Você está na página 1de 2

CASA PIA DE LISBOA

CED de D. Nuno Álvares Pereira

Auto da Barca do Inferno


-- Ficha Informativa –

Texto dramático de Gil Vicente, representado pela primeira vez em


1516. Em 1562 foi incluído entre as "Obras de Devoção", numa
compilação póstuma das obras do autor.
Como "moralidade" que é, a peça dramatiza preceitos morais. A
acção desenrola-se num local onde há um rio e onde esperam duas
barcas: uma, a do Paraíso, com um Anjo na proa; outra, a do Inferno,
com um arrais infernal. Trata-se, obviamente, de uma figuração da
morte que se filia no motivo mitológico da barca de Caronte. Tal
filiação, porém, não aliena a inspiração litúrgica e moral da peça,
patente na visão antitética do mundo sugerida pela coisificação dos
pólos do Bem e do Mal nas duas barcas.
A esta local vão chegando vários tipos sociais em trânsito para o
seu destino, que todos crêem ser o Paraíso. A nobreza é representada
pelo Fidalgo, caracterizado pela presunção, a ostentação e o desprezo
pelos humildes, indiciadas pelo seu manto e pelo pagem que o
acompanha, transportando-lhe a cadeira. O clero é representado pelo
Frade, satirizado pela dissolução dos seus costumes corporizada na
moça que traz consigo, símbolo dos seus interesses terrenos, também
relacionados com a espada e com a dança que executa. A corrupção
do Corregedor, que traz consigo os processos e a vara da Justiça, e do
Procurador, com os seus livros, presentifica a magistratura. A
exploração interesseira surge como traço fundamental da burguesia
comercial, exposta pelo Onzeneiro, dotado de um enorme bolsão, o
Sapateiro, com o seu avental e formas, a Alcoviteira, que traz as suas
moças e os seus cofres, e o Judeu, com um bode às costas. A
ignorância e a credulidade do povo são denunciadas através do
Enforcado, que surge ainda com a corda.
Todas estas personagens típicas conservam, portanto, as suas
insígnias e características terrestres, as quais, individualizando-as
visual e linguisticamente, constituem quase sempre sinais da sua
corrupção. Apenas os Cavaleiros de Cristo e o Parvo são aceites na
Barca do Paraíso, os primeiros porque redimiram os seus pecados
batalhando contra os Mouros por Jesus Cristo e o último visto que,
como pobre de espírito que é, não pode ser responsabilizado pelos
seus erros.
Nesta atmosfera pós-trágica, o conflito em cena reduz-se aos
embates ilusórios de dissuasão e persuasão entre os barqueiros e as
restantes personagens, pois tudo está já decidido. Assistimos apenas
à consciencialização das personagens relativamente ao fim da vida
terrena, consciencialização essa que se sobrepõe à sua anterior
impreparação.
A construção processional da peça, técnica que alguns poderiam
incautamente qualificar de primitiva, dramatiza um processo de
consciencialização não cumulativo, característica que traduz o ritmo
fundamental da vida: ninguém aprende com a experiência dos outros.
É graças a tal processo construtivo que Gil Vicente multiplica os
pontos de vista passíveis de serem adoptados sobre a morte, cujas
potencialidades explora maximamente, assim construindo uma peça
de grande espessura pela conjugação de diversas perspectivas.

Você também pode gostar