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A CONDIÇÃO HUMANA,
de Hannah Arendt
Profª. Ms. Lucirene Aparecida Carignato 1
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Resenha de:
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2004.

A perda do espaço público como local privilegiado e único da prática da democracia e a


diminuição do status do homem de ser político (que age) para Homo Faber (que cria) até Animal
Laborans (que se reproduz). Eis, em síntese, o pensamento de Hannah Arendt nesta obra intitulada
A Condição Humana.

Hannah Arendt faz uma brilhante análise da condição do homem como ser existente no
planeta Terra, partindo de uma definição daquilo que ela considera as três dimensões da Vida Ativa
(três atividades humanas):

- Labor – atividade assinalada pela necessidade do processo biológico e que assegura,


por isso mesmo, a manutenção da espécie, denotando a proximidade do homem com os
outros animais; por isso, Hannah Arendt atribui esta atividade ao Animal Laborans.
- Trabalho – é a atividade que nos remete ao artificialismo da existência humana
(mundanidade), pois, ao contrário da primeira, não está preocupada com o ciclo vital natural,
mas sim com a criação de artefatos a partir da natureza que acabam por engendrar um mundo
diferente do mundo natural, um mundo de objetos que se interpõe entre a natureza e o
homem e entre os próprios homens; esta atividade é atribuída ao Homo Faber.
- Ação – é a atividade (única) que se exerce entre os homens diretamente, sem a
mediação das coisas ou matéria; trata-se, aqui, da condição política (bios politikos) dos
homens, na sua extrema pluralidade e é aqui, segundo Hannah Arendt, que se encontra a
liberdade enquanto capacidade de reger o próprio destino, para começar algo novo e
imprimir no mundo a lembrança, a história que dão eternidade à condição humana. Ao criar
organismos políticos, o homem cria algo novo que o imortaliza, pois ultrapassa a sua morte.
Somente a Ação é tipicamente humana e pressupõe a presença de outros; por isso é a
condição humana fundamental.

1
Coordenadora de História da UniABC, bacharel e licenciada em História pela FFLCH-USP e mestre em História Social
pela PUC.
Profª. Ms. Lucirene Aparecida Carignato

Posto isto, Hannah Arendt faz um reexame do pensamento político europeu tradicional,
tentando compreender por que a ação política, tão significativamente inerente ao ser humano, foi
destruída na Era Moderna, a ponto de permitir o surgimento no século XX dos regimes totalitários,
cuja marca maior é a instalação de uma tirania de massas no qual, o comportamento substitui a ação.
Para a autora, na tradição européia, desde a Antiguidade, era na esfera pública da polis, por
exemplo, que se dava a Ação, ou seja, a prática da liberdade que permitia ao homem a expressão de
sua real identidade; para a esfera privada estavam reservadas as atividades do Labor e do Trabalho,
que significavam a dimensão das necessidades humanas (ao contrário da liberdade). Em que pese o
fato de que para obter a liberdade na vida pública necessitava-se (e era considerado legítimo naquele
contexto) o uso da força e da violência na esfera privada (obtenção de escravos, submissão das
mulheres), tais esferas estavam muito bem delimitadas e permitiam ao homem o exercício de sua
dimensão como bios politikos.
Durante a Idade Média, porém, a Ação, vista na polis como o espaço da liberdade e da
possibilidade de transcendência do homem, perde hierarquia e se iguala ao Trabalho e ao Labor,
passando a representar nesse novo contexto apenas uma necessidade a mais do ser humano na luta
pela sua sobrevivência, uma vez que as sociedades humanas sempre exigem, além da luta pela 191
manutenção da vida biológica (Labor) e da criação de artefatos que lhe atendam às necessidades
(Trabalho), uma forma de organização política (Ação) para manter os homens em ordenação, o que
não significa, visto dessa forma, um elemento libertador. Ao contrário, nesse contexto, a Ação se
torna apenas um elemento a mais que constitui sua sobrevivência mundana.
“Assim, a Vida Ativa como um todo passa a denotar o engajamento do homem nas coisas
deste mundo, desprovida de qualquer significado de liberdade ou de transcendência, coisas presentes
agora na Vida Contemplativa, vista então como “único modo de vida realmente livre” (p. 22); para
esta inversão, muito contribuiu, evidentemente, a ascensão do Cristianismo (embora essa ideia não
lhe seja original, já a proclamava Platão na Antiguidade) que valorizava a quietude da contemplação
(o fato de não fazer nada, nem pensamento, nem raciocínio) em detrimento da ação (luta incessante
pela manutenção da vida, incluindo a política como necessidade de normatização das coisas
terrenas). Assim, a liberdade migrou da Ação (pertencente à Vida Ativa) para a Contemplação.
No entanto, e aqui é que entram as grandes inquietações de Hannah Arendt, tudo vai mudar
novamente a partir do advento da Era Moderna. A grande novidade, segundo a autora, neste
momento, é a emergência da esfera social, nem privada, nem pública e que encontra sua forma
política no Estado Nacional.
Para Hannah, esse fato novo cria uma dificuldade de compreensão da linha divisória entre o
público e o privado, entre as atividades pertinentes a um mundo comum e aquelas baseadas na
manutenção da vida. A linha divisória tornou-se difusa com a ideia de NAÇÃO – organização
política de “um conjunto de famílias economicamente organizadas” (p. 38) como “uma única

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família sobre-humana” (p. 38), cujos membros devem agir de acordo com um único interesse,
ocultando as desigualdades.
Isto quebra com os conceitos tradicionais e as esferas públicas e privadas no mundo moderno
diferem muito pouco entre si, alterando até o próprio significado que os termos tinham até então. Se
antes havia um abismo entre o público – espaço da política no qual se praticava a Ação – e o
privado – espaço da sobrevivência e reprodução humana – o advento da sociedade massificadora,
representada na ideia de Nação, dilui os conceitos e acaba por excluir a possibilidade da Ação,
substituindo-a pelo comportamento social: normativo, regrador e nivelador.
A clareza da separação de antes enaltecia a Ação que se realizava somente na esfera pública; o
ser humano que vivesse somente no âmbito do privado (o escravo, a mulher) não era inteiramente
humano. Agora, com a fronteira difusa, a ideia massificadora do Social leva o homem a um
isolamento que reflete principalmente a perda da esfera pública como palco da Ação política,
jogando o homem moderno cada vez mais para o terreno da não ação e da não palavra.
O advento da Era Moderna trouxe também uma dupla inversão dentro da Vida Ativa. Ao
passo em que a Ação deixou de existir como possibilidade de realização do homem, o Trabalho
passa, num primeiro momento, a ser extremamente valorizado. Assim, o Homo Faber adquire uma
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maior importância, sobretudo a partir da invenção do telescópio que permitiu à Humanidade ver o
funcionamento do Universo. Ou seja, foi necessário um artefato humano (o telescópio) para
desvendar a aparência das coisas (ideia falsa do Geocentrismo), lançando definitivamente a dúvida
quanto à capacidade dos sentidos de perceberem a realidade e dando base para o pensamento
cartesiano de que tudo é merecedor de dúvida e a única coisa da qual não podemos duvidar é de que
duvidamos (ou pensamos).
Assim se deu a ascensão do Homo Faber como construtor, como fabricante de coisas que se
justificam pela sua utilidade, no mesmo momento em que a Contemplação também dá lugar outra
vez à Vida Ativa e pelos mesmos motivos.
No entanto, uma segunda inversão vai ocorrer quando o Homo Faber é destituído de sua
importância e ocorre a ascensão do Animal Laborans, a mais alta posição na ordem hierárquica da
Vida Ativa. Segundo Hannah Arendt, esta inversão se dá porque a atividade política, antes revestida
de um caráter imortalizador para o homem, aquela que justificava a constituição da identidade do
homem para além da morte, agora baixou ao nível de atividade sujeita a vicissitudes da vida,
destinada a atender às necessidades e interesses da vida terrena. Então, agora, qualquer aspiração à
imortalidade só podia ser encontrada dentro do pensamento cristão de imortalidade da vida, a vida
como bem supremo, o próprio “processo vital, possivelmente eterno da espécie humana” (p. 334).
Assim, o homem que já havia perdido seu lugar no campo político da Ação, é também agora,
não mais reconhecido como Homo Faber e degradado na sociedade industrial à condição de Animal
Laborans, que tem por única função a sobrevivência, cujo metabolismo com a natureza não é do

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interesse de ninguém, levando o homem a um isolamento sem precedentes, desvinculando-o do


mundo dos objetos e dos outros homens.
Em síntese, a Ação (bios politiko) passou a ser concebida em termos de fazer e fabricar
(Homo Faber) e o fazer e fabricar passou a ser visto como apenas outra forma de labor (Animal
Laborans).
Esse isolamento que se criou levou o homem à perda da experiência humana e a uma conduta
“entorpecida e tranquilizada” (pág. 335), “último estágio de uma sociedade de operários” (pág. 355),
cuja ação se limita como única exigência do indivíduo, a um funcionamento automático que, se
fosse possível ver desde um ponto de vista de fora da Terra (ponto de vista arquimediano), nós o
veríamos tal qual observamos os microorganismos em nosso planeta. Segundo a autora, isto não
significa que o homem moderno tenha perdido as suas capacidades, mas sim que estas estejam ao
alcance de poucos, já que a sociedade de massas hoje faz com que as experiências de mundanidade
(de não isolamento) escapem à maioria dos homens comuns.
Ao fazer esta análise, Hannah Arendt está preocupada, primeiramente, em compreender como
a Humanidade chega ao século XX com a emergência de regimes totalitários (preocupação já
demonstrada em sua obra Origens do Totalitarismo) e, em segundo lugar, em resgatar a esfera
pública (res publica) como caminho para os homens exercerem a sua liberdade que se manifesta na 193
Ação e na Palavra (em conjunto, no coletivo), que foram cassadas com a perda da esfera pública.
O resgate da Ação e da Palavra no seu sentido coletivo e, portanto, político, nos remete a
algumas experiências históricas que, felizmente, escapam ao controle massificador da sociedade
atual. Dentro de regimes totalitários, apenas para citar um exemplo, já se vislumbraram experiências
deste tipo como os sovietes, quando eles, ultrapassando as necessidades laborais do metabolismo do
animal, aspiraram a transformações políticas para toda a comunidade que representavam, cumprindo
(ou resgatando) sua função de bios politiko.
Hoje, já no início do século XXI, com a superação dos regimes totalitários aos quais se referia
Hannah Arendt, creio ser possível ainda fazer uma leitura utilitária de sua obra, uma vez que,
mesmo levando-se em conta a existência de regimes democráticos em nosso mundo, há que se
considerar ainda a atualidade da noção da esfera social como entidade niveladora e criadora de
comportamentos ao invés de ações, o que compromete muitas vezes a liberdade de ação que as
democracias representativas nas quais vivemos atualmente pretensamente nos propiciam. Em outras
palavras, há que se perguntar se atuamos livremente como bios polítiko só porque elegemos
pessoas, que em nosso nome governam, enquanto nos comportamos segundo as regras de uma
sociedade massificadora e no seio da qual perdemos gradativamente nossa capacidade de agir e
pensar.
Reconhecer, portanto, que, apesar do sufrágio universal e das garantias democráticas formais
que nos cercam hoje, são poucas às vezes que vozes se levantam para, rompendo com o isolamento
ao qual fomos condenados, exercer a prática da liberdade mais radical, a liberdade pública de
participação verdadeiramente democrática, a liberdade que exige um espaço próprio, espaço este
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que é, inclusive, recriado por estas vozes numa reinvenção contínua da esfera pública perdida, ou,
ainda, da esfera social repensada.
Estas vozes pertencem, queremos crer, aos movimentos sociais que se nos apresentam hoje,
como movimentos populares (de moradia, de saúde, etc), ou movimentos sindicais, culturais e até
ecológicos que, fugindo do isolamento, recriam a cada dia o seu direito de falar e agir publicamente.
Arendt faz uma reflexão sobre a condição essencial do homem na Terra, como seu habitante e
seu co-criador, a partir da ênfase na política como elemento de transformação. Sua análise se
preocupa em buscar respostas para os impasses da era moderna, na qual situa a perda da liberdade
política por meio da Ação e da Palavra.
Por isso, nos parece de suma importância e de extrema atualidade a leitura da obra de Hannah
Arendt para todos aqueles que, como nós, estão preocupados com a construção de uma sociedade
que possa ser recriada como lugar de referência da ação política.

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