Você está na página 1de 3

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI


DEPARTAMENTO DE FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO - CCE
Disciplina: Filosofia da Educação – Período: 2021.2
Ministrante: Prof. Dr. Heraldo Aparecido Silva

“DOGVILLE” E A SOLIDARIEDADE NA FILOSOFIA RORTYANA

Thiago Santos

Em “Dogville” (2003), filme do diretor dinamarquês Lars von Trier, a história se


passa na cidadezinha fictícia de mesmo nome, onde vivem pessoas que o narrador
apresenta como uma “gente boa e honesta”. Isoladas do mundo e com seus papéis
sociais bem definidos dentro da comunidade, moram em casas com paredes invisíveis
para o espectador, mas totalmente reais para elas.

Thomas é o mais singular habitante de Dogville. Filósofo, realiza palestras para


instruir a comunidade sobre moral e tem grandes aspirações de escritor, pretendendo
construir narrativas que sensibilizem a alma humana, chamando-as de “ilustração”,
mas sem nenhuma inspiração à vista. Certo dia, ouve um barulho de tiro vindo do vale
e se senta no banco da cidade à espera de algo mais, até que uma forasteira se revela.

Grace chega a Dogville fugindo de gangsters da cidade vizinha, e Thomas logo


se encanta por ela. Porém, para conseguir guarida por lá, a moça precisa ser aceita
por todos os quinze moradores. O filósofo, então, se encarrega de convocar a
comunidade para uma reunião, que, entre apelos e objeções, acaba decidindo pela
permanência da misteriosa fugitiva no lugar. Esse gesto de aparente solidariedade,
em um primeiro momento, acaba não saindo de graça para Grace, que começa a fazer
diversos favores para agradar os habitantes, temendo uma posterior rejeição.

Após a polícia chegar ao local e espalhar cartazes de procura a Grace, as


exigências sobre ela ficam cada vez mais pesadas, além de iniciarem-se abusos
frequentes por todos os lados. Até mesmo Thomas, que demonstra cumplicidade e
afeto à moça, vai revelando que, no fundo, ela é apenas um objeto para suas
aspirações. Depois de muitas injustiças, humilhações e subjugações, no final é dada
a Grace a oportunidade de decidir o destino de Dogville, com o perdão ou a punição.
A socialização, atribuída ao ensino básico na filosofia educacional de Rorty, é
o estágio inicial e final dos habitantes de Dogville. As tradições e regras
compartilhadas são a base da vivência e convivência na cidade. Por mais diferentes
que sejam, os moradores são uns reflexos dos outros e do todo. Não há processo de
individualização que resulte em contestações e quebras de paradigmas para a criação
de novas ideias e olhares para o mundo, papel esse do ensino superior na filosofia
rortyana, segundo Silva (2012).

A falta de contato com narrativas de outras pessoas ou culturas fora dali, como
sugerido por Rorty, não possibilita tais redescrições e dificulta o desenvolvimento do
real sentimento de solidariedade com uma situação exterior ao próprio indivíduo ou à
comunidade. Quando esta parece haver, sugestiona a exigência de uma troca,
deixando clara a dinâmica de favores que rege a interação social na comunidade,
onde não existe um genuíno interesse pelo que acontece de bom ou de ruim com o
outro. Talvez as paredes das casas nem teriam razão para existir de fato.

Além disso, a política democrática de tomada de decisões nas reuniões não


impede que crueldades sejam cometidas por aquela “gente boa e honesta”, pois o
julgamento individual é desestimulado diante da hegemonia do sentimento de
pertencimento social. Grace é uma narrativa de alteridade que chega naquele meio,
mas nem relatando-a por ela própria de forma genuína aos moradores, como Thomas
sugere, consegue sensibilizá-los, pois é a possibilidade ou não de explorá-la para tirar
vantagens que acaba prevalecendo nas decisões finais.

Por fim, a trajetória de Grace torna-se inspiração para a “ilustração” que


Thomas tanto queria compor em suas narrativas, mas o filósofo acaba percebendo,
também através dela, o incômodo fato de não ser muito diferente dos outros
habitantes de Dogville, e a eles se une para entregá-la a seus perseguidores. Em
contrapartida, Grace também é uma personagem de si mesma na comunidade, tendo
contato com as narrativas daquelas pessoas distantes do seu universo na cidade
grande, por isso até ensaia uma redescrição para compreendê-las e perdoá-las
quando finalmente tem o destino de Dogville em suas mãos. Mas a solidariedade a si
mesma e a outros forasteiros que possam estar futuramente em igual situação por lá
é que fala por último na sua sentença.
REFERÊNCIAS

DOGVILLE. Direção: Lars von Trier. Local: França (lançamento). Produtora:


Zentropa Entertainments. Distribuidora: Lions Gate Entertainment/Califórnia Filmes,
2003. 177 min.
SILVA, Heraldo Aparecido. A filosofia da educação de Richard Rorty: epistemologia,
conversação, redescrições, narrativas e as funções da educação. Educação e
Filosofia Uberlândia, v. 26, n. 52, p. 509-526, jul./dez. 2012.

Você também pode gostar