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FACULDADE FRASSINETI DO RECIFE - FAFIRE

I want to be alone: reflexões sobre as experiências da velhice entre a população


LGBTQUIA+ a partir do filme "Greta", de Armando Praça1

Gabriel Guedes
Gustavo Barros
Hammayana Rocha
Lívia Ribeiro Leite
Marcelo Zenaide
Maria Eduarda Lúcio2

“A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer.”


(Arnaldo Antunes)

O processo de envelhecimento é atravessado por aspectos de classe, sexualidade, raça,


gênero, cultura, trabalho e política, sendo intensificado na medida em que a pessoa idosa
vivencia sua velhice e se depara com as limitações físicas, cognitivas e sociais. Mas, apenas
dizer que este corpo que envelhece está impossibilitado de agir sobre sua realidade seria um
eufemismo. Ainda mais quando a realidade ao redor desse sujeito velho é constituída por outros
sujeitos tidos como marginais pela sociedade, formando um elo de relacionamento por meio de
certos elementos em comum, uma vez que o idoso também acaba sendo um pária.
A velhice e seus vários atravessamentos é um dos aspectos centrais de “Greta”, longa-
metragem brasileiro dirigido por Armando Praça. Em “Greta” conhecemos a história de Pedro,
um enfermeiro de 70 anos, homossexual, que trabalha em um hospital público em Fortaleza,
Ceará. Para tratar de sua amiga, Daniela, que se encontra com uma doença terminal e precisa
de um leito no hospital, Pedro abriga em sua casa um paciente, Jean, que está sendo acusado de
assassinato. Com o tempo, cria-se uma relação de carinho, amizade e cumplicidade sexual entre
Pedro e Jean.
O filme lança luz sobre uma ótica pouco refletida: a velhice e sua relação com
sexualidade e gênero. O personagem Pedro lida com o medo da solidão, a angústia da morte ao

1
Trabalho apresentado à Profa. Angélica Alves como requisito para obtenção de nota na disciplina de
“Desenvolvimento Psicológico III: Adultez e Velhice”, no curso de Formação em Psicologia, 6º período (noite) –
2022.1.
2
Graduandas em Psicologia pela Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE/2020.
se defrontar com a finitude da vida através da doença da amiga e com a questão de ser um idoso
com ânsia de desfrutar o prazer à sua maneira. Isso remete ao nexo entre as perdas vividas no
processo da velhice e as vicissitudes do momento presente, em que há a busca do desejo da vida
em paralelo aos significados que a velhice traz à realidade vivida. Para Pedro, a solidão está
sempre presente e este fato é evidenciado com o estado terminal da amiga a qual sempre o
lembra que ele precisa aprender a ficar só. Mas, são esses processos de perda que o idoso pode
não lidar bem, acarretando diminuição de autoestima, depressão e desespero, levando a um
aumento do isolamento.
No decorrer do filme, o personagem principal identifica-se frequentemente com a atriz
Greta Garbo, remetendo-se a falas ligadas à solidão: “Greta Garbo podia ter qualquer um, mas
tudo o que ela queria era ficar sozinha”. Conforme destacado por Santos, Araújo e Negreiros
(2018), esse isolamento se materializa especialmente a partir do duplo estigma sofrido por
Pedro em função da velhice e da expressão de sua sexualidade. Neste sentido, como apontado
pelos autores, destaca-se uma grande invisibilidade desse grupo, que experiencia, inclusive,
formas de segregação para a vivência de relações sexuais. Como indicam Stona e Carrion (2021,
p. 142), “[...] quando o sujeito não corresponde à socialização da cis-heteronorma, o destino,
na maioria dos casos, são violências”, fato este que reforça a necessidade de restrições e
isolamentos protetivos para as dinâmicas de socialização. Essa insistente invisibilidade acarreta
uma violência subjetiva e um isolamento ainda maior da “bicha velha”, que tende a se refugiar
em busca de socialização em lugares marginalizados, de forma sigilosa, anônima, com relações
de caráter transitório e pouco profundas.
O protagonista vive só em seu apartamento e, ao longo de toda a trama, é impossível
identificar sequer um parente com quem mantenha contato próximo. Durante toda a narrativa,
Daniela é a única pessoa próxima ao enfermeiro da qual temos conhecimento. As breves
relações que se apresentam ao longo da trama mostram uma dinâmica de troca por alguma
forma de contato mais próximo, seja na figura de um paciente que se deixa masturbar pelo
enfermeiro, mas que prefere não manter contato uma vez tendo recebido alta, ou na do próprio
Jean, a quem Pedro propõe uma transa em troca de dinheiro para que ele “siga sua vida”. “Eu
achei que você podia me matar, mas não desse jeito”, diz Pedro a Jean, ao vê-lo arrumando as
malas para sair de sua casa. Tal fala remete à solidão comum na vivência de idosos, que é
potencialmente agravada pela homossexualidade.
A sexualidade, aliás, é um dos pontos de tensão do envelhecimento que vem se
modificando ao longo dos anos. Até meados da década de 1970, envelhecer era sinônimo de
duplo declínio: fisiológico e sexual. Estar velho era o equivalente a estar “assexualizado”. Tal
cenário vem se modificando ao longo do tempo, mas sexualidades dissidentes ainda são
rejeitadas, junto com a retomada da sexualização dos idosos, propaga-se também sua
cisnormatização.
Passamani (2017) traz a categoria “ajuda” como forma de estabelecer e/ou manter
relações homoafetivas na terceira idade. Mais ainda, o autor aponta que o ideal de família
tradicional, com a qual o sujeito irá envelhecer e que lhe servirá de rede de apoio,
frequentemente não se aplica à realidade de homossexuais. Tal relação de troca não se
caracterizaria com prostituição, uma vez que, conforme relatos dos próprios entrevistados3, há
uma relação de afeto e cuidado, no entanto, presente nesses mesmos relatos, uma aparente
“concorrência” com pretendentes mais novos. A ajuda financeira aparece como um “plus”
necessário para manter o interesse dos parceiros na relação. “Isso eles não têm. Mas eles têm a
juventude, o corpo durinho, que eu não tenho. Daí a gente troca. Eu finjo que perco”.
O corpo é apresentado no filme de modo a fazer com que o espectador vivencie, junto
ao protagonista, a efemeridade da vida. São mostrados corpos machucados por agressões, à
beira da morte em leitos de hospitais. Há também a falha institucional em acolher o público
LGBTQIAP+, uma vez que não há estrutura que possa atender ao dia a dia da ala de emergência
em sua plenitude, com a falta de leitos, como é o exemplo de Daniela, que também sofre por
ser transexual e, por isso, não é acolhida na ala feminina. Isso reflete muito bem a realidade,
uma vez que em muitas instituições de cuidado ainda não há nenhuma política que atenda a
esse público com o devido respeito e consideração.
Essa situação se atenua ainda mais se pensarmos num corpo envelhecido que transcende
as noções de sexualidade presentes na perspectiva heteronormativa. Nesse aspecto, Araújo e
Carlos (2018) acordam que, sendo a velhice já estigmatizada por si só, ocorre também um duplo
estigma quando somada à sexualidade desviante, acarretando em maiores desafios sociais para
o sujeito LGBTQIAP+ como a solidão, os mitos e o preconceito.
Muitos fatores estão relacionados à permanência ou não do idoso no mercado de
trabalho. No caso em questão, Pedro é seu único provedor, necessitando trabalhar no hospital e
cuidando de pessoas para sua subsistência. Embora as condições físicas estejam aquém, a
permanência no trabalho possibilita uma inserção no meio social para Pedro, contrabalanceando
a solidão que permeia sua vida quando o contexto não está relacionado ao trabalho. Porém,

3
Em sua Pesquisa de doutorado em Ciências Sociais, realizada em setembro de 2015 pela Unicamp, Guilheme
Passamani apresenta entrevistas realizadas entre julho de 2012 e fevereiro de 2014 com uma gama de pessoas com
mais de 50 anos e apresentavam condutas homossexuais.
passamos a acompanhar também a perda deste vínculo social (o do trabalho). Algum tempo
depois de levar Jean do hospital para sua casa, investigações sobre a fuga do suspeito de
assassinato são iniciadas no hospital, fazendo o chefe de Pedro sugerir um arranjo demissional,
apresentando a ele a “oportunidade” que ele poderia aproveitar ao receber os encargos
trabalhistas e dar entrada na aposentadoria para pagar um advogado.
Tendo em vista os vários lutos vivenciados na velhice, é possível também relacionar
essas eventualidades com uma ressignificação da vida, visando um maior aproveitamento do
tempo que resta - o que efetivamente pode ser encarado como uma singularização de sua
vivência diante dos aspectos sociais que atravessam sua subjetividade, um grito de existir em
meio ao cotidiano que tenta sufocar seu ser.
Aos poucos, Pedro transforma sua aparência tendo como parâmetros sua concepção
feminina idealizada, Greta Garbo. No decorrer do filme, ele parte de curtos comentários - como
já referenciados acima - passando para vestes femininas, quando Jean ameaça partir com uma
mulher (simbolicamente, o traje feminino de Pedro nesta cena em específico, é referenciado
como a imagem da mulher que espera seu companheiro, antagonizando com a outra mulher que
aparece como amante de Jean), até finalmente assumir sua aparência feminina na derradeira
cena do longa. Aqui, já com Jean tendo partido - embora ele retorne - e supondo que sua amiga
Daniela já tenha falecido, fica evidente que Pedro dá uma reviravolta em sua vida ao decidir se
travestir de mulher de vez.

Referências

ARAUJO, Ludgleydson Fernandes de; CARLOS, Karolyna Pessoa Teixeira. Sexualidade em


Velhice: Um Estudo sobre o Envelhecimento LGBT. Psicol. Saber. Soc., Montevidéu , v. 8, n.
1, p. 188-205, Maio de 2018 . Disponível em
<http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1688-
70262018000100188&lng=es&nrm=iso>. acessado em 30 Nov. 2022.

CORDIOLI, Aristides Volpato. Psicoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre: Artmed,


2008.

LIBARINO, Ducilene de Souza; REIS, Luciana Araújo dos. Envelhecimento e trabalho: Uma
revisão Bibliográfica. C&D-Revista Eletrônica da FAINOR, Vitória da Conquista, v.10, n.1,
p.2-18, 2017.

PASSAMANI, Guilherme. “É ajuda, não é prostituição”. Sexualidade, envelhecimento e afeto


entre pessoas com condutas homossexuais no Pantanal de Mato Grosso do Sul. cadernos pagu,
2017.
SANTOS, José Victor de Oliveira; ARAÚJO, Ludgleydson Fernandes de; NEGREIROS,
Fauston. ATITUDES E ESTEREÓTIPOS EM RELAÇÃO A VELHICE LGBT.
Interdisciplinar, São Cristóvão, v. 29, 2018. p.57-69

STONA, José. CARRION, Fernanda. O cis no divã. Salvador: Editora Devires, 2021.

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