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A NARRATIVA DOS JOGOS ELETRÔNICOS: CRIANDO ESTÓRIAS PARA

ENTRETENIMENTO INTERATIVO

Vanessa Aparecida FOITTE


Dulce Márcia CRUZ

FOITTE, V. ; CRUZ, D. M. . A narrativa dos jogos eletrônicos: criando estórias para


entretenimento interativo. Letras (Campinas), v. 25, p. 23-43, 2006.

Resumo
Este artigo descreve os resultados de uma pesquisa que analisou as narrativas dos jogos
eletrônicos e os aspectos diferenciais do seu processo de criação. A revisão teórica sobre
enredo, multinarrativas, interatividade, as narrativas míticas e a jornada do herói serviu de
embasamento para a análise da narrativa e dos personagens do game Final Fantasy IX.

Palavras-chave: narrativa, game, interatividade, herói, multinarrativa.

Abstract
The present paper describes the results from an investigation in which the narrative of
electronic games, as well as the differential aspects in the process of their making were
analyzed. The review of the literature for such a study was based on the script,
multinarratives, interactivity, mythical narratives and the journey of the hero in the game
Final Fantasy IX.

Keywords: narrative, game, interactivity, hero, multinarrative.

Introdução

Os jogos eletrônicos ou games são um importante ramo da indústria de


entretenimento mundial, surgido há menos de três décadas com cifras de faturamento na
casa dos bilhões de dólares. Os usuários dos games são estimados em mais de trinta
milhões no mundo todo, e ao contrário do que se supõe não são apenas crianças que os
consomem: 90% dos jogos comercializados no ano de 2000 foram levados para casa por
consumidores com idade média de 28 anos, segundo a revista Veja (2001). De acordo
com dados do site Fox Network (2006), calcula-se que em 2005 havia mais de um milhão
de jogadores on-line e cerca de três milhões de jogadores de videogames no país, com
faixa de idade entre 10 e 40 anos. Nos EUA, onde 39 por cento dos jogadores de
videogames são mulheres, três quartos dos usuários dos chamados jogos multiplayer
massivos on-line (os MMOGs) são adultos, sendo que a idade média dos jogadores é de
30 anos e pouco mais de um terço tem idade abaixo dos 18. Um dos jogos on-line mais
vendidos é o World of Warcraft, onde os jogadores assumem papéis de heróis lendários e
interagem com milhares de internautas, enquanto exploram um mundo desconhecido.
Eles podem participar de batalhas, firmar alianças, fazer amizade com outras criaturas e
competir com inimigos para conquistar mais poder.

A definição e classificação dos games não são uma questão consensual. Os


produtores e as revistas especializadas, por exemplo, dividem os jogos basicamente em
seis categorias ou gêneros: aventura, estratégia, jogos de I, simuladores, de esporte e
Role Playing Game (RPG). Já os pesquisadores discutem os limites entre jogo e
narrativa, criando uma aparente disputa entre os que defendem os games como
narrativas e os que enfatizam o seu aspecto lúdico. Para Kinder (2002), de modo geral, os
games são definidos como uma atividade agradável de lazer, que envolve geralmente
uma disputa entre participantes competindo por diversão, dinheiro, fama ou alguns outros
desafios, construída como um conflito dramático tais como em outras formas narrativas.
Por essa razão, no entender de Kücklich (2003) alguns games transcendem à categoria
dos jogos pela virtude de sua habilidade de contar uma história. Para ele, games podem
ser vistos tanto como parte da tradição da narrativa literária como da dos jogos. Aarseth
(2001, p. 1 de 4), por seu lado, afirma que os games são um gênero artístico por si
mesmos, um campo estético único de possibilidades, que deve ser julgado em seus
próprios termos. Jenkins (2001) acredita que os videogames podem vir a se tornar uma
forma de arte, exigindo as habilidades visuais de um artista plástico e o talento dos
ficcionistas para criar enredos e personagens. Para ele, quanto mais os designers de
jogos aumentarem sua capacidade de incluir estórias e personagens complexos, mais
diminuirá a presença da violência gratuita contida nos videogames.

Tentando colaborar com a discussão sobre esse tema que ainda está começando
no meio acadêmico brasileiro, este artigo narra os resultados de uma pesquisa que teve
como principal objetivo analisar as narrativas contidas nos jogos eletrônicos e os aspectos
diferenciais do seu processo de criação. Como objetivo específico, pretendeu-se realizar
uma revisão bibliográfica sobre a criação de narrativas ficcionais e sobre a história dos
videogames, sobre a criação de enredos de ficção, das narrativas míticas e da construção
de roteiros e enredos. Essa revisão, de caráter teórico, serviu de embasamento para a
análise das técnicas de construção de narrativas e personagens aplicadas no jogo Final
Fantasy IX (Squaresoft). O título Final Fantasy IX, com cerca de 60 horas de duração, foi
escolhido para nossa análise por pertencer a uma série conhecida internacionalmente
pela utilização de avançados recursos gráficos de animação, e pelos enredos
considerados entre os mais elaborados e envolventes dos videogames, alcançando
enorme êxito comercial também no Brasil.

Mais especificamente, o que se procurou saber nesse estudo foi: de que maneira
os designers de videogames utilizam a narrativa ficcional tradicional nas multinarrativas
dos jogos eletrônicos, incorporando aspectos característicos dos jogos como a diversão e
a interatividade? Os seguintes pressupostos foram levantados para tentar solucionar
provisoriamente essas questões: Os altos investimentos financeiros e tecnológicos na
produção dos jogos eletrônicos possibilitam o desenvolvimento de videogames com
narrativas ricas e de grande poder de imersão do jogador, com personagens bem
elaborados e estórias lineares baseadas no clássico sistema começo, meio e fim; a
possibilidade de interação na estória é um desafio para os designers, que precisam criar
momentos de livre ação do jogador e organizá-las de forma linear, para não perderem o
controle da narrativa e manterem um alto fator de diversão (fun factor) no jogo.

Enredo, multinarrativas e narrativas míticas

Dentre as formas de se organizar peças de ficção, a mais comum segundo Gardner


(1997), é a narrativa “energéica”, que é tanto a mais simples quanto a mais difícil de se
fazer. Segundo ele, pela palavra Energeia, Aristóteles define a atualização do potencial
que existe nos personagens e na situação. O romance energéico é o mais simples por ser
dotado de uma energia própria (autopropulsão), e ao mesmo tempo o mais difícil por ser
menos passivo de falsificação. Em sua estrutura, o romance energéico comporta três
partes: começo, meio e fim, que correspondem a exposição, desenvolvimento e desfecho.

Na exposição apresenta-se tudo aquilo que o leitor precisa saber sobre


personagens e situação, sobre o potencial a ser atualizado durante a narrativa. Toda

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informação contida nessa parte deve ser relevante para a ação que vem depois, levando
o leitor a saber o necessário para entender o que virá em seguida no desenvolvimento.
Essas informações não devem ser simplesmente ditas, mas mostradas dramaticamente
como as causas da história. Quando definir o que vai acontecer no processo de
desenvolvimento da história e seu significado filosófico, o ficcionista estará pronto para
elaborar os detalhes da sua exposição. No entanto, essa exposição não é
necessariamente colocada em um bloco só no início da narrativa, podendo ser introduzida
no contexto conforme a ação exigir, sem interferir na fluência da história. Na seqüência do
enredo, o autor exerce pressão sobre o herói e articula uma série de crises que ele
enfrentará. No desenvolvimento cumpre ainda ao ficcionista elaborar os personagens que
apóiam e encorajam o herói e os que se opõem a ele, e também as forças que atuam a
seu favor. Finalmente, o conflito se resolve de um modo ou de outro no clímax da história
e a leva ao seu desfecho, podendo ser um retorno ao repouso ou terrível e trágico, por
exemplo.

As perspectivas para criação de roteiros em ambientes virtuais e o futuro da


narrativa no ciberespaço são temas levantados por Janet Murray em seu livro já clássico
“Hamlet on the Holodeck” (1997). Para Murray, estamos vivendo o início de uma nova
cultura, a cibercultura, proporcionada por computadores e videogames de avançada
tecnologia capazes de proporcionar ambientes virtuais imersivos e sofisticados processos
de interação. Segundo ela, de maneira semelhante ao que aconteceu com o cinema em
seu amadurecimento, os roteiros baseados em tecnologias digitais estão em fase de
experimentação. Escritores e diretores voltam-se para estórias interativas, com núcleo
dramático em versões múltiplas, profissionais da computação se movem para a criação
de mundos ficcionais e o público se movimenta para um estágio virtual e participativo.

As novas variedades de entretenimento digital, que vão dos videogames ao


hipertexto, representam novos formatos para o roteiro ficcional. O meio comercialmente
mais bem sucedido corresponde aos jogos eletrônicos, que estão em constante evolução
tecnológica e com cada vez mais ênfase na estória. É visível a evolução da narrativa
desses jogos se compararmos os títulos mais antigos, como Pong e Pac-man do sistema
Atari, com os recentes jogos de RPG (Role Playing Games) em que o jogador controla um
herói do estilo tradicional descrito por Campbell (1996).

Apesar dessa evolução, Murray (1997) afirma que os jogos de ação ainda têm que
desenvolver mais suas estórias, sendo que sua estrutura de labirintos e níveis nos
submete apenas à violência dos tiros e ataques, sem vivenciarmos as situações de
conflitos e os momentos de clímax da narrativa, que aumentariam o envolvimento do
jogador durante a partida. Outros gêneros como os jogos de enigma, no entanto, tem uma
concepção diferenciada dos jogos de ação, e utilizam recursos avançados de gráficos e
som para criar cenas e ambientes com grande poder de imersibilidade. O engajamento
mais lento na estória e as revelações de alto poder dramático que permitem a solução dos
enigmas tornam a narrativa desses jogos mais rica e complexa.

Além dos jogos eletrônicos, a popularização da internet proporcionou o crescimento


da ficção baseada em hipertexto. Conforme Murray (1997), essas estórias são
segmentadas em pedaços genéricos de informação, unidades de leitura chamadas lexias,
conectadas entre si através de palavras chaves que remetem o leitor a outro lugar. O
hipertexto tem possibilitado a escritores novas experimentações com segmentação,
justaposição e conectividade: as estórias possuem geralmente mais que um ponto de
entrada, muitas bifurcações internas e um final não muito claro. As narrativas do
hipertexto são extremamente intrincadas, formando uma rede com várias linhas de

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execução ligadas por elos denominados links, permitindo uma organização não-linear que
toma a forma de multinarrativas. Quando o usuário passeia por estes links, ele navega
num ambiente de simulação.

Na narrativa hipertextual, Murray (1997) explica que os roteiristas deixam de


escrever antecipando todas as possibilidades de movimentação e todas as ações de
quem está interagindo. Pelo contrário, eles elaboram os eventos do enredo de forma não
específica, apresentando uma relação de todas as regras das ações, criando um caminho
concreto, uma estrutura coerente. Os roteiristas criam não uma seqüência de eventos,
mas multiformas de enredo para uma participação colaborativa de quem está interagindo.
Assim, a verossimilhança permite ao jogador manter a lógica interna do enredo, ou seja, a
acreditar na história que está sendo contada.

No roteiro não-linear - que não possui uma seqüência começo, meio e fim - o mais
importante é a existência de conflitos e como eles podem dar dinâmica e movimento e
envolver os personagens e o ambiente. Geralmente as narrativas multimídia prevêem
uma coleção de começos, meios e fins para a estória, porque assim, conforme o usuário,
ela será contada de um jeito ou de outro. Para conseguir prender a atenção do jogador,
os autores escrevem e expandem suas histórias incluindo múltiplas possibilidades para
quem está agindo poder assumir um papel mais ativo.

Para Murray (1997), os escritores têm utilizado muito pouco as vantagens e as


oportunidades de se escrever para ambientes hipertextuais. É de se esperar que a
próxima geração de escritores aceite integralmente o formato do hipertexto e aumente
sua capacidade de expressão, transformando o emaranhado confuso da internet em um
padrão mais coerente. As formas tradicionais da narrativa, no entanto, têm se aproximado
cada vez mais do computador, e os cientistas da computação se movem para domínios
que antes eram restritos aos artistas criativos. Pesquisadores da área de ciências da
computação estão envolvidos com projetos de realidade virtual e inteligência artificial,
criando novos ambientes de entretenimento e novas formas de desenvolvimento de
personagens de ficção, expandindo as capacidades dos computadores para
representação. A estrutura digital traz com ela muitas possibilidades para a narrativa,
cabendo aos ciberdramaturgos explorar essas possibilidades sem sobrecarregar o
participante, e procurar soluções para a disposição da ação dramática de maneira a
sustentar o fluxo da estória, sem interromper o sonho ficcional que se cria na imaginação
do público, descrito por Gardner (1997).

Criar e constituir o enredo também é começar um jogo. O narrador é um jogador,


como acontece nos Role Playing Games, e forma com o leitor e com o texto o que
podemos considerar uma comunidade lúdica. Existe no ato de se pegar um livro, de
assistir um filme ou de se jogar um Final Fantasy para acompanhar o desenrolar do
enredo, uma busca pelo prazer, tensão, competição e simulação, tal como no exercício do
jogo.

Da mesma maneira, contar e ouvir histórias tornou-se através dos tempos uma
atividade antropológico-social e culturalmente indissociável do ser humano. Nas
narrativas míticas, cada evento contém significação e articula-se logicamente aos demais,
e esses eventos relacionados no todo remetem a uma significação de ordem cósmica,
universal, geralmente explicando a origem de algum fenômeno da natureza: É o que se
chama de função etiológica do mito. Essa explicação mantinha sempre uma relação
significativa com a vida do homem, seu comportamento, sua existência na terra
(MESQUITA, 1987, p.13).

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A narrativa mítica possui ainda a função ideológica e a de exemplaridade,
transmitindo e preservando valores das sociedades onde se originava o mito:
Em última análise o homem tentava intervir no descontínuo da vida no Universo,
preenchendo os vazios da doença, das catástrofes, do mistério da morte com as
narrativas inventadas que, ao se transmitirem, investiam-se do valor de verdade e
de sagrado. Contar, narrar passam a ser formas de ordenar a desordem, de
dominar o desconhecido, de compensar o caos (MESQUITA, 1987, p. 9-10).
Na transmissão dessas narrativas o mito condiciona-se a diversos fatores, mas o
que não pode desaparecer é o remeter a uma significação de ordem geral. De acordo
com Mesquita (1987), com o passar dos anos os acontecimentos dessas histórias foram
distanciando-se do plano das divindades, dos tempos primordiais e da explicação da
origem do Universo, surgindo assim o romanesco. No romanesco os heróis divinos
tornam-se personagens humanos, e épocas primordiais cedem lugar ao cotidiano. Uma
visão mítica do Universo, tranqüilizante, torna-se uma visão conflitiva do mundo, em que
não bastam mais a seqüência de eventos míticos como narrativa; e a perda de um
sentido e uma ordem geral tornam a narrativa cada vez mais complexa e contraditória.

No entanto, o homem não sobrevive dentro de seus limites humanos e a narrativa


literária de hoje apresenta elementos da fonte inesgotável das histórias míticas, e como
explica Janet Murray (1997), apesar dos avanços nas tecnologias de comunicação a
tradição de contar histórias continua, alimentando-se do mesmo conteúdo e forma das
primeiras histórias manuscritas.

A jornada mítica do herói

A jornada mítica do herói foi estudada por Joseph Campbell, um dos maiores
intérpretes da mitologia universal, que considera a primeira tarefa do herói a de se retirar
da cena mundana e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem
efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo,
isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local (1996, p.28). Os heróis
mitológicos enfrentam problemas válidos para toda a humanidade, são homens e
mulheres que vencem suas limitações pessoais e alcançam formas humanas. Campbell
coloca a jornada do herói como uma jornada interior, de triunfos psicológicos e não
físicos, onde o mundo permanece o que era, mas, graças a uma mudança interior, é visto
como se tivesse passado por uma transformação. O final feliz do conto de fadas, do mito
e da divina comédia do espírito deve ser lido, não como uma contradição, mas como
transcendência da tragédia universal do homem (CAMPBELL, 1996, p.34). As histórias
mitológicas e seus heróis têm diferentes valores para cada uma de nossas idades.

O herói é uma pessoa normal e sua história, baseada na vida cotidiana, começa de
maneira simples, sendo que essas situações que são familiares ao público, o levam a
acreditar que coisas extraordinárias acontecem na vida comum. A tragédia move a ação
da história que é a convocação para a aventura, um chamado interior. Campbell
considera como primeiro estágio da jornada mitológica do herói “o chamado para a
aventura”, em que o destino o convoca e o leva para uma região desconhecida. Esta
região é representada como uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, a
parte inferior das ondas, uma ilha secreta, o topo de uma montanha ou um estado onírico.
Após aceitar o chamado, o herói encontra-se com uma figura protetora, freqüentemente
um ancião, que lhe fornece amuletos que servirão de proteção contra as forças que serão
enfrentadas.

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Na seqüência de sua aventura, o herói chega ao “limiar”, e ao guardião da porta
que leva às trevas, ao desconhecido e ao perigo. O folclore povoa com presenças
perigosas e velhas assustadoras as regiões desconhecidas e locais desertos que ficam
fora das vias normais da cidade; e essas regiões (deserto, selva, etc.) são campos livres
para a projeção de conteúdos inconscientes. A passagem desse limiar revela-se uma
passagem para um renascimento, e é simbolizada pela imagem de um útero, ou o ventre
de uma baleia.

Depois de cruzar o limiar inicia-se a fase favorita do mito-aventura: o herói precisa


enfrentar uma série de provas e tarefas. Aqui o herói recebe auxílio do amuleto e dos
conselhos de seu guia, e descobre que existe uma força benigna que o sustenta em sua
jornada. A provação do herói é um aprofundamento do problema do primeiro limiar e traz
uma importante questão: pode o ego entregar-se à morte?
A partida original para a terra das provas representou, tão somente, o início da
trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos
momentos de iluminação. Cumpre agora matar dragões e ultrapassar
surpreendentes barreiras – repetidas vezes. Enquanto isso, haverá uma
multiplicidade de vitórias preliminares, êxtases que não se podem reter e relances
momentâneos da terra das maravilhas” (CAMPBELL, 1996, p.110).
Após vencer todas as barreiras, o herói encontra a aventura última, denominada
por Campbell (1996) de “Encontro com a Deusa”; representada como um casamento da
alma-herói com a Rainha-Deusa do Mundo. Trata-se da crise no nadir, no zênite ou no
canto mais extremo da Terra, no ponto central do cosmo, no tabernáculo do tempo ou nas
trevas da câmara mais profunda do coração (CAMPBELL, 1996, p.111). Este encontro
com a Deusa, encarnada em toda mulher, aparece como o teste final do talento do herói
para obter a benção do amor que é a própria vida, aproveitada como invólucro da
eternidade: O casamento místico com a rainha-deusa do mundo representa o domínio
total da vida por parte do herói; pois a mulher é vida e o herói, seu conhecedor e mestre
(CAMPBELL, 1996, p.117). Campbell entende que o mito tem seu sentido no fato de essa
passagem servir como padrão para homens e mulheres, onde quer que se encontrem
dentro da escala. Cabe assim a cada um descobrir sua posição nessa fórmula geral, e
então deixar que ela o ajude a atravessar barreiras que aparecem em nossas próprias
jornadas.

Depois de encerrar sua busca, o aventureiro deve retornar com seu troféu
transmutador da vida. Para encerrar o círculo estudado por Campbell, o herói precisa
trazer os símbolos da Sabedoria de volta ao reino humano, onde servirá para a renovação
da comunidade, da nação do planeta ou dos “dez mil mundos”. Essa grande
responsabilidade traz muitas vezes uma recusa por parte do herói, sendo que mesmo
Buda duvidou da possibilidade de transmitir a mensagem de sua realização, após seu
triunfo. Muitas fábulas contam a história de aventureiros que acabam por fixar moradia na
ilha da Deusa do Ser Imortal. Como último estágio do ciclo mitológico, o herói pode, após
seu triunfo, receber a benção da deusa (ou Deus) e ser encarregado de retornar ao
mundo com o destino de restaurar a sociedade, e será apoiado por seu patrono
sobrenatural. Mas se o troféu foi adquirido com a oposição de seu guardião, ou se o
retorno do herói para o mundo não agradar aos deuses, o estágio final da aventura será
uma viva e igualmente cômica perseguição.

A seguir veremos como essas características das narrativas míticas, da jornada do


herói e as bases da criação dos roteiros ficcionais se apresentam nas multinarrativas dos
jogos eletrônicos.

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A Narrativa dos jogos eletrônicos

Criar um jogo que seja atrativo para o público exige uma boa integração dos
elementos que o compõem, segundo Dyack (2001), o que inclui o áudio, a jogabilidade,
os gráficos, a tecnologia e a estória. Dyack coloca a estória como prioridade para a
concepção de um bom título de RPG, e destaca que não se deve começar a trabalhar em
um jogo até ela estar concluída. Tradicionalmente, os RPGs contêm uma narrativa mais
desenvolvida que em outros gêneros, são mais longos (levando em média 50 horas para
serem jogados/terminados) e incluem-se nas listas de favoritos do público. No entanto, a
narrativa não é mais encontrada apenas nos RPGs e Adventures como no início da
indústria dos videogames. Conforme Bates (2000), hoje encontramos estória em muitos
gêneros, incluindo ação, estratégia e simuladores, e os designers precisam aprender as
técnicas de se escrever bons enredos para poder adaptá-las aos jogos. Bates (2000)
coloca a estrutura em três atos das narrativas tradicionais como válida também para os
videogames e, assim como descreve Gardner (1997), utiliza em seus trabalhos o
esquema proposto no romance energéico.

O início da estória, quando o herói é apresentado a um problema, também é o


momento que deve iniciar o jogo. Muitos designers cometem o erro de iniciar a estória
antes do começo, segundo Bates (2000), abrindo o jogo com cenas de 10 minutos que
contam o passado do herói e do mundo em que ele se localiza, para depois entrar com a
ação. Primeiro é preciso atrair a atenção do jogador, para depois explicar a estória. Como
exemplo de um bom início para uma narrativa audiovisual, Bates (2000) cita a seqüência
de abertura do filme “Caçadores da Arca Perdida” de Steven Spielberg: uma figura surge
da floresta na frente de uma cachoeira, pega dois pedaços de papel e os junta para
formar um velho mapa com uma marcação. Sem nenhum diálogo, é estabelecido um
personagem (Indiana Jones), um local e um problema. Apenas mais adiante é que
ficaremos conhecendo mais sobre a estória e o herói.

O trabalho de um designer de videogames inclui criar desafios e obstáculos


apropriados para a estória e para as locações, e fornecer ao jogador os meios de resolvê-
los de modo que faça sentido no decorrer da narrativa. Os melhores designers planejam
isso desde o princípio do desenvolvimento. O meio da estória coloca o personagem em
um contexto maior, mostrando ao jogador o objetivo central da aventura. Também é o
momento em que o jogador avança na luta contra os conflitos e obstáculos, mas cada vez
que supera um problema o designer coloca outro no lugar. Esses obstáculos, assim como
na jornada do herói descrita por Campbell (1996), devem levar o herói a enfrentar e
superar seus conflitos interiores:
Como criador de jogos, das centenas de obstáculos que você pode utilizar para
colocar no caminho do herói, você deve escolher aqueles que revelem o seu
interior. Eles devem expor seus defeitos e medos. Ao superar esses desafios, ele
não está apenas fazendo progressos atrás de objetivo externo, mas também está
superando seus problemas interiores – ele está vivendo um crescimento de sua
personalidade (BATES, 2000, p. 03).
No final da estória, o herói resolve seu problema. Após superar suas limitações
interiores, ele está pronto para enfrentar a encarnação exterior dos desafios, que
geralmente aparece nos jogos como o grande vilão, o último e maior dos inimigos. Nos
melhores jogos, é revelado que este vilão final tem sido a fonte de muitos dos obstáculos
encontrados ao longo da partida e causador dos conflitos enfrentados pelo herói. Assim
como nos enredos de ficção, é preciso haver o conflito, alguém ou algo que não queira o
sucesso do herói, e enfrentá-lo no fim do jogo transforma-se em uma experiência de
satisfação para o jogador.

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A locação da aventura tem sido um dos elementos de maiores avanços nos jogos,
e com as inovações dos consoles e dos programas de animação os elementos gráficos
têm se tornado cada vez mais realistas e definidos. Para Bates (2000), essa locação não
é apenas o espaço físico do jogo, mas o universo criado para contar a estória. Em um
jogo de fantasia, devem existir nele criaturas mágicas que vivem em um mundo natural
anterior à era das máquinas. Tornar a locação da estória consistente irá transportar o
jogador para o sonho que se cria em nossa mente, que é o coração de toda ficção. Em
um jogo de ficção científica deve-se criar um planeta distante sujeito a leis desconhecidas
pela física. A maneira para tornar esse mundo credível é a verossimilhança, como
descreve Gardner (1997). Todos os detalhes devem ser tão reais quanto possível, e deve-
se evitar contradições que possam retirar o jogador da experiência em que está imerso.

Os personagens são a parte mais fascinante das estórias, tornando os eventos e a


ação interessantes quando são baseados em pessoas por quem podemos sentir uma
empatia. Um plot sem bons personagens não é eficiente, e torna-se apenas uma
seqüência de eventos acontecendo um após o outro. Muitos designers de jogos não
querem criar um protagonista bem definido, por acharem que o jogador é quem deve
assumir esse papel. Segundo Bates (2000), essa não é a solução mais apropriada. Criar
personagens com personalidades bem definidas é um processo difícil, mas traz
recompensas no resultado final do jogo (comercial e artisticamente). Alguns personagens
continuam aparecendo em narrativas de várias culturas e épocas, conforme afirma Vogler
(2000), e são arquétipos que representam a forma original e a base na qual serão
desenvolvidas as variações de personalidade, podendo ser a essência do elenco de
personagens do jogo.

O primeiro arquétipo é o do herói, o personagem central e o que alcança maior


identificação com o público. Vogler (2000) define o herói clássico como altruísta e capaz
de auto-sacrifício, colocando suas necessidades e desejos abaixo dos interesses do
grupo que deve proteger. Cada indivíduo do público deve poder identificar algum aspecto
de si mesmo no herói e se projetar em seu lugar. Apesar da composição única da
personalidade do herói, ele deve ser universal e carregar sentimentos comuns a todos
nós.
Existem muitas variações do herói, e uma das mais conhecidas é o anti-herói,
alguém que vive fora das regras e leis impostas pela sociedade. O anti-herói não
representa o oposto do convencional, mas um lado mais escuro do heroísmo polarizado
com possibilidades negativas ou positivas. Anti-heróis são perturbadores, mas podem
protagonizar uma estória e causar uma admiração por alguns aspectos de sua
personalidade, como a liberdade que possuem ou a capacidade de quebrar regras.

Outros arquétipos incluem o mentor (o guia), a “sombra”, o “transmutador”, o


brincalhão, o aliado e o mensageiro. O mentor aparece nas narrativas míticas como o
velho sábio, e representa as vantagens da experiência. Estão incluídos nessa categoria
magos e feiticeiros, sargentos militares, capitães, padres, e outros que auxiliem o herói
com conselhos, itens mágicos, treinamento e direcionamento ético. A Sombra é um
personagem complexo e rico, que representa tanto o vilão e antagonista quanto aspectos
desconhecidos e sombrios do herói, como sentimentos de culpa e traumas não
confrontados diretamente. Essas sensações com a qual preferimos não lidar são
direcionadas para o vilão, que é a sombra negativa do herói. Monstros como Frankenstein
e Drácula são representantes desse arquétipo, e têm a importante função de testar os
valores morais do protagonista. Para Vogler (2000), uma boa estória é tão forte quanto
seu vilão.

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O mais divertido desses arquétipos segundo Vogler (2000) é o brincalhão, o
personagem com a função de bagunçar o “status quo” e a seriedade da estória,
fornecendo boas risadas para o público. O brincalhão pode aparecer como um
personagem secundário, um parceiro do protagonista, e às vezes o próprio herói é
atrapalhado e desajeitado. O transmutador muda de forma durante a narrativa,
apresentando um aspecto duvidoso quanto sua fidelidade ao herói. A lealdade desse
personagem próximo ao herói sempre estará em questão, que parece esconder suas
verdadeiras intenções. As “fêmeas fatais” que tentam seduzir o protagonista nas estórias
de detetives e os vampiros que mudam de forma nas estórias de terror fazem parte desse
arquétipo. Os aliados são o apoio necessário ao herói, seus confidentes e amigos que o
ajudam a realizar tarefas para qual ele não está apto e a trabalhar seus aspectos
interiores. O último arquétipo, o mensageiro, é o personagem responsável por fornecer ao
herói as notícias e o desafio que são seu chamado para a aventura, representando uma
necessidade de mudanças interiores.

Utilizando e combinando esses arquétipos, pode-se construir personagens realistas


que reagem de forma própria para diferentes situações. Esse sistema permite identificar a
função de cada um em cada momento da estória, e o designer pode se certificar do peso
e importância que cada personagem possui na narrativa do jogo.

Interatividade

A diferença mais evidente entre os videogames e outras mídias é a interatividade


fornecida ao jogador, representando um grande desafio para os designers que querem
contar uma estória. Segundo Bates (2000, p. 6), existe um conflito direto entre a liberdade
que deve ser permitida ao jogador e a linearidade necessária para um enredo bem
construído, e a solução é criar áreas de livre exploração e juntá-las em uma seqüência
linear: nos RPGs, essas áreas são freqüentemente organizadas em espaços geográficos
ou missões. Nos Adventures, significa dar ao jogador mais de um conjunto de enigmas
que serão trabalhados um por vez. Em jogos de ação, elas se traduzem em fases e
níveis.

A idéia é fornecer ao jogador desafios limitados que de alguma maneira se


encaixem no contexto da estória, possibilitando sua interação com o jogo enquanto o
autor mantém o controle da narrativa. Para Falstein (2001), interatividade significa fazer
escolhas, e uma descrição simplificada de um videogame seria uma seqüência de
escolhas para atingir um objetivo claro, o que torna um equívoco dos escritores lineares
inexperientes com entretenimento interativo apenas transportar um plot para o jogo, sem
entender seus princípios e as diferenças entre seus gêneros.

Falstein (2001) destaca que o objetivo geral deve ser bem definido na mente do
público. Nos primeiros minutos do jogo, a exploração e a descoberta são suficientes, mas
se jogador não recebe um objetivo específico logo ele poderá se frustrar e abandonar a
partida. A exploração é importante, mas se torna mais excitante e satisfatória quando
temos um ideal: para tornar um título interativo mais divertido, forneça ao jogador um
objetivo claro e faça as escolhas ao longo do caminho meios relevantes para atingi-lo,
afirma Falstein (2000, p. 02).

As seqüências de vídeo em animação gráfica devem ser utilizadas apenas no


desenvolvimento da estória, reservando os momentos de clímax para a ação do jogador,
já que o público quer participar e não apenas assistir, segundo Barwood (2000). Para Max

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Shafer (2001), os melhores jogos fazem o jogador voltar não apenas pelos gráficos e
sons, mas por um sentimento de cumplicidade e domínio. O público deve participar com
sua própria experiência do jogo, trazendo sempre algo aprendido nas estratégias da
última partida.

A próxima etapa da pesquisa, após o estudo da narrativa e dos personagens dos


jogos eletrônicos, foi realizar uma análise do jogo Final Fantasy IX. A metodologia
utilizada para essa etapa foi jogar o título até seu desfecho, em 60 horas de contato direto
com o game, e anotar dados sobre a estória, os personagens, e outros aspectos da
estrutura do jogo considerados relevantes para nosso estudo.

Análise do jogo Final Fantasy IX

Iniciada em 1987 no console Famicom da Nintendo, a série Final Fantasy atingiu


30 milhões de cópias vendidas com os jogos lançados até a versão nove analisada aqui
(MARTINEZ, 2001). Produzida pela Squaresoft e criada por Hironobu Sakaguchi, Final
Fantasy é conhecido internacionalmente pela utilização de avançados recursos gráficos
de animação e pelo enredo considerado um dos mais elaborados e envolventes dos
videogames.

No Japão a série transformou-se em mania, e os artistas criadores dos jogos estão


entre os mais populares do país. Nobuo Uematsu, o pianista compositor das músicas dos
jogos da série, e Yoshitaka Amano, desenhista dos personagens e dos logotipos, são
considerados pela indústria “mitos orientais”. Seus trabalhos na série são lançados em
discos com a trilha sonora dos jogos e em livros que trazem desde os rascunhos até a
arte-final dos personagens.

Final Fantasy, o primeiro título, já incorporava os elementos característicos de toda


a série. Lançado em 1987, o jogo continha o sistema de classe dos personagens
(cavaleiro, mago negro e vermelho, ladrão, etc.) e a interface baseada em menus dos
personagens e das batalhas que são utilizados até hoje. Havia também uma grande
preocupação com um enredo que fosse bastante envolvente e que realmente prendesse o
jogador, já que o mercado dos videogames crescia muito e a qualidade e originalidade
dos jogos era essencial para se manter na preferência dos jogadores. Os gráficos em
duas dimensões eram limitados pela tecnologia 8-bit, mas serviam para ilustrar o mundo
medieval que continha castelos, cavernas, fortalezas e reinos habitados por bruxos,
guerreiros, monstros mitológicos e princesas em perigo. O jogo não tem a narrativa
apenas como base para a exploração e para a ação. O acompanhamento e a descoberta
da história são essenciais para o progresso na partida e para o aproveitamento máximo
dos recursos disponíveis.

A seqüência Final Fantasy II evoluiu a elaboração do plot da luta contra forças


malignas: unidos pelo assassinato de seus pais, quatro jovens partem para combater o
império Baramekia, governado por um demônio. Os gráficos utilizavam quase o limite do
sistema 8-bit e mais detalhes foram acrescentados aos cenários e batalhas.

A dificuldade para avançar no jogo aumentou em Final Fantasy III, que obrigava o
jogador a adquirir experiência através de muitas batalhas. Seguindo a tendência dos dois
primeiros jogos a história e os personagens não seguem uma cronologia geral, não sendo
necessário conhecer os primeiros títulos para acompanhar a narrativa. O enredo
apresentava a revelação de um cristal sagrado a um grupo de jovens, que recebem a
missão de restaurar a paz no mundo.

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Em 1991 a série estreou no console 16-bit da Nintendo, o Super Famicom. Os
títulos IV, V e VI aproveitaram os novos recursos de memória e efeitos para aprimorar a
qualidade dos gráficos, ampliar as habilidades dos personagens e incluir novas magias. A
trilha sonora orquestrada também era um grande destaque, mas o enredo ainda era o
maior atrativo: foram incorporados temas como traição, gravidez e suicídio (alguns desses
cortados na versão americana), e momentos de revelação durante a narrativa que
ajudavam a descobrir as origens do herói e do antagonista.

Na passagem para a nova geração dos videogames (32-bit) no final dos anos
noventa, a produtora Squaresoft teve alguns conflitos com a Nintendo e acabou levando a
série para o sistema Playstation, da Sony, que ironicamente também foi desenvolvido
depois do fim da parceria da Sony com a Nintendo. No Playstation a série tornou-se
fundamental para as vendas do console e para a divulgação do gênero RPG. Com a
tecnologia do CD, e não mais de cartuchos, a Squaresoft utilizou gráficos em 3D (três
dimensões) e iniciou as maiores inovações na série desde seu surgimento, lançando uma
era de animações em computação gráfica que beiram a realidade.

Final Fantasy VII revolucionou o conceito de criação de personagens e enredo nos


videogames, e por isso é o preferido por um grande número de fãs da série. Com uma
equipe ainda maior para a produção do jogo, utiliza seqüências de vídeos em computação
gráfica como recurso para desenvolver um enredo que apresenta um herói idealista,
romance, a morte de um personagem (em uma cena lembrada até hoje por quem já jogou
o título) e um antagonista extremamente perturbado com o intuito de destruir o planeta
Gaia. Cada personagem do jogo tem uma personalidade e motivos próprios para entrar
na jornada. As inovações apareceram também na trilha sonora e nos menus mais
elaborados, com itens e magias novas e um complicado sistema de configuração para
desafios específicos do jogo.

A seqüência Final Fantasy VIII, lançada em 1999, modificou alguns conceitos da


série. Saindo da tradição dos cenários medievais, o jogo coloca os personagens em um
mundo futurista onde espaçonaves e viagens espaciais são rotineiras. Os gráficos
também inovam, com o visual dos personagens mais humanos e realistas, sem o aspecto
de desenho animado. A história conta a saga de Squall, um garoto orfão de 17 anos que
vive em um centro de treinamento de um exército destinado a manter a paz no mundo.
Durante a jornada sua personalidade fechada e o medo de perder novamente alguém
amado vai causar conflitos com Rinoa, uma aliada na batalha contra a entidade que
ameaça a existência do planeta. Os acontecimentos e as revelações durante a narrativa
irão fortalecer o espírito de Squall para que ele enfrente os desafios e assuma o romance
com Rinoa, além de criar uma forte ligação de amizade com os outros aliados da jornada.
Somente com o apoio deles Squall irá derrotar uma feiticeira do futuro com grandes
poderes e restaurar a paz no mundo. O número de seqüências de vídeos em computação
gráficas também aumentou, aparecendo em momentos importantes da história e
reforçando a construção da personalidade dos personagens e a evolução da narrativa.

O jogo analisado para esse trabalho, Final Fantasy IX, marcou o retorno da série às
suas origens de ambientes e reinos medievais. As animações receberam uma atenção
maior, com texturas realistas e muitas expressões dos personagens e a narrativa segue o
padrão de fantasia característica do RPG.

A narrativa de Final Fantasy IX

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O enredo de Final Fantasy IX é linear, respeitando a estrutura começo, meio e fim
do romance energéico. A história é passada para o jogador através de seqüências de
vídeo em computação gráfica, que utilizam recursos característicos do cinema como
flashbacks e cenas oníricas (sonhos dos personagens), e através de caixas de texto onde
aparecem os diálogos dos personagens. O plot principal do jogo é o combate contra
forças malignas que ameaçam a existência do planeta Gaia. Existem também subplots
importantes na narrativa, como o romance com a princesa Garnet e as histórias dos
principais aliados do herói Zidane, que ajudarão a revelar os motivos e os planos do
antagonista, um homem com poderes sobrenaturais chamado Kuja.

Segundo a classificação de conflitos de Comparato (2000), o protagonista vivido


pelo jogador enfrenta durante a narrativa forças não-humanas (forças sobrenaturais
controladas por Kuja) e o conflito com ele próprio, na superação de seus limites e medos
como os heróis míticos descritos por Campbell (1996). Durante o jogo são apresentados
vários monólogos dos personagens (principalmente do herói Zidane) que mostram os
desafios psicológicos enfrentados por cada personagem.

As locações que compõem o mundo de fantasia do jogo são extremamente ricas e


detalhadas, incluindo cenários da época medieval com grandes castelos e florestas
encantadas baseadas nas narrativas arturianas. Monstros e deuses de vários povos e
épocas aparecem no jogo, como o dragão Bahamut (da mitologia judaica), a ave Phoenix
que renasce das cinzas, o cão Cerberus de três cabeças que guarda os portões do
inferno, e o deus Odin (todos da mitologia Grega). Algumas dessas criaturas míticas
podem ser invocadas pelo herói como auxílio durante as batalhas, além de também
serem importantes para a evolução da estória.

O começo da narrativa utiliza a técnica citada por Bates (2000), com uma
seqüência de abertura com muitas imagens de ação (um barco no meio de uma forte
tempestade em alto mar), em que se apresenta o Reino de Alexandria e os personagens.
O primeiro problema que surge é um plano para seqüestrar a princesa de Alexandria, mas
não sabemos ainda qual a razão da ação ou quem são os personagens. No
desenvolvimento da narrativa ficamos conhecendo o grupo de Zidane e seus aliados, e as
intenções do seqüestro: após a morte do seu marido, a Rainha de Alexandria começa a
agir de maneira inesperada e a atacar reinos pacíficos como Burmecia e Linblum,
acompanhada por um homem desconhecido e misterioso. Ficamos conhecendo o objetivo
maior da estória, que é evitar uma guerra entre os quatro grandes reinos e impedir as
ações destrutivas do misterioso homem que voa em um dragão branco. Nos momentos
finais do jogo descobre-se a origem do herói Zidane e do vilão Kuja. Ambos são criados
por uma entidade de um planeta chamado Terra, com a função de destruir a existência de
Gaia, evento necessário para a sobrevivência de Terra. Essa ligação entre o herói e o
antagonista Kuja causa grande impasse em Zidane, que precisa aceitar sua origem e lutar
contra seu irmão para salvar Gaia. No confronto final com Kuja, o herói Zidane supera
seus conflitos internos depois de descobrir que seu irmão é o causador da destruição de
cidades inteiras e de muitas mortes. Kuja aparece então como o último obstáculo externo
e o maior desafio de Zidane, que sai vitorioso da batalha e tenta ainda salvar a vida de
seu irmão, mas não consegue e permanece desaparecido após uma grande explosão. A
seqüência de encerramento do jogo mostra o retorno dos personagens ao Reino de
Alexandria depois de restaurada a paz. A princesa Garnet assume o trono após a morte
de sua mãe em uma batalha, e quando todos acreditam que Zidane morreu com seu
irmão na explosão, ele reaparece durante uma encenação teatral disfarçado como ator.
Zidane e Garnet se abraçam apaixonados na cena que fecha o jogo.

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As personalidades dos personagens seguem alguns arquétipos descritos por
Vogler (2000), e combinações que os tornam únicos. O herói Zidane é otimista e tenta
sempre ajudar seus companheiros, e a princesa Garnet inicia como o mensageiro que
leva Zidane para a aventura para depois se tornar sua aliada. O vilão Kuja aparece como
a “sombra” do herói, representando os objetivos egoístas e ambiciosos que Zidane
combate em seu interior. O personagem Salamander junta-se ao grupo como aliado, mas
é enigmático e os outros suspeitam que ele faça jogo duplo para a Rainha de Alexandria.
O atrapalhado capitão Steiner é protagonista dos momentos de humor da estória,
tentando proteger a princesa das investidas românticas de Zidane.

Um sistema denominado Active Time Event System foi incluído no jogo, permitindo
conhecer mais sobre a personalidade de cada um. Enquanto estamos controlando
Zidane, o ATS possibilita ver o que outros personagens estão fazendo no mesmo
instante. O jogo contém ainda muitos “side-quests”, desafios que não são obrigatórios
para a conclusão da estória como itens e monstros escondidos, que aumentam o
divertimento da exploração dos cenários. Os side-quests também são motivos para se
retornar ao jogo após tê-lo concluído, utilizando as experiências anteriores para melhorar
o desempenho e aumentar a força dos personagens.

O herói de Final Fantasy IX é um garoto de 16 anos que, como os heróis míticos


estudados por Campbell (1996), atravessa uma jornada onde precisa deixar sua vida
comum e aceitar o chamado para crescer e enfrentar problemas maiores do que si
mesmo. Ao passar pelo limiar da aventura, Zidane precisa superar seus limites físicos e
psicológicos para ajudar seus companheiros e toda a sociedade. Depois de receber seu
chamado para a aventura (a tragédia que ocorre na fuga do castelo de Alexandria) Zidane
une-se a um grupo de novos aliados que irão ajudá-lo durante a jornada. Parte da lição do
herói é lembrar-se que não estamos sozinhos, que não é somente a nossa própria força,
mas sim a ajuda de guias e aliados em cada etapa que possibilita a conclusão da jornada.

Zidane inicia a aventura com uma amnésia que o fez esquecer parte do passado, e
quando descobre a ameaça que Kuja representa ele percebe que o problema envolve não
apenas seus interesses, mas de toda a sociedade. Junto com seus aliados, um pequeno
mago inseguro chamado Vivi, o corajoso e leal guerreiro Steiner, uma órfã com grandes
poderes e a princesa Garnet, ele enfrenta os desafios com otimismo e cria fortes laços de
amizade com o grupo. Assim como nas narrativas míticas, Zidane deixa de ser
individualista e sem ideais para descobrir que se preocupa com seus amigos e com
Garnet. Ele aprende a lidar com a imperfeição humana e desenvolve seus dons de
relacionamento, comunicação, diplomacia e tolerância. Com as descobertas que surgem
sobre seu passado, e de que foi criado para destruir Gaia do mesmo modo que Kuja, ele
precisa enfrentar seu mundo interior e reunir forças através da ajuda de seus amigos para
enfrentar seu destino e seu irmão. Zidane nasce de forma mágica e com poderes que o
tornam destinado a salvar o mundo da ameaça que surge. Durante a jornada, ele também
encontrará diversos guias e mentores que o auxiliarão a continuar sua busca, como
antigos amigos e seu pai adotivo. Os aliados de Zidane irão aprender junto com ele,
assim como Kuja. Este recebe sua grande lição antes de sua morte: após o confronto final
com seu irmão, Zidane retorna para a árvore Lifa antes da explosão e encontra Kuja
quase morrendo. Em sua última conversa, Kuja diz que finalmente percebe o significado
das ações de Zidane contra ele, descobrindo que o egoísmo sem consciência cria a ilusão
de poder, e que apenas a força da união é estável e duradoura.

Depois de encerradas as buscas e restaurada a sociedade, o retorno de Zidane de


sua suposta morte o leva à sua “aventura-última” segundo Campbell. Depois de vencer as

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barreiras o herói reencontra Garnet, e ela finalmente aceita seu amor em uma
representação do domínio total da vida por parte do herói, visto que a mulher aparece nas
narrativas míticas como o símbolo da vida.

Conclusões

Confirmando os pressupostos levantados no início da pesquisa, pode-se dizer que


as inovações tecnológicas dos videogames estão possibilitando aos designers criarem
cada vez mais jogos com enredos e personagens complexos, baseados nas estórias de
ficção tradicionais e nas narrativas míticas. Essa tecnologia também aproximou os jogos
eletrônicos da linguagem cinematográfica, utilizando vídeos em animação gráfica para
mostrar ao jogador as locações da narrativa e as ações dramáticas.

A estrutura do romance energéico, como descrito por Gardner (1997), está


presente em diferentes gêneros de jogos que seguem o esquema clássico de começo,
meio e fim, e que aumentam a verossimilhança de seus mundos fictícios através da
integração de gráficos, áudio, jogabilidade e narrativa. Os personagens desses jogos
possuem personalidades bem definidas, seguindo alguns arquétipos das estórias
tradicionais descritos por Vogler (2000).

A jogabilidade e a interatividade dos videogames são elementos que os


diferenciam de outras mídias, representando um desafio para designers que querem
construir enredos bem estruturados em seus jogos. Não basta saber contar estórias, é
preciso saber adaptá-las para esses ambientes interativos, de maneira a criar um
envolvimento emocional no público que não apenas acompanha a narrativa, mas participa
dela. A solução mais utilizada pelos designers para essa questão é criar áreas que
possibilitam livre exploração ao jogador, e organizá-las em seqüência linear para manter a
estrutura da narrativa.

Finalmente, por essas características podemos dizer que os videogames


representam um novo formato para o roteiro ficcional. Apesar de ainda estarem em fase
de amadurecimento e experimentação, as narrativas dos jogos eletrônicos começam a
criar suas próprias regras e técnicas, com designers que não apenas conhecem as
estruturas das estórias tradicionais, mas buscam meios de adaptá-las para essa
tecnologia.

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