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A criação do mundo por Aton

Nada ainda existe no mundo a não ser Nun, o grande oceano primitivo que um dia será
chamado pelos sábios de “sagrado Nilo”. Ao seu redor, reinam o silêncio, as trevas e o
caos infinito, não havendo ainda olho humano que possa perceber a ausência das
formas, dos volumes e das cores. Não há nem mesmo morte nesse opaco universo, já
que vida alguma existe ali. O informe deus Nun permanece imerso desde sempre em
seu sono primitivo, não passando ele — e o próprio universo, já que Nun e ele se
confundem — de um grande espelho liquefeito de águas imparciais, escuras e
salientes, a refletirem o nada inexpressivo que habita o mundo.

E então, inesperadamente, o grande mistério acontece: Nun começa subitamente a


mover-se, despertando, enfim, de seu longo sono primordial. Negras tempestades
agitam o espelho opaco das águas revoltas enquanto grandes massas escuras de água
são lançadas para o alto, fazendo explodir em todas as direções, imensos e trepidantes
jorros de espuma negra. Aos poucos a força vital de Nun começa a operar, e das
profundezas do mar revolto surge lentamente uma pequena ilha envolta pelo
impenetrável manto da escuridão. Um primeiro progresso se fez perceber, pois onde
antes havia somente uma, agora ha duas trevas: a treva imóvel da terra e a treva
ondulante do mar.

Uma gota cristalina desliza e cai de seus olhos brilhantes, indo entranhar na terra dura
e seca que o calor de seu próprio corpo gretara. Dessa gota divina, um dia, surgirá a
humanidade. Depois, os olhos do poderoso Rá fecham-se e seu pensamento se dedica
a criar outras divindades que lhe façam companhia. Uma a uma elas vão surgindo,
nomeadas pelo deus solar: primeiro Tefnut, a deusa da água, e Shu, o deus do ar, que
habitarão no firmamento, glorificando o deus supremo. Então, da união desses dois
deuses nascem Geb, deus da terra, e a bela Nut, deusa do firmamento.

Os últimos, por sua vez, dão origem a primeira geração de deuses a habitar a sagrada
terra do Egito: as deusas Isis e Néftis e os deuses Seth e Osíris. Primogênito entre
todos, o puro Osíris virá ao mundo para cumprir o ciclo inteiro da vida e da morte. Será
o grande deus civilizador que ensinará aos homens, ainda imersos na barbárie e na
ignorância, as sagradas artes da agricultura e do culto. Ele tornara próspero o Egito,

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espalhando a civilização por todo o mundo, além de ser o primeiro deus a possuir a
forma humana e a reinar sobre as criaturas de forma inconteste. Isis, sua irmã e
esposa, reinará ao seu lado sobre as terras que circundam o majestoso Nilo, em paz e
harmonia, ainda que sob os olhos amargos de inveja do sinistro Seth, sedento de
maldade e poder.

 Brotada no centro dessa pequena ilha ergue-se, aos poucos, uma pequena flor de
lótus, alva e delicada e que se destaca no meio da treva circundante. O universo
conhece seu primeiro momento de espantosa beleza ao contemplar aquela pequena
for, frágil e solitária, a desafiar a escuridão silente do Nada. Então, do centro da flor
começam a emanar lentamente finíssimos raios de uma fulva claridade. As pétalas do
lótus vão abrindo-se e da luz que dele emana forma-se, finalmente, a figura soberana
de uma nova e luzente divindade. Alguns a chamarão de Rá, outros, de Amon e, ainda
outros, de Amon-Rá — aquele ser divino que um dia as gerações futuras louvarão
como o abençoado deus solar. A nova divindade emerge de seu delicado leito
estendendo seus raios flamejantes pela terra inteira — ainda vasta paisagem árida e
infinitamente desolada —, riscando o horizonte negro com seus retilíneos feixes
dourados, até que tudo se torna claro o bastante para que se possa separar a luz das
trevas. Recém-despertos para a vida, os olhos de Rá nublam-se de luminosas lágrimas
ao enxergar o pouco que ainda há no mundo e o muito que lhe falta.

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O texto relativo à criação do mundo por Aton foi recolhido de passagens dos "Textos
das Pirâmides". Os textos gravados no interior da pirâmide de Unas ou Uni (V dinastia),
e depois em todas as pirâmides dos reis da VI dinastia e períodos seguintes, viasavam
sustentar a ideia de que o rei ascenderia ao céu e que ressucitaria. Nem todos eles são
iguais, mas em todos se encontra um esquema redacional de base que se iniciou com
Unas ou Uni, cujos textos de sua pirâmide foram estudados e publicados por A.
Piankoff em The Pyramid of Unas, Princeton, 1968.

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A criação dos homens

Rá era o grande deus que no princípio apareceu sob a forma de Nun. Diariamente, Rá
percorria o seu caminho solar no horizonte. Ele era o pai dos pais e a mãe das mães.
Despojou-se de tudo aquilo que havia nele. Levou muitos nomes e apareceu sob
muitas formas, com os nomes de Aton, Hórus de Hekem e Horakhti. Rá formou a terra
e povoou-a de plantas e animais. Ordenou as águas e deu-lhes o seu rumo.

Então uma vaca surgiu das águas e tornou-se no céu sobre a água e a terra. Rá
também governava os arcanos para lá do horizonte e pacificava os deuses que
estavam descontentes ou ociosos. Para criar os homens chorou, e das suas lágrimas
surgiram os homens que povoaram a terra. Ofereceu também aos animais o milagre
do amor e tornou-os ativos, para que eles pudessem desfrutar da sua existência no
mundo.

Depois regulou a duração da noite e da duração do dia. Fixou as estações e fez com
que o rio Nilo, sazonalmente, inundasse as terras e depois se retirasse para o centro do
vale, para que homens e animais pudessem viver. Para regozijo do país e para que o
recordassem, instituiu um calendário de festas.

Rá amava as nações. Quando ele apareceu pela primeira vez na Ilha das Chamas,
manteve afastadas as forças da escuridão e do caos. Tornou-as obedientes, bem como
à sua filha Maat, a quem deu toda a sabedoria e a ciência necessária para dirigir o
mundo e governá-lo com justiça.

Durante as suas viagens diárias pelo horizonte dos vários países, ele observava
continuamente, Maat, para se certificar de que ela levava a cabo a sua vontade e que
não se desviava. Se fosse necessário, procurava dissuadi-la com zombaria e com
escárnio ou de outras formas; ele nunca vacilava.

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O texto sobre a criação do mundo e dos homens feita por Rá, poderoso deus solar de
Heliópolis, foi recolhido de um papiro hierático que se encontra no acervo do British
Museum, em Londres.

A Primeira divindade que os textos apresentam como criador do mundo em Heliópolis


é Aton, que sozinho na colina primordial, permitiu que dele , pudessem surgir Chu (o
ar) e Tefnut (a umidade). Por um lado, para marcar a forte assimilação das duas
divindades de âmbito solar, garantia-se que Rá se completou com Aton, formando
Aton-Rá; por outro , explorava-se prosodicamente o fato de Rá ter chorado, vertendo
lagrimar para assim criar a humanidade, tendo também criado a terra, as plantas e os
animais, além de ter estabelecido o ritmo do tempo, como o texto assimila.

Uma outra versão da criação lacrimejante pões Aton a chorar quando este perde os
seus dois filhos Chu e Tefnut. Então envia o seu Olho para procurá-los e, quando os
encontra, as suas lágrimas são de alegria. Quando caem no chão transformam-se em
seres humanos que assim vão povoando a colina primordial, lá vivendo em íntima
união com os deuses.

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