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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO, LETRAS, ARTES, CIÊNCIAS HUMANAS E


SOCIAIS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

ANÁLISE DO FILME DOGVILLE SEGUNDO MICHEL


FOUCAULT E ERVING GOFFMAN

BEATRIZ MANTOANI MASSON

UBERABA, MG
2022
BEATRIZ MANTOANI MASSON

ANÁLISE DO FILME DOGVILLE SEGUNDO MICHEL


FOUCAULT E ERVING GOFFMAN

Trabalho apresentado à disciplina Psicologia


Institucional
Orientadora: Walter Mariano de Faria Silva Neto

UBERABA, MG
2022
Logo no início do filme há uma cena de repreensão à uma criança por alimentar seu

cachorro com carne pois a situação financeira da família não está boa e a justificativa é que o

animal precisa passar fome para que faça a vigilância da casa com mais esmero e seus

instintos animais estejam mais aguçados. Isso, junto às imagens reais de miséria e violência

apresentadas durante os créditos do filme “Dogville”, se mostram como uma crítica às

relações de uma comunidade americana conformada com a miséria e as dificuldades

financeiras, não demonstrando anseios de se movimentarem para que possam mudar essa

realidade que os aprisionam (LIMA, 2004).

Sendo assim, quando os personagens são apresentados como pessoas sem perspectivas

de futuro ou de mudança e conformadas com os limites da comunidade ali presente, é possível

perceber que essa alienação e conformação em relação à sociedade civil é uma resposta para a

estigmatização e privação social de uma população fechada nos limites de uma cidade sem

contato com o exterior, isolada por montanhas, com apenas uma entrada ou saída

(GOFFMAN, 1987).

Nos primeiros capítulos, quando Grace – uma estranha – chega na cidade e é

apresentada aos moradores, que lhe dão o prazo de 2 semanas para que prove ser “digna” de

morar na cidade e se juntar à comunidade, as reações que pode-se perceber dos moradores

com a nova inquilina são de estranhamento e repulsa, explicitados no modo como eles

observam ela passear pela cidade e como negam prontamente a sua ajuda, quando a mesma

põe em prática o plano de Tom Edison de oferecer ajuda braçal aos moradores, para que seja

bem aceita na comunidade.

Segundo Goffman (1987), esse olhar depreciativo em relação ao outro – da

comunidade para com Grace – se apoia no fato de que essa nova pessoa não atende a um

padrão de “normalidade”, sendo que suas singularidades (físicas, sensoriais ou mentais)


contrariam o que é pré-estabelecido como “comum” na cidade de Dogville, estigmatizando-a

ao deixar de considera-la uma pessoa comum e consequentemente reduzi-la e diminui-la a

objeto, construindo uma discrepância entre a identidade social real de Grace e a identidade

estigmatizada dela pela cidade. Sendo assim, em vez de ser facilmente recebida em Dogville,

ela é recebida em função da característica que a estigmatiza (servir), limitando a possibilidade

de seus atributos serem realmente observados e valorizados.

O suplício, explicado por Foucault (1987), é uma punição física exercida através da

violação do corpo, para hierarquizar e tornar infame a vítima, como uma maneira de o Estado

ou de um grupo mostrar o seu poder sobre o corpo do indivíduo em questão e a intolerância

com aqueles que ousem desafiar as leis ou seu poder. Isso fica explícito nas cenas em que

Grace sofre violação sexual, desde a tentativa de beijo indevido, até as cenas explícitas de

estupro, e, principalmente, quando ela recebe a sentença de carregar uma roda de ferro

extremamente pesada pela rua de Dogville, enquanto todos assistem ao seu sofrimento como

um triunfo da cidade.

As cenas em que Tom dita cada passo que Grace deve dar na cidade, monta a sua

rotina como se exercesse um controle sobre sua vida e a submete a constantes provações de

seu merecimento de residir em Dogville para os moradores, pode ser associado com o

conceito de disciplina de Foucault (1987), no qual o controle do tempo e das atividades é uma

das etapas para transformar alguém em um “corpo dócil”, que pode ser facilmente

manipulável, disciplinável e subjugável para fazer aquilo que seja de maior interesse de quem

exerce esse poder sobre ele. Além disso, por ser uma pessoa nova adentrando essa

comunidade tão fechada, Grace se encontra no foco dos moradores, recebendo muita

visibilidade e sendo repreendida por eles quando faz algo errado, o que pode ser associado ao

panoptismo, que se utiliza da hierarquia e do constrangimento social como uma forma de

controle sob as pessoas.


A forma como os moradores passam a tratá-la com desdenho após o capítulo 4,

deixando claro para ela que não deve se comportar como uma moradora da cidade pois está

ali apenas para servi-los, ou ainda, quando lhe é tirado seu salário e aumentada a carga horária

das “prestações de ajuda” que ela oferece a comunidade, há explicitamente uma analogia à

escravidão pois eles conseguem explorá-la de todas as maneiras possíveis através da constante

coerção e ameaça de entregá-la à polícia ou aos mafiosos que a estão buscando, além de

acorrenta-la para evitar a sua fuga, como um animal.

Assim, ao passo que Grace sofre todas essas violências, ela vai gradativamente

perdendo sua identidade, acreditando ter feito algo para merecer tudo o que está vivendo e

passando a não reagir mais contra as agressões e violências sofridas, em partes pelo desejo de

aceitação e pertencimento de uma esfera social (comunidade) e em partes pela perda de

sentido em reagir. Portanto, o filme tem essa representação da comunidade como uma

assassina de individualidades, pois ao buscarem apenas satisfazer os próprios interesses, os

cidadãos de Dogville se mostram tão impessoais que desumanizam e exploram uma pessoa

que se mostrou um alvo mais fácil de ser atingido, através de seus medos.

Essa perda da identidade real de Grace, que passa a agir de acordo com a identidade

estigmatizada que a cidade projetou sob ela, pode estabelecer uma relação com as instituições

totais que Goffman (1987) explica como um lugar que utiliza da tensão persistente como uma

forma de controle sob o indivíduo, ocorrendo o processo de mortificação do self e a supressão

de sua identidade que acontece gradativamente a partir de degradações, humilhações,

imposição de barreiras de contato com o mundo externo e a pressão para o enquadramento às

regras de conduta do local, levando o indivíduo a sofrer uma perda dos equipamentos de

identidade. Neste sentido, a comunidade seria uma instituição total que coloca Grace sob

constante tensão, controlando seus horários e suas ações, a humilhando, até mesmo a

acorrentando para que ela não possa sair mais da cidade e consequentemente levando-a a
perda de sua identidade real para se enquadrar na identidade que os moradores propuseram

para ela (servir) e nas regras da comunidade de Dogville.

Como mostrado no fim do filme, todas essas humilhações e exploração que foram

proferidas a Grace, levaram-na a perder sua compaixão e sua capacidade de perdão –

características ferozmente criticadas por seu pai – sobressaindo apenas a raiva e o desejo de

vingança por todos aqueles que lhe fizeram sofrer, para que – assim como ela diz – nenhuma

pessoa inocente que venha a se perder em Dogville novamente, precise passar por tudo o que

ela passou. Sendo assim, ela utiliza de seu poder para queimar a cidade e matar todos os

moradores ali, até mesmo as crianças.

E o filme acaba com as linhas - que representam as paredes e casas de toda a cidade –

sendo apagados e sobrando apenas o cachorro, mostrando que já não existe mais qualquer

traço de humanidade em Dogville, apenas o instinto animal do cachorro que sobreviveu a tudo

isso.
REFERÊNCIAS

FOUCAULT, M. 1987. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes.

GOFFMAN, E. 1987. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.

LIMA, E. M. F. A. Dogville ou quando a vida é reduzida a um ciclo interminável de produção

e consumo. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2004, v. 8, n. 15 [Acessado 6

Maio 2022], pp. 393-396. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1414-

32832004000200022>.

TRIER, L. V. 2003. Dogville. França, Warner Brothers, 177 min.

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