meu pai seria capaz de uma coisa dessas.
— O que isso tem a ver, Éron? — a sua expressão mudou. — Não tem nada de mais em
tomar uns drinks às vezes. E, pelo que parece, seu pai vai ser promovido em breve. Eu não
preciso trabalhar tanto.
— Nossa, as novidades não chegam a mim, né?
Me enviou um sorriso torto e se levantou da poltrona.
— Não fique preocupado, Éron. Não há nada de errado.
Passou a mão em meus cabelos, pegou sua bolsa e foi para o quarto. Quando ia suspirar,
Hugo se sentou na mesma poltrona que ela estava.
— Ouvi toda a conversa do corredor.
— E daí?
— Você também está achando essa história mal contada, não tá não?
Inevitavelmente eu tinha de concordar com ele. Algo estava faltando no meio daquilo
tudo.
— Preciso descobrir o que eles estão escondendo, Hugo. Eles estão escondendo algo.
— Eu te ajudo. — ele sorriu pra mim. Eu até sabia o que ele ia dizer em seguida. — Mas
você vai precisar sair comigo.
O ignorei e fui para o banheiro, me amar num banho longo e cheiroso. Tudo para não ter
de pensar em alguma coisa. Nela. Eu queria conversar, eu precisava, mas com Hugo era
impossível. Eu não podia falar sobre meus pais com meus pais — e nem seriam sinceros. Eu
só tinha Ana. Ela era tudo que eu tinha de verdade. Mas, no fim, nem isso eu tinha. Bem,
ainda tinha uma bala no revólver para mais um tiro. Girei o tambor e apontei a arma para o
telefone: era hora da roleta russa. Ligar para Ana e pedir um encontro não poderia ser tão
complicado. Poderia?
Com o celular e o panfleto escolar no bolso, saí de casa escondido, me sentindo um
bandido. Entrei no táxi e parei em um ponto calmo da orla. Não sei quantas vezes respirei
profundamente antes de tentar digitar o nome dela na minha agenda. Meus dedos tremiam.
Houve a era glacial dentro do meu estômago. Houve conforto.
— Éron? — ela estava surpresa.
— Oi, Ana. Tudo bem?
Onde quer que ela estivesse, era barulhento. Pessoas falavam atropelando palavras, quase
gritando. Outras riam. Ela parecia estar se divertindo.
— Tudo sim! Éron, eu estou te escutando pouco, tem como você me ligar à noite?
— Tá ocupada? — que tipo de pessoa iria ao que parecia ser uma festa à uma da tarde?
— Oi? Não dá pra ouvir! Me ligue às sete horas, ok? Sete!
— Ah, tá. Tudo bem, eu ligo.
— Beijo!
Ela desligou. Não era o fato de ela estar na agitação tão cedo que me preocupava, mas sim
o fato de Ana saber que eu não ligaria depois. E mesmo assim não deu tanta importância. Eu
não estava fazendo drama, não. Eu só a conhecia o suficiente pra saber que ela me conhecia
o suficiente. Tanto quanto o meu travesseiro conhecia todos os meus segredos mais
deprimentes.
Como minha cabeça nunca parava, indaguei o porquê de eu não ter um único amigo pelas
vizinhanças. Os adultos me achavam maduro demais para os jovens. Eu achava os jovens
infantis demais para jovens. E o que eles achavam de mim? Quando eu era popular no
colégio, tinha uma falsa segurança de poder, de saber que lembrariam o meu nome. Que eu
não precisaria estar sozinho, por mais que assim escolhesse. Mas quando o nada sobra e o que
é falso não é tão legal, você percebe que seu futuro é uma grande bolsa de fumaça de
maconha: muito doido.
Não consegui encarar o mar por muito tempo. Percebi que nem a praia me abraçaria
naquela hora. Um milk-shake bem gelado, um táxi e o pé dentro de casa novamente,
aparentemente vazia. O silêncio ia ser quebrado a qualquer momento por um psicopata louro
pulando de cueca, como um macaco, tipo aquele Tarzan. Abri a porta do meu quarto: vazio,
arrumado e silencioso. Segurei o copo de milk-shake com mais força, já que a minha casa
poderia ter sido invadida por zumbis que arrastaram Satanás pra fora de minha vida.
Cozinha, banheiro, sala, sala de jantar, quarto de hóspedes cheio de bagulhos e nada de
Hugo. Entrei no quarto de meus pais devagar; a porta da varanda estava aberta, o vento
balançando as cortinas de juta, que dançavam como bailarinas embriagadas: ele estava
sentando na mesma cadeira de ferro que eu estive quando mais precisei de uma mão amiga.
Da varanda, reparei na forma que o Sol, lutando contra nuvens de chuva, se esparramava
pela floresta que descia na direção do mar, bem abaixo. Um pouco depois, uma metade de
Dourado se movimentava.
Por um instante pensei em sair dali sem entregar minha passagem fantasma, porém me
senti atado. Certa nostalgia misturada com nojo. Então ofereci:
— Milk-shake?
— De quê? — ele não me olhou.
— Chocolate, claro. — mesmo depois de tudo, Hugo ainda não sabia merda alguma sobre
mim. Uma reverência ao orelhudo parente do cavalo, por favor.
Puxei uma cadeira e me sentei ao lado dele.
— É tão prazeroso ver você calado, Hugo.
Ele deixou escapar uma risada envergonhada, ainda com gosto de sarcasmo.
— Pra onde você foi? — ele perguntou, me encarando, finalmente com um sorriso calmo
no rosto.
— Acho que ficar longe de você. — apoiei meus cotovelos em minhas coxas e despenquei
minha cabeça, o milk-shake balançando em minhas mãos, entre minhas pernas. — Ou longe
daqui. Pra onde foi minha mãe?
— Eu não sei. Ela falou com seu pai ao telefone e saiu daqui.
— O que está acontecendo? — não que eu esperasse que a resposta saísse da boca dele, me
explicando todas as pontas não resolvidas que apareciam em meu caminho, não mesmo. Mas
eu precisava perguntar. Eu tinha que entender o motivo. Eu precisava fazer tudo melhorar.
— Sabe... — ele riu para si, antes de começar, encarando Dourado se misturar com a
floresta que descia colina abaixo. — uma das coisas que mais me chamou a atenção em você
nesse tempo que a gente meio que se conhece foi o fato de você ter se transformado tanto.
Eu ouvia suas palavras e encarava o perfil de seu rosto tão intensamente como se pudesse
gravar o que ele ia dizer dali pra frente.
— Era tão inseguro, tão superficial... agora eu te olho e tudo se mostra inverso do que eu
conhecia, de como eu tratava você. Você é dominado pelos seus próprios sentimentos, mas
porque se permitiu. Eu te ensinei isso. Te mostrei como.
— Você não me ensinou nada, Hugo. — ressaltei. Ele continuou olhando a paisagem. —
Você só pode ensinar o que aprendeu. Você não aprendeu nada, ainda.
Fomos sugados para um silêncio desconfortável, que me levou a ficar de pé. Dois passos
na direção da porta até sentir suas mãos tocando meus ombros. Parei instantaneamente.
— Você está errado, Éron.
Hugo me virou devagar e encostou seu peito no meu.
— Se eu estivesse errado, o que está pra acontecer, não aconteceria.
Foram minhas últimas palavras antes de receber seu beijo novamente. Dessa vez, mais
curto que os outros. Dessa vez, mais dormente.
Levemente me afastei de Hugo, virei minhas costas e caminhei para fora da varanda,
deixando-o lá, de pé, com o copo de milk-shake abraçado ao chão, formando uma bela poça
de chocolate em volta de si. Na minha boca, um gosto amargo. Amargo de um doce que
tentei manter conservado, mas que passou da validade.
Quando me sentei no meio-fio, percebi que meus doces não eram doces, afinal. Todos
terminavam com uma decepção. Todos perdiam o sabor. A culpa podia ser minha. Talvez eu
não conseguisse continuar sentindo algo por alguém que já não conseguia penetrar no meu
cotidiano, entender a minha personalidade, meus gostos e compartilhar meus problemas
comigo. Por possibilidade, um culpado não precisaria existir. Eram situações, momentos de
compatibilidade. Seleção natural.
Ao enfiar a mão no bolso pra pegar o meu celular novo, puxei junto o panfleto do colégio.
O momento não era ideal para saber quais pessoas estavam em minha turma, mas eu não
conseguia ignorar aquilo: abri violentamente e passei meus olhos sobre os nomes. Helen
estava em minha turma. Tá ok. Alguns nomes novos. Ok também. Adriele Sampaio. Não,
não estava tudo bem. Deixei o panfleto escorregar por minhas mãos e esfreguei o rosto
violentamente. Nada de sofrer por antecipação com a possível guerra infantil do novo ano.
O que eu me lembro bem é que a noite caiu tão rápido quanto um tijolo arremessado do
oitavo andar. Os quatro na mesa de jantar, tentando comer. O silêncio parecia tão incômodo
pra mim quanto para meus pais, que não se olharam durante todo o jantar. Hugo agia como
se nada estivesse acontecendo. Mas tinha algo ali.
— Vamos falar da vodka que o Hugo pegou no frigobar de vocês? — comecei um diálogo.
— Você pegou a vodka, Hugo? — meu pai perguntou.
— Eu achei a vodka. — ele mantinha um nível de confiança que traduzia suas mentiras
para verdades. E as verdades para verdades inquestionáveis.
— Como você achou isso? Por que estava bisbilhotando o nosso quarto? — pela primeira
vez na história, meu pai não estava de boa com uma atitude de Hugo, mas ele queria mudar o
foco, e eu não ia deixar isso acontecer.
— Se ele achou é porque tinha. — me meti. — Eu só quero saber o motivo.
— E desde quando eu tenho que lhe dar alguma satisfação, Éron? — o tom de voz dele
subia a cada frase e a cada cuspe que saia de sua boca.
— Desde o dia que vocês resolveram passar três minutos de suas vidas me fazendo.
— Isso não te dá autoridade alguma! — ele retrucou.
— Não mude de assunto! Se fosse comigo, se eu estivesse guardando garrafas de vodka no
meu quarto e vocês achassem, vocês iam me encher o saco!
— Nós somos seus pais. — minha mãe parecia gemer no meio dos trovões que estavam
para estourar ali.
— Exatamente por isso quero saber!
Meu pai se levantou bruscamente e jogou o lenço em cima do prato:
— Eu não sou obrigado a ouvir esse tipo de merda na MINHA casa!
— Se não quer ouvir merda, seu careca, NÃO AS FAÇA!
Recebi o olhar de surpresa da minha mãe e o ódio de meu pai. Eu posso jurar que ele ia
me dar um soco, se estivesse mais perto.
— Isso é maneira de falar com seu pai?!
— Mentir pro filho de vocês é maneira alguma, mãe?!
— SE NÃO ESTÁ SATISFEITO NESSA CASA, PODE SAIR! — meu pai perdeu o
controle, batendo na mesa a cada palavra dita.
— NÃO SAIO! NÃO SAIO PORQUE ESSA CASA É MINHA TAMBÉM! SE ALGUÉM
NÃO ESTÁ SATISFEITO AQUI É VOCÊ, QUE SEMPRE FOI UM PORCO IMBECIL QUE
SÓ SERVE PRA ENCHER MEU RABO DE DINHEIRO! VOCÊ NUNCA FOI UM BOM PAI,
NÃO FOI UM BOM MARIDO E EU TENHO NOJO DE CARREGAR POR AÍ SEU
GENÓTIPO! ESPERO QUE VOMITE NO SEU PRATO!
Empurrei a mesa com força e corri para o meu quarto, perdendo cada ponto de energia
pro ódio. Não, eu não queria ficar me remoendo, pensando em como ser um cara solitário
era triste ou tentar entender o motivo de eu estar sempre sozinho, por mais perto da
companhia eu chegasse. As coisas não funcionavam pra mim da melhor maneira e estava
ficando insuportável.
Meu pai urrava do lado de fora, coisas que eu preferi não entender. O meu único medo
era de que minha mãe levasse a culpa por minha causa, mas ele não faria nada. Não na frente
do Hugo. Só que eu, como um bom filho adolescente, estava com sede de irritar aquele
homem que eu tinha a “obrigação” de chamar de pai. Com o computador ligado e as caixas
de som no volume máximo, soltei um heavy metal daqueles de deixar surdo. Eu não ouvia
meus pensamentos e irritava todo mundo.
Mesmo assim, nenhuma das minhas perguntas foi respondida. Passei longos minutos
refletindo, em cima da cama, com um pacote de Doritos ao lado. Por mais que meu quarto
fosse meu porto seguro, me deixava perto demais de questões que eu precisava sanar. A
minha vontade era de fugir dali, correr pra longe, talvez pegar um carro e rumar para uma
praia deserta, mais sozinho do que eu já me encontrava.
Quando me virei na direção da porta, percebi que havia um envelope ali, provavelmente
passado por debaixo da mesma, pois não me lembrava de tê-lo visto mais cedo. Era largo, de
cor parda e, abaixo dele, o brasão imponente do Hospital Geral de Dourado em azul
marinho. Peguei-o às pressas e hesitei ao abrir. O que poderia ser? Alguma notícia ruim?
Sobre mim? Por quê? Sem mais dramas, sacudi a cabeça e retirei o selo, que já apresentava
falta de cola. Papéis. Em dois deles, nada que eu pudesse entender, apenas números e nomes
estranhos, mas em todos uma coisa era familiar: Marta Brascher, minha mãe.
Deixei os dois papéis de lado e peguei o terceiro, muito mais claro, muito mais simples.
Com o pouco que eu entendia por termos, eu consegui destruir todo bom sentimento de
melhora que eu poderia ter naquele dia, ou em qualquer dia pra frente. O que estava naquele
papel, se realmente fosse o que eu estava achando, poderia arruinar para sempre a minha
vida. E acabar com a vida da minha mãe. Câncer de mama.
Deixei os papéis de lado, tremendo descontroladamente, e abri a porta. Eu precisava saber
o motivo de ter me dado tal notícia da maneira mais patética possível.
— MÃE! — gritei na sala, a voz trêmula. — MÃE!
— Cala a boca, merda! — Hugo tapou a minha boca com ferocidade, me abraçando pelas
costas. — Fui eu que peguei o papel, mas fique quieto! Eu vou te explicar tudo, só não a
chame, ok?
Concordei com a cabeça. Ele me soltou devagar, parecia se aproveitar do nosso contato,
de alguma maneira. Quando retirou a mão de minha boca, meus lábios começaram a tremer.
Ele me puxou para o quarto rapidamente e trancou a porta quando entramos.
— Já olhou os resultados? — ele perguntou, guardando os papéis no envelope. — Preciso
devolver isso pra pasta dela.
— Foi você? — indaguei. — Hugo, isso é maneira de me dizer uma coisa dessas?!
— Eu bati na porta, mas essa sua música não deixa a gente ouvir nada!
Realmente estávamos gritando para nos ouvirmos. Abaixei o volume e mudei para uma
banda conhecida e menos louca.
— O que a gente vai fazer com isso, Hugo?
— Eu vou devolver, me espere aqui. Não saia de maneira alguma, ok?
Concordei sem querer concordar para que ele sumisse da minha frente. Minutos depois,
estava de volta, o cenho franzido.
— Câncer, não é? — perguntei.
— É sim. Mas eu só pude olhar um dos papéis, então não sei o que ela anda fazendo em
relação a isso. Não vi data ou coisa do tipo também. Olhou tudo?
— Olhei. E não entendi merda alguma. Nem vi data. Eu... eu já nem sei o que fazer.
Deixei meu corpo cair sentado, apoiado na cama, antes batendo com as costas no ferro da
mesma. Senti algo queimar em mim, fisicamente falando.
— Éron, eu nem posso me arriscar a pegar os papéis de novo. Seu pai tá trovejando até
agora, mas ela tá contornando a situação. Não dá pra eu voltar lá.
— Ele que se dane! — pronto, o estresse voltou. — Quem ele acha que é? — levei a mão à
cabeça e fechei meus olhos, suspirando de culpa. — É por isso que ele está bebendo! Meu...
cara, é por isso!
— A gente não sabe ainda! E não adianta ficar de rinha com o seu pai. Se alguma coisa
acontecer a ela, você só terá —
— Se alguma coisa acontecer a ela, Hugo? — interrompi, lançando-lhe um olhar de
desafio. — Você realmente acha que algo vai acontecer com ela? A gente tem toda a
tecnologia do mundo, todo tipo de tratamento! Um câncer não vai matar a minha mãe.
— Eu não disse isso, primo. Mesmo com tratamento, talvez tenha de se internar, não é? E
aí? Onde você vai ficar?
— Você acha que eu só tenho a minha casa, Hugo? Que eu não tenho amigos?
— Tenho certeza. Você é todo introspectivo, chato e reclamão, quem iria te aturar?
Arregalei meus olhos, ele estava falando sério.
— Olha quem fala!
— Não, cara, olhe para você. Você não tem nada além daqueles dois. Se sua mãe não está
muito bem, você só terá a ele. — ele não estava sendo amável. Ou eu estava paranóico ou ele
queria me torturar.
— Hugo, você —
— Você não tem a mim! Se alguma coisa acontecer com ambos, acredite, jamais te daria
algum tipo de abrigo.
Me transformei em uma estátua quando recebi chicotadas em forma de palavras. Olhei
profundamente nos olhos dele, tentando disfarçar como aquela, acima de qualquer outra
frase estúpida que ele já tinha me dito, conseguiu me decepcionar e magoar tanto.
— Eu não ia dizer isso, Hugo. Eu ia dizer que você não entende. — soltei uma risada sem
graça e me deitei na cama, virado para a parede. — Acho que no fim, quem não vai ter
ninguém é você.
Ele expressou certa maldade em uma risada escondida.
— Não, eu tenho. Várias. Algumas delas me esperam em Paris. Tem alguém esperando
por você, primo?
Ouvi as rodinhas da cadeira do computador atritarem contra o chão. Ele estava sentado.
Na minha própria cama, com ele em meu quarto, me senti mais invadido do que nunca, e se
pudesse, sairia pra dormir na casa de alguém. Eu só não queria estar em casa, dormir naquele
lugar. Queria chorar, mas não podia. Se eu aprendi alguma coisa sobre minhas lágrimas é
que, depois que elas secam, o ar se torna tóxico. Eu não precisava morrer ali.
— E tem mais. — ele continuou, como se tivesse muito pra falar. — Eu realmente não
consigo entender como você aguenta ser patético por tantas horas durante um dia. Não que
eu te odeie, mas você consegue irritar as pessoas! Você falou com meu tio como se ele fosse
um nada, como se tudo que ele fez por você não fosse nada! Que tipo de —
— Então é disso que se trata, né? — interrompi, com um sorriso choroso no rosto. — Ser
órfão deve ser doloroso, né? — seus olhos foram engolidos pelas chamas. — Inveja. É esse
seu sentimento. Por isso que você me mostrou aqueles exames da maneira que mostrou e é
por isso que anda dizendo coisas cada vez mais imbecis pra mim. — cocei a cabeça, caçoando
Hugo com toda a elegância de Cruella De Vil. — Cresceu sem pais, se achou vítima demais e
passou a tratar as pessoas como merda pra se sentir melhor. E ninguém poderia falar nada, já
que o coitadinho aqui tem todo o direito de rebaixar as pessoas pra se sentir melhor!
Me levantei da cama, calcei um par de tênis e o encarei, enviando gigabytes de tensão e
seriedade através de meus olhos:
— O patético aqui é você, Hugo. — pisquei, pegando minha carteira na mesinha de
cabeceira em seguida.
Ele não respondeu, ele não falou. Seus lábios, antes rosados, estavam brancos, ressecados e
seu cabelo parecia ter perdido todo o brilho. Ou era minha autossugestão ganhando poder ou
era o Calcanhar de Aquiles do rei dos babacas sendo atacado.
— Arranje outro lugar pra dormir, primo. — lancei por último, antes de fechar a porta
enquanto saía. — Você não fica mais aqui. Não no meu quarto.
Fechei a porta sem bater, com muita suavidade. Mostrar que não estava abalado com
aquilo era uma das coisas que eu tinha certeza que iria irritá-lo demais. Não havia um táxi no
ponto, o que só poderia ser zoação comigo: SEMPRE TEM TÁXIS NO PONTO DE TÁXIS!
Mas tudo bem, eu estava melhor. Sem culpa, realizado. Descobri quem era Hugo e
idealizei que o motivo de me odiar tanto é por desejar ter a minha vida. Infelizmente,
existiam maneiras mais fáceis e pacíficas para que pudéssemos crescer juntos, pois não teria
problema algum em dividir meu pai com ele. Por mim, Hugo poderia criá-lo em uma casinha
rosa e chamá-lo de Toby que eu não teria problema algum.
Até um táxi aparecer, eu precisava decidir pra onde eu estava indo às dez da noite. Ele
estava certo, eu não tinha ninguém me esperando, além de minha mãe. E estava certo sobre
eu ser patético, sempre choramingando amizades ou quebras de relacionamentos, sempre
reclamando por estar sozinho ou por ninguém me ver. Só que eu estava decidido a deixar
minha vida patética pra trás. Se eu miava por estar sozinho, precisava conhecer gente nova.
Se ninguém estava me vendo, eu precisava estar onde podiam me ver.
Cacete, para onde eu estava indo?! O quarto era meu território! Eu não precisava fugir
dele pra me sentir seguro! Que bom que não havia nenhum táxi ali.
— Obrigado, “Deus”. — pensei alto, com um leve sorriso sarcástico na boca. — Você
sempre sabe o que faz. — então deixei uma nota de dez flutuar no ar, seguindo para caminho
algum. — Estamos quites.
Com as mãos no bolso e sorrindo, abri a porta do meu quarto e vi algo que eu, sem
explicação alguma, já esperava: Hugo deitado em minha cama, aparentemente dormindo. De
chinelos. Não me irritei, não fechei a porta e peguei na lavanderia uma daquelas buzinas de
gás que as pessoas idiotas usam em época de Copa. Eu torcia para que funcionasse.
Analisei-o. Parecia dormindo mesmo. Mágoas dão sono, sabia? Perto de sua cabeça,
segurei o botão por três segundos. Um barulho horroroso ecoou pela rua toda, insuportável
até pra mim. Um pulo, uma rolada na cama, uma queda. Aos meus pés. Hugo, surpreso,
tremia. Segurando minhas melhores gargalhadas, pedi novamente:
— Caia-fora.
— VOCÊ TÁ LOUCO?! — de frente pra mim, soltou um par de perdigotos em meu rosto,
de tão próximo.
— Pra que gritar, primo? É só uma brincadeira.
— O que está acontecendo aqui?! — quem era a única que pessoa que ao abrir a porta do
meu quarto quase a arrancava?
— É a única pergunta que você sabe fazer, pai? — sacudi a cabeça. — Hugo vai dormir no
seu quarto, daqui em diante.
— Por que, Éron?! Que barulho foi esse? — minha mãe, como sempre.
Joguei a buzina pra ela, que agarrou no ar.
— Hugo não é um bom primo. E eu tô cansado de ser um bom filho.
Me sentei na cama e joguei meu par de tênis no chão.
— Posso dormir agora? — perguntei.
— Você tá cada dia mais abusado, Éron! — meu pai já queria cair na porrada comigo, eu
sentia a baixa vibração como pedras de gelo no ar. Minha mãe o acalmava e o arrastava para
fora do quarto. Antes de sair, fez um sinal de como quem quer dizer: vamos nos acertar
depois. Ah, tá bom.
— Não me queira como inimigo. — Hugo me alertou, calçando os chinelos. — Eu posso
contar tudo aos seus pais.
— O que eu vou perder com isso, além de sua doce companhia em minha casa?
— Eles vão acreditar no que eu disser, cara. Sem dúvidas.
— Então pode contar agora. Bata na porta com força, eu estarei dormindo. Boa noite.
Ele me mastigou com dificuldade e se retirou, explodindo a ira na minha porta. Assim
que saiu, me tranquei.
A mais nova Guerra Mundial estava anunciada e eu era o único inimigo. Eu não precisava
de armas ou bombas: meu estoque de chocolate, internet e diversão solitária estava cheio e
minhas preparações mentais para o campo de batalha estavam completas. Se em uma guerra
só podemos ter um vencedor, não convém. O importante era que todos saíssem dela vivos.
Literalmente.
Episódio Oito
Carnaficina

U
ma semana inteira se passou, e nenhuma palavra foi trocada entre mim e meu
pai ou Hugo, tirando leves esbarrões com o último, no corredor. Fiquei dias sem
receber um olhar rude ou irônico, talvez pela mágoa que ele, possivelmente,
sentia. Eu, por outro lado, estava orgulhoso demais. Ah, qual é! Qual o tipo de pessoa que
alguns dias antes confessa boa parte do que sente, dizendo que sofre pressão em Paris e
depois age como se nada daquilo tivesse sido dito? E ainda por cima tenta te destruir? Eu
tinha de estar orgulhoso de mim, porque se não fosse por mim, ninguém estaria.
Tanto o meu primo quanto o meu pai eram pessoas que eu estava disposto a esquecer. O
que estava me incomodando era o problema da minha mãe: eu continuava sem saber mais. E
ia ficar sem. De casa, ela era a única pessoa com qual eu mantinha um diálogo quase normal.
Ela ainda fazia coisas gostosas pra comer e me dava o dinheiro que eu não poderia mais pedir
ao careca. Por isso os cofrinhos são produzidos com aparência de porcos.
— Eu posso ficar uma semana toda sem citar o nome dele, mas eu ainda não entendo o
porquê de tanta raiva pelo seu primo, Éron. — minha mãe insistia cada vez mais em saber o
que tinha acontecido. E eu já tinha explicado a minha versão.
— Já te disse que ele defendeu meu pai. — um gole quase seco do chocolate quente na
mesa da cozinha, numa manhã de quarta.
— Éron — ela suspirou e se sentou à minha frente. —, ele está preocupado com você.
Hugo não tem pais e se bobear, tem a gente como família mais próxima. Em Paris ele —
— Vive uma pressão, eu sei. — completei. — Mas eu não posso tolerar umas atitudes
imaturas ou exemplos da vida dele dentro do meu relacionamento de merda com meu pai.
— Não fale assim...
— E eu não entendo o motivo de tanto drama em cima disso. Meu pai não se importa
comigo, como você. De todos, você também não tem aquela preocupação comigo.
— O que está dizendo, Éron?
— Não sei, só pense. Está sendo sincera comigo? Completamente sincera? Sobre tudo?
Ela não respondeu. Tomei o resto de chocolate com rapidez e caminhei para o corredor.
— O que quer de mim, Éron? — ela perguntou.
— Respeito. Não só de você, mas de todo mundo aqui. Eu não sou mais garoto imbecil de
treze anos, mãe. Já podem abrir o jogo comigo, e quanto mais vocês esconderem, mais
vulnerável eu fico para o dia que eu tiver de meter a cara no mundo, sem você ou o porco
pra me segurar.
Andando para o quarto e deixando minha mãe pensativa quanto a me contar ou não sobre
o câncer, esbarrei em Hugo, que caminhava para a cozinha. Seu rosto estava melhor, o
sorriso falso estava armado e sua palidez estava anormal, mantendo um tom cereja nos finos
lábios.
— Bom dia. — ele disse.
— Morra. — retruquei, fechando a porta do quarto com violência.
A tarde já tinha coberto a cidade com seus tons quentes e eu precisei sumir de casa. A
realidade era que eu tinha saído bastante, para evitar passar mais tempo com um dos
monstros da minha vida. Além de estar mantendo o meu quarto como um quartel general de
mais alta tecnologia, a falta de um bom frigobar me irritava, e eu preferia morrer de fome a
esbarrar em um deles. Principalmente meu pai. Então eu escolhi um bom cyber café, pedi
um cappuccino e me sentei em uma das maiores janelas da loja, que filtrava a luz do sol
através da película fumê pouco escura. Morar em Dourado e poder aproveitar as lojas da orla,
além de luxuoso, era notavelmente poético.
— Com licença, você é Éron Brascher? — uma garota de dezesseis anos, aparentemente,
me cutucou no ombro, sorrindo largamente. Não era bonita, não era feia. O que me deixou
um pouco grilado foi o fato de cuspir bastante a cada palavra dita, talvez por usar um
aparelho dental maior que a boca.
— Sim, sou eu. — simpatia era essencial.
— Oi, meu nome é Isabela Pinoretti, estudo no Bertha com você.
— Na minha sala? — eu nunca tinha notado a presença daquela menina.
— Não... mas serei! — quatro gotas cheias de cuspe foram lançadas para o ar. Por
segundo, eu me afastava um centímetro. — Estamos juntos esse ano!
— Ah, que bom. — sim, eu fingi animação. — A gente se fala quando as aulas
começarem, ok? Eu ando com uns problemas em casa e preciso ficar um tempo... você sabe,
sozinho.
— Não, não, não, tudo bem! Eu entendo a situação! Eu vivo precisando estar sozinha, as
pessoas me irritam bastante!
“Nem me fale.”
— Mas obrigado por vir falar comigo. Me fez bem, de certa maneira. — mandei o meu
sorriso mais branco, para que ela se sentisse útil.
— Mas o que eu vim falar com você é sobre... peraí. — atrapalhada, puxou um flyer
amassado e o estendeu para mim. “Carnaficina”. Que nome mais horrível para um baile de
carnaval.
— Vai ser no Iate Clube, tem o endereço no convite, e você tem que ir com uma roupa
dark. Eu vou de vampira. — ela sorriu para ninguém, talvez se imaginando linda de morrer.
E sem babar.
— Muito gentil de sua parte. — eu estava sendo sincero. — Não estou no clima, mas
prometo tentar passar por lá.
— Quer um conselho? — quando eu ia dizer que sim, só para não ser ignorante, ela
continuou: — Se seu problema está em casa e você não pode resolver agora, saia mais.
Talvez, numa dessas saídas, você encontre a solução. Ou distração. Foi assim que encontrei
meu namorado!
Ela riu, meio debilóide. Mas sabe? Eu curti o conselho.
— Obrigado, Isa. Estarei lá.
Seus olhos brilharam ao me ouvir encurtar seu nome para um apelido quase íntimo.
— Tchau, Éron! — ela se afastou de mim e saiu do café toda boba, dando um tchau com a
mão que nunca acabava.
Eu respirei, aliviado por ela ter ido embora, mas havia captado a energia. Só não
conseguia entender como as pessoas mantinham admiração em cima de outra. Estava nos
olhos dela, no modo de falar comigo: ela esperou muito tempo para fazê-lo, esperou a
coragem chegar nela. Ou o namorado dela.
Mas o conselho continuava de pé e era importante. Sair de casa era uma boa, me ver
longe dos meus problemas, nem que por uma noite, e aproveitar a nem-um-pouco-esperada
semana de carnaval, que duraria até sábado. Eu ia me curtir. Talvez conhecer pessoas com as
quais valesse a pena estar junto. Agora era escolher a fantasia. Um telefone, um táxi,
dinheiro da mamãe na carteira, shopping, roupa e hora de se arrumar.
— Aonde você vai, primo? — eu estava saindo do banheiro, apenas de roupão.
— Curtir meu carnaval. — ele bloqueou minha passagem do corredor para o quarto. Num
primeiro pensamento, achei que fosse me estuprar, mas a cara de nojo que ele fez, sem
motivo algum, me levou a acreditar que cuspiria em mim. — Sei que vai pedir pra ir, e vou
aceitar a proposta.
Ele me olhou torto, desconfiado.
— Está falando sério?
— Super. Desde que você vá de carro e não beba. Se eu vir que você bebeu, além de não
voltar contigo, vou rezar para o Demônio te fazer bater com o carro. Se não bater, vou
contar tudo pra minha mãe. Quero ver você pegar algum carro depois, sem as mãos.
Hugo sorriu, orgulhoso.
— Olha quem está aprendendo a jogar... Feito. — ele saiu do meu caminho.
— Ótimo. Ah, e só entra fantasiado na festa. Tema dark, ok?
— Eu não tenho roupas assim.
— Então rasgue qualquer camisa preta que tiver, use sua criatividade. Sem fantasia, sem
festa pra você.
— Vai vestido de quê? — ele perguntou quando eu já estava afastado, entrando no
quarto.
Ele estava querendo saber demais.
Não que eu estivesse planejando algo pra acabar com a vida dele, não mesmo. Qual é a
razão de gastar dinheiro com táxi se eu vou poder usar meu primo como motorista? E ainda
ganhar visibilidade positiva pra minha mãe? Não custava nada. Meu lado bom era bom
quando era bom. E o ruim era pior.
Com maquiagem, deixei meu rosto mais branco do que já era e tonifiquei meus lábios
para um vermelho escarlate super sanguinário. Dei um jeito de partir o cabelo para o lado
esquerdo, notificando uma impressão sexy de homem de época. Fiz todas as minhas olheiras
sumirem com base e reforcei o brilho de meus olhos com rímel transparente. Qualquer
garota problemática de péssimo relacionamento com os pais ou qualquer garoto com
produção hormonal normal ia implorar por uma mordida minha.
— E aí, tá pronto? — perguntei, ao sair do quarto com os fones de ouvido estourando a
música Trash, da banda The Whip.
Hugo, que estava usando uma simples camisa preta e botas escuras por cima de uma calça
jeans surrada, perdeu os olhos em mim. Não era pra pouco. Dentro de meu blazer piche, uma
camisa social branca enaltecia meus olhos, muito verdes, em contraste com meu rosto
extremamente pálido. Meus lábios vermelhos completavam o tom com minha calça vinho
escuro, que se fundia à minha perna depois do joelho, deixando uma leve folga volumosa
acima do mesmo. Nos pés, brilhantes sapatos oxford, de sola vermelha. Como detalhes, um
relógio de bolso cromado pendurava-se no blazer, enquanto meu cinto de taxas refletia toda
a luz enviada pra mim. Para completar, uma capa de veludo da mesma cor da calça,
contornava meus ombros e pescoço, me transformando por completo em um predador da
noite: sexy, elegante e letal.
— Estou... — ele respondeu. — Já peguei a chave do carro com a sua mãe, a gente já pode
ir.
— Outra coisa, primo, a gente vai junto, mas não vamos ficar juntos lá dentro.
— Tudo bem. A senhora manda. — zombou.
Disse para minha mãe que estava saindo e recebi outro olhar de admiração. O que o
dinheiro não podia fazer? Pediu para que eu entregasse o celular dela para Hugo, caso nos
perdêssemos lá dentro. Ia ser ótimo, caso eu quisesse voltar para casa mais cedo.
No carro, conectei meu celular para manter a música, agora expelida através das caixas de
som. Com o GPS programado, sem nenhum tipo de incômodo ou palavra torta, fomos para a
festa, às onze e quinze. Nenhuma festa começava antes disso. Ou antes de mim. Meio
narcisista, mas eu sabia como fazer uma festa funcionar. Estava em mim.
O estacionamento do Iate Clube se achava abarrotado de carros de luxo, quase sem vaga.
O clube me enchia de nostalgia, pois me remetia ao dia que acompanhei o show de rock da
banda Os Estranhos (e todas as sacanagens posteriores dentro do camarim), junto de Adriele,
e algum aniversário avulso de quando eu só sabia jogar Pokémon e comer miojo com
ketchup.
Chegamos ao salão principal, onde a fila para entrada se estendia por vários metros. Me
senti nu ao passar na frente das pessoas vestido como estava, porque todos os olhares vinham
para mim. Havia lindas fantasias e pessoas muito bem caracterizadas, mas ninguém como eu.
Por um lado, era maravilhoso. Por outro, um terror. Evitava o pensamento de tropeçar na
frente de todo mundo e ser o alvo da vergonha máxima por alguns anos. Esse tipo de coisa
acontece, né?
— Olha o tamanho dessa fila. — observou Hugo, desanimado.
— Relaxe e entre na fila. — avisei, me afastando dele, na direção da entrada do clube em
si.
— Aonde vai? — eu já estava longe quando perguntou.
Barrando a porta de entrada, dois seguranças enormes recolhiam os ingressos e
revistavam os compradores apenas passando as mãos por cima das roupas. Entrar com drogas
era fácil. Atrás dos seguranças, um homem supervisionava tudo e ele era meu alvo.
Rapidamente, esfreguei meus dedos em meu pulso, no local onde prendiam a pulseira de
pagante ou vip. Me aproximei dos seguranças, furando fila, e pedi para que chamassem o
responsável.
— Cara, perdi minha pulseira. — resmunguei, mostrando o pulso levemente vermelho,
como se a pulseira tivesse irritado minha pele. — Como eu faço agora? Tenho que comprar
ingresso de novo?
O modo de falar definia a maneira com que ele ia me tratar, além da aparência, é claro.
Dentro do estilo serial killer, meus olhos ainda expressavam a sinceridade de um simples
garoto.
— Não, pode entrar. Pode ir. — ele me passou direto, sem ser revistado ou coisa do tipo e
me pediu o braço, para colocar a pulseira rosa.
Antes de estender meu pulso, que estava vermelho, joguei a última carta na mesa, para
que ele não duvidasse de minha história de maneira alguma:
— Põe nesse — estiquei o outro braço. —, a pulseira machucou o outro.
O homem sorriu e colou a pulseira. Eu estava dentro, sem fila, sem gastar um tostão e sem
Hugo, que ia ter de comprar ingresso e entrar na fila. Muitas risadas pra ele.
A decoração do Iate Clube estava esplêndida: teias de aranha no alto “seguravam” os
canhões de luzes; tecidos escuros escorriam das paredes, tampando a cobertura original e
desenhando curvas bizarras em todos os lugares. As mesas da área de alimentação, que
ficavam à esquerda, se agasalhavam com tecido “TNT” preto e vermelho, que apoiavam
candelabros elétricos. O bar, bem ao fundo, exibia barmen caracterizados, sem camisa, um
apelo necrófilo bem potente. Caminhando entre as mesas, as garçonetes, tão sexuais quanto.
Minha vontade primária era sentar e pedir algo pra beber, só que o momento era de me
mexer, me distrair, não de ficar parado. Se fosse pra isso, nem precisava sair de casa. De uma
forma ou de outra, pedi uma flute de Bellini e me dirigi pra pista de dança. O som não era
dos piores: algo meio trash-eletro-rock, extremamente dançante, cheio de adrenalina.
Mais para o meio da pista, com cuidado para não derramar o drink da flute, comecei a me
mexer devagar, de um lado para o outro, mantendo meus olhos fechados. Era óbvio que meu
jeito de dançar já não era o mesmo de um ano atrás: eu estava mais solto, me movia com mais
leveza, mais ritmo. De certa maneira, eu estava dançando melhor. Por outra, eu acreditava
piamente que era uma forma super gay de se mexer. “Homens não deveriam mexer o
quadril!”, as pessoas diziam, mas eu não era um homem comum. Eu era livre pra dançar
como eu queria.
Conforme as músicas passavam e minha flute esvaziava, a sensação era de que não existia
ninguém naquele lugar além de mim. Não havia uma voz sequer, apenas a batida arranhada,
as luzes piscando através de minhas pálpebras cerradas e minha capa se movimentando para
todos os lados.
— Você não é de confiança. — Hugo murmurou em meu ouvido.
— Aprendi bem. — diminuí o ritmo, com medo de suar. Abri meus olhos e o encarei,
sorrindo. — Demorou muito?
— Como conseguiu entrar? Teve de transar com quem?
— Com alguém que não irá me engravidar, com toda certeza, papai. — se era pra baixar o
nível, eu tinha um elevador particular pro Inferno.
Eu queria sentir o Belilini em minha boca novamente, mas evitar álcool era fato, por
menor que fosse o teor. Voltei sozinho ao bar, sentindo a minha classe sacudir junto com
minha capa de veludo. Pedi uma garrafinha d’água e me escondi no canto mais escuro da
pista de dança, longe dele ou de qualquer outra pessoa que pudesse me ver bebendo água.
Beber água era cafona, em público.
Quando senti alguém se aproximar pelas minhas costas, ajeitei logo o discurso de ira:
— Cara, cheg —
Parei de falar no momento que vi, na minha frente, Helen e Adriele, ambas fantasiadas de
princesas das trevas ou bizarrice similar, como boas amigas.
— Ei, Éron. — cumprimentou Helen, sorrindo.
— Olá, meninas. — devolvi, com uma simpatia verdadeira, mas sem vontade de tê-las por
perto. O réveillon havia sido demais, o ponto. — Posso ajudar com alguma coisa?
— Pode. — Helen continuou. — Vimos você falando com um cara tem alguns minutos,
na pista de dança. Você o conhece?
Deixei escapar uma risada de desgosto com um leve revirar de olhos.
— Ele é gay. Temos assuntos não resolvidos.
— Meu Deus! — exclamou Adriele, levando as mãos à boca. — É o Hugo?!
Confirmei com a cabeça.
— O seu primo? — indagou Helen. Adriele, a vaca louca, contou tudo pra ela.
— É. De verdade, fiquem longe dele. Ele é problema. De maneira geral, eu e ele ainda
estamos nos acertando... ou errando. Mas ainda há algo pra consertar nele.
— Tudo bem. — Helen não parecia ter ouvido o que eu disse, pois olhava para todos os
lados, possivelmente procurando-o. — Vamos dar uma volta. A gente se esbarra.
As duas saíram de perto de mãos dadas, procurando por ele. Ele era extremamente bonito,
então esse tipo de atitude curiosa era normal. Não era todo dia que um deus da beleza
resolvia caminhar na Terra usando botas.
— Tá tudo bem? — fui surpreendido por um garoto vestido com trapos negros do pescoço
às pernas, deixando livre o acesso de meus olhos verdes aos olhos caramelos dele e seu
fabuloso cabelo ruivo. Sorria de orelha a orelha, meio carismático demais.
— Tá. — devolvi, meio seco. — Posso ajudar? — segunda vez no dia que eu pegava um
período breve de “atendimento ao consumidor”. Tava ficando chato, já.
— Eu te vi meio que brigando com um garoto na pista de dança e você saiu rápido, não
deu tempo de te perguntar como estava antes.
Aprenda comigo: a) ele queria ficar comigo, OU b) ele queria ficar com Hugo, OU c) ele
ia pedir dinheiro ou cigarro. Ninguém pergunta se você está bem, no meio da balada, após
discutir com um louro gostoso de quase dois metros de altura. Ninguém.
— Eu tô bem. De verdade. Mas valeu por perguntar. — ok, ele era bonito pra cacete.
Suspirou e se aproximou mais de meu ouvido:
— Beleza, eu tava te olhando há algum tempo, enquanto dançava sozinho. Isso soa meio
pervertido, mas desculpa. Só me senti compelido a falar contigo.
“E eu não estou gostando nem um pouco, né?”
Como uma retribuição sexy, aproximei minha boca de seu ouvido e indaguei:
— Se sentiu compelido de que maneira?
Ele riu.
— Cara, eu sou tímido. — evitou a pergunta.
— Eu sou prático.
Não dei tempo para que ele pensasse e deixei que minha mão deslizasse por sua cintura,
enquanto a outra direcionava o rosto dele para a minha boca. Um beijo silencioso no
começo, parado no instante inicial, porém diferente. Os beijos têm essa magia de fazer
interpretar certos sinais que não somos capazes de entender numa conversa, numa relação de
amizade ou familiar. Com um estranho era mais engraçado ainda. Não que eu estivesse
desesperado, mas se a vontade bateu, por que bater na vontade?
Quando nossas bocas nos separaram, por fim, estávamos no meio da pista de dança,
sacudidos pela multidão que socava o ar enfurecida com a batida. Nos miramos
profundamente e rimos em seguida. Ele era menor que Hugo, porém mais alto do que eu, o
que era uma chata tendência nos homens, já que eu me sentia um piolho.
— Eu ia te perguntar antes, mas você não deixou... — ele quase berrava em meu ouvido.
— Qual é o seu nome?
Ri mais uma vez. Eu estava mais para uma piranha ninfomaníaca do que um cidadão
brasileiro. Tá beleza.
— Éron. E o seu?
— Dan. Daniel. Dan.
— Prazer. — brinquei, antes de receber mais um beijo duradouro.
Caminhando para fora da multidão depois de termos nos descolado, reparei em Hugo
beijando alguém totalmente mais baixo do que ele. Não, não podia ser. Me aproximei com
cautela e não precisei forçar meus olhos para ver que Hugo não estava com um cara e sim
com Helen. E Adriele!
— O que estão fazendo?! — questionei furioso.
— Primo. — Hugo sorriu. — Não vai me dizer que vai ter ataque de ciúme agora!
— Não, eu estou te ignorando totalmente. — afirmei, sacudindo minha mão para ele. —
Eu estou falando com vocês duas. Que tipo de consideração é essa? O maldito réveillon não
significou nada? O tratado de paz não significou nada?!
Helen e Adriele não sorriam, mas tal ato tinha sido proposital. Elas sabiam quem ele era e,
provavelmente, elas disseram a ele quem elas foram pra mim. Uma possível vingança ou uma
paranóia sem fundamento?
— Tá tudo bem? — Dan tocou meu ombro, encarando Hugo.
— Tá sim.
— Quem é ele? — Hugo perguntou em cima de minha resposta, sem tempo para
distinguir qualquer uma delas.
— Não interessa. — peguei a mão de Dan. — Continuem o bacanal, porque eu,
definitivamente, não me importo com nenhum de vocês.
No momento em que tentei caminhar com Dan para fora do Iate Clube, Hugo ocupou
meu caminho.
— Solte o Éron. — ele ordenou, a voz tão suave quanto um trovão.
Empurrei-o para trás para que me encarasse, mas ele parecia um pitbull sem Diazepam.
— Hugo, dá um tempo!
Puxei Dan pela mão e tentei sair novamente, mas ao invés de me parar, ele empurrou
Dan com força, fazendo com que sua mão se soltasse da minha.
— Eu disse pra soltar. — Hugo reafirmou, chegando perto de Dan.
Parecia uma batalha épica de vidas passadas, onde dois inimigos se encaram com vontade
de comer os olhos um do outro, porque tanto o ruivo quanto o loiro pareciam se odiar há
milênios.
— Quem é você? — ironizou Daniel, com uma expressão tão cruel quanto Hugo.
— Por favor, parem com o show, beleza? Têm seguranças ali na porta e eu não vou
hesitar em chamá-los.
— Acho melhor calar a boca. — pediu Helen, segurando a risada. — Começou a briga de
galo, Éron. Vai apostar em quem?
— Vá sugar um pênis, Helen! — elevei meu tom de voz. — Porque eu ainda me dou a
MERDA de trabalho de tentar ter uma relação pacífica com você?! Me comovi com todo
aquele seu papo de nunca me esquecer e mimimi e olha só, você fica com o cara que eu
gostei pra cuspir na minha cara!
— Esse é o preço por ter me deixado ir, Éron!
— TE DEIXADO IR?! VOCÊ ME TROCOU POR UM NADA! ME DEIXOU SEM
NINGUÉM!
— QUEM É OTÁRIO AQUI?! — era Hugo, gritando com Daniel. Duas brigas, um
motivo.
Antes que Daniel pudesse responder, Hugo levantou seu braço direito e desceu com toda
força em um murro relâmpago que virou o rosto de Dan, que no impulso girou e devolveu
com um soco na boca do estômago de Hugo. Achei que ele ia cair com a dor, mas aquele
ariano maldito se manteve de pé e tentou um golpe com o cotovelo esquerdo para quebrar o
nariz de Dan, que num movimento digno de Karate Kid, desviou e fez com que meu primo
“catasse cavaco” em direção ao chão, com uma das mãos na barriga.
Rapidamente, os seguranças pegaram ambos pelos braços e os arrastaram pra fora. Os
segui, ignorando Helen totalmente. Após um sermão do segurança e uma explicação furada
para não chamar a polícia, me juntei a Daniel.
— Tá tudo bem? — perguntei, examinando o rosto dele, que ia ficar inchado.
— Tudo bem. Quer ir pra minha casa, Éron? Acho que a noite acabou, por aqui.
Um estuprador, um estripador ou um açougueiro suculento era muito melhor do que
voltar com Hugobull pra casa, trancado dentro de um carro.
— Não ouse, Éron! — ele gemia de dor, curvado. — Eu vou contar pra sua mãe —
— CONTAR O QUÊ, HUGO?! O QUÊ?! QUE VOCÊ BRIGOU NA BALADA PORQUE
SENTIU CIÚME DO PRIMO QUE BEIJOU MAIS DE UMA VEZ?! É ISSO QUE VAI
CONTAR?! — cheguei perto, para que me escutasse muito bem: — Então conta!
Ergui meu dedo médio bem na cara dele antes de me dirigir com Daniel para sua super
picape Hillux vermelha. Sentado, após bater a porta, não aguentei esperar:
— Me desculpe por ele. Não o entendo.
— A culpa não foi sua. — ele sorriu. — Então ele é a sua parte de amor e ódio?
— Acredite, Dan, eu não o amo.
— Mas ele ama.
Gargalhei.
— Daniel, vamos esquecer o Hugo por essa noite, ok? Eu tenho um rosto machucado pra
cuidar e uma pizza pra pedir.
— Se machucou? — levou sua mão ao meu rosto, procurando alguma contusão.
— Eu estou falando do seu rosto.
Depois de uma troca de sorrisos, seguimos para a casa dele, que se situava em uma das
últimas ruas de Dourado, ao lado de um dos condomínios residências de colina mais caros da
cidade. Dentro de compridos muros cobertos de hera, uma construção facetada se levantava
do piso cercado de grama. Depois da garagem, uma piscina enorme brilhava azul por causa
das luzes internas. Caminhamos pela linha de pedra que ligava a garagem até a casa, com
suas paredes pintadas de vermelho bordô.
— Bela cor. — elogiei.
— Vermelho é minha cor preferida. — ele abriu a porta de madeira branca. — Junto com
branco.
Sua sala era incrível: do lado oposto à porta, uma janela colossal nos dava ampla visão dos
fundos da casa, junto da piscina, que cintilava fantasmagoricamente no escuro. Na parede
vermelha à esquerda da entrada, perto da janela, um colchão box de corte planejado se
transformou em sofá, em cima de um pallet branco. À sua frente, uma mesinha retangular
com rodízios, também branca e fosca, apoiava a TV LCD de várias polegadas, alguns livros e
uma antiga garrafa de soda com água e flores. Por sua vez, a mesa de jantar se fundia à sala,
bem perto da mesinha, combinando com a palidez dos móveis e o vermelho dos dois pares de
cadeiras de design arrojado. Na parede ao lado da mesa de jantar, quadros de intenso azul
quebravam a falsa monotonia do ambiente.
— Uau. — lancei. — Que sala perfeita.
Ele largou o chaveiro e a carteira sobre o aparador e me pegou pela mão, me guiando pela
escada. Me mostrou o banheiro social, a maravilhosa varanda com visão para o píer da praia
e seu quarto. Em seguida, tiramos a maquiagem de nossos rostos (e o gelo do dele) e
desmontamos nossas fantasias. Minutos depois, eu estava sentado em um dos bancos do bar
da cozinha planejada em alumínio, usando apenas a camisa social e a calça. Ele, por outro
lado, estava apenas de shorts, exibindo o resultado de anos na academia.
— Pizza ou miojo? — perguntou, segurando dois pacotes de macarrão instantâneo.
— Você é ruivo de verdade?
— Pizza, então. — ele riu, arremessando os pacotes de volta ao armário branco suspenso,
pegando o telefone em seguida. — Sou.
— Você não tem sardas. E sua sobrancelha é escura.
— Mas eu sou ruivo. Meio fora do padrão, mas sou. Mudando de assunto, você ainda me
deve uma explicação sobre o que houve.
Enquanto pedia a pizza, caminhando de um lado ao outro da sala, eu o observava do bar.
Não era pelo corpo fenomenal ou pelo rosto marcante, mas era pela sensação de estar
acertando. Meus relacionamentos tendiam a se destruir naturalmente, por eu ser de uma
natureza destrutiva (ou que atraia seres de tal natureza) ou uma mãe paranóica e assassina
espancar a filha que eu amei. Ainda não tinha ou pretendia ter algum tipo de relacionamento
com Daniel, mas eu sentia uma vontade de crescer quando estava perto dele. Ele adicionava.
Quem precisa de 24 horas pra conhecer uma pessoa?
— A pizza não vai demorar, mas a gente tem tempo pra conversar. Quem eram eles?
Sentado no sofá ao lado dele, segurando um copo de suco de uva, tentei resumir:
— Antes de Hugo aparecer e me mostrar o meu lado gay de ser, eu namorava uma garota,
a Mirla. Depois de ser traído por ela, fui traído pela minha melhor amiga, a Helen, a mais
loura das duas que estavam com ele. Ela me trocou pelo namorado porque ele tinha ciúmes.
Já a outra, Adriele, me sacaneou no réveillon, pra mostrar para Helen que o amor lésbico
delas é mais forte. Não que elas sejam lésbicas, mas eu acredito que Adriele adoraria
conhecer os emirados árabes da Helen. Ambas sabiam que eu já gostei do Hugo e que minha
atual relação com ele é conturbada, por ele estar passando um tempo aqui.
— Você não o ama? — Dan perguntou com cautela.
— Não. Sabe, passei a entender as patadas dele como um ponto final. Dei todas as chances
que pude, mostrei o que eu sentia, mas agora não passa de um sentimento que existiu.
Agradeço a ele por ter me dado a chance de abrir minha mente... ficar com um homem,
antigamente, era improvável.
— Ao contrário de você, eu sempre soube o que eu queria. É por isso que não falo com
meus pais até hoje.
— Eles não aceitaram?
— Meu pai levou “na boa”, mas minha mãe não. Ele era um capacho então, por ela,
deixou de falar comigo.
Um gás desnorteante chamado “pausa dramática sem graça” tomou conta do aposento,
assim como o cansaço emocional e físico da noite. O plano era comer a pizza e cair... na
cama. Ops.
— Quer mais suco? — nossos copos estavam vazios, e o silêncio precisou ser quebrado
por mim.
— Mais ou menos. — ele repousou o copo na mesinha retangular da TV e se inclinou
para me beijar, o gosto de uva em nossas bocas.
A coisa foi ficando mais intensa quando deixei meu copo vazio rolar pelo chão. Estávamos
deitados no sofá, com um beijo delicado, mas com tentativas de carinho mais íntimo da parte
dele. Depois de ter afastado sua mão da minha bunda umas três vezes, ele perguntou, muito
confuso, mas sem grosseria ou represália no tom de voz:
— Está tudo bem contigo?
— Tô bem... eu só preciso ser sincero sobre uma coisa. — me sentei. Ele fez o mesmo. —
Peço desculpas, mas não vai rolar nada hoje além dos beijos. Não que eu te ache feio ou que
sejamos estranhos um para o outro, mas pelo fato de eu nunca ter feito, tipo assim, sexo.
Ele riu.
— Então, se já tivesse feito, não teria problema em transar com um estranho?
— Ok, não foi isso que eu quis dizer. — ri também. — Eu só... não sei. Não estou
esperando alguém especial ou coisa do tipo. Só estou esperando vontade.
— Eu só imaginei que você e o Hugo tivessem...
— Não! Não mesmo! — fiz cara de nojo. — E eu me acho novo demais, também.
— Tem quantos anos? — ele estava vermelho, por ter rido.
— Não pira, beleza? — a reação das pessoas me assustava quando o assunto era a minha
idade. Ele fez que “sim” com a cabeça. — Tenho dezesseis.
Ele sorriu, sem graça.
— Posso dizer que você não tem essa idade tranquilamente.
— Eu poderia mentir tranquilamente. Mas eu tenho mesmo.
O som da campainha interrompeu a conversa que já pendia para um “não aguento mais,
quero dormir”. Enquanto ele trazia a pizza numa única mão, com a habilidade de um
garçom, eu o observei apoiar a caixa, abri-la, pegar os talheres, o suco e se mover. Ele era
gracioso. Se eu não soubesse sobre sua sexualidade eu nunca imaginaria, por ser tão sóbrio.
— Talheres pra que, cara? Legal é comer assim. — peguei uma fatia com a mão e joguei
na boca. — Pizza é a comida mais perfeita que a humanidade já criou.
E comemos pizza com as mãos, sentados no bar, rindo das minhas piadas sobre as
maneiras de comer e as regras de etiqueta à mesa. Quando terminamos, reclamei até a morte
por não ter uma escova de dentes pra usar e tive de escová-los com meus dedos e arranhar
minha boca com o fio dental. Perdi mais de meia hora fazendo isso.
Por mim, eu teria dormido no sofá mesmo, mas Dan foi gentil e me ofereceu sua cama,
para que ele fosse dormir no sofá. Eu nunca entendi bem a razão das pessoas terem quarto de
hóspedes em casa e nunca deixá-los preparados para alguma surpresa. Aceitei o convite de
usar sua cama, sem que ele precisasse sair dela. O ar-condicionado me arrepiava, enquanto o
grosso edredom vermelho de bolinhas verdes me esquentava. A cama tinha espaço suficiente
para três pessoas, então nosso contato, ao deitar, foi mínimo. Mas estar deitado na cama do
cara que conheci naquela mesma noite era engraçado e bom, em seu sentido mais infantil.
— Tá com frio? — perguntou ele. — Eu posso enfraquecer o ar...
— Não, tá bom.
— Mas você tá tremendo. — ele se virou pra mim e me puxou pra mais perto, devagar. —
Posso...?
Concordei com o pedido de abraço. À meia luz, ele passou seus braços por cima de mim e
me pressionou contra seu corpo, que pedia carinho inconscientemente. Precisava daquilo
tanto quanto eu. Éramos dois solitários em uma noite onde todas as coisas não pareciam
certas. Era tão puro, tão sereno... não demorei pra cair no sono e, se foi um sonho ou não,
tudo esvanecia em branco, com o som de Body Urge, da banda The Great Fiction, no fundo
de minha mente.
Episódio Nove
Poeira

M
arço conquistou espaço sorrateiramente, deixando de lado um turbulento
fevereiro e toda a mágoa que senti após abrir a porta de casa e mirar Hugo com
a expressão mais irada do mundo. Desde o dia que decidi voltar pra casa,
depois de passar a noite com Dan, passei a ver tudo de maneira diferente. Meu quarto já não
me abrigava e minhas tardes solitárias eram possuídas por rompantes de alegria pela
proximidade da partida de Hugo de volta para França.
Quanto a Daniel, pedi para que não me procurasse por algumas semanas, até eu me
acertar com a volta às aulas e a corrida mental sobre o “câncer-inexistente” de minha mãe e
as alegrias carnavalescas de uma festa para vadias. É, porque o colégio estava na porta de
minha casa, me esperando com um chicote na mão. Eu, a propósito, estava com uma granada
em cada mão e um rifle com mira infravermelha pendurado nas costas. Eu não queria guerra,
explicações ou conversas vazias, mas estava com a defesa pronta.
Eu podia esquecer o que era acordar cedo. Podia esquecer o que é ter de vestir aquele
maldito brasão no peito. Podia esquecer que estaria em um local onde fui rei, escravo,
vítima, imperador, idealista, feliz e depressivo. Podia esquecer que tudo de bom começou ali,
ao mesmo tempo em que evaporou. Eu podia, mas nada se comparava ao que eu sentia ao
parar de táxi naquele portão aberto, agora pintado de azul turquesa. All Star me apoiando no
chão e me guiando com passos sem absorção de impacto. Eu estava de volta.
Me flagrei rindo. Enquanto caminhava, as pessoas ao meu redor se abraçavam, contentes
por estarem revendo antigos amigos, relembrando antigas histórias. Tudo que eu semeei
quando pude não me gerou frutos duráveis, então eu não tinha nada para colher com a volta
às aulas. Se eu já não tinha nada ali, precisava aprender a nova lição: chegar sempre em cima
do horário, pra não ter de ficar vendo tamanha felicidade sem poder aproveitar um bocado.
Esperei o primeiro sinal berrar escondido no corredor da biblioteca, enquanto reparava
que, ao invés de ser totalmente invisível, as pessoas me olhavam, comentavam alguma coisa
e riam. Apontavam pra mim de forma sutil, como de bons modos apontam para um
assaltante. E eu nem sabia o porquê. A rajada de olhares críticos que recebi da porta até o
fundo da sala foram mais incômodos do que eu um dia pude imaginar.
Do outro lado da sala, Adriele e Helen riam a cada espiada em mim. Os grupos da turma,
fechados, me incomodavam com os corrosivos sons de risadas e comentários internos, que só
cessaram quando o professor entrou na sala com a barba por fazer e aqueles malditos olhos
de general, ordenando que abríssemos os cadernos e começássemos a copiar as incríveis
baboseiras da matemática, para coisas que nunca usaríamos na vida.
Com quase vinte minutos de aula, percebi que a porta da sala continuava aberta, com o
ar-condicionado ligado ao mesmo tempo. Eu não era o tipo ecochato, mas não curtia o
desperdício de energia à toa e todas as suas consequências. Ficar quieto era como engolir um
ouriço inteiro.
— Professor, a porta ainda está aberta. — alertei, cheio de respeito e serenidade.
— E daí? — ele não me olhou, mas sua voz estava empertigada, irônica.
— E daí que o ar está ligado à toa.
— E é você quem paga a conta do colégio, garoto? — ele parou de escrever, se virando
para me encarar com uma expressão que intimidaria qualquer outro, menos eu.
— Em parte. Meus pais pagam uma fortuna pra não te deixar passar fome e não nos deixar
morrendo de calor, então eu peço educadamente que feche a porta ou desligue o ar-
condicionado.
Um leve cochicho teve início em toda a sala, que foi rachado por um professor
descontrolado e soberbo:
— SAIA DE SALA! SAIA DAQUI AGORA!
— Ele não fez nada, seu louco! — me surpreendi ao ouvir um garoto se levantar, duas
carteiras atrás de mim, me defendendo. — Você é quem deveria sair de sala!
Achei que o professor Carlos ia voar em cima do garoto e espancá-lo até a ressurreição de
Nazaré Tedesco3, pois a veia de seu pescoço só faltava estalar alguma música da banda
AC/DC:
— SAIAM! OS DOIS PRA DIRETORIA! AGORA!
Antes que o garoto pudesse falar mais alguma coisa, fiz um sinal para que não discutisse e
descesse comigo. Arrumamos nosso material e nos dirigimos para a porta, onde Carlos nos
esperava de punhos cerrados:
— Eu tenho nojo de você. — murmurei ao passar.
Descendo as escadas para a secretaria, ouvindo reclamações cuspidas de Carlos para o
resto da vida, o garoto me perguntou, baixinho:
— Por que não queria que eu respondesse?
— Porque estamos certos. A gente ia perder a razão. Vamos à secretaria e sujar o nome
dele. É a melhor resposta que podemos dar.
— Qual o seu nome? — indagou ele, com um sorriso.
— Éron Brascher. — estendi a mão.
— Marco Vercetti. — a apertou com força.
Depois de meu discurso cheio de palavras bem selecionadas, uma olhada em minhas altas
notas dentro de todos os bimestres do ano anterior e as confirmações de Marco sobre a
discussão, a diretora-adjunta-com-jeito-de-lésbica confessou que o professor Carlos era um
homem difícil de lidar, até entre os próprios professores, e que eu estava certo. Algo ia ser
feito. Fomos liberados de voltar para a aula de matemática e nos sentamos no pátio externo,
perto do jardim de rosas que havia crescido muito desde o ano anterior. Carlos saiu da
diretoria resmungando baixo... eu ia ser reprovado em matemática.
— Veio de onde, Marco?
— Vim do Leblon. Moro aqui com a minha avó. Vive aqui desde sempre? — seus lábios
eram rosados ao extremo e ele, ao contrário de mim, era levemente bronzeado.
— Desde sempre. Não sei se quero sair daqui.
— O que você tem aqui que te impediria de ir embora?
Uma brisa da praia sacudiu os lisos, castanhos e bagunçados fios de cabelo dele,
montando-o como uma estrela rebelde da televisão em uma cena de ação.
— Se não fosse pela minha mãe, eu não teria nada.
Sem amigos, sem entendimento próprio para aceitar companhia, com um problema da
França, um pai com cérebro de coco de gato e vadias me rondando. Se não fosse por ela, eu
não teria nada mesmo.
— Eu entendo você, já fui assim. Mas... — ele liberou uma risada seca. — mas eu não
tenho mais alguém pra me agarrar.
— É órfão? — perguntei, com cautela.

3
A marcante vilã da novela Senhora do Destino, interpretada por Renata Sorrah.
— Praticamente. Meus pais me mandaram pra cá pra passar um tempo com minha avó.
Eu sou um problema pra eles.
Eu ia perguntar “sério?” antes de perceber a convicção em suas palavras. Não queria que
parecesse que eu o estava contrariando, então preferi fechar a boca. Cada filho sabe os pais
que possui. Eu conhecia meu relacionamento com os meus e, por mais que não admitisse
para eles, entendia o que eu sentia por cada um. Para o meu pai, desprezo. Para minha mãe,
amor em sua forma mais babaca.
— Em minha casa, meu pai é o problema. — eu forcei uma risada para quebrar a
seriedade. — Tudo seria mais fácil se ele, tipo assim, morresse.
— É do tipo que deseja morte? — ele sacudiu a cabeça negativamente, com os dentes à
mostra. — Garoto, você é mais cruel do que eu poderia imaginar só te olhando.
— Sabe o que dizem das aparências, né?
Ele sacudiu a cabeça de novo, sentindo a brisa acertá-lo como um beijo, antes de vir com
uma ideia:
— Nós estamos entediados e temos uma hora e meia pra gastar... o que me diz de sair
daqui?
— Não dá, o porteiro já está dominando a entrada e saída dos alunos. Estamos em horário
de aula, ainda.
— A gente não precisa sair pelo portão principal, Éron. É Éron, né? — afirmei com uma
risada. — A gente pode pular o muro e sair correndo daqui.
— O muro tem uns três metros! Quer morrer? Era só ter avisado ao professor Carlos, que
ele teria o prazer de passar em cima de você com o carro dele.
— Tem uma árvore no canto do jardim, seu mané. A gente sobe nela, eu pulo o muro e,
se você estiver com medo, eu te seguro quando for a sua vez.
Cocei a sobrancelha, o sorriso que não desaparecia de meu rosto. Ele estava me chamando
para uma aventura, para algo que eu estava louco pra fazer. Correr do colégio, fugir, fingir
que nenhum daqueles olhares incômodos existia. Eu podia fazer isso. Eu era a merda de um
Indiana Jones.
— Tá, mas se você me deixar cair, vai perder a única coisa em você que pode subir. —
avisei.
Corremos para a árvore como duas crianças babonas. Ele, habilidoso, subiu em um
instante, enquanto eu, o sedentário da vida, demorei alguns minutos e ganhei um belo
arranhão no braço. Ele se sentou no muro e pulou, dobrando os joelhos levemente e rolando
ao cair, isso no meio de uma crise de riso. Eu, morrendo de medo de quebrar alguma coisa,
fiquei com a bunda colada no muro, já em dúvida se deveria ou não pular.
— Éron, vem logo! — ele cochichava, desnecessariamente.
— Eu vou morrer se cair daqui!
— Vai morrer o cacete, pula logo! Quando cair, dobre os joelhos e tente rolar. Anda!
Respirei fundo e me encorajei: eu já estava no muro, na fronteira do lado A com o B. O
que eu tinha a perder, então? Um impulso, joelhos levemente dobrados, seguido por um
rolamento desajeitado: eu estava no chão. Inteiro.
— Você pode confiar em mim, cara. — ele estendeu a mão para que eu levantasse.
Corremos para a praia, atravessando a gigantesca avenida vazia, lutando contra a brisa
que nos empurrava de volta para o colégio-presídio. Com os pés no calçadão da orla,
diminuímos o passo. Eu morria, sem fôlego. Ele apenas irradiava liberdade.
— Vamos tomar alguma coisa. — ele pediu. — Qual o bar mais legal daqui?
— O que você é, alcoólatra? — brinquei, respirando com dificuldade. — A gente pode
tomar um milk-shake no shopping ou no píer.
— Milk-shake? Sério? Achei que o seu bad boy interior era de botar pra quebrar. — ele
parecia desapontado.
— Meu bad boy já foi do tipo que chuta barraco, mas hoje ele está reconstruindo tudo,
porque não tem mais onde morar. — pisquei.
Rimos todo o percurso até estarmos com milk-shakes de chocolate em mãos. Com um
copo daqueles, o tímido Sol era uma presença fantasma. Os olhares satânicos de adolescentes
cruéis eram bolhas de sabão neutro. Eu era o único sobrevivente de um filme de terror, anos
após a tragédia.
— De verdade, o que esperava ao vir pra Dourado? — murmurei para Marco.
— Não sei... nem sei se eu esperava alguma coisa. Ultimamente tudo tem corrido tanto
em minha vida. Eu mal paro pra respirar e alguma coisa me puxa pro inferno.
— Acho que é a maldição dos dezesseis anos. — brinquei, após um gole. — Tudo
acontece na adolescência, tudo morre nessa fase...
— Isso explica os nossos pais. — ele secou os lábios com o guardanapo. — Me dá medo
imaginar que poderei ser como eles. Me decepcionaria mais do que tudo.
— Eu tenho certeza que não serei como eles.
— E eu tenho dezessete anos. — adicionou, seguido por um gole engraçado que fez
barulho de pum. Só ríamos.
Andamos por quase toda a praia de Dourado, passando pelo calçadão comercial, onde
mostrei as minhas lojas de música preferidas; o “point” para comprar boxes de séries antigas e
filmes clássicos, os píeres mais movimentados das noites de Dourado e a minha pizzaria
M&D, ainda fechada, mas cheia de charme com seu cheiro de pizza cravado nas paredes.
Discutimos a importância de Luke Skywalker para a Academia Jedi e como Yu-Gi-Oh! tinha
sido tão legal anos atrás, nos levando a gastar centenas de reais em cartas que nem sabíamos
que tínhamos mais.
Depois de constatarmos nosso atraso para a aula seguinte enquanto comíamos biscoitos
amanteigados na doceria Sallat & Ahús, pegamos um táxi e descemos no portão principal,
com as caras mais lavadas do planeta. O porteiro só nos deixou entrar porque me conhecia,
sabia que eu era um ótimo aluno e, talvez, ainda me visse como o dono do lugar. Agradeci
com um sorriso simpático e guiei Marco para nosso laboratório de física, onde assistimos
oitenta minutos de aula sob os olhares curiosos e comentários sujos das víboras da classe.
Era tão legal ter Marco ali. Eu sempre desejei um amigo, um garoto que compartilhasse as
mesmas coisas que eu, o mesmo filme preferido, a mesma bebida. Tirando o milk-shake e a
dificuldade de aceitação de The O.C. e Dawson’s Creek como melhores séries juvenis
dramáticas de todos os tempos, ele era perfeito, justamente por amar Star Wars, ter
problemas com os pais e saber ouvir. O mais legal de tudo é que não havia uma gota de
tensão sexual entre nós, o que dava abertura para um tipo totalmente novo de
relacionamento. Algo que eu experimentei com uma mulher, mas precisava experimentar
com um homem.
Olha só... não é que a simetria da vida se aplica à tudo?

— Todos estão olhando pra você, Éron. — alertou-me Marco, assim que colocamos
nossos pés no pátio interno, após a aula.
Todo e cada aluno de Bertha Lutz me encarava naquele momento, fazendo o que eu mais
odiava: sorrindo diabolicamente. Difícil acreditar em minhas lembranças quando penso que
já fui como eles. Não conseguia sentir nada além de nojo.
— Aprenda uma coisa sobre esse colégio, Marco: eles são hexágonos, cheios de faces. Eu
realmente não sei o motivo, mas tem alguma coisa rolando. E eu peço, acima de qualquer
coisa que você ouça de alguém, que não acredite neles.
— Éron — ele colocou a mão em meu ombro. —, eu disse que você pode confiar em
mim.
Meu sorriso durou pouco tempo, até Bruno Braga, do segundo ano, passar por nós com
seus colegas carecas e soltar, junto de um grunhido:
— Esse é seu novo namorado, veado?
Gelei dos pés à cabeça. Somar um mais um, todo mundo sabe, resulta em dois. Alguém
contou sobre minhas aventuras! Alguém contou para o colégio que eu tinha saído com
homens! Alguém que poderia ter todos os motivos do mundo para fazer o que fez, mas que
mesmo assim, conseguiu fazer com que eu me sentisse o maior lixo da face da Terra. O medo
me dominou por completo. Tudo que minha vida escolar tinha pra se basear naquele
momento era o início do caos de violência, exclusão e, talvez, o afastamento de Marco ou
qualquer outra pessoa similar, de mim. Tudo que eu não tinha, perdi naquela manhã.
— Que história é essa?! — Marco jogou em cima de Bruno, pronto pra briga.
— Você é o novo namorado da bichinha? É, porque todo mundo sabe, Éron: você gosta
mesmo é de uma piro —
— CALA A DROGA DA BOCA, BRUNO! — o peguei pelo colarinho, empurrando-o até
a parede, surpreso com minha reação. Meu punho se mantinha a alguns centímetros do rosto
dele, enquanto o meu se dobrava em ódio. Eu estava pronto para matar. — Quem te falou
isso?! HEIM?! QUEM TE FALOU ISSO?!
Bruno se postou a rir.
— Vai, me bata, Éron. Você é do tipo especialista, né?
Talvez ninguém naquele pátio esperasse que minha mão fechada fosse fazer um belo
“crack” no nariz de Bruno com tamanho fervor. O rio vermelho de suas narinas tingiu boa
parte de meu braço direito e minha camisa, antes branca. Ele se contorceu de dor e se deixou
escorrer pela parede, gemendo e segurando o nariz com as duas mãos, como um bebê
deformado.
Instantaneamente, seus dois companheiros tentaram pular em cima de mim, mas Marco
se meteu na frente e nocauteou um deles com um chute na altura do maxilar, caindo por
cima do outros. Ambos rolaram no chão. Olhei ao meu redor para dar de cara com todo o
colégio me encarando.
— QUEM FOI QUE FEZ ISSO?! — gritei. Eu estava fora de controle, mas era engraçado
como não me sentia mal por isso. Eu não queria me controlar. Eu queria ser livre. — QUEM
FOI A VADIA QUE ESPALHOU ESSA HISTÓRIA?! VEM AQUI! O QUE VOCÊS TÊM PRA
ME DIZER, HÃ?! DIGAM O QUE FOR NA MINHA CARA!
— Éron, se acalme. — Marco me pegou pelo braço, tentando me acalmar. — Já chega.
— EU NÃO SAIO DAQUI ATÉ HELEN E ADRIELE MOSTRAREM SUAS CARAS PRA
MIM!
— Éron, você nem sabe se foram elas —
— É CLARO QUE FORAM! — gargalhei de desespero, sentindo formigar até o dedo
mindinho de meus pés. — QUEREM SABER DE UMA COISA? É TUDO VERDADE! SIM,
EU BEIJEI HOMENS! E NÃO DOU A MÍNIMA PRO QUE VOCÊS, MERDINHAS,
PENSAM SOBRE MIM! VOCÊS VIVEM NESSE POÇO DE MENTIRAS, FINGINDO
FELICIDADE, FINGINDO LIBERDADE, MAS VOCÊS NÃO SABEM NADA SOBRE QUEM
SÃO E NEGAM SUAS PRÓPRIAS PERSONALIDADES! POR QUÊ? POR UM MEDO
IMBECIL DE DEIXAR DE PERTENCER! MAS QUEREM SABER? QUE SE DANE! EU NÃO
QUERO SER COMO VOCÊS E NÃO DOU A MÍNIMA PRO QUE VÃO ACHAR DISSO!”
O colégio estava em silêncio. Meus olhos, cheios de lágrimas de ódio, ardiam como se eu
tivesse esfregado cebola neles. Todos me fitavam com surpresa extrema, no nível zero de
sonoridade, que foi interrompido pelos passos pesados do salto alto da diretora adjunta.
— Mas que diabos é isso?! — resmungou, surpresa ao ver Bruno chorando no chão, com o
nariz cheio de sangue. — Alguém pode me explicar o que está havendo?!
— Fui eu. — me entreguei. — Bati neles.
— Eu também. — Marco disse logo depois.
— Me acompanhem agora! — o tom severo ia além de sua voz, sendo transpassado por
um fio etéreo de seus olhos para os meus. — E alguém chame os enfermeiros! — gritou para
o colégio.
Acompanhamos a diretora sem entusiasmo algum. Marco, muito preocupado, me olhava
com espanto, me perguntando a todo momento se eu estava bem. Não podia definir como
algo bom eu ter minha vida sendo exposta da maneira que estava, ainda mais por conter um
extremo teor homossexual, mas eu não estava arrependido. Eu tinha algo dentro de mim que
precisava ser jogado na cara das pessoas e, de certa forma, eu senti alta excitação ao chocar
aquelas pessoas ao invés de, simplesmente, me esconder delas. Eu fiquei mais forte depois
daquilo.
— Éron, já é o nosso segundo encontro hoje e isso me deixa muito decepcionada. — o
tom severo desaparecera, dando lugar para um discurso de mãe desapontada.
— Eu não vou pedir desculpas. — eu estava sóbrio, porém sem medo algum de represália.
O que eu tinha pra perder?
— Apenas me explique o porquê disso ter acontecido, Éron. Você me parecia um grande
garoto, até pela sua atitude em sala hoje... Por que agir dessa maneira?
— Há coisas que a senhora não entenderia. — Marcos falou, antes de mim. — Há motivos
que fugiriam da sua compreensão. Olha, eu conheci o Éron hoje, e ele é esse “grande garoto”
que você achou que ele fosse. Ele é. Não tenha dúvidas. Só que o colégio não é só um lugar
pra estudar ou aprender química orgânica. É um covil, cheio de jovens cruéis que vão fazer
qualquer coisa pra diminuir alguém pra que eles se sintam melhores. Eu aguentei isso
durante anos de minha vida. Éron também, porque ser um “grande garoto” custa caro. Então
não o julgue.
— Como quer que eu não julgue com o fatos presentes? Um garoto com o nariz
provavelmente quebrado e um discurso louco de um adolescente fora de controle. Como não
julgar isso?
Ela tentava se mostrar compreensiva, mas a verdade era: ela nunca entenderia. Chega
uma hora na vida que a gente desiste de fazer com que as pessoas entendam. Eu preferia ficar
calado.
— O que vai acontecer com a gente? — perguntou ele.
— Marco, antes de eu me decidir, preciso saber se você bateu em alguém.
— Bati em um deles. Um chute. Eles estavam partindo pra cima do Éron, porque foram
eles que começaram todo esse tumulto.
— Eu só saberei quando eles puderem falar. De uma maneira ou de outra, vocês
receberão suspensão de uma semana. Na próxima segunda-feira, voltarão aqui para
esclarecermos o que houve. Após isso, decidiremos um “castigo” mais elaborado.
— E eles três, diretora? — Marco estava indignado.
— Eles são meus problemas. Não se meta com isso. Cuide de seu tempo para refletir sobre
o que fizeram, como reagiram ao que vocês chamam de ataque. Na segunda quero os dois
aqui. Estarei contatando seus responsáveis imediatamente, para que a permissão de liberação
lhes seja dada. Me esperem na sala da coordenação.
Saímos daquele calabouço sem trocarmos uma palavra sequer. Nos sentamos no sofá de
espera da coordenação e não trocamos olhares. Marcos queria me dizer coisas, mas não
queria parecer um chato super preocupado. Eu soube, por tudo que ele fez, que seria o
grande amigo que eu estive esperando por tanto tempo. Depois de tantas águas ruins em
minha vida, boas pessoas resolveram se encontrar comigo. E eu decidi que Dan era uma delas
também.
— Obrigado, Marco. O que você fez por mim ninguém faria. Ninguém fez. Obrigado.
— Éron, eu não sei como é pra você, mas eu realmente sinto um carinho especial por sua
pessoinha estressada. Não consigo explicar, mas é bom saber que eu tenho um ombro.
— Não só um ombro. Você pode confiar em mim.
— E você em mim.
Nos encaramos por alguns segundos.
— Nossa, parecemos Batman e Superman. — brinquei.
— Você é o Superman, porque aquele direto de direita na cara do moleque... coisa de
kryptoniano4.
Rimos com vontade daquelas piadas imbecis criada por dois amantes de super-heróis
depois de uma manhã hiper tensa. Nos separamos quando recebemos permissão para
partirmos acompanhados por nossos responsáveis. Sua avó não parecia contente — ou
surpresa — por pegá-lo no colégio após uma confusão. E pareceu não ir nem um pouco com
a minha cara. Minha mãe chegou em seguida, forçando assuntos dentro do carro e fazendo
todas as perguntas possíveis para entender o que aconteceu para que eu levasse uma
suspensão de sete dias. Reclamou de como eu estava sendo frio e de como meu pai ficaria
irado com a situação. Falou tudo como se eu fosse me importar com alguma coisa.
Minha mãe me prendeu na cozinha com a promessa de fazer algo para comermos. Só não
saí dali porque eu sentia certa vontade de ficar com ela, sem ter de tocar no assunto, por mais
que eu soubesse que era mais um “jogo inocente” para tentar fazer com que eu me sentisse
confortável para lhe contar o que houve. Apesar do colégio já tê-lo feito. Sem os detalhes
gays, é claro.
Hugo estava sentado ao meu lado, na mesa, enquanto minha mãe montava mistos quentes
para a gente. Não senti vontade de sair de perto ou raiva ao cubo, mas notei que ele estava
nulo ali. De verdade, pela primeira vez em tempos, Hugo não significava absolutamente
nada pra mim. E o incômodo por sacar isso estava estampado em seu rosto.
— Éron, seu primo vai embora na sexta. Não acha que deveríamos fazer alguma coisa
como despedida? — minha mãe era tão ingênua por achar que tudo estava bem entre os
membros daquela família...
— Acho sim. — concordei. — O que acha de darmos uma festa para parentes e amigos
próximos, com bastante comida?
Hugo e minha mãe deixaram seus dentes aparecerem. Ele, surpreso e vaidoso. Ela, feliz
por ter um filho tão bom. É claro.
— Acho ótimo. — assinalou ele, orgulhoso.
— É, porque eu preciso muito comemorar sua partida, primo. Eu sou, tipo assim, um
santo pra ter te aturado esse tempo todo sem ter enfiado um balaço na sua cara. — seu
sorriso desapareceu. O meu brilhou.

4
Aquele que nasce no fictício planeta Krypton, terra natal de Superman.
— Éron! Será que essa sua rinha com as pessoas nunca vai parar? — minha mãe, de novo.
— No dia que você parar de olhar para os outros e passar a entender como o seu filho é
tratado por essas pessoas, talvez eu pare. Mas sabe, nem faço questão. Por mim, você pode
adotar essa coisa ou trocar por um iPod. Se for um MP3 player baratinho já que vai ser lucro.
— Tudo bem, tia. — Hugo voltou a sorrir, pronto pra soltar alguma coisa tosca. —
Quando ele perceber que não tem ninguém além de nós, da família, vai voltar correndo.
— Na verdade, a única pessoa que eu tenho e chamo de família é minha mãe. O resto é
resto. Você é resto. E eu não tô mais com saco pra discutir. Eu tenho a impressão de que
gasto saliva à toa por pessoas que nem valem o sacrifício. E, mãe, quando quiser que eu te
diga os motivos que me levaram a brigar hoje, passe a ser sincera comigo. Você é a única
coisa que me prende a essa casa. Se você não estivesse aqui, eu não estaria.
Me levantei, tirando o celular do bolso.
— Aonde vai, Éron? — os olhos de minha mãe estavam molhados e seus dedos tremiam
enquanto esperava a chapa avisar que os mistos estavam prontos.
— Eu vou comer fora. Não estou com raiva de você, antes que pergunte. Nem de você. —
apontei para Hugo, rapidamente. — Só preciso, sei lá, conversar de verdade.
Me despedi com um desajeitado aceno de cabeça e disquei o número da salvação.

Esperei aqueles alaranjados fios de cabelo tocarem meu rosto em um abraço fraternal,
depois de ter esperado alguns minutos sentado no meio-fio de alguma rua de Dourado. Dan
não demorou pra comparecer após a minha ligação.
— Éron, existem pessoas que trabalham. — brincou, se sentando no meio-fio, agora perto
de seu carro estacionado.
— Desculpe. Eu meio acho que todo mundo é vagabundo, como eu. Falando em trabalho,
você trabalha vestido assim?
Ele usava uma simples bermuda preta e uma bata branca, meio transparente, como se
tivesse passado o dia surfando.
— A empresa é minha.
— Empresário? Cadê a sua gravata?
— Sou arquiteto, Éron. — ele riu. — Nem parece, né?
— Isso explica sua casa. — cacarejei, animado com a descoberta. — Mas se estava
trabalhando, por que está aqui?
— Porque eu posso sair quando quero e... e porque você parecia precisar de alguém. Fico
feliz por ter se lembrado de mim, já que passou esse tempo todo sem me dar sinal.
— Eu sei, desculpe. Precisava de tempo pra colocar tudo no lugar. — resolvi me sentar ao
seu lado. — E eu coloquei as coisas no lugar. Inclusive o nariz de um garoto do colégio.
— Você brigou com alguém? — ele me deu um leve beliscão no braço direito.
Expliquei pra ele como foi meu dia, sem esconder detalhe algum. Ele ouvia tudo sorrindo.
Quando alguém está apaixonado, sempre sorri de tudo, com uma cara de furão horrorosa,
mas ele não sorria como um bobo. Era um sorriso dele, parte de sua personalidade.
— E ainda vou ter de ouvir do meu pai quando chegar em casa, à noite. — concluí.
— Não precisa. Pode dormir na minha casa, se quiser. Não vou acordar com você porque
vou terminar um projeto amanhã cedo, mas não terá de ouvir seu pai por hoje.
— Sério que isso não vai te incomodar?
— Nem um pouco, cara. Olha, eu vivo naquele lugar sozinho e você é uma pessoa que, sei
lá, me instiga a dividir espaço.
— Isso quer dizer que...?
— Que eu gosto de ter você lá. E aqui.
Ele inclinou seu rosto para o meu, para que houvesse aquela onda de choque através de
nosso beijo. Pela primeira vez em tempos, me arrepiei de maneira absurda. Charme era a
senha mágica para a caixa da felicidade.
— Já que eu te tirei do trabalho e fui suspenso do colégio por ser um péssimo exemplo —
continuei, após o beijo —, vamos dar uma volta na orla, comer alguma coisa...
Dan deixou o carro estacionado e seguiu a pé comigo para a orla, dividindo em meus
fones de ouvido a música Restaurant, da banda The Thrills. Mesmo antes do meio-dia, as
pessoas já corriam apressadas no calçadão comercial, em contraste com os quarentões e seus
filhos, que corriam na praia pra manter algum tipo de “rotina saudável”. Mesmo que, no fim
do dia, se entupissem de chocolate. Mas era bonito assistir as pessoas caminhando por ali. Era
possível sentir certa magia na praia de Dourado que não havia em nenhuma outra.
Não é um tipo de afirmação considerando Dourado a melhor praia, mas sim que havia
algo diferente no ambiente. Algo que me fazia sentir certa pressão na boca do estômago
enquanto ouvia as músicas de minha biblioteca de 21 gigabytes. Algo que me enchia de
tristeza, ao mesmo tempo em que me oferecia alegrias. Era o meu lar, o lugar que eu preferia
estar. O lugar que eu aceitei dividir com as pessoas mais importantes pra mim: umas
aproveitaram, outras não. Mas naquela manhã, Dan estava presente, rindo comigo, ouvindo
música comigo e absorvendo aquela magia comigo, dentro daqueles All Star brancos sem
meia.
Ele era um homem. Mas não era a razão de eu querer estar com ele. Comigo, as coisas
contavam de maneira diferente da do resto do mundo. Meu emocional não se levava pela
falta ou presença de alguma protuberância entre as pernas. Eu me permitia pela quantidade
de carinho que eu recebia de pessoas, personalidades distintas que me davam chances de
sentir. Eu tive de passar pelas coisas que passei pra entender que eu não precisava me negar a
felicidade só porque boa parte dela estava nos braços — muito bonitos — de um homem. E
também que o fim de um relacionamento praticamente perfeito, com a menina dona da
risada mais divertida do mundo, não precisava ser doloroso para sempre. Mesmo que
perguntas ainda estivessem flutuando em volta de minha cabeça, como aqueles fantasminhas
cobertos por lençóis, que assombram a mente dos personagens de desenhos animados.
Caminhamos sobre a areia na ponta dos pés, para que os grãos não entrassem em nossos
sapatos. Chegamos ao píer apoiados um no outro, tendo como destino a sorveteria, com mais
de duzentos sabores de picolés, sorvetes e milk-shakes. Eu era um cliente fiel: só tomava
milk-shake no Bob’s. Os sorvetes ficavam por conta daquela moça simpática da sorveteria
sem nome. Porque poucas lojas nos píeres tinham nome. Essa sorveteria, por exemplo, era
conhecida como “a sorveteria do píer” ou “vamos para o píer tomar sorvete?”. Pra que um
nome se o local é point?
Pegamos duas taças com bolotas de sabor creme, absolutamente congelantes, e iniciamos
nossa lambança para a lateral do fim do píer, onde poderíamos admirar o mar e conversar ao
mesmo tempo.
— Eu era suspenso constantemente, quando frequentava o colégio. — disse Dan. — Não
é algo que eu me orgulhe, mas não me arrependo. Meus pais forçavam a barra demais, e eu
tinha certo prazer em contrariá-los.
— Não me fale em contrariar. Eu sou um grande filho, maravilhoso, se comparado aos
outros da minha idade. Eu não bebo muito, não fumo, não me drogo, nunca transei, nunca
engravidei ninguém e mal tenho espinhas!
— Mas os pais nunca estão satisfeitos. — ele apontava para mim com a pequena colher
vermelha de plástico. — Se você fosse um filho ruim, iam encher o saco pra você melhorar o
seu temperamento. Se é um bom filho, vão arranjar algo que não gostam em você, como a
bagunça do seu quarto, e jogar isso na sua cara. Mesmo se você melhorasse essas coisas que
eles vivem pedindo para você melhorar, eles iam achar outras.
— Isso não é coisa dos pais. É do ser humano. Sempre quer mais, fica esperando que as
pessoas preencham suas necessidades e expectativas. — nos sentamos no banco de madeira
na lateral direita, no fim do píer. O mar estava calmo, opaco. — É por isso que eu não
acredito que as pessoas amem. É tudo expectativa.
— Fala isso por experiência de vida? — me lançou um olhar maroto.
— Falo tudo por experiência de vida. E se achou que Hugo se inclui nisso, meio que
acertou. Eu achei que gostava dele, mas eu gostava da imagem que eu criei dele, de como ele
seria se mudasse. Eu estava apaixonado por um Hugo que nunca existiu. Já Ana, minha
última namorada, era intenso. Era diferente dele. Eu sabia quem era ela, e ela me conhecia
também.
— E terminaram por...?
— Porque ela tem problemas maiores do que eu estou acostumado a lidar. Meio fora do
meu controle. E do dela.
Nos calamos por alguns segundos, para degustar a cobertura de morango em cima do
creme antes que derretesse. Logo, ele retomou o assunto, um pouco desajeitado:
— Eu acredito no amor. Sei que tem essa coisa de expectativas, mas a graça não é essa?
Porque, num relacionamento, existem dois lados um pouco diferentes. Se um deles não
esperar que o outro mude ou sacrifique alguma coisa para que ambos saiam bem, então não
há cumplicidade.
— Não sei... — sacudi a cabeça negativamente. — Não consigo acreditar nisso, ainda.
— Bem, eu fiz isso hoje por você, não fiz? Você esperou algo de mim. E eu sanei sua
expectativa.
Franzi o cenho, me sentindo um pouco retardado por não ter pensado naquilo antes. Ele
realmente tinha feito um sacrifício por mim, não um daqueles dolorosos, mas um dos
simples, que só percebe quem faz. Ele fez. E aquilo apertou o botão “iniciar” para uma nova
série de análises sobre minhas teorias furadas de amor. Não que eu amasse o Dan ou ele me
amasse, porém liguei pra ele com expectativas. Ele aceitou com expectativas. Então a graça
de tudo era isso mesmo?
— Olha! Finalmente você não argumentou. — ele sorriu para o mar. — Aposto que pouca
gente consegue deixar você sem argumento. Fico feliz em saber que ainda existem maneiras
de fazer você calar a boca.
Dei uma leve cotovelada com um sorriso no rosto. Terminamos nossos sorvetes com
nossas bochechas rosas, e voltamos com passos vagarosos para o seu carro, estacionado a
algumas ruas da orla.
— Vamos, te levo em casa pra você pegar suas coisas. Saiba que pode ficar no meu
barraco pelo tempo que quiser. Não se preocupe com isso.
— Eu não me preocupo. — entramos no carro. — Meus pais sim.
Dan estacionou bem em frente à minha casa e esperou encostado do lado de fora da
picape, de braços cruzados, como se estivesse demarcando território. Entrei sem fazer alarde
pela garagem, dando a volta pela cozinha. Despejei todas as roupas que mofavam dentro de
minha mala de viagem em cima da cama e separei algumas camisas, calças, cuecas, meias e
outras coisas, jogando tudo lá dentro, sem ao menos dobrar. Abri a porta do quarto com
cautela, olhando para os lados: silêncio total. Minha mãe e Hugo, provavelmente, estavam
assistindo pinguins nigerianos requebrando na boate dos tubarões gays.
Corri para o banheiro e peguei meu pente, creme de pentear, escova de dentes, pasta de
dente branqueadora, enxaguante bucal branqueador com proteção 12 horas, hidratante facial
e desodorante especial, empurrando tudo na bolsa. Quando terminei de escrever o recado
num pedaço de papel, deixei sobre a bancada, peguei meu notebook e corri dali, saindo
escondido pela cozinha.
Ao me afastar da garagem em direção à rua, ouvi uma conversa meio sinistra entre Dan e
Hugo. Me escondi nos arbustos laterais pra poder entender o que diziam:
— Deveria saber que as coisas são assim. — Dan estava concluindo algo que eu não ouvi
antes, então não pude compreender.
— Você se acha muito esperto, né? Eu poderia contar tudo pra mãe dele. Como você acha
que ficaria? Sabe que andar com menor é crime. Eu poderia te colocar atrás das grades num
instante.
Dan inclinou a cabeça para trás e lançou uma leve gargalhada elegante e debochada para
Hugo.
— Você não vai dizer nada, Hugo. Não precisa vir pra cima com ameaças vazias.
— E como tem tanta certeza de que eu não faria? — as ameaças de Hugo não pareciam
nem um pouco vazias: ele falava sério.
— Você o ama! E isso está mais na cara do que qualquer coisa, otário. Éron não enxerga
isso porque só ele recebeu o tormento que você criou. Ele desacreditou nas pessoas, e acho
que tenha sido por sua causa. Mas eu sei que você, por mais estúpido e mesquinho que seja,
não faria esse tipo de maluquice, porque sabe que o afastaria mais ainda de você.
Congelei da cabeça aos pés. Meus olhos pesaram e passaram a encarar o chão, vazios.
Hugo me amar? Coisa impossível! Dan não conseguiria entender o que aquele monstro me
causou, e talvez estivesse certo sobre isso ter influenciado minha capacidade de confiar nas
pessoas, mas Hugo não me amava. Alguém que ama, alguém especial, não te faz sofrer. E
Hugo era uma droga de especialista em me fazer chorar.
— Sabe por que você ficou sem palavras? Porque sabe que isso é verdade, por mais que
não admita. E eu percebo que só agora, sabendo que não pode tê-lo, você vai passar a querê-
lo de verdade. Mas você perdeu, Hugo! Ele vai ficar na minha casa o tempo que quiser, sem
você ou qualquer outra pessoa pra encher o saco. Vai ser tratado com o carinho que merece,
porque ele é um cara incrível, e eu me surpreendo de como você conseguiu deixá-lo ir.
— Não banque o psicólogo comigo. — Hugo debochou com uma risadinha. — Eu posso
estalar os dedos e ele volta correndo pra mim. Eu conheço o Éron, sei do que ele precisa. Só
eu posso dar isso a ele.
— O seu grande erro é pensar que você é a única pessoa do mundo capaz de suprir as
necessidades dele. É no seu erro que eu estou acertando.
Eu não podia vê-los, por estar escondido nos arbustos, mas senti o clima pesando. Logo
fingi sair da garagem e caminhar na direção deles, como se não tivesse ouvido coisa alguma.
Ignorei Hugo ao passar e joguei minha mala na caçamba, entrando na picape em seguida.
— Seu pai vai acabar contigo amanhã. — Hugo ameaçou, sorrindo.
— Eu não vou voltar amanhã. — proclamei sério.
Dan entrou na picape com um belíssimo sorriso de vitória e se despediu de Hugo com
uma troca de olhares de desafio. Naquele instante, percebi que Dan tinha razão: Hugo não ia
contar nada para os meus pais. Ele era fraco demais para isso.
Disparando em alta velocidade, deixei para trás o local que já foi meu castelo, meu
refúgio. Deixei para trás os problemas que eu não estava a fim de enfrentar naquele dia,
naquela semana. Deixei para trás a poeira levantada do asfalto, fazendo questão de que Hugo
a comesse por completo.
Episódio Dez
As Sete Letras

A
cordar ao lado de Daniel durante os dias seguintes foi positivamente diferente de
quando eu convivi com Ana em minha casa. Só me deitar para dormir com ele
era diferente. Ele tinha um cheiro tão másculo que me incomodava, de certo
modo, e quando me abraçava, já dominado pelo sono, me apertava forte contra seu corpo.
Havia algo mais sexual da parte dele, dava pra sentir. Não algo que faltasse com respeito ou
me deixasse encabulado, e sim uma necessidade dele, mesmo inconsciente, que eu entendia
perfeitamente.
Me tratava com gentileza, respeitava meus limites, me dava espaço e, quando tinha de
trabalhar, se certificava de ter tudo em casa, para que eu não precisasse sair pra comprar
nada. Falando nisso, a geladeira dele nunca teve tantas pizzas congeladas, latinhas de Sprite e
lasanhas de microondas. O mais legal era que ele, simplesmente, só me fazia sorrir. Quando
ficávamos juntos, nos momentos mais íntimos, só conversávamos, nos beijávamos e
ficávamos abraçados assistindo coisas avulsas na TV.
Ele atendia meus desejos, mas sabia balancear para que eu não enjoasse dele ou que essa
característica o transformasse num completo babaca. Eu, por outro lado, só tinha minha
presença pra oferecer. E isso bastava, pra ele. Mas era sexta, eu precisava voltar pra casa, já
que Hugo ia partir. E não tinha encarado meu pai ainda, o que eu faria quando o demônio da
discórdia tivesse ido embora.
Minha mãe e Marco foram as únicas pessoas a me procurar através do celular. Ela pra
saber se eu estava vivo pelo menos duas vezes ao dia. Ele pra saber como eu estava vivo, uma
vez na semana toda. Com esse trio, eu quase me senti um garoto normal, sem um passado
depressivo causado pela solidão. Eu estava me tornando... completo?
— Vai voltar pra cá no final de semana? — Dan perguntou, me assistindo guardar as
coisas na mala. De tanta intimidade, resolvi deixar minha escova de dentes. Legal, né?
— Acho que não. — respondi, me decidindo enquanto jogava minha cueca favorita do
Mickey Mouse junto com o resto das roupas amassadas. — Já que o Hugo vai embora, posso
encarar meu pai de boa. Ele é incômodo.
— Seu pai ou Hugo?
— Os dois. — revirei os olhos e esbocei um sorriso. Eu realmente estava feliz por me ver
livre de Hugo. Eu não precisava mais dele.
— Sobraram três pizzas de calabresa na geladeira, o que eu vou fazer com elas? — Dan
estava brincando comigo, mas eu sabia que ele tinha se acostumado com minha presença. Ia
sentir falta. Uma energia que eu percebi nos dois primeiros dias na casa dele é aquele vazio
enorme de pessoas solitárias. Eu era especialista para entender essas coisas, porque eu era tão
sozinho quanto.
Me levantei devagar e sentei ao seu lado, na cama e o encarei por alguns segundos.
— Dan, isso não é um adeus. Você sabe que eu não sou o tipo mais romântico do mundo,
mas não sou um bicho, ok? Eu não estou partindo. Eu vou voltar pra casa, pra estabelecer as
coisas. Se quiser, a gente até pode sair amanhã, ou ver algum filme aqui. Sei que as portas
estarão sempre abertas.
— Não quero parecer desesperado, porque eu não estou mesmo, beleza? — ele estava na
defensiva, rindo. — Mas, nessa casa, vai ficar faltando a melhor peça de decoração que eu já
encontrei na vida.
Lancei-lhe um olhar de interrogação e fiz uma careta, em seguida.
— Tá, isso foi mega gay.
Apenas sorrimos. Admirei-o de novo e roubei um selinho.
— Quando estiver pronto, me avise. São nove da manhã e não há outra coisa pra comer
além da pizza fria que sobrou de ontem. — ele se levantou, parecendo mais leve. — Maldito
seja esse seu costume.
E saiu para a cozinha. Fiquei na cama mais alguns minutos, olhando para o nada do canto
da parede. Se eu aceitasse o fato de termos morado juntos, ia me odiar por um bom tempo.
Em minha mente, eu morar com um cara era algo meio feio, meio errado demais, então eu
preferia denominar o que tivemos de experiência-quase-morando-junto-sem-morar, morou?
Roubei uma fatia de pizza fria enquanto caminhava com a mala para a picape, morrendo
de prazer com o sabor de dia seguinte do queijo. Não conversamos mais sobre preocupações
acerca de Hugo ou solidão após partida, mas comentamos coisas normais, como o tempo
nublado, chuva e a previsão de ventania em Dourado no dia seguinte.
As nuvens cinzentas filtravam a luz do Sol e deixavam tudo à vista com uma
fantasmagórica falta de saturação. Os cabelos laranja de Dan brilhavam foscos, lembrando
uma mistura de sangue com corante de alimento. Seus fios pareciam finos macarrões cheios
de molho. Tive medo de mim quando me percebi perguntando o sabor dos cabelos dele. E os
imaginei em minha boca. Eca.
— Se tentarem bater em você, assaltar você ou se as coisas saírem do controle, me ligue.
Eu venho correndo e quebro a cara de todo mundo.
— Nossa, como ele é macho. — sorri.
O momento pedia um beijo, porém demorar na picape do amigo que você dormiu junto
por dias não pega bem, caso sua mãe esteja olhando pela janela da sala. Um selinho foi o
suficiente antes de descer do carro. Sem frescura, ele arrancou com a picape quando terminei
a travessia do gramado para a porta de casa, destrancada.
Em silêncio, abri a porta do quarto e deixei a mala ir contra o chão com o agressivo
arrepio que derrapou pelo meu corpo, como uma moto num racha: Hugo, esparramado em
minha cama, usando apenas uma cueca boxer estampada com jornais antigos. Apesar da
minha ira, o arrepio que eu senti não foi de raiva ou choque. Foi algo novo, completamente
diferente. Tanto que, ao invés de bater no saco dele com meu exemplar de Harry Potter e a
Ordem da Fênix, eu tranquei a porta e inspirei tão profundamente que senti meus pulmões
se expandirem para os lados.
Deixei a bolsa de lado e me aproximei para visualizá-lo melhor. Com os braços acima da
cabeça, como que se espreguiçando, seu quadril apontando para a minha direita e suas pernas
relaxadas, ele estava dentro de uma daquelas cenas onde o cara acaba de transar e dorme sem
tomar banho. Meu edredom enrolado em sua perna esquerda me deixou com um pouco de
inveja, ou ciúme. De quê — quem —, ao certo, eu não soube.
Mesmo dormindo, sua expressão era pura soberba. Ele era um rei vagabundo de algum
reino onde vinho, maconha e orgias eram coisas totalmente comuns. A representação
máxima da beleza humana, do acerto na criação de um homem inimaginável, quase perfeito.
Talvez um super-herói com braços, abdômen e coxas tonificados e uma brancura assustadora
para alguém que fala português.
Meu corpo me impulsionava para tocar seu peito, tão perfeito, de presença tão forte, a
expressão de sua personalidade, mas me contive. E tentei entender o porquê de eu estar a
alguns passos de me deitar ao seu lado para admirá-lo com as mãos. Fiz uma careta, me puxei
para a realidade e decidi continuar com o meu trabalho de primo: infernizar.
Segurei o copo de água pela metade na mesinha ao lado da cama. Tive toda certeza do
mundo que ia jogar na cara dele, mas algo me impediu. Não, eu não estava apaixonado pelo
Hugo novamente. Isso era um fato. Mas meu corpo estava discordando de minha mente, de
meu coração. Eram dois contra um, e o impulso foi vencido, com certo peso de culpa por me
encontrar desejando-o e a ponto de ser cruel. Despenquei na cadeira do computador e apoiei
meus braços na larga mesa.
— Eu senti sua falta. — me virei para encará-lo, ofegante. Ele tinha falado sério, ainda
deitado, olhando pra mim com olhos sem brilho algum.
— Por que eu não acredito nisso? — devolvi, voltando a encarar a escuridão do monitor.
— A gente pode conversar? — pediu ele, quase como uma criança com tom de voz
ousado, grave.
— Pode sim. — permiti, sem me virar pra ele.
— Senta aqui, eu preciso olhar pra você.
— Hugo, vamos parar com —
— Por favor. — senti que ia suplicar, se fosse preciso. Senti isso de verdade.
— É, pra quem “estala os dedos” e me tem correndo, você não está com essa bola toda. —
ironizei, me lembrando da discussão que ouvi entre ele e Dan.
Ele suspirou.
— Não era pra você ter ouvido isso.
— Não era pra você ter dito isso.
Uma larga pausa silenciosa. Meu coração estava tão acelerado que eu podia ouvi-lo bater
como se fosse parte de uma música do David Guetta. Ao contrário do que já senti por ele
quando meu coração batia tão forte assim, era por algo mais carnal, se deixando levar pela
leve nostalgia do poder de manipulação de sua presença de voz.
— Éron, sente-se aqui. — ele pediu de novo. — Depois de hoje você não vai precisar ver
minha cara.
— Já disse que não, Hugo. — reafirmei, orgulhoso de mim. “A mente sobre a matéria, a
mente sobre a matéria!”
— Então eu vou até você. — ele me surpreendeu, murmurando tais palavras em meu
ouvido, me pegando no colo e me jogando na cama, rapidamente.
Deveria ter ficado com raiva, mas não consegui fazer outra coisa, senão rir. Dan havia
feito coisa parecida, nos últimos dias, e nos divertimos com isso. Essa atitude de Hugo me
remeteu tal lembrança, o que abriu a porta para a risada, que não durou muito tempo.
— Qual é, eu mereço teu carinho. — me deixou surpreso de novo, sentado na cama,
inclinado para mim. — Eu te ofereci tantas coisas, Éron. Tudo bem, eu sou um canalha, mas
ser ignorado por você o tempo todo é chato pra cacete. Eu sinto que —
— Me perdeu?
Ele não respondeu.
— Vê, Hugo? Se você não percebeu as coisas ainda, eu não vou tentar. Não vou te dizer o
que você perdeu ou o que eu precisei e você não deu. Não vou reclamar a minha vida
contigo ou cobrar coisas que você não é capaz de me dar. E, se for o caso, me sinto bem em
desculpar você todas as vezes que fizer uma merda, mas o desprezo é uma característica
cumulativa.
Ele sacudiu a cabeça em resposta negativa para si mesmo.
— Eu só estou indo de volta pra França porque eu tenho uma garota grávida de mim. Se
eu não tivesse, eu ficaria e —
— E o quê, Hugo? O quê? — provoquei, exaltando o óbvio. — Você fala como se eu
quisesse que você ficasse, cara.
— Você não quer?
Eu tive de rir. Rir mesmo. Ele só podia estar de sacanagem com a minha cara, né? Vai
dizer, ou ele era muito falso ou cínico ao extremo, totalmente tapado a ponto de não
perceber que ele era um empecilho em minha vida, ao invés de algo bom, que as chances que
ele teve de me fazer feliz foram jogadas na privada por ele! Eu não tinha cara de idiota, e não
era um, então qual era o motivo de tantas palavras vazias?
— Não.
Ele mordeu o lábio inferior e fechou os olhos suavemente.
— Você me odeia, primo?
— Hugo, essa conversa nós já tivemos, já encheu.
Tentei me levantar, mas ele segurou meu braço com força, me impedindo de me apoiar.
Tombei na cama.
— Dá pra me soltar? — pedi, impaciente.
— Você gosta daquele cara?
Me sentei, a raiva tomando conta de minha mente.
— Gosto! Gosto pra caramba! Ele me faz sentir completo, acompanhado. Faz parecer que
problemas, como você e meu pai, não existem. Eu realmente não queria ficar jogando isso na
sua cara o tempo todo, porque eu tenho compaixão pelas pessoas. Defeito de fabricação, fazer
o quê?
Ao se levantar, de repente, se espreguiçou com força, esticando aqueles músculos com
vontade. Ao parar, me encarou. O brilho estava de volta em seus olhos, como num passe de
mágica, e ele me dizia alguma coisa com eles. Toda sua expressão estava na cor radiante de
seus olhos super azuis.
— O que foi? — perguntei. — Alguma coisa errada?
— Em algum tipo de respeito, eu estou controlando cada poro de meu corpo para não
agarrar você agora.
Fiquei sem reação. Eu estava errado, estava mesmo, mas não conseguia deixar de me
imaginar jogando Hugo na parede da janela, num amasso fenomenal e meio selvagem
demais. Eu podia sentir a temperatura de sua língua em meu pescoço e percebi que fiz outra
careta. Ele acabou sorrindo.
— Se eu te dissesse que sinto muito, acreditaria em mim? — ele indagou, de costas,
pegando a bermuda e uma bata branca.
— Não. — curto e grosso.
— Mas eu sinto muito. Você não deveria estar com ele.
— Deveria estar contigo?!
Hugo largou a bata e a bermuda no chão, se aproximando de mim com passos firmes e um
olhar monstruoso. Me senti intimidado, mas tentei, com toda minha força, controlar o
maldito desejo que me subiu através dos pelos, quando ficou em cima de mim, com seu rosto
a alguns centímetros do meu.
— Me dê um bom motivo pra não te beijar agora. — disse ele.
Seu braço acabou tocando o meu, causando troca de milhões de volts, que só faltavam
pular pelas orelhas. Eu não queria dar motivo algum, e sim me agarrar nele com todo o fogo
do mundo. Não, eu queria incendiar o mundo com ele. Dessa vez, não fiz careta. O que
diabos estava acontecendo comigo?!
— Estou namorando. — murmurei, seguro.
— Eu pedi um bom motivo.
A boca de Hugo voou na minha, e indo contra todos os meus sentidos mais básicos, pulei
para trás, me virando na cama para descer da mesma. De pé, assisti-o sorrir, contente, e disse
as palavras definitivas para meu relacionamento com ele:
— Não estrague minha felicidade só porque sua vida é um monte de bosta. Você brincou
com o que eu senti por você e, acredite, eu fui capaz de entregar meu mundo pra você, por
você. Eu teria matado em seu nome, morrido em seu nome e abdicado de meus pais por
você. No entanto, sabendo disso, você cuspiu na minha cara, me humilhou e me deixou
estirado no chão feito um pedaço de merda. Agora que eu estou tendo uma chance de
recomeçar, deixando de lado todos os traumas que você deixou em mim, vai se fazer de
importante? Acorde, Hugo! Não existe espaço pra você em minha vida! Nesse jogo você já
perdeu.
O desejo voltou a ser revolta e me senti enojado por ter sentido tais coisas por ele. Logo,
seu brilho divino se apagou perante meus olhos e tudo que eu queria era que ele pegasse o
maldito avião e deixasse o espaço necessário em minha vida pra eu encaixar outra pessoa.
Ele vestiu a bermuda e a bata, saindo do quarto em seguida, sem parecer com raiva ou
confuso. Ele só estava... surpreso. Caí na cama e deixei meu coração se acalmar. O que eu
senti por Hugo era tesão? Tipo assim, tesão de sexo?! Eca, o que infernos deu em mim?
— Que infernos deu em você? — indagou minha mãe, na mesa da cozinha, enquanto eu,
ela e Hugo comíamos. — Foi só medo do seu pai?
— Medo dele? Jamais. — eu ri. — Só precisei de tempo.
— Tempo de quê? Eu não entendo... — ela não precisava, mas meu olhar foi direto para
Hugo, que entendeu muito bem.
— Vai embora que horas? — perguntei.
— Meu avião decola às sete e cinco da noite. Vou sair daqui às seis.
— Então vocês têm tempo pra se divertir! Eu, por outro lado, tenho de sair. — minha
mãe se levantou, reforçando o nó do robe.
— Vai aonde? — indaguei, curioso.
— Igreja.
— A essa hora, mãe?
— Nunca é cedo ou tarde demais pra se conectar com Deus.
— O que infernos deu em você?
Ela sorriu e foi para o quarto sem responder. Igreja de manhã, tão cedo? Deus? Qual é,
minha mãe não era aquela pessoa.
— Ela se sente sozinha, Éron. — observou Hugo, enfiando um pedaço de pão francês na
boca, cheio de manteiga.
— Você reparou que está me chamando de Éron? — ele não gostava, sabe-se lá o motivo.
— Sim.
E se levantou também.
— Vou escovar meus dentes. Quer ajuda pra tirar a mesa?
Fiz que “não” com a cabeça e ele sumiu de vista. Retirei toda a sujeira e guardei tudo que
tinha pra guardar. Fui escovar meus dentes em seguida, antes de saber que ele estava
tomando banho. Quente. De porta aberta.
— Quando sair, me avise. — pedi.
— Não me incomodo se quiser entrar. — ele gritou.
— Minha mãe ainda está em casa. Menos, por favor.
Fechei a porta atrás de mim e o esperei sair, enrolado na toalha, com o cabelo rebelde e
molhado. Ele parecia mais branco a cada banho, como se sua melanina escorresse com a
água.
— A gente vai sair, né? — ele quase perguntou como um adulto, achando que teríamos
uma vida normal.
— Não. Essa é a minha resposta para quase todas as perguntas que me fizer.
— Meninos, estou saindo. — minha mãe apareceu no corredor, me dando um mega susto.
Não era confortável ser visto conversando com um gostoso enrolado numa toalha e molhado
na frente de sua mãe. — Volto lá pras cinco, com seu pai. Daqui a gente leva o Hugo pro
aeroporto.
— Não, tia, não se preocupe.
— Hugo, sem discussão. — ela deixou um caloroso sorriso acertá-lo. — Tchau, meninos.
Ele transbordou malícia ao me encarar, depois de minha mãe bater a porta. Ignorei e fui
escovar meus dentes. Ao voltar para o quarto, ele estava de cueca de novo. E ficando chato.
— Tipo assim, ponha uma roupa. — pedi, com uma xícara de educação e uma colher de
saco cheio.
— Acha que eu não percebo as coisas, Éron? — levantei uma sobrancelha. — Eu vi que
você quer isso tanto quanto eu e que —
— Cacete, chega desse papo! — quase gritei. — Cara, não aguento mais isso!
Andei apressado pra sala, numa tentativa frustrada de sair, mas a porta estava trancada.
“Ah, maravilha!”, resmunguei, caminhando para a porta dos fundos. Trancada da mesma
maneira. Foi quando percebi que trancar a porta era meio que uma maneira de me prender
em casa. Mas eu tinha a chave. Só não sabia onde estava. Eu era um ratinho no labirinto do
jogo das trevas.
— Não acredito que vou ter de ficar trancado com você aqui por cinco horas! — reclamei
para Hugo, da porta do quarto.
— O que houve?
— Minha mãe trancou a porta! Não consigo sair.
Ele gargalhou com toda a vontade do mundo.
— Bem feito. — disse ele, entre os dentes.
— Não era você quem queria sair, gênio?
— Com você, Éron! Poxa, tá tão difícil de entender?!
Eu estava atado a uma novela mexicana do SBT.
— Sério, de boa, só... sei lá, senta aqui comigo. Vamos assistir alguma coisa, ou ouvir
música. Eu preciso desse tempo contigo. — coitadinho, ele parecia tão carente quando queria
parecer que eu quase sentia pena dele. Mais do que usual.
— Tá. Se você tentar alguma coisa, eu não vou mais falar contigo hoje.
Ele assentiu e eu me sentei ao seu lado.
— Quais opções de filme nós temos? — ele perguntou, puxando a caixa de baixo de
minha cama, colocando-a sobre o meu edredom.
Entre os boxes Star Wars, Indiana Jones, Kill Bill, Harry Potter, Dawon’s Creek e The
O.C., Hugo puxou logo o da primeira temporada de True Blood. O que, com toda certeza, eu
não ia assistir com ele. Não depois de saber como eu me senti mais cedo com ele sem camisa
ou calça.
— Que tal? — ele sacudiu a caixa.
— Não mesmo. — peguei o box da mão dele, colocando-o de volta no lugar. Pensei em
pegar o filme Nina, com a Guta Stresser, mas uma viagem com drogas, rock e bissexualidade
não era o mais indicado. Olha que eu tinha uma porrada de filmes, mas só os perigosos
apareciam aos nossos olhos. — Que tal um musical? — saquei o O Fantasma da Ópera, um
dos meus preferidos. Hugo fez careta.
— Ok, a gente esquece os filmes e parte pra alguma coisa mais concreta. — pegou o Blu-
Ray de minha mão, colocou na caixa e arremessou pra baixo da cama de novo. — Tipo
Verdade ou Consequência. Ou só verdade. — apressou-se ao ver minha cara de jamais.
— Tem alguma coisa pra me perguntar, Hugo?
— Tenho algumas. E acho que você também tenha. Contando a hipótese de que não nos
veremos de novo em muito tempo, seria legal tapar os buracos e sanar nossas curiosidades
mórbidas. O que me diz?
Inofensivo e ofensivo. Beleza.
— Pode começar. — me sentei na posição de lótus. Ele se ajeitou, antes de perguntar.
— Você ainda guarda mágoa pelas coisas que fiz a você no passado?
— “Guardo”, entre as aspas. As minhas mágoas atuais com relação a você são recentes,
totalmente novas. Não preciso ir muito longe pra ficar com raiva.
Ele comprimiu os olhos e balançou a cabeça, indicando a minha vez de perguntar.
— Essa sua inconstância tem a ver com a falta de pais ou é um detalhe estúpido de erro
genético?
— Não foi uma pergunta válida, por fazer ou —
— Ah, vá pra merda! É válida sim, e pode responder a verdade.
Ele suspirou e sorriu para mim.
— Talvez seja. Eu não sei falar disso, eu começo a confundir as palavras, não acho outras
que se encaixem... sei lá.
— Tá, vai, manda uma. — eu já sabia que a maneira de agir dele era pra esconder o tal
Hugo sentimental que ele não gostava. Eu tinha visto, quando fugimos para o Bosque da
Barra. Eu vi quem ele era de verdade.
— Você acha que seu lance com o Pica-Pau é pra sempre?
— Nossa, que interesse repentino em minha vida amorosa...
— Responda a pergunta, comente depois.
— Nada dura pra sempre. Nada mesmo. Eu estou curtindo o momento, aproveitando essa
folga na minha vida, e vou ficar com ele enquanto estivermos dando certo. Basicamente é
isso que eu acho. — Hugo espremeu os olhos e contorceu a boca. — O que vai fazer com esse
filho que a garota está esperando?
Ele esfregou o rosto com as mãos, suspirando. Hesitou antes de começar a responder,
jogando a cabeça no travesseiro ao meu lado:
— Eu não faço a mínima ideia! — a sensação de que ele estava a um centímetro de
desabafar me revirou como um “caixote” na onda do mar. — Fiz essa merda e não tenho pra
onde correr. Há coisas aqui no Brasil, nessa casa, que são diferentes do que eu tenho na
França. Minha tia cuidou de mim, me deu abrigo, estudo, as coisas que eu queria, me mimou,
mas sempre faltou alguma coisa. Essa coisa os seus pais me dão, mesmo sem me conhecer de
verdade.
— Tá falando de amor? — arrisquei um palpite.
— Não, eu tenho amor lá. Só aqui é a parada da presença. Existe uma coisa diferente...
algo como —
— Eu? — não pude segurar minha boca. Me arrependi antes mesmo de completar a
sílaba.
— Você faz toda a diferença. — surpreendentemente sincero, não tentou me agarrar ou
fazer alguma piadinha sarcástica sobre. — Éron, você é toda a diferença pra mim.
Virei o rosto para o lado, mesmo sabendo que ele estava fitando o teto, e mordi meus
lábios. Os meus braços congelaram, eriçando meus pelos. Mas era tarde. Tarde demais pra
qualquer coisa.
— Por que demorou tanto pra admitir isso? Como eu posso acreditar? — tentava disfarçar
minha voz tremida, insegura. Eu desejei tanto que ele tivesse admitido algo assim no
começo, quando eu ainda queria algo com ele. Sonhei com palavras similares.
— Eu fiz isso contigo, te fiz deixar de acreditar, te maltratei, humilhei, usei, abusei... fiz
tudo errado, mas até eu tenho medo. Eu tenho medo das coisas que eu sempre perdi. Eu
tenho medo de, sei lá, meu avião cair e eu nunca mais poder ver seus pais, sentir o que eu
sinto quando estou com eles. Ou contigo. Assim como foi com meus pais. E eu estou
perdendo você também.
— Você não está me perdendo. Você já me perdeu. — sinceridade agressiva é o novo
Diamante Negro.
— Pra ele.
— Não! Pra mim! Não há justificativas para o que você me fez passar por todo esse tempo!
Eu estou com outra pessoa e você vem me dizer palavras bonitas “do fundo do seu coração”?
Você só me quer porque não pode me ter?
Hugo engoliu seco e acabou não respondendo.
— Imaginei. — me levantei da cama, segurando mais uma tonelada de verdades. Não
havia mais razão para despejar tudo, já que eu não esperava nada de mais dele.
Eu era outra pessoa desde o nosso primeiro beijo. Se ele realmente tivesse pensado em
mim como um todo, um ser humano, uma das coisas importantes da vida dele, não teria me
tratado com desdém. Não teria me chutado nos momentos que só pedi uma mão para me
levantar do solo. Ele mesmo enterrou meus sentimentos por ele. As consequências
apresentadas foram frutos das escolhas erradas dele. E meu táxi para a liberdade.
Antes de sair do quarto pra me trancar na varanda de meus pais com um saco gigante de
Doritos, avisei:
— Não irei com meus pais te levar ao aeroporto. Que fique minha despedida.
Ele continuou deitado, sem reagir, sem responder e sem me procurar. Observei o céu da
manhã se tornar tarde com guaraná natural e queijo nacho. De tão entediado e louco para o
tempo voar, assisti alguma coisa completamente imbecil no Cartoon Network e quase voltei
a espiar a MTV. Isso no quarto de meus pais — que era imenso, diga-se de passagem. Aquele
quarto deveria ser meu.
Por volta das cinco da tarde, o telefone chiou na sala. Hugo atendeu e depois de alguns
“arrã” e “tudo bem”, bateu na porta do quarto:
— Primo, sua mãe!
Abri uma pequena fresta para que a mão dele passasse e atendi. Por que eu achei que ele
ia invadir o quarto e me estuprar com minha mãe ouvindo tudo? Eu estava paranóico.
— Oi, mãe.
— Éron, seu pai está preso aqui no escritório, tem como você chamar um táxi e
acompanhar o seu primo para o aeroporto?
— Mãe, ele já é bem crescido. Precisa de mim pra quê?
— Por favor, Éron, não seja chato. Faça esse favor pra mim. E, ao invés de se preocupar
com ele, se preocupe comigo. Vou ficar muito mais tranquila sabendo que você foi com ele.
Por que a calopsita tinha de sempre fazer coco na minha hora de segurá-la?
— Tá. Vou me arrumar e saio com ele daqui a pouco.
— Vou levar umas esfihas pra gente jantar.
— Ô, mulher, você sabe como me comprar, né? — brinquei.
Nos despedimos rapidinho e já ia falar com Hugo quando meu celular vibrou em meu
bolso.
— Tá tudo bem? — Dan, preocupado.
— Não, nem um pouco. — voltei a me trancar no quarto de meus pais.
— Aconteceu alguma coisa? Ia te chamar pra me ajudar numa escolha importante.
— Não vou poder. Terei de acompanhar o Hugo até o aeroporto, porque meu pai ficou
preso no escritório.
— Ela não tem carro?
— Acho que ela o deixou aqui, crente que ia voltar com meu pai. Estou trancado em casa,
falando nisso. Ainda vou ter de arranjar um jeito de sair pela janela.
— Vai como? De táxi?
— É.
— Prefere que eu leve vocês? Sai mais barato e ainda posso ter sua ajuda depois.
— Vou fingir que isso não é pra monitorar todos os atos pornográficos de Hugo sobre
minha pessoa e aceitar a proposta.
Ele riu.
— É a minha chance de ter um orgasmo levando-o pra longe. Que horas eu passo aí?
— Voe num banho e venha pra cá assim que acabar. Temos de sair daqui às seis, no
máximo.
— Feito. E, sobre a chave, você tem uma na sua carteira, no bolso interno. Lembro de tê-
la visto no dia que passei a mão na sua bunda sem querer, quando a carteira caiu do seu
bolso, aberta. A chave estava ali.
— Obrigado por me deixar sabendo que minha bunda é algo pra se lembrar. — ri pelo
nariz. — Vá logo.
— Até.
Abri a carteira (sempre guardada no bolso) e lá estava a chave. Era uma cópia quase-
nunca-mesmo usada da porta frontal. Beleza, ninguém ia ter de pular a janela.
— Hugo, tá tudo pronto? — perguntei, apoiado no portal de meu quarto.
— Tá sim. É o que eu digo, Éron, se eu tiver de ficar com você, eu vou ficar com você.
Senti um leve calafrio com a teoria patética dele. Super estranho eu acabar tendo de ir
com ele para o aeroporto depois de ter dito que não iria, mas eu não levava para uma
verdade absoluta sobre estar junto. E ele nem sabia que o cara que eu estava saindo ia
também. Uma surpresa agradável, né?
Tomei um banho a 8000km/h, com um timming perfeito para ouvir a buzina da super
picape vermelha de Daniel. Destranquei a porta e gritei para que Hugo se apressasse com as
malas.
— Você. — Hugo cuspiu, simpático. — Desculpe, Cabeça de Fósforo, mas eu e meu
primo estamos indo para o aeroporto. Falando nisso, Éron, cadê o táxi?
Me desvencilhei cuidadosamente do abraço de Dan e sorri para meu primo.
— A gente vai com o Dan.
— Oi? — Hugo aproximou a orelha direita, com uma careta.
— É isso, jogue suas malas ali atrás. Vamos te deixar no aeroporto são e salvo.
Dan zombou em um sorriso e entrou no carro, pronto pra dirigir. Abri a porta do carona
e, antes de entrar, Hugo perguntou de novo:
— Isso é pra me punir?
— Não se sinta importante demais. Entre logo, está destrancada.
Apontei para a porta traseira, para os bancos de trás. Ele sacudiu a cabeça e me lançou
certo olhar de desconfiança antes de quase estourar a porta, numa batida ensurdecedora. Dan
fingiu não ouvir a tentativa cruel de Hugo para destruir o carro e manteve o sorriso,
mirando-o rapidamente através do retrovisor. Eu queria rir. Antes por sadismo. Depois por
desespero.
Com vinte minutos de puro silêncio, resolvi cochichar com Dan sobre o que ele queria
comigo:
— Queria me levar a algum lugar?
— É, eu vou comprar uma coisa e gostaria da sua opinião.
— Que coisa é essa?
— Um vibrador? — interrompeu Hugo, forçando um sorriso. — Me desculpe, ainda dá
pra ouvir vocês.
Dan suspirou e falou, com a voz normal:
— Uma moto. Eu vou comprar uma moto.
— Uma moto? — eu e meu primo indagamos em uníssono.
— Tá maluco?! — murmurei, cheio de obviedade.
— Maluco por que, Éron? — Dan não captou a conclusão. — Qual o problema com isso?
— Você pode morrer! Sabe, tipo aquelas imagens horrorosas que a gente acha no Google
quando procura por acidentes ou mutilações.
— Te encorajo, Daphne5. Quanto mais cedo você morrer, mais cedo eu cato o Éron de
volta.
— Cata o Éron de volta? Olha quem está admitindo as coisas!
— Pelo amor, vocês são adultos! — intervim. — Dá pra parar com essa palhaçada?
— Primo, você sabia que isso ia acontecer. Pediu o que está tendo.
— Eu ofereci a carona, Barbie. — até Daniel estava colocando apelido em Hugo.
— Quem? — Hugo não entendeu.
— CACETE, CHEGA! — gritei.
Hugo engoliu risadinhas das trevas, cheias de veneno. Dan se estressava mais rápido do
que meu primo, pois a natureza dos dois eram distintas. Enquanto o loiro era maldoso por
natureza e sabia como irritar as pessoas sem tomar muito pra si, o ruivo era bondoso,
paciente e vulnerável a qualquer comentário contra mim. A única semelhança dos dois era o
fato de me quererem, o que era estranho, pois eu não ia me querer.
Nos minutos de silêncio seguintes, alguma música da banda Capital Inicial tocava, me
enchendo de entusiasmo. Eu parecia a única pessoa curtindo a canção, já que um mirava a
estrada com convicção e o outro assobiava uma canção desconhecida olhando pela janela. Ele
estava fazendo pra irritar.
— Sobre a moto, por que não concorda? — Dan ainda não tinha entendido a minha
reação por completo. — Eu tomo cuidado na estrada, vou usar capacete e essas coisas... por
que não curte?
— Não é minha praia, acho super perigoso.
— Eu sempre quis ter uma moto, mas nunca tive coragem pra comprar. Quando você saiu
de casa pra ficar na minha, repensei minha atitude e decidi que vou comprar uma moto pra
mim.
— Eu tenho uma Vespa GS turbinada, em casa. Posso doar pra você. — Hugo sorriu.
— Vespa? Como você consegue ser mais gay do que já é? — eu tive de comentar. Vespa
era demais até para ele.
— Qual o problema?! As mulheres adoram Vespas. — grande argumento pra se defender.
— Eu prefiro algo maior. — explicou Dan.
— É, imagino. — zombou Hugo.
Tive de segurar o riso com muita vontade. Daniel apertou o punho. Eles pareciam
crianças.

5
Referente à personagem do desenho animado Scooby-Doo, ruiva como Dan.
— Eu não gosto, mas se for te fazer feliz, posso fazer um esforço. — anunciei, dando um
beijo em seu rosto.
— Depois eu sou gay.
— Cala a boca, Hugo. — eu e Dan soltamos simultaneamente.
Ele cruzou os braços e abriu as pernas, se ajeitando no banco. Faltavam alguns minutos
para chegarmos ao aeroporto internacional e eles, simplesmente, pareciam não passar. O
clima não era dos melhores, por mais que as ofensas não estivessem tão pesadas. Não ia ficar
lamentando o “erro” de ter aceitado a proposta de Dan nos levar. Só não foi a coisa mais
inteligente do mundo.
— Podem descer. Eu espero aqui. — Daniel avisou, ao estacionar. — Se despeçam sem
pressa.
— Com toque. — acrescentou Hugo, levantando uma sobrancelha para provocar Dan.
— Está levando a pistola que te emprestei, Éron? — devolveu.
— Se ele tentar qualquer coisa, eu mato, pode deixar. — brinquei.
— Espero nunca mais te ver. — disse Dan, quando descemos do carro.
Hugo não respondeu, apenas sorrindo com o canto da boca, de maneira satânica. Percebi
que algo estava faltando ali; ele deixou de me contar alguma coisa. Já estavam chamando
para o voo dele, com poucos minutos de atraso, então resolvi ser breve:
— Acerte seus problemas, não afaste as pessoas.
— Não quero saber das pessoas.
— Não comece, cara. Por favor, vamos parar com isso de vez, ok?
— As coisas acontecem por algum motivo. — ele segurou as malas com força. — Entre eu
e você há algo pra ser acertado, isso sim. Você simplesmente parece querer ignorar!
— Eu estou ignorando!
Me mostrou mágoa através de seus olhos.
— Vá embora, Hugo. Volte para sua família original.
— Você é minha família. — largou as malas no chão.
— Eu sou seu primo! Você vai ter um filho! Não fique jogando as responsabilidades pro
alto o tempo inteiro, a vida não é assim! Uma hora essa avalanche vai te acertar e você não
vai ter como fugir.
— Eu te amo, Éron.
Meus olhos arderam e meu corpo perdeu a estabilidade, iniciando um processo de
fraqueza que gerou tremedeira em minhas pernas, braços e mãos. Senti uma forte pressão
quente percorrer minha cabeça, como se eu tivesse ficado sem respirar por muito tempo.
Meu coração acelerou novamente.
— Essa frase não é uma brincadeira, Hugo. — minha voz estava chorosa, falha.
— Não é brincadeira. — seus olhos estavam molhados. — Eu amo você. Eu amo você
desde que entrei por aquela porta. Eu te amo desde muito antes. Eu te amo antes mesmo de
você pensar em gostar de mim.
A última chamada para o voo dele foi anunciada novamente. Ele precisava correr.
— Fale alguma coisa, Éron. — pediu, a voz enfraquecida. — Me perdoe, me bata, me dê
um tiro, como Dan falou, mas diga alguma coisa.
— Vo... v-você vai perder o voo. — só consegui gaguejar, sem ar.
Ele prendeu o lábio superior com os dentes inferiores e pegou as malas do chão.
— Achei que essas palavras mudariam alguma coisa. Eu estava errado, né?
Não me deixou responder e caminhou para o balcão de sua companhia, seguindo os
procedimentos, apressado. Fiquei lá por vários minutos, remoendo o que ele tinha acabado
de dizer, mesmo após sumir na multidão. Por que não facilitou minha vida e disse tais
palavras antes de tudo desmoronar? Teria poupado o meu coração e até o dele! Aquele era
um novo Hugo, que eu só provei um pedaço. Mas ele se foi. Eu precisava deixá-lo ir. De
mim.
— Mãe. — liguei, me aproximando da picape de Dan. — Ele já foi.
— Que voz é essa? Está triste?
— Não. Eu tomei um milk-shake mega gelado e me deu dor de garganta. — menti.
— Se for saudade de seu primo, fique tranquilo. Ele volta em dois meses pra ficar com a
gente.
— O quê? — a tremedeira voltou, aliada à minha expressão de terror, captada por Daniel,
quando sentei ao seu lado, com a música Epitáfio, dos Titãs, tocando no carro.
— Ele não tem contou? — a animação em sua voz era constante. — Ele vem morar com a
gente em dois meses!
Sem responder minha mãe ou a cara de interrogação de Daniel, me senti infeliz. Toda vez
que eu acreditava que Hugo ia dar fim aos meus problemas, só servia como o gatilho para
fazê-los começar. A novidade era que eu tinha muito mais a perder, incluindo o que eu já
não tinha.
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Data de criação: 1/1/2010 21:43:00
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