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O bacharel em direito e doutor em economia pela Sorbonne Celso Furtado foi para

as ciências sociais no Brasil uma espécie de contraponto acadêmico ao espírito da


bossa nova: aplicação de conceitos avançados no exterior a temas essencialmente
brasileiros, sobre um pano de fundo otimista e de aparente simplicidade. Furtado,
como um Tom Jobim, viveu numa época em que ainda era lícito e confortável
pensar e agir nos quadros de um Estado Nacional progressista. 

O instrumental teórico importado, no caso de Furtado, era o keynesianismo ativista


típico do pós-guerra (Furtado foi condecorado pela Força Expedicionária Brasileira,
na qual lutou na Itália). 
No mundo inteiro acreditava-se na viabilidade de políticas econômicas capazes de
não só corrigir desequilíbrios ou evitar catástrofes mas, principalmente, aptas a
moldar o futuro. Era a política de desenvolvimento econômico. 

Furtado reinterpretou a história econômica brasileira como uma série de


oportunidades de desenvolvimento catalisadas por um Estado em formação. A sua
"Formação Econômica do Brasil" (1959) -um dos mais importantes livros da história
econômica do país- pode ser lida como uma história das possibilidades de
intervenção racional do Estado no processo de desenvolvimento. 

Mas o pano de fundo mais longínquo das fantasias históricas de Furtado tem
origens mais remotas e que ultrapassam o registro do pensamento econômico.
Furtado mostra, em seu "A Fantasia Organizada" (1985), por exemplo, como se
inspirou para a vida sobretudo na reconstrução européia, mistura de razão
ressuscitada e existencialismo esperançoso. A história, dessa perspectiva, é sempre
em primeiro lugar as séries de oportunidades para a realização de um projeto.
Fundem-se numa mesma dimensão aspectos políticos e fantasiosos. 

Seria tudo retórica e delírio, não fosse o fato nu e cru de a própria vida de Celso
Furtado tornar-se emblemática da realização concreta dessas possibilidades
políticas e emocionais. Furtado trabalhou com Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros
e João Goulart. Materializou a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste), da qual foi o primeiro superintendente em 59. 

Furtado se tornou afinal vítima de uma fúria ideológica nada amorosa, deslanchada
pelo golpe de 1964. Foi cassado e exilado (viveu primeiro no Chile, depois nos EUA,
onde foi professor). 

Ainda assim, Furtado jamais conseguiria libertar-se da hipótese de uma razão de


Estado, capaz de sobreviver e impor-se apesar dos inquilinos da máquina. 

Assim, depois de tornar-se ministro da Cultura de José Sarney, Furtado ainda iria
confessar-se surpreso com a degradação do Estado. Bateu-se também pela
moratória da dívida nos anos 80. Foi duro crítico da era FHC. Embora apoiador de
Lula, em 2003, recusou convite do governo para reformular a Sudene. Mas se
Furtado sempre projetou no Estado sua paixão por uma sociedade mais arrazoada,
a matriz da racionalidade vinha sempre de uma análise econômica ampliada ao
ponto de tornar-se economia política e mesmo geopolítica. 

Furtado condenou politicamente o marxismo-leninismo, mas acalentando na alma


uma esperança tipicamente marxista de arrancar da sociedade os parâmetros de
uma razão capaz de se encarnar no Estado. Mais hegeliano que marxista, Furtado
denunciaria o distanciamento progressivo entre Estado e sociedade como fonte
maior do turvamento histórico brasileiro. 

Em "Formação Econômica do Brasil", volta repetidas vezes ao tema da socialização


dos custos da expansão capitalista, reconstruindo a história econômica como uma
épica ampliação de mercados que, como tendência, vão praticamente engendrando
o Estado Nacional. Ao final, tem-se ao mesmo tempo o retrato de uma economia
que se desenvolve por meio de ciclos mas que, ciclo após ciclo, acumula não só
riqueza como também superestrutura institucional. Diante dessa arquitetura lógico-
histórica fica pequeno, senão caricato, o debate chão e corriqueiro entre
estatizantes e liberais. 

O dilema que faz mais sentido na obra de Furtado não é entre Estado e sociedade,
mas entre autonomia e dependência. Desenvolvimento é quase sinônimo de viver
com menos apoio externo, encontrando no mercado interno o fôlego para avançar,
seja qual for o grau de "estatização" da economia. As possibilidades de intervenção
do Estado não seriam portanto fruto de um mero voluntarismo mas sim
desdobramentos sincrônicos de uma estrutura social capaz de acumular riqueza
material e autonomia política. 

Assim, o vazio não está no Estado, nem na sociedade, mas na incapacidade de uma
economia encontrar em si o dínamo da acumulação. Esse sentimento de que a
sociedade pode encontrar em si mesma a força e o espírito da construção e do
progresso torna compreensível sua crença irredutível na possibilidade de reformar-
se a sociedade, encontrando-se o seu projeto, a sua razão de ser. Para Furtado,
uma sociedade em crise é quase sinônimo de oportunidade para a reconstrução da
unidade. Uma unidade hoje tão perdida quanto a tranqüila simpatia intimista da
bossa nova.

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