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Grupo de Trabalho: Políticas Culturais e Economia da Cultura

1994-2008: FILMES BRASILEIROS E DITADURA MILITAR

Caroline Gomes Leme1

Resumo:
A partir dos anos 90, o Estado brasileiro induziu a vinculação da cultura ao mercado. Quais as
implicações para o cinema? É possível a realização de um cinema nacional com autonomia
para dialogar com as peculiaridades históricas e políticas do país, em meio à massificação e
ao pragmatismo do mercado? Apresentamos as novas e atuais condições de produção
cinematográfica no Brasil e dados sobre a forma como filmes relacionados ao tema da
Ditadura Militar no Brasil lidam com essa conjuntura.

Palavras-chave: Política Cultural. Cinema Brasileiro. Ditadura Militar no Brasil.

1. Introdução

Neste paper são apresentados resultados parciais de uma pesquisa em andamento, cujo
objetivo é estabelecer relação entre as condições de produção cinematográfica vigentes nos
anos de 1994 a 2008 e os filmes de longa-metragem lançados neste período que retratam, de
múltiplas formas, o tema da Ditadura Militar no Brasil.
Considerando que a partir dos anos 90 configurou-se uma nova conjuntura para a
produção cultural no Brasil, na qual o Estado procurou restringir o seu caráter interventor e
induziu a vinculação da cultura com o mercado, indaga-se quais as implicações decorrentes da
submissão da singularidade das produções culturais à universalidade das leis de mercado. No
caso da produção cinematográfica a questão é saber se as possibilidades de um cinema
nacional criativo, singular, com autonomia estética e temática, que dialoga com as
peculiaridades histórias, políticas e culturais do Brasil foram de alguma forma cerceadas ou

1 Graduanda em Ciências Sociais, Faculdade de Ciências e Letras-Universidade Estadual Paulista - Unesp,


campus Araraquara. Sob orientação da Prof. Dra. Anita Simis, desenvolve projeto de iniciação científica
estudando a relação entre as condições de produção cinematográfica na década de 90 e anos 2000 e a
filmografia sobre a Ditadura Militar no Brasil produzida neste período.

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tiveram que fazer concessões à massificação e ao pragmatismo que costumam vir associados
às leis do mercado.
Os filmes objeto de análise são aqueles lançados nos anos de 1994 a 2008, pretendendo
analisar a relação entre esses filmes e as condições de produção após a extinção da
Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), em 1990. O marco inicial é o filme Lamarca,
lançado em 1994, que identificamos como o primeiro filme relacionado ao tema da Ditadura
Militar no Brasil produzido sob a nova conjuntura de produção cinematográfica dos anos 90.
Segundo Catani (1994), Lamarca está entre os seis primeiros filmes de longa-metragem
aprovados em 1992 para obtenção de recursos através dos mecanismos previstos na Lei
Rouanet.
De maneira geral, os trabalhos que se dedicaram ao estudo de filmes sobre a ditadura
militar, apresentaram enfoque na análise do conteúdo de filmes específicos – recorrentemente
O que é isso, companheiro? e Lamarca – com ênfase na relação entre Cinema e História, ou
entre Cinema, História e Memória, com preocupação de analisar como esses filmes retrataram
a sociedade e os indivíduos no período da Ditadura Militar no Brasil.
Esta pesquisa, por sua vez, percorre um caminho diferente. Adotamos uma abordagem
ainda não explorada, a qual investiga as motivações da proliferação, nos anos de 1994 a 2008,
de filmes sob o tema da Ditadura Militar no Brasil e estabelece a relação entre os aspectos
externos aos filmes (condições de produção, empresa produtora, custos, fontes financiadoras,
mecanismos de incentivo acionados, público alcançado) e o conteúdo interno desses filmes,
ou seja, qual o viés adotado por esses filmes em relação ao tema da ditadura; que tipo de
retrato é feito do período histórico; qual ponto de vista e parâmetros são utilizados para
abordar o tema; quais os personagens ficcionais ou históricos e de que forma eles são
construídos; se há preocupação em enfrentar este tema na profundidade que ele demanda, para
propiciar à sociedade uma reflexão sem simplificações e/ou maniqueísmos.

2. Condições de produção cinematográfica nos anos 90 e 2000

Após a extinção da Embrafilme pelo presidente Collor, em março de 1990 (M.P. 151),
o modelo de produção cinematográfica baseado no patrocínio direto do Estado foi

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praticamente extinto e, ao longo dos anos 90 e 2000, foi delineando-se um novo modelo que
se fundamenta basicamente em leis de incentivo fiscal, destacando-se as leis federais Rouanet
(8.313/91) e do Audiovisual (8.685/93); e também leis municipais e estaduais, como a Lei
Mendonça (10.923/90) do município de São Paulo; a lei 1954/92 (atualmente modificada na
lei 3555/2000) do estado do Rio de Janeiro; a Lei Jereissati (12.464/95) do estado do Ceará; a
lei 12.733/97 (atualmente modificada na lei 13.665/2000) do estado de Minas Gerais, entre
outras leis municipais e estaduais de incentivo à cultura.
Até o ano de 2007, na Lei Rouanet ou Lei Federal de Incentivo à Cultura, os filmes de
longa-metragem ficcionais ou documentais são enquadrados no art.25 e beneficiados pelo
incentivo fiscal que permite às pessoas jurídicas investidoras em produções cinematográficas
o abatimento no Imposto de Renda de 40% do valor investido como doação e 30% do valor
investido como patrocínio; e às pessoas físicas o abatimento de 80% do valor das doações e
60% do valor dos patrocínios. O total a ser abatido é limitado a 4% do imposto devido no
caso de pessoas jurídicas e 6% do imposto devido para pessoas físicas, sendo que as
operações de captação somente podem ser realizadas após a aprovação do projeto pelo órgão
governamental competente (atualmente é a Agência Nacional de Cinema – Ancine). É
importante esclarecer que, desde 1º de janeiro de 2007, a Lei Rouanet deixou de ser aplicável
a filmes de longa-metragem ficcionais, por imposição do art.52 da M.P.2.228-1/01 que
estabelece que, a partir desta data, a Lei Rouanet somente poderá ser acionada por projetos
cinematográficos de curta e média metragem ou longas-metragens documentais. Para suprir a
lacuna, a Lei 11.437/06 incluiu na Lei do Audiovisual o art.1ª-A, do qual falaremos adiante.
A Lei do Audiovisual, implementada em 1993, prevê, em seu art. 1º, que pessoas
jurídicas ou físicas, se beneficiem do incentivo fiscal adquirindo Certificados de
Investimentos Audiovisuais representativos dos direitos de comercialização de filmes
brasileiros. Esse mecanismo funciona da seguinte maneira: o responsável por um projeto
audiovisual o envia para análise do órgão governamental competente (inicialmente a
Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual e atualmente a Ancine). Sendo o projeto
aprovado, é autorizada a emissão dos certificados a serem negociados no mercado sob a
orientação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A partir de então, uma empresa,
banco, ou pessoa física pode comprar esses certificados e deduzir integralmente esse valor até

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o limite máximo de 3% do total de Imposto de Renda devido. Além de abater 100% do valor
investido na aquisição de cotas de filmes, pode-se lançar esse valor na contabilidade da
empresa como despesa operacional, o que permite a redução do lucro tributável e,
conseqüentemente, do total de Imposto de Renda a pagar, possibilitando um ganho financeiro
de 25% do total investido, ou seja, a dedução fiscal é de 125% do valor investido. Por
exemplo, a empresa investe R$ 50.000,00 e tem redução tributária de R$ 62.500,00. Outra
vantagem da Lei do Audiovisual é que os investidores se tornam sócios do produto, ou seja,
são caracterizados como acionistas do filme através da compra do certificado de investimento
e, se o filme apresentar lucros, eles recebem sua porcentagem. Nos parâmetros da Lei Rouanet
o investidor não se torna sócio do projeto, sua participação é caracterizada como apoio
cultural e, portanto, não obtém retorno financeiro quando o projeto gera lucros.
Outro aspecto significativo da Lei do Audiovisual diz respeito ao estímulo à co-
produção com empresas estrangeiras. De acordo com o art.3º da lei 8.685/93, os
contribuintes do Imposto de Renda incidente sobre o crédito ou remessa para o exterior de
rendimentos decorrentes da exploração comercial de obras audiovisuais estrangeiras no Brasil
podem utilizar até 70% do imposto devido para investimento na co-produção de filmes
brasileiros. De acordo com Simis (1998, 2006), este tipo de incentivo a princípio não gerou
mobilização significativa por parte das grandes empresas cinematográficas estrangeiras, as
chamadas majors, porque era mais vantajoso para elas debitar o imposto cobrado no Brasil na
declaração dos seus rendimentos nos EUA, o que não poderia ser feito se essas empresas
optassem pelo investimento em co-produções no Brasil. Além disso, a legislação tributária
norte-americana prevê uma cota de impostos sobre o lucro de qualquer investimento feito por
suas empresas no estrangeiro, e dessa forma, os eventuais lucros provenientes de uma co-
produção seriam duplamente taxados, no Brasil e nos EUA. O art.3º da Lei do Audiovisual
passou a ser mais requisitado a partir da M.P. 2.228-1/01 quando foi introduzida a Condecine
(Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) que é uma
taxa a ser recolhida pelos responsáveis por obras publicitárias e não-publicitárias, nacionais e
estrangeiras, comercializadas e exibidas, em qualquer segmento, no território nacional. A
chamada “Condecine Remessa” incide com uma alíquota de 11% sobre o crédito ou remessa
para o exterior de rendimentos decorrentes da exploração comercial de obras audiovisuais no

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Brasil. Com esta cobrança adicional as majors passaram a considerar mais vantajoso optar
pela co-produção em obras cinematográficas brasileiras, já que a M.P. 2.228-1/01 permite,
através do art.49, que elas fiquem isentas do pagamento da Condecine Remessa quando da
utilização do incentivo fiscal previsto no art.3º da Lei do Audiovisual. Além disso, o art.39,
prevê que as programadoras internacionais de TV por assinatura também podem receber
isenção da Condecine Remessa caso invistam 3% do valor do crédito ou da remessa
decorrente da exploração do mercado em que atuam, em obras audiovisuais brasileiras de
produção independente.
É importante ressaltar que o mecanismo de incentivo previsto no art.1º da Lei do
Audiovisual terminaria em 2003 de acordo com o primeiro texto da lei 8.685/93, mas, por
meio da lei 11.437, de 28 de dezembro 2006, esse mecanismo foi prorrogado até 2010. Esta
mesma lei incluiu na Lei do Audiovisual os artigos 1º-A e 3º-A.
Como já apontamos, o art.1º-A pretende substituir o incentivo previsto na Lei Rouanet,
possibilitando que, até o ano de 2016, os contribuintes possam deduzir do Imposto de Renda
devido 100% dos recursos investidos como patrocínio à produção de obras cinematográficas
brasileiras de produção independente, cujos projetos tenham sido previamente aprovados pela
Ancine. A dedução pode atingir o limite de 4% do imposto devido no caso de pessoa jurídica
e 6% para pessoas físicas.
O art.3º-A cria novo incentivo, possibilitando que empresas de radiodifusão e
programadoras nacionais de televisão por assinatura venham a dispor de 70% do Imposto de
Renda incidente sobre a remessa de recursos ao exterior, para a co-produção de obras
audiovisuais brasileiras de produção independente.
Outra fonte de financiamento à produção cinematográfica que veio juntar-se às leis de
incentivo instauradas nos anos 90, são os Funcines (Fundos de Financiamento da Indústria
Cinematográfica Nacional), inaugurados nos anos 2000. A autorização para criação dos
Funcines foi dada pela M.P. 2.228-1 em 2001, mas somente em novembro de 2003 foram
2
lançados oficialmente, após regulamentação editada pela Ancine e pela CVM 3 . Os
Funcines são Fundos de Participação regulamentados pela CVM e administrados por
instituições financeiras ou agências e bancos de desenvolvimento. São fundos destinados ao

2 Instrução Normativa nº 17, de 07 de novembro de 2003.


3 Instrução CVM, nº 398, de 28 de outubro de 2003.

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investimento em todos os setores da cadeia produtiva audiovisual (infra-estrutura, produção,
comercialização, distribuição e exibição). Cada Funcine é uma comunhão de recursos,
constituído sob a forma de condomínio fechado, sem personalidade jurídica, destinado à
aplicação em projetos aprovados pela Ancine. É uma forma de investimento que reúne vários
aplicadores que têm seu dinheiro gerido por especialistas financeiros que o aplicam em
projetos componentes da carteira de investimento do fundo em questão. O investidor não
escolhe o projeto, ele participa de uma carteira diversificada de investimentos e a seleção dos
projetos cabe ao administrador dos fundos, um especialista que vai trabalhar para maximizar
os retornos e diminuir os riscos dos investimentos. Se o empreendimento que compõe a
carteira de investimento do fundo em questão - seja ele um filme ou uma sala de exibição - for
rentável, o investidor terá ganhos de capital decorrentes da aplicação. Além disso, até 20% 4
dos recursos aplicados em Funcine, não precisam necessariamente estar comprometidos com
projetos cinematográficos e podem ser aplicados em títulos emitidos pelo Tesouro Nacional
e/ou Banco Central do Brasil, o que é uma forma de dar garantia mínima de rentabilidade aos
fundos. O que mais chama a atenção, no entanto, é o incentivo fiscal, garantindo aos seus
investidores a possibilidade de dedução fiscal de 100% do valor gasto na aquisição de cotas
dos Funcines, até o limite de 3% do Imposto de Renda a ser pago por pessoa jurídica e 6% por
pessoa física. 5 Assim, o dinheiro investido, que pode render lucros aos aplicadores, vem
indiretamente do Estado, via renúncia fiscal, o que em si já é uma questão que suscita
discussões. Outra questão polêmica é o fato de o investimento se dar por razões financeiras e
não institucionais. A responsabilidade dos gerenciadores de recursos é oferecer o maior
retorno aos investidores, apostando em projetos que se apresentem como negócios mais

4 De acordo com a M.P. 2.228-1/01, os Funcines deverão manter no mínimo 90% do seu patrimônio aplicados
em empreendimentos ligados à indústria cinematográfica. Mas de acordo com Instrução CVM 398/03, que
regulamenta especificamente os Funcines, a porcentagem de recursos aplicados no Funcine que deverão ser
direcionados para empreendimentos da indústria cinematográfica é de no mínimo 80%, sendo a parcela não
comprometida constituída por títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e/ou pelo Banco Central do Brasil -
BACEN.
5 Inicialmente, de acordo com o art.45 da M.P. 2.228-1/01, era permitida a dedução fiscal de 34% do valor do
investimento - a parcela a ser deduzida era calculada com a soma das alíquotas do Imposto de Renda sobre o
lucro real (15%), Contribuição Social sobre lucro líquido (9%) e Adicional do Imposto de Renda (10%): 15 +
9+ 10 = 34%. E o valor investido em Funcines poderia ser computado como despesa operacional e deduzido
do lucro líquido da empresa, em percentuais decrescentes ao longo dos anos: de 2002 a 2005 100%; de 2006
a 2008 50% e nos anos de 2009 e 2010 apenas 25% poderia ser deduzido. Atualmente, com a redação da lei
11.437/06, até o ano de 2016, as pessoas físicas e jurídicas tributadas pelo lucro real poderão deduzir do
Imposto de Renda devido 100% do valor aplicado em Funcines.

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promissores, ou seja, parâmetros econômicos e financeiros definem a escolha de projetos
ligados a um setor artístico e cultural. Esta questão promete se agravar daqui pra frente, visto
que, com o incentivo fiscal de 100%, os investimentos em Funcines, por serem mais atraentes
em termos de rentabilidade financeira, provavelmente ultrapassarão os investimentos via
art.1º da Lei do Audiovisual. Há também insegurança em relação à regulamentação dos
Funcines, que pode dar margem à corrupção. De acordo com Ícaro Martins, presidente da
APACI (Associação Paulista de Cineastas):
Do jeito que está, o mecanismo tem todas as condições para se tornar um
esquema de lavagem de dinheiro. Ele deixa brechas para achaques e atrai
todo tipo de aventureiros do mercado de capitais. Se nada for feito, os
Funcines podem virar o grande escândalo do cinema brasileiro. (MARTINS
apud SOUSA, 2008, p.1).

A Ancine disponibilizou, de abril a maio de 2008, uma Consulta Pública para que os
cidadãos interessados manifestem sugestões ou críticas em relação à Minuta de Instrução
Normativa que estabelece normas e procedimentos para aprovação dos Funcines e
apresentação, análise, execução e acompanhamento dos projetos aptos a receberem seus
recursos.
A respeito da atuação da Ancine, gostaríamos de ressaltar que, com esta agência,
efetivada em 2002, pela primeira vez desde o fim da Embrafilme em 1990, o setor
cinematográfico brasileiro voltou a ter um órgão estatal dedicado especificamente a ele. No
entanto, percebe-se claramente que o investimento estatal direto não foi reativado nos moldes
da Embrafilme. A Ancine realiza atividades do chamado fomento direto (apoio a projetos
audiovisuais com recursos provenientes do próprio orçamento da agência) através de editais
públicos em que são selecionados projetos para receberem recursos em diferentes fases de
execução: desenvolvimento, produção, e finalização; e/ou através de prêmios concedidos pelo
mérito de mercado ou artístico das obras audiovisuais. No entanto, como informa a própria
agência, o fomento direto tem o objetivo de complementar os recursos investidos de forma
indireta (via leis de incentivo) e incrementar a atividade cinematográfica e audiovisual até que
esta tenha condições de atingir sua auto-sustentabilidade. Os relatórios da Ancine comprovam
que os valores dos investimentos realizados via fomento direto são mínimos se comparados
com os valores captados através dos mecanismos de incentivo: de 2003 a 2006 o total de
fomento direto foi de R$ 29.346.000 e o total de valores captados via mecanismos de
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incentivo foi de R$ 476.895.000. Ou seja, o fomento indireto é 16 vezes maior do que o
fomento direto.
Sendo assim, as atividades da Ancine dizem respeito essencialmente a gerir os
programas e mecanismos de incentivo à indústria cinematográfica e videofonográfica
nacional, entre outras múltiplas atribuições referentes à regulação e à fiscalização da atividade
cinematográfica.
Interessa ressaltar, então, que a década de 90 e os anos 2000 estão marcados pela
perspectiva neoliberal, de acordo com a qual o Estado procura se afastar do papel de
subsidiador das produções culturais e transferir para a iniciativa privada as decisões em
relação aos aportes a serem investidos na área cultural. Essa perspectiva neoliberal que
procura inserir a cultura na dinâmica do mercado esteve presente de forma radical no governo
Collor, que extinguiu de forma drástica vários órgãos culturais; no período FHC, em que se
consolidaram as leis de incentivo fiscal ditando novas condições que vinculam cultura e
mercado e, mesmo sob a vigência da Ancine, no governo Lula, percebe-se que essa postura
não foi abandonada.
Com as leis de incentivo instauradas nos anos 90, a decisão sobre em qual produção
cultural investir foi deixada às empresas, que abatem do Imposto de Renda o valor investido e
não têm riscos decorrentes do investimento, fazem uso das obras cinematográficas como
veículos para divulgação de suas marcas e, quando da utilização da Lei do Audiovisual, ainda
podem ter participação nos eventuais lucros advindos da obra. Não é um típico mecenato
privado. É uma situação peculiar em que os recursos são provenientes do Estado via renúncia
fiscal, mas a decisão sobre em que investir fica para as empresas ou eventuais pessoas físicas
que venham a utilizar-se dos mecanismos das leis de incentivo.
Esta questão é complicada, pois desde que o Estado não possui mais comissões para
selecionar os filmes a serem financiados e transfere essa decisão para as empresas, estas se
utilizam de critérios próprios para selecionar os filmes aos quais sua imagem será associada.
Nas palavras do cineasta Helvécio Ratton (2007, p.2):
Quando uma empresa entra apoiando um filme, ela está usando dinheiro
público para promover o nome dela. Mas as empresas começam a evitar
certos tipos de filmes, por não quererem associar a marca delas a eles. Isso é
algo extremamente complicado.

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Com essas considerações, mais do que a qualidade artística, estética ou a importância
cultural de um filme, parece prevalecer o potencial mercadológico e o relacionamento que o
proponente do projeto consegue manter com os gerentes de marketing das empresas e a
tendência é que sejam priorizados aqueles filmes que possuem mais condições de atingir
maior amplitude de público e, portanto, propiciar maior retorno para a empresa investidora.
Outra questão que merece ser levantada diz respeito aos orçamentos dos filmes. O
limite dos aportes de recursos advindos das leis de incentivo foi aumentado gradativamente a
partir de alterações na legislação, possibilitando a realização de filmes com orçamentos mais
altos. No primeiro texto da Lei do Audiovisual o limite da captação de recursos era de R$ 1,5
milhão e atualmente este limite atinge R$ 7 milhões, quando utilizados incentivos previstos

nos artigos 1oe 1oA da Lei do Audiovisual somados a incentivos previstos nos artigos 3oe

3oA desta lei, sendo autorizado, ainda, o uso concomitante de outros benefícios, como o uso
de leis estaduais e municipais de incentivo à cultura, Funcines e editais de fomento direto.
Para as empresas investidoras em cinema, parece mais interessante investir em grandes
produÁões que trazem em si a promessa de alcançar maior público e, portanto, render mais
em marketing ou em lucros reais. Essa questão é acentuada pelo fato de que para os corretores
responsáveis pela captação de recursos junto às empresas patrocinadoras é muito mais
vantajoso captar recursos para filmes de maiores orçamentos, visto que eles podem cobrar,
pelo serviço prestado, até 10% do orçamento total do filme. Assim, as grandes produções
cinematográficas, que em geral estão associadas à concepção mercadológica de cinema como
entretenimento, passaram a ter maior facilidade em conseguir patrocínio do que os filmes
mais modestos.
No contexto das leis de incentivo instauradas nos anos 90, propagou-se a visão da área
cultural em geral e, particularmente, do cinema como um produto negociável, que busca ser
atraente aos investidores, sendo produzido mercadologicamente, visando lucros e devendo
alcançar o maior número de consumidores possível.
Esta perspectiva foi acentuada com a entrada da Rede Globo de Televisão no campo
cinematográfico, a partir de 1998, com a criação da Globo Filmes que incorporou ao cinema
técnicas, linguagens, star system e estéticas televisivas, contando com o grande apelo
consolidado pela TV Globo junto ao público. É importante destacar que por ser vinculada à

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Rede Globo de Televisão que é uma concessão pública de teledifusão, a Globo Filmes não
poderia contar com os benefícios dos incentivos fiscais previstos na Lei do Audiovisual, visto
que esta legislação é voltada apenas para as obras audiovisuais de produção independente que
são aquelas cujo produtor majoritário não está vinculado direta ou indiretamente às empresas
concessionárias de serviços de radiodifusão e cabodifusão de sons ou imagens. No entanto,
valendo-se da estratégia de se associar a produtores independentes, a Globo Filmes conseguiu
participar de projetos que captam recursos provenientes de renúncia fiscal, visto que em
regime de co-produção não é a Globo Filmes que capta recursos, mas a produtora
independente que participa do projeto junto com ela. Além de competir com os produtores
independentes na captação de recursos provenientes dos incentivos fiscais, há concorrência
desleal da Globo Filmes no tocante ao lançamento de filmes com sua participação, os quais
contam com grande divulgação nos intervalos comerciais e na grade de programação
televisiva da Rede Globo. Outro ponto problemático que envolve também as outras emissoras
de TV, diz respeito à obrigatoriedade de exibição de programas e filmes de produtoras
independentes, e a taxação das receitas das emissoras de TV para a criação de um fundo de
fomento ao audiovisual – questões estas que foram polemizadas nas discussões em torno do
projeto de criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual).
Pretendemos enfatizar que, ao longo da década de 90 e anos 2000, foram configuradas
novas condições para a produção cinematográfica brasileira. Foi delineada uma nova relação
entre Estado e Cinema no Brasil, na qual aquele restringe sua participação direta na
organização deste, transferindo para o mercado as decisões sobre os projetos a serem
patrocinados através das leis de incentivo fiscal e dos Funcines. A legislação estimulou as co-
produções com empresas estrangeiras e gradativamente aumentou os tetos de captação de
recursos, facilitando a produção de filmes com orçamentos mais altos. E foi criada a Globo
Filmes que introduziu significativas transformações no cinema brasileiro.
Estes dados sugerem que a conjuntura da produção cinematográfica brasileira
contemporânea favorece a proliferação de um cinema mercadológico, com produções de altos
orçamentos, caráter de entretenimento e que objetiva alcançar um público massivo. Se são
estas as circunstâncias, como se explica a proliferação, nos últimos anos, de filmes que tratam
do tema da Ditadura Militar no Brasil - tema que, supostamente, seria avesso a este tipo de

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enquadramento?

3. Filmografia sobre a Ditadura Militar no Brasil

Nesta pesquisa, são considerados os filmes de longa-metragem lançados nos anos de


1994 a 2008 relacionados com o tema da Ditadura Militar no Brasil. Julga-se que é necessário
estudar não só aqueles filmes que retratam os temas pungentes da luta armada e/ou das
torturas mas todos aqueles que retratam, de uma maneira ou de outra, a forma como diferentes
pessoas vivenciaram os anos compreendidos entre 1964 e 1985 e, através de parâmetros
humanos ou factuais, façam interlocução com o contexto histórico da Ditadura Militar no
Brasil. Tem-se consciência da amplitude de abordagens que estão sendo abarcadas e da
complexidade que envolve tal análise, mas entende-se ser necessário este recorte amplo para
que se possa efetivamente compreender a relação entre as condições para a produção
cinematográfica configuradas nos anos 90 e 2000 e os filmes lançados neste período que se
debruçam sobre um momento histórico ainda hoje lacerante para a sociedade brasileira – o
período do regime militar.
A motivação norteadora é investigar se as possibilidades de realização de um cinema
nacional com autonomia para realizar interlocução com as particularidades históricas,
políticas e culturais do Brasil foram de alguma forma cerceadas ou tiveram que fazer
concessões à massificação e ao pragmatismo comumente associados às leis de mercado que
passaram a permear as condições de produção cultural no país fundamentalmente a partir dos
anos 90.
Com a proposta de investigar as diferentes soluções encontradas pela filmografia
relacionada ao tema da Ditadura Militar no Brasil frente à conjuntura que envolve a produção
cultural na contemporaneidade brasileira, levantamos vinte longas-metragens, ficções e
documentários, lançados entre 1994 e 2008, relacionados ao tema. São eles: Lamarca (Sérgio
Rezende, 1994); As Meninas (Emiliano Ribeiro, 1995); O que é isso, companheiro? (Bruno
Barreto, 1997); Ação entre amigos (Beto Brant, 1998); Barra 68, sem perder a ternura
(Vladimir Carvalho, 2000); Araguaya – A conspiração do Silêncio (Ronaldo Duque, 2004);
Vôo Cego Rumo ao Sul (Hermano Penna, 2004); Tempo de Resistência (André Ristum, 2004);

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Cabra-Cega (Toni Venturi, 2005); Quase dois irmãos (Lúcia Murat, 2005); Vlado -30 anos
depois (João Batista de Andrade, 2005); Sonhos e desejos (Marcelo Santiago, 2006); Zuzu
Angel (Sérgio Rezende, 2006); 1972 (José Emílio Rondeau, 2006); O Ano em que meus pais
saíram de férias (Cao Hambúrguer, 2007); Batismo de sangue (Helvécio Ratton, 2007);
Caparaó (Flávio Frederico, 2007); Condor (Roberto Mader, 2007); Hércules 56 (Silvio Da-
Rin, 2007); Os desafinados (Walter Lima Jr., 2008). Além destes, verificamos que estão em
fase de produção ou aguardando captação de recursos pelo menos mais quatro longas-
metragens: 68: destinos, direção de Marcos Prado; A Rebelião dos Estudantes - Brasília,
1968, direção Armando Lacerda; Abaixo a ditadura, de Ugo Giorgetti e Clandestinos, de
Patrícia Moran.
O cinema brasileiro dos anos 90 e 2000 é marcado pela diversidade. Surgiram
numerosos filmes sem qualquer filiação estética, política e ideológica, com uma pluralidade
de temas e estilos, produzidos por diversos diretores consagrados ou estreantes, com
diferentes formações, oriundos de várias regiões do país, ligados à televisão ou à publicidade.
Enfim, uma ampla variedade de perspectivas, percepções e posicionamentos deram origem a
filmes sobre os mais diversos assuntos e enfoques. Interessa ressaltar, que em meio aos mais
variados tipos de filmes, houve também um número significativo de filmes que abarcam, de
alguma forma, o tema da Ditadura Militar no Brasil. Busca-se desvendar, então, quais foram
as motivações que levaram alguns cineastas a optar por este tema em meio à variedade de
opções, e investigar como se realiza a combinação entre uma nova conjuntura que parece
favorecer um cinema mercadológico, com caráter de entretenimento e que visa alcançar um
público massivo, e filmes com matizes mais politizados que supostamente teriam dificuldades
em se adequar a estas circunstâncias. Outra preocupação diz respeito à análise específica do
tratamento dado por estes filmes ao tema delicado que é o período da ditadura militar.
Ao tomar contato com as sinopses dos filmes e entrevistas concedidas pelos cineastas
aos órgãos de imprensa, já é possível perceber, antes mesmos de assisti-los, que os filmes
relacionados ao tema da Ditadura Militar no Brasil produzidos entre 1994 e 2008,
documentários ou ficções, apresentam vieses interpretativos bastante distintos, bem como
diferentes graus de politização e de preocupação com a revisão histórica ou com a
contribuição para o entendimento de episódios específicos ou vivências daquele período da

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História do Brasil.
É importante analisar a forma como cada um dos filmes retrata os anos do regime
militar, que tipo de olhar esta filmografia lança à sociedade, se há comprometimento com os
fatos históricos e se a abordagem feita pelo filme propicia à sociedade revisitar a história do
país, enxergar e refletir sobre o passado, ou se tende a uma versão conciliadora, reducionista
ou maniqueísta em relação à ditadura. E estabelecer a relação entre o tipo de abordagem e as
condições próprias de produção de cada filme, verificando-se como esta filmografia opera
com a possibilidade de aumento dos orçamentos; incorporação das técnicas, linguagens e
estéticas televisivas e publicitárias; co-produção com empresas estrangeiras; necessidade de
atrair investimentos privados e pressão para realizar filmes de maior alcance de público e
rentabilidade, e de que forma esta conjuntura influencia no conteúdo desses filmes.
Neste sentido, é essencial examinar filme a filme, e estabelecer classificações de acordo
com: ano de produção e lançamento; produtora; co-produção com empresas estrangeiras ou
não; participação de emissoras de TV ou não; faixas de orçamento; mecanismos de captação
de recursos acionados; patrocinadores privados ou estatais; público alcançado.

4. Os filmes e suas condições de produção

Dos vinte filmes levantados, verificamos que apenas cinco foram lançados no período
anterior à vigência da Ancine: Lamarca (1994), As Meninas (1995), O que é isso,
companheiro? (1997), Ação entre amigos (1998), Barra 68 – sem perder a ternura (2000).
Em relação às produtoras, há grande diversidade, havendo apenas um caso de filmes
com a mesma a produtora: O que é isso, companheiro? (1997) e Sonhos e Desejos (2006),
produzidos pela Filmes do Equador Ltda em associação com a LC Barreto Ltda - do clã
Barreto. É interessante salientar que O que é isso, companheiro? foi dirigido por Bruno
Barreto e Sonhos e Desejos foi a estréia como diretor de longa-metragem de um pupilo dos
Barreto: Marcelo Santiago, que trabalha na LC Barreto desde 1995, tendo sido assistente de
direção em filmes de Fábio Barreto e supervisor de finalização em O que é isso,
companheiro?.
Sobre as produtoras dos demais filmes, destaca-se a presença de empresas produtoras

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pertencentes aos próprios cineastas responsáveis pelos filmes, tais como: Taiga Filmes e
Vídeo, de Lúcia Murat responsável pelo filme Quase dois irmãos; Olhar Imaginário, de Toni
Venturi que filmou Cabra Cega; Ronaldo Duque & Associados, empresa produtora de
Araguaya, de Ronaldo Duque; Quimera, produtora de Batismo de Sangue, de Helvécio
Ratton; Oeste Filmes, do cineasta João Batista de Andrade responsável pelo filme Vlado.
Nas co-produções com empresas estrangeiras, aparecem seis filmes: O que é isso,
companheiro? em co-produção com Columbia Pictures, Sony Corporation of America e
Television Trading Corporation; Sonhos e Desejos em co-produção com Paramount Home
Entertainment International, MGM Networks Latin American e Fado Filmes (Lisboa); Quase
dois irmãos co-produzido por Ceneca Prodcciones (CHILE) e TS Productions (França); Zuzu
Angel co-produzido pela Warner Bros Pictures; O ano em que meus pais saíram de férias e
1972 co-produzidos pela Miravista (selo cinematográfico da Buena Vista International para
as co-produções na América Latina).
Há também filmes que receberam recursos do Fundo Ibero-americano de apoio ao
audiovisual, IBERMEDIA, como é o caso de Quase dois irmãos e Sonhos e Desejos. O
programa IBERMEDIA faz parte da política audiovisual da Conferência das Autoridades
Cinematográficas de Ibero-América (CACI), e conta com recursos econômicos provenientes
6
das contribuições dos Estados membros do Fundo e do reembolso dos empréstimos
concedidos.
Em participação com emissoras de TV, temos Ação entre amigos, que foi fruto do PIC-
TV - Programa de Integração Televisão-Cinema viabilizado pela TV Cultura juntamente com
o governo do Estado de São Paulo 7; e os filmes que contam com a participação da Globo
Filmes, tendo como co-produzidos Zuzu Angel e O ano em que meus pais saíram de férias. E,
em situação distinta, Sonhos e Desejos e Cabra Cega que contaram apenas com apoio ao
lançamento, através de acordo com a Globo Filmes para difusão do filme pronto.
Em relação às faixas de orçamento, com custo de até R$ 1,5 milhão temos: As meninas;

6 Atualmente o Fundo IBERMEDIA está ratificado por 17 países membros e observadores da CACI:
Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, Espanha, México, Panamá, Peru,
Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
7 O funcionamento deste programa - extinto em 2001 - se dava da seguinte maneira: os projetos selecionados
pela emissora recebiam um investimento de até R$ 400 mil, apoio técnico para produção e garantia de
exibição na televisão após a exibição em circuito comercial. Além disso, a TV Cultura também contribuía
para a promoção do filme, veiculando publicidade das produções em sua programação diária.

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Ação entre amigos; Araguaya; Cabra Cega; Caparaó; Condor; Hércules 56 e Vôo Cego
Rumo ao Sul. De 1,5 a 4 milhões: Sonhos e Desejos, Quase dois irmãos; e O que é isso,
companheiro? 8. E acima de 4 milhões: 1972; Zuzu Angel; Batismo de Sangue; O ano em que
meus pais saíram de férias; e Os desafinados, cujo orçamento ultrapassa os R$ 7 milhões.
Sobre o filme Lamarca, não conseguimos dados sobre seu orçamento, a única informação que
temos é que foi aprovado para captação via Lei Rouanet o valor de 2.117.917 UFIR (Unidade
Fiscal de Referência). Já os filmes Barra 68; Tempo de resistência e Vlado foram produzidos
sem valer-se dos mecanismos de incentivo e, portanto, não apresentam prestação de contas à
Ancine. Em entrevista, João Batista de Andrade disse que seu documentário Vlado custaria
cerca de R$ 600mil. Muito provavelmente Barra 68 e Tempo de resistência, em formato e
condições de produção semelhantes, também se enquadram na faixa de baixo orçamento.
No quadro dos mecanismos de captação acionados, observa-se que os filmes
relacionados ao tema da ditadura militar refletem o perfil geral de captação de recursos, com
predominância de aportes captados via art.1º da Lei do Audiovisual.
De acordo com a Ancine, de 1995 a 2002, o volume de recursos captados via art.1º da
Lei do Audiovisual aparece em primeiro lugar; em segundo lugar a Lei Rouanet; seguida pelo
art.3º da Lei do Audiovisual que começa a aumentar seus aportes a partir de 2003. De 2002 a
2006 o total captado via art.1º foi de mais de R$ 210 milhões, seguido pelo art.3º da Lei do
Audiovisual com quase R$ 169 milhões e pelo total captado via Lei Rouanet que foi em torno
de R$ 133 milhões. Já os demais mecanismos (isenção da Condecine pelo art.39 MP 2.228-1;
Funcines; conversão da dívida externa e leis de incentivo estaduais e municipais) apresentam
aportes muito menos significativos.
Nos filmes estudados, o mecanismo do art.1º da Lei do Audiovisual é representativo do
maior volume de recursos captados em oito filmes; quatro filmes apresentam prevalência da
Lei Rouanet sendo que em um deles o total captado via Lei Rouanet quase se equipara ao
total captado via art.1º; o art.3º da Lei do Audiovisual é predominante em três filmes; dois
filmes tiveram a maior parte de seu orçamento proveniente de recursos municipais de São

8 Na época em que foi lançado o filme O que é isso, companheiro? foi considerado uma grande produção, e
seu orçamento de quase quatro milhões foi considerado bastante alto, mas em comparação com outros filmes
da atualidade que chegam a ultrapassar os sete milhões, ele enquadra-se nesta faixa intermediária de
orçamento, de 1,5 a 4 milhões.

725
Paulo 9 e três filmes, já citados, não captaram recursos incentivados.
No levantamento dos principais patrocinadores percebe-se também um reflexo do
quadro geral de maiores investidores em cinema. Segundo dados da Ancine, o principal
investidor através do art.1º da lei do Audiovisual, nos anos de 2002 a 2006, é o BNDES
(Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e através da Lei Rouanet é a
Petrobrás – Petróleo Brasileiro S.A. que vem sendo responsável por mais de 50% dos recursos
captados com o uso desta lei. Dos vinte filmes estudados, onze contaram com o patrocínio da
Petrobrás e, destes onze, oito receberam concomitantemente o patrocínio do BNDES.
Destacam-se também, embora em um número bem menor de filmes, as estatais Eletrobrás,
Furnas e Infraero; e a privatizada Telemar.
Alguns fatores explicam a prevalência de estatais não apenas no quadro específico
desses filmes mas também no quadro geral de investidores e patrocinadores de cultura. De
modo geral, as empresas privadas não desejam montar uma estrutura específica para atender
os proponentes de projetos e preferem não despender energia na seleção de filmes aos quais
será associada sua marca. Mas, talvez, o fator de maior peso seja contábil: grande parte das
empresas privadas brasileiras sonega impostos, trabalha com caixa dois e não é atraída pelo
benefício da dedução fiscal.
Pode ser que com a novidade dos Funcines que prometem rentabilidade além do
benefício fiscal, as empresas privadas passem a investir em cinema, mas esta é uma questão
futura. É significativo, no entanto, que três filmes entre os estudados já tenham recebido
recursos destes fundos: Cabra Cega, O ano em que meus pais saíram de férias e Os
Desafinados. O primeiro foi beneficiado pelo Funcine do Banco do Brasil Distribuidora de
Títulos e Valores Mobiliários (BB DTVM), e os outros dois pelo RB Cinema I, da Rio
Bravo.

5. Considerações Finais

9 Diretamente no caso de Vôo Cego Rumo ao Sul que recebeu recursos por meio de edital (2002) do Programa
Municipal de Fomento ao Cinema da Prefeitura da cidade de São Paulo. E indiretamente no caso de Caparaó
que se valeu da lei municipal de incentivo à cultura 10.923/90 (Lei Mendonça) que prevê benefícios fiscais
para os patrocinadores de projetos culturais.

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Nos filmes estudados observa-se uma heterogeneidade na forma como se relacionam
com as condições de produção cinematográfica de seu tempo. Há dois pólos: o daqueles que
se enquadram no cinema de mercado, com grandes produções, em associação com a Globo
Filmes e/ou majors, com pleno uso dos mecanismos de incentivo, combinando aportes
captados em várias vias para totalizar orçamentos esbanjadores; e, no outro extremo, filmes
totalmente independentes e autorais que nem ao menos contam com mecanismos de
incentivo, construindo-se à parte das leis do mercado, não se envolvendo nas condições de
produção cinematográfica contemporâneas. Porém, a maioria dos filmes fica num meio termo,
tangenciando o cinema de mercado, valendo-se dos mecanismos instaurados nos anos 90 e
2000, mas mantendo sua autonomia, com produtoras dos próprios cineastas e orçamentos
mais modestos sustentados, essencialmente, por investidores estatais.
Esta pesquisa seguirá analisando as implicações destas condições de produção na
abordagem que cada filme faz sobre o tema da Ditadura Militar no Brasil, estabelecendo a
correspondência entre os aspectos externos que envolvem os filmes e o seu conteúdo interno.
Na compreensão de que para analisar um filme é preciso situá-lo na conjuntura de seu tempo.

6. Referências bibliográficas

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Sites consultados:

www.ancine.gov.br

www.cultura.gov.br

www.culturaemercado.com.br

www.programaibermedia.com

www.telaviva.com.br

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