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ARTIGO DO DIA: Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes?

01/07/2010-09:30
Autores: Áurea Maria Ferraz de Sousa; Luiz Flávio Gomes; 
LUIZ FLÁVIO GOMES
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela
USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação
transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado
(1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br - Pesquisadora:
Áurea Maria Ferraz de Sousa.
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. SOUSA, Áurea Maria Ferraz de. Estupro e atentado
violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes? Disponível em http://www.lfg.com.br - 01 de
julho de 2010.

O sujeito, no mesmo contexto fático, constrange a mesma vítima (uma mulher), mediante violência
ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito anal. Esse “fato” (esse
contexto fático único, contra a mesma vítima) constitui crime único (CP, art. 213, com a redação
dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?
Antes do advento da Lei 12.015/2009, os fatos narrados estavam descritos em dois tipos penais: art.
213 (conjunção carnal) e art. 214 do CP (coito anal, ou seja, ato libidinoso diverso da conjunção
carnal). A jurisprudência majoritária entendia haver nesse caso concurso material de crimes (JSTF
301/461), isto é, dois crimes autônomos e independentes, com penas somadas. Não se tratava de
conduta única (logo, impossível era reconhecer o concurso formal). Mais: considerando-se que os
dois delitos achavam-se em tipos penais distintos, impossível era (também) reconhecer o crime
continuado. Assim era antes da Lei 12.015/2009.
O STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, Quinta Turma, dia 22.06.10, seguiu esse antigo
entendimento: não se trata de crime único. Haveria, para essa Turma (votos condutores de Felix
Fischer e Laurita Vaz), uma pluralidade de crimes (concurso material). E mais: considerando-se que
se trata de “penetração sexual” distinta, nem sequer cabível seria o crime continuado.
Fundamento dessa posição: “o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo, ou seja, as
condutas de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, embora reunidas em um mesmo
artigo de lei, com uma só cominação de pena, serão punidas individualmente se o agente praticar
ambas, somando-se as penas [depende, nem sempre é assim]. O colegiado entendeu também que,
havendo condutas com modo de execução distinto, não se pode reconhecer a continuidade entre os
delitos” (Informações do stj.jus.br) [se os crimes são da mesma espécie, não há como negar o crime
continuado, como veremos].
O decidido pelo STJ (em 22.06.10) diverge do entendimento já aceito pelo STF, que sinalizou a
aprovação da tese do crime único, nestes termos:
 
Lei 12.015/2009: Estupro e Atentado Violento ao Pudor.
A Turma do STF deferiu habeas corpus em que condenado pelos delitos previstos nos artigos 213 e
214, na forma do art. 69, todos do CP, pleiteava o reconhecimento da continuidade delitiva entre os
crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Observou-se, inicialmente, que, com o advento da
Lei 12.015/2009, que promovera alterações no Título VI do CP, o debate adquirira nova relevância,
na medida em que ocorrera a unificação dos antigos artigos 213 e 214 em um tipo único [CP, Art.
213: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar
ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009).”]. Nesse diapasão, por reputar constituir a Lei 12.015/2009 norma penal mais benéfica,
assentou-se que se deveria aplicá-la retroativamente ao caso, nos termos do art. 5º, XL, da CF, e do
art. 2º, parágrafo único, do CP. HC 86110/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 2.3.2010. (HC-86110). (Ver
informativo Nº 577).
 
O decidido pelo STJ (nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP) diverge também do entendimento seguido
pela Sexta Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça:
 
Sexta Turma
ESTUPRO. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. LEI N. 12.015/2009.
Trata-se de habeas corpus no qual se pleiteia, em suma, o reconhecimento de crime continuado
entre as condutas de estupro e atentado violento ao pudor, com o consequente redimensionamento
das penas. Registrou-se, inicialmente, que, antes das inovações trazidas pela Lei n. 12.015/2009,
havia fértil discussão acerca da possibilidade de reconhecer a existência de crime continuado entre
os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando o ato libidinoso constituísse preparação
à prática do delito de estupro, por caracterizar o chamado prelúdio do coito (praeludia coiti), ou de
determinar se tal situação configuraria concurso material sob o fundamento de que seriam crimes do
mesmo gênero, mas não da mesma espécie. A Turma concedeu a ordem ao fundamento de que, com
a inovação do Código Penal introduzida pela Lei n. 12.015/2009 no título referente aos hoje
denominados “crimes contra a dignidade sexual”, especificamente em relação à redação conferida
ao art. 213 do referido diploma legal, tal discussão perdeu o sentido. Assim, diante dessa
constatação, a Turma assentou que, caso o agente pratique estupro e atentado violento ao pudor no
mesmo contexto e contra a mesma vítima, esse fato constitui um crime único, em virtude de que a
figura do atentado violento ao pudor não mais constitui um tipo penal autônomo, ao revés, a prática
de outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal também constitui estupro. Observou-se que
houve ampliação do sujeito passivo do mencionado crime, haja vista que a redação anterior do
dispositivo legal aludia expressamente a mulher e, atualmente, com a redação dada pela referida lei,
fala-se em alguém. Ressaltou-se ainda que, não obstante o fato de a Lei n. 12.015/2009 ter
propiciado, em alguns pontos, o recrudescimento de penas e criação de novos tipos penais, o fato é
que, com relação a ponto específico relativo ao art. 213 do CP, está-se diante de norma penal mais
benéfica (novatio legis in mellius). Assim, sua aplicação, em consonância com o princípio
constitucional da retroatividade da lei penal mais favorável, há de alcançar os delitos cometidos
antes da Lei n. 12.015/2009, e, via de consequência, o apenamento referente ao atentado violento
ao pudor não há de subsistir. Todavia, registrou-se também que a prática de outro ato libidinoso não
restará impune, mesmo que praticado nas mesmas circunstâncias e contra a mesma pessoa, uma vez
que caberá ao julgador distinguir, quando da análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59
do CP para fixação da pena-base, uma situação da outra, punindo mais severamente aquele que
pratique mais de uma ação integrante do tipo, pois haverá maior reprovabilidade da conduta (juízo
da culpabilidade) quando o agente constranger a vítima à conjugação carnal e, também, ao coito anal
ou qualquer outro ato reputado libidinoso. Por fim, determinou-se que a nova dosimetria da pena há
de ser feita pelo juiz da execução penal, visto que houve o trânsito em julgado da condenação, a teor
do que dispõe o art. 66 da Lei n. 7.210/1984. HC 144.870-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em
9/2/2010. (Ver Informativo 422).
 
Voltemos ao princípio: crime único ou concurso de crimes?
No nosso livro (Comentários à reforma criminal de 2009, L.F. Gomes, R. Sanches e V. Mazzuoli, RT)
defendemos a tese do crime único (quando se trata de contexto fático único, contra a mesma
vítima, mesmo bem jurídico).
Para nós, o tipo penal do art. 213, depois do advento da Lei 12.015/2009, passou a ser de conduta
múltipla ou de conteúdo variado: praticando o agente mais de um núcleo (mais de uma ação), dentro
do mesmo contexto fático, não desnatura a unidade do crime (dinâmica que, no entanto, não pode
passar imune na oportunidade da análise do art. 59 do CP). O crime de ação múltipla (ou de
conteúdo variado) é regido pelo princípio da alternatividade, ou seja, várias condutas no mesmo
contexto fático significam crime único.
Esse nosso entendimento, conforme já sublinhamos, foi secundado pela Sexta Turma do STJ assim
como pela Segunda Turma do STF. A divergência, agora, foi aberta com a decisão da Quinta Turma
(HCs 104.724-MS e 78.667-SP), sob o fundamento de que se trata (art. 213, novo) de tipo misto
cumulativo.
 
Que se entende por tipo misto cumulativo? Qual é sua diferença com o tipo penal misto
alternativo?
Abrão Amisy Neto, Promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de Goiânia (GO), sobre o tema
escreveu o seguinte:
Tipo penal "misto alternativo" ou "misto cumulativo"? Outra divergência que ocorrerá (...) relaciona-
se com a distinção entre "tipo penal misto alternativo" e "tipo penal misto cumulativo". Na primeira
hipótese, ainda que incorra o agente em mais de uma conduta responderá por uma só sanção: o
agente que induz e depois instiga a vítima a suicidar-se incorrerá em única sanção do art. 122 CP (o
art. 33 da Lei n. 11.343/2006 - tráfico de substâncias entorpecentes - é outro exemplo). Para os que
assim se posicionarem, aquele que constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal e depois pratica ato libidinoso diverso que não seja simples prelúdio da cópula
(relação oral ou anal, conforme jurisprudência), responderá por crime único de estupro, devendo o
juiz analisar tais circunstâncias na fixação da pena (deve ser a corrente majoritária na doutrina). No
segundo caso, tipo penal "misto cumulativo", quando o mesmo tipo prevê figuras delitivas distintas,
sem fungibilidade entre elas, caso o agente incorra em mais de uma deverá ser aplicada a regra do
concurso de crimes (por exemplo: art. 242 CP). Para os que assim se posicionarem, o agente que
constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal e depois pratica ato
libidinoso diverso que não seja simples prelúdio da cópula (relação oral ou anal, por exemplo),
responderá em concurso material ou em continuidade delitiva.
Argumentos favoráveis ao "misto alternativo": existência de núcleo do tipo comum ("constranger");
fusão dos tipos penais anteriores em um único tipo (art. 213 + art. 214 = novo art. 213 CP); os tipos
"mistos cumulativos" possuem as suas distintas figuras separadas por ";" ou "e", enquanto que a
utilização de "," ou "ou" são típicas de misto alternativo.
Argumentos favoráveis ao "misto cumulativo": a alteração legislativa buscou reforçar a proteção do
bem jurídico e não enfraquecê-lo; caso o legislador pretendesse criar um tipo penal de ação única ou
misto alternativo não distinguiria a "conjunção carnal" de "outros atos libidinosos", pois é notório
que a primeira se insere no conceito segundo, mais abrangente. Portanto, bastaria que tivesse
redigido o tipo penal da seguinte maneira: "Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso". Visível, portanto, que o
legislador, ao continuar distinguindo a conjunção carnal dos "outros atos libidinosos", não pretendeu
impor única sanção em caso de condutas distintas.
Vamos aos conceitos (de acordo com nosso ponto de vista): tipo simples: é o que contém um único
verbo (um único núcleo, uma única ação ou omissão, ou seja, uma única conduta). Exemplo: art. 121
do CP, “matar alguém”. Tipo composto ou misto ou de conteúdo múltiplo ou de conteúdo variado: é
o que contém vários verbos (logo, várias condutas). Exemplo: art. 122 do CP: induzir ou instigar ou
auxiliar o suicídio.
O tipo penal do art. 213, para nós, é um tipo penal composto ou misto ou de conteúdo múltiplo ou
de conteúdo variado porque descreve várias ações: “constranger a ter conjunção carnal”,
“constranger a praticar outro ato libidinoso”, “constranger a permitir que com ele se pratique outro
ato libidinoso”.
 
Tipo penal misto alternativo ou cumulativo?
Para Régis Prado (Curso de direito penal brasileiro, RT) tipo misto alternativo ocorre quando há uma
fungibilidade (conteúdo variável) entre as condutas, sendo indiferente que se realizem uma ou mais,
pois a unidade delitiva permanece inalterada (art. 175: fraude no comércio, 233 -ato obsceno- etc.);
no tipo mismo cumulativo não há fungibilidade entre as condutas, o que implica, em caso de se
realizar mais de uma, a aplicação da regra cumulativa – concurso material. Exemplos: arts. 135
(omissão de socorro), 180 (receptação), 242, 244, 326 etc.
Régis Prado, como se vê, concentra a essência dos conceitos na fungibilidade (ou não) das condutas.
Segue, destarte, uma linha mais formalista. Para Diego-Manuel Luzón Peña (Curso de Derecho penal,
Universitas) o fator distintivo é outro: passa por saber se a segunda (ou outra) conduta agrega ou não
maior desvalor ao fato. No caso do delito de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006), se o
sujeito importa a droga e a mantém em depósito e depois transporta, em nada se altera o injusto
(não existe maior desvalor da conduta ou do resultado). Cuida-se de um tipo penal misto alternativo.
Quando a segunda conduta implica em maior desvalor do fato, o tipo penal seria misto cumulativo.
O critério dado por Luzón Peña nos parece válido, mas incompleto, porque para além do maior
desvalor do fato há outros dados muito relevantes: saber se se trata do mesmo contexto fático ou
não, da mesma vítima ou não, do mesmo bem jurídico ou não.
Completando a sua classificação teríamos que fazer a seguinte distinção:
(a) tipo misto cumulativo unitário (ou seja: maior desvalor do fato, em razão da prática de várias
condutas) + contexto fático único + vítima única + mesmo bem jurídico = crime único punido mais
severamente. Aqui teríamos um tipo misto cumulativo unitário (porque se trata de crime único,
punido mais gravemente, em razão do maior desvalor do fato);
(b) tipo misto cumulativo concursal (ou seja: maior desvalor do fato, em razão da prática de várias
condutas) + contextos fáticos diferentes ou vítimas diferentes ou bens jurídicos diferentes = crimes
diferentes, pluralidade de crimes. Aqui teríamos um tipo misto cumulativo concursal (porque conduz
a um concurso de crimes).
No caso do art. 213 do CP, se o sujeito pratica coito vaginal e coito anal, contra a mesma vítima, no
mesmo contexto fático, isso significa maior desvalor do fato? Para nós a resposta é positiva (claro
que sim). Então o art. 213 retrataria um tipo penal misto cumulativo? Sim.
Unitário ou concursal? Unitário. Por quê? Porque se trata de contexto fático único contra a mesma
vítima (sendo o mesmo bem jurídico). Contexto fático único, mesma vítima e mesmo bem jurídico,
embora ofendido de diversas formas, jamais pode configurar uma pluralidade de delitos. Cuida-se de
crime único. Mas a pluralidade de condutas e de ofensas valeriam para algo? Sim, para a dosagem da
pena (nos termos do art. 59 do CP). O estupro com coito vaginal e anal (em razão do maior desvalor
do fato) evidentemente tem que ser punido de forma mais grave que o estupro com coito vaginal
(tão-somente).
O concurso de crimes pressupõe pluralidade de crimes e a pluralidade de crimes pressupõe
pluralidade de fatos, não só de ações (ou omissões). O concurso de crimes, por força do princípio da
razoabilidade, já não pode ser fundado única e exclusivamente na pluralidade de ações (tal como
defendia a clássica doutrina italiana: Bettiol etc.). A ação é uma parte do fato. O fato é composto de
uma ação, de um autor, de uma vítima, de um contexto fático, de um resultado jurídico etc. O
concurso de crimes, no entanto, gira em torno do todo, não da parte (da ação). O todo (o fato
completo) é o que importa (para o efeito de haver ou não concurso de crimes). A valoração jurídica
tem que recair sobre a totalidade do fato, não sobre uma parte dele.
A Quinta Turma do STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP, acertou (de acordo com a classificação
dada por Luzón Peña: maior desvalor do fato quando várias condutas são realizadas) ao admitir a
existência (no art. 213 do CP) de um tipo penal misto cumulativo. Equivocou-se, no entanto, ao
concluir pelo concurso de crimes (concurso material de crimes). Equivocou-se mais ainda ao refutar
o crime continuado (com base na teoria da “penetração sexual”).
Referida Quinta Turma levou em conta o maior desvalor do fato (quando várias condutas são
praticadas: coito vaginal e coito anal), mas se esqueceu completamente dos outros critérios: mesmo
contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico.
O art. 213, diante de tudo quanto foi exposto, retrata um tipo penal misto cumulativo unitário,
quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico. Retrataria,
distintamente, um tipo penal misto cumulativo concursal, quando não se trata do mesmo contexto
fático ou da mesma vítima ou do mesmo bem jurídico.
Voltando à pergunta inicial: o sujeito, no mesmo contexto fático, constrange a mesma vítima (uma
mulher), mediante violência ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito
anal. Esse “fato” (esse contexto fático único, contra a mesma vítima) constitui crime único (CP, art.
213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?
Resposta: crime único, mas que deve ser punido mais severamente (porque, em razão da pluralidade
de ações, maior é o desvalor do fato). A pena, como já dizia Beccaria (1764), em razão do princípio da
proporcionalidade, tem que guardar correspondência com o nível de graduação (reprovação) do
fato. Quanto mais reprovável o fato mais sanção se justifica.
O entendimento do STJ, então, é equivocado? De acordo com nosso ponto de vista sim. O fato de
afirmar que o art. 213 retrata um tipo penal misto cumulativo não significa, automaticamente, que se
deva reconhecer um concurso de crimes. O maior desvalor do fato (decorrente da realização de
várias condutas) pode significar fato unitário punido mais gravemente ou um concurso de crimes.
Quais são os fatores distintivos: mesmo contexto fático ou não, mesma vítima ou não, mesmo bem
jurídico ou não.
Um erro quase sempre (desgraçadamente) vem seguido de outro: o STJ também errou ao construir
a tese da não admissibilidade do crime continuado fundada na forma da penetração (vaginal ou
anal). Na eventualidade de que a situação concreta conduza à existência de um concurso de crimes
(vários crimes de estupro), como são crimes de mesma espécie (previstos no mesmo tipo penal), não
há como refutar o crime continuado (ainda mais quando se invoca a teoria da forma de penetração
sexual). Se o sujeito estuprar uma primeira vítima mediante a penetração vaginal e uma outra
mediante a penetração anal, claro que estamos diante de um crime continuado (se presentes todos
os seus requisitos). A forma de penetração sexual não pode servir de base para a rejeição do crime
continuado (porque muito mais relevantes são os outros componentes do fato: a conduta, os
sujeitos, o tempo, o lugar etc.).
O concurso de crimes pressupõe uma pluralidade de crimes? Não há dúvida. A pluralidade de ações
(várias ações: coito vaginal e coito anal, v.g.) conduz necessariamente ao concurso de crimes? Não
necessariamente. Por quê? Porque o relevante é o todo (o fato), não a parte (unicamente a ação). O
concurso de crimes não pode ter como referência a parcialidade, sim, a totalidade. Não é a estrutura
da ação que define a existência (ou não) do concurso de crimes. Sim, a estrutura do fato.
 
Conclusão: quem pratica coito vaginal e coito anal, ambos descritos no mesmo tipo penal (art. 213
do CP), no mesmo contexto fático, contra a mesma vítima, afetando o mesmo bem jurídico, pratica
crime único (não uma pluralidade de crimes). Quem desfere vários golpes contra a mesma vítima,
no mesmo contexto fático, comete um único crime de lesão corporal. A repetição dos atos será
levada em consideração no momento da pena. Errou a Quinta Turma do STJ, com a devida vênia.
Acertaram a Sexta Turma e o STF. A teoria do tipo misto cumulativo é muito mais complexa do que
parece. Ela não serve de guarda-chuva para soluções formalistas ou inferências rápidas (e
desproporcionais).
O legislador da Lei 12.015/2009 atirou no que viu e acertou no que não viu. Ele queria punir mais
gravemente o estupro e o atentado violento ao pudor. Imaginou que fundindo os dois tipos penais
(arts. 213 e 214 do CP) isso seria alcançado. Errou no seu propósito. Mas acertou em fundir os dois
tipos penais.
Cabe agora aos intérpretes e aplicadores da lei distinguirem o joio do trigo, ou seja, as situações
concretas. Quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico, ainda
que o sujeito realize várias ações, não há como deixar de reconhecer crime único (punido mais
severamente). Considerando-se as várias ações (maior desvalor do fato), a ele (juiz) compete fazer a
adequação da pena, atendendo à seguinte equação: maior desvalor do fato = maior pena.
Não nos restam dúvidas da irrefutável desobediência à legalidade penal no posicionamento adotado
pela Quinta Turma. A força vinculante da legalidade se revela no artigo 5º, XXXIX, da Lei Maior, ou
seja, trata-se de princípio constitucional que impõe sua observância por todos os poderes públicos.
Assim sendo, com relevância ímpar destacamos a obediência à legalidade criminal e penal pelo
Judiciário, pois embora consideradas as possíveis valorações complementares do Juiz, ele não pode
arbitrariamente criar, como fez a Quinta Turma no presente caso, excessos punitivistas, sem se
aprofundar em todas as peculiaridades do caso e da ciência jurídica.
Desde a Lei 12.015/2009, pouco importa a prática sexual a que se submete a vítima: há um crime
grave e hediondo, mas as especificidades do caso deverão ser analisadas na dosimetria da pena,
considerando-se os parâmetros ditados pelo artigo 59 do Código Penal. Não cabe ao Judiciário fazer
interpretações populistas manipulativas como a de dizer que o artigo 213, do CP, consubstancia-se
em tipo misto cumulativo, sem adentrar em todos os seus desdobramentos técnicos e científicos

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