Você está na página 1de 18

Recensão Crítica

167

A centralidade de Vigiar e Punir. História da violência


nas prisões, na obra de Michel Foucault
Isabel Brites *

No Livro Vigiar e Punir - História da Vio- Daí que o perigo maior desses rituais de
lência nas Prisões, Michel Foucault (MF), em suplício, organizados para afirmação de um
quatro grandes capítulos (Suplício, Punição, poder infalível e invencível – o poder real
Disciplina, Prisão), dá-nos não só uma pers- – fosse, então, um perigo político: a manifes-
pectiva arqueológica, cronológica, genealó- tação de solidariedade do povo para com os
gica, antropológica, sociológica, etnológica e que sofriam a pena, ameaçado, ele também,
histórica da evolução dos castigos, da Idade por uma violência legal sem proporção nem
Média até à Idade Moderna, como, adjacen- medida.
temente, se interroga e nos interroga sobre Esta agitação dos mais pobres, dos que
a própria modernidade, sobre a questão do não tinham possibilidade de ser ouvidos
poder e sobre a questão do saber. na justiça, sobretudo quando se tratava de
O capítulo I da obra intitula-se, bem a pro- execuções injustas ou se registava uma di-
pósito, “O Corpo dos Condenados”. O pri- ferença de penas segundo as classes sociais,
meiro relato, de uma crueza impressionante, não podia deixar de preocupar a lei. Essa
é retirado de a “Gazette d’Amsterdam”: um preocupação, partindo de baixo, gerou mo-
parricida, condenado à morte em 1757, de- vimentos que se propagaram e chamaram a
pois de sujeito a alguns preliminares públicos atenção dos reformadores dos séculos XVIII
(é exibido nu numa carroça, obrigado a pe- e XIX, levando-os a perceber que as execu-
dir perdão à porta de uma igreja, atenazado ções, afinal, e ao contrário do que se preten-
em diversas partes do corpo) é esquarteja- dia, não assustavam o povo, pelo que um dos
do, e os seus restos são queimados em plena seus primeiros actos foi exigir a sua suspen-
praça, junto ao patíbulo. Era o tempo dos são. Na perspectiva de Michel Foucault (MF),
suplícios, entendidos sobretudo como um não foi qualquer sentimento de humanidade
ritual político, uma função jurídico-política, para com os condenados o factor de maior
parte integrante das cerimónias de manifes- relevância no abandono da liturgia dos su-
tação do poder. A cerimónia punitiva devia plícios mas, isso sim, da parte do poder, um
ser aterrorizante. O que estava por detrás medo político do efeito desses rituais.
não era a economia do exemplo mas a po-
lítica do medo. O suplício não restabelecia A mitigação das penas
a justiça, apenas reactivava o poder. Assim,
a execução pública era mais uma manifesta- Anos mais tarde – segunda metade do séc.
ção de força do que um acto de justiça, uma XVIII e início do séc. XIX – foi a época de,
afirmação da correlação de forças que dava nos Estados Unidos e na Europa, se repen-
poder à lei. sar o castigo e tudo o que o envolvia, época
O personagem efectivamente principal nas de inúmeros projectos de reformas: nova
cerimónias do suplício era, então, o povo, teoria da lei e do crime; nova justificação
a quem se dirigiam, mas que por vezes as- moral ou política do direito de punir; abo-
sumia uma atitude ambígua: assistia-se fre- lição das antigas ordenanças; supressão dos
quentemente a como que uma inversão de costumes; projecto ou redacção de códigos
papéis – os poderes eram ridicularizados modernos 1 . Uma nova era para a justiça pe-
e os criminosos transformados em heróis. nal: grandes transformações institucionais;

* Investigadora da UI&D Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos. Doutoranda em


Educação na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
168

códigos explícitos e gerais; regras unificadas supressão do espectáculo e de anulação da


de procedimento; existência de júris; penas dor. Ergue-se uma utopia do poder judiciário
com um carácter essencialmente correctivo. (tirar a vida evitando que o condenado sinta
Esta tendência acentuou-se cada vez mais o mal; privar de todos os direitos sem fazer
depois do séc. XIX. Assistimos a “punições sofrer; impor penas isentas de dor), ao mes-
cada vez menos físicas, a uma maior discri- mo tempo que se assiste a um movimento
ção na arte de fazer sofrer, ao arranjo de das legislações europeias visando um mesmo
sofrimentos mais subtis, mais velados e des- objectivo: uma morte igual para todos sem,
pojados de ostentação” (Foucault, 1977, p. como antes acontecia, a ostentação da mar-
14). Uma coisa é certa: em algumas dezenas ca específica do crime ou do estatuto social
de anos desapareceu o corpo supliciado, es- do criminoso; uma morte que dure apenas
quartejado, amputado, marcado simbolica- um instante, sem furores a antecipá-la ou a
mente no rosto ou no ombro, exposto vivo prolongá-la: “uma execução que atinja a vida
ou morto, dado como espectáculo. Desapa- mais que o corpo” (Foucault, 1977, p. 17). A
receu o corpo como alvo principal da re- guilhotina 2 , utilizada a partir de 1792 (até
pressão penal. essa data a decapitação era a pena dos no-
Entre o final do séc. XVIII e a segunda me- bres), veio a revelar-se a máquina adequada
tade do séc. XIX a punição, pouco a pouco, a tais princípios. A morte, a execução capital,
deixou de ser, então, uma cena, um cerimo- passou a ser reduzida a um acontecimento
nial. Transformou-se num acto administrati- visível mas instantâneo. E, grande mudança,
vo ou de procedimento. Tudo o que impli- ela aplicava a lei já não a um corpo real e
casse espectáculo passava a ter um cunho susceptível de dor, mas a um sujeito jurídi-
negativo. A justiça arvora outro rosto e co detentor, de entre outros direitos, do de
não assume mais, publicamente, a parte da existir. A guilhotina devia, assim, ter a abs-
violência que está ligada ao seu exercício. tracção da própria lei e ser a máquina das
Matar ou ferir já não é mais a glorificação mortes rápidas e discretas, marcando uma
da sua força mas um elemento intrínseco a nova ética da morte legal.
ela, que ela é obrigada a tolerar e muito lhe Em meados do séc. XIX o poder sobre o
custa ter que impor. Existe nesta justiça, a corpo, a pena, já não se centralizava, então,
justiça moderna, uma certa vergonha de pu- no suplício como técnica de sofrimento,
nir. “ É indecoroso ser passível de punição embora permanecesse um fundo supliciante
mas pouco glorioso punir” (Foucault, 1977, nos modernos mecanismos de justiça cri-
p. 15). minal, com um evidente afrouxamento da
Nas primeiras décadas do séc. XIX, na sua severidade penal, afrouxamento esse que
evolução, as práticas punitivas tornaram-se foi visto, durante muito tempo, como um
pudicas: não tocar mais no corpo, ou o mí- fenómeno quantitativo: menos crueldade -
nimo possível, e para atingir nele algo que menos sofrimento - mais suavidade - mais
não é propriamente o corpo. Este passa a respeito - mais humanidade. “Que o castigo
ser instrumento, ou intermediário. Qualquer (…) fira mais a alma do que o corpo” (Fou-
intervenção sobre ele visa privar o indivíduo cault, 1977, p. 21) significa, claramente, uma
da sua liberdade, considerada ao mesmo mudança de objecto. Já não é ao corpo que
tempo como um bem e um direito. O corpo se dirige a punição, mas à alma. À expiação
é, assim, colocado num sistema de coacção e sobre o corpo deve suceder um castigo que
de privação, de obrigações e de interdições, actue, fundamentalmente, sobre o coração,
e os castigos aplicados são a prisão, a reclu- o intelecto, a vontade, as disposições… E o
são, a deportação ou os trabalhos forçados. aparato da justiça punitiva tem que se ater
Em nenhum dos casos, porém, existia a rela- a uma nova realidade, uma realidade incor-
ção castigo-corpo do tempo dos suplícios. pórea.
Também os rituais de execução capital
são testemunho desse duplo processo de

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
169

A punição generalizada a prática do poder de punir. E é neste con-


texto, baseando-se na história dos corpos
A definição das infracções, a hierarquia da e das penas feita até então, que MF vem in-
sua gravidade, as margens de indulgência, o troduzir alguns conceitos novos: a economia
que era tolerado de facto e o que era per- política do corpo (o corpo está directamen-
mitido de direito, modificou-se amplamente te mergulhado num campo político, é inves-
nos últimos 200 anos. Alguns crimes deixa- tido como força de produção por relações
ram de o ser, nomeadamente os ligados à de poder e de dominação e constitui-se
religião, enquanto outros perderam parte como força de trabalho); a tecnologia po-
da sua gravidade. Continuaram a ser julga- lítica do corpo (saber e controle do corpo,
dos os crimes e os delitos definidos juri- que calcula e organiza tecnicamente a sua
dicamente pelo código, mas passaram a jul- submissão por forma a torná-lo força útil
gar-se também “as paixões, as anomalias, as e corpo produtivo); a microfísica do poder
enfermidades, os instintos, as inadaptações, (disposições, manobras, tácticas, técnicas,
os efeitos do meio ambiente ou da heredi- estratégias de dominação).
tariedade. Punem-se as agressões mas, por Nada disto seria possível, no entanto, se o
meio delas, as agressividades, as violações, saber não estivesse directamente ligado ao
os assassinatos que são também impulsos e poder. “O poder produz saber (…); não há
desejos” (Foucault, 1977, p. 21). É a sombra, relação de poder sem a constituição cor-
o que está por detrás, que é na realidade jul- relativa de um campo de saber, nem saber
gado e punido, com recurso a circunstâncias que não suponha e não constitua ao mesmo
atenuantes ou a elementos circunstanciais. tempo relações de poder” (Foucault, 1977,
É julgada uma entidade “juridicamente não p. 30). Assim, a evolução das técnicas puniti-
codificável: o conhecimento do criminoso, a vas e a anatomia política do corpo levam ao
apreciação que dele se faz, a relação entre aparecimento de novos conceitos e campos
o seu passado e o crime, o que se pode es- de análise: o psiquismo, a subjectividade, a
perar dele no futuro” (id., p. 22). E, graças à personalidade, a consciência… e edificam
relação entre medicina e jurisprudência se- novas técnicas e discursos científicos.
rão julgados, desde o séc. XIX, os monstros, Na segunda parte da sua obra – Punição
as anomalias psíquicas, os pervertidos, os – Michel Foucault continua esta linha de
inadaptados. A ideia era de improcedência pensamento e fala-nos do papel relevante
judicial pura e simples, em caso de loucura assumido pelos reformadores do séc. XVIII,
comprovada. No entanto, mesmo os loucos ao mesmo tempo que desmistifica algumas
eram frequentemente considerados culpa- medidas por eles tomadas ou reivindicadas.
dos, se bem que “quanto mais louco, tanto Primeiro interroga-se, e interroga-nos,
menos culpado” (id., p. 23). Nessa altura, de- sobre se o que efectivamente moveu estes
veria ser enclausurado e tratado, em vez de reformadores foi a sua humanidade, a sua
punido. maior sensibilidade face aos suplícios, o que
Assim, a sentença que condena ou absol- resultou num afrouxamento da penalidade
ve deixa de ser um simples julgamento de no decorrer do séc. XVIII. E avança com ex-
culpa, passando a implicar uma apreciação plicações várias de ordem política, social e
de normalidade ou de prescrição técnica económica para nos mostrar que sim, mas
para uma normalização possível. O juiz já não só, nem sobretudo. O que estaria essen-
não julga sozinho. “Pequenas justiças e ju- cialmente em causa, para os reformadores,
ízos paralelos multiplicam-se em torno do seria a economia dos castigos, desajustada
julgamento principal” (id., p. 24): médicos, da nova realidade social, bem como uma jus-
psiquiatras, psicólogos, educadores, peritos tiça paralisada e ineficaz, que exigia mudan-
vários, “juízes anexos, mas juízes de todo o ças urgentes.
modo” (ibid.). Um saber, técnicas, discursos Na realidade, vinham-se registando alte-
científicos, formam-se e entrelaçam-se com rações quer na tipologia dos crimes quer

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
170

na dos criminosos, quer ainda na sua orga- uma organização de comércio paralelo ilíci-
nização e modus operandi. A uma criminali- to, como a existência de receptadores e o
dade de massas, de vadios, a do séc. XVII, fabrico de dinheiro falso.
seguiu-se, no séc. XVIII, uma criminalidade
de marginais, organizada e a céu aberto, já A composição das forças
não furtiva. Uma criminalidade de ataque
aos corpos deu lugar a uma de ataque aos A burguesia, até então tolerante com mui-
bens. Uma criminalidade de sangue transfor- tas ilegalidades do povo, num jogo de reci-
mou-se numa criminalidade de fraude. Uma procidade contra “inimigos” comuns (o Rei
criminalidade indiferenciada deu lugar a uma e a Igreja), não podia pactuar com estas no-
criminalidade especializada. vas ilegalidades e reduziu a sua tolerância a
A estas mudanças responderam medidas zero, exigindo uma repressão rigorosa. Es-
políticas, económicas e sociais, bem claras e tava em causa a sua tomada de poder, a sua
determinadas. Assim, na segunda metade do instalação como classe dominante, lugar que
séc. XVIII assistiu-se a um forte crescimento conquistou e soube manter até hoje 3 .
demográfico, a uma elevação geral do nível Se confrontarmos este processo com o
de vida com um aumento geral de riqueza, discurso crítico dos reformadores, depa-
a uma modificação no jogo das pressões ramos com uma coincidência estratégica
económicas. Surgiu uma classe social que se notável. Numa sociedade capitalista em de-
afirmou cada vez mais – a burguesia – que senvolvimento, com novas formas de acu-
multiplicava as riquezas e as propriedades, mulação de capital, de relações de produção
começando a sentir, em consequência dis- e de estatuto jurídico da propriedade, era
so, uma grande necessidade de segurança. necessário que as infracções fossem defi-
nidas e punidas com segurança, da mesma
Mas, a justiça de então, excessivamente cen-
forma que era necessário controlar e codifi-
tralizada no super-poder monárquico que
car todas as práticas ilícitas, com o roubo à
identificava o direito de punir com o poder
cabeça. Mas os reformadores estavam cons-
pessoal do soberano, estava, nas palavras
cientes que a forma, o método, a técnica, a
proferidas por um reformador francês em
intensidade dos castigos, não podiam ser os
1790, “desnaturada” (Foucault, 1977, p. 73):
mesmos do Antigo Regime. Já antes haviam
era onerosa, incerta e irregular, constituída
alertado para o duplo perigo que represen-
por uma multiplicidade de instâncias que
tava a coexistência da violência do rei e do
nunca formaram uma pirâmide única e con-
povo, uma contra a outra. À tirania, segundo
tínua. Exceptuando as jurisdições religiosas, eles, opunha-se a revolta, por isso era neces-
eram muitas as descontinuidades, as sobre- sário que a justiça criminal punisse, em vez
posições e os conflitos entre as diferentes de se vingar. E que punisse com humanidade,
justiças. desde logo porque à suavização dos crimes
Esta situação, até então suportada, não (menos crimes de sangue, mais crimes de
servia agora os interesses da burguesia violação de bens e propriedades) devia cor-
emergente. A passagem a uma agricultura responder uma considerável diminuição do
intensiva (a propriedade da terra tornou-se arbítrio e uma suavização das penas e das
uma propriedade absoluta da burguesia) le- leis. Sobretudo, que fosse “uma justiça mais
vou ao aumento da delinquência no campo, desembaraçada e mais inteligente, para uma
principalmente a partir da Revolução Fran- vigilância penal mais atenta do corpo social
cesa. A propriedade comercial e industrial, (...).A má economia do poder, e não tanto a
com o desenvolvimento dos portos, o apa- fraqueza ou a crueldade, é o que ressalta da
recimento de grandes armazéns onde se crítica dos reformadores” (Foucault, 1977,
acumulavam mercadorias, a organização de pp. 73-74). Assim,
oficinas de grandes dimensões, levou a uma
série de reacções em cadeia, cada vez mais a reforma do direito criminal deve ser lida
ilegais e criminosas, e à montagem de toda como uma estratégia para o remanejamento

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
171

do poder de punir, de acordo com modalida- a falta, pela visibilidade da punição do cri-
des que o tornem mais regular, mais eficaz, minoso; 4 - a regra da certeza perfeita: as
mais constante e mais bem detalhado em seus
efeitos; enfim, que aumentem os efeitos dimi-
leis que definem os crimes e prescrevem
nuindo o seu custo económico e o seu custo as penas devem ser perfeitamente claras e
político (id., p. 75) precisas, publicadas para conhecimento de
todos, e fazendo parte de um corpo legis-
Mudam-se os princípios e definem-se no- lativo escrito que possa funcionar como um
vas estratégias. O criminoso assume, agora, pacto social 4 ; 5 - a regra da verdade comum:
o estatuto de cidadão, e isso vai ser deter- a partir de agora há que fazer a verificação
minante. Qualquer infracção sua será con- do crime e a prova de culpa, para que se
siderada como sendo levada a cabo contra possa criar um clima de certeza irrefutável;
todo o corpo social e não mais contra o como uma verdade matemática, a verdade
soberano. A sociedade tem o direito de se do crime só pode ser admitida quando in-
defender, de o punir, mas de uma maneira teiramente comprovada e, até chegar esse
menos feroz, mais suave, porque o cidadão momento de demonstração final, todo o
que faz a lei não comete, ele próprio, cri- acusado deve ser considerado inocente; 6 -
mes. Este aparente recurso à sensibilidade a regra de especificação ideal: é necessário
não traduz se não, na perspectiva de MF, um um código, exaustivo e explícito, que defina
princípio de cálculo. Era preciso moderar os crimes fixando as penas (a codificação do
e calcular os efeitos de retorno do castigo sistema delitos-castigos e a modulação do
sobre a instância punitiva e sobre o poder par criminoso-punição).
que ela pretendia exercer. “Humanidade é Esta individualização das penas represen-
apenas o nome respeitoso dado a toda essa tou um grande passo em frente em toda a
nova economia do poder e aos seus minu- história do direito penal moderno. É aí que
ciosos cálculos” (id., p. 84). reside a sua fundamentação. Antes, na ju-
risprudência antiga, julgava-se o acto em si
A punição generalizada mesmo. Agora, começa a julgar-se o próprio
infractor, a sua natureza, o seu modo de vida
Para dotarem o poder de punir de uma e de pensar, o seu passado, a qualidade da
economia e de uma eficácia que o tornas- sua vontade (um século ou dois depois será
sem generalizável a todo o corpo social, que exactamente aqui que o saber psicológico
pudesse codificar todos os comportamen- virá substituir a jurisprudência). E surge a
tos e reduzir o domínio das ilegalidades, os noção de reincidência, que tende a tornar-
reformadores dos sécs. XVIII e XIX pro- se uma qualificação do próprio delinquen-
curaram definir algumas regras, nas quais, te, susceptível de alterar, no sentido do seu
sem grande dificuldade, poderemos encon- agravamento, a pena pronunciada.
trar princípios que enformam ainda hoje O ponto de partida da reforma foi, então,
os nossos códigos e a nossa jurisprudência. o projecto político de classificar as ilegali-
São elas: 1 - a regra da quantidade mínima: dades, de generalizar a função punitiva, e de
a desvantagem decorrente do cometimento delimitar, para o controlar, o poder de punir.
do crime deve ser superior à vantagem, por Definem-se duas linhas de objectivação: a
forma a que o cidadão sinta ser preferível do crime, como facto a estabelecer segun-
evitar a pena do que arriscar o crime; 2 - do normas comuns; e a do criminoso, como
a regra da idealidade suficiente: o que está indivíduo a conhecer segundo critérios es-
em causa, na punição, não é tanto o corpo pecíficos. O criminoso passa a ser designa-
enquanto sujeito de sofrimento mas a re- do como inimigo de todos, é desqualificado
presentação simbólica da pena, que deve ser enquanto cidadão, como se transportasse
maximizada; 3 - a regra dos efeitos colate- um segmento selvagem da natureza. Apa-
rais: a pena deve ter efeitos mais intensos e rece como o celerado, o monstro, o louco,
mais prolongados nos que não cometeram o doente e, logo, o anormal. “Será necessá-

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
172

rio esperar muito tempo para que o homo ceral, ajustado aos patamares da divisão ad-
criminalis se torne um objecto definido no ministrativa, uma grande arquitectura, com-
campo do conhecimento” (Foucault, 1977, plexa e hierarquizada, integrada no corpo do
p. 92). O pensamento dos ideólogos acer- aparelho do Estado. O patíbulo e o cadafalso
ca do exercício do poder sobre os homens do corpo do supliciado cedem lugar a uma
entendia, assim, o espírito como superfície materialidade totalmente diferente, a uma
de inscrição desse poder, e a submissão dos física do poder totalmente diferente, a uma
corpos como efeito do controle das ideias. maneira totalmente diferente de investir o
Este pensamento, que não significou apenas corpo do homem. Os muros altos da prisão
uma nova teoria do indivíduo e da socie- passam a simbolizar os novos castelos da
dade, desenvolveu-se rapidamente como ordem civil, em França e por toda a Europa.
uma tecnologia dos poderes subtis, eficazes Neste contexto, na época clássica foram
e económicos. Assistia-se a mais um desvio construídos alguns dos que viriam a ser
do objecto de julgar e punir: agora, em vez considerados os grandes modelos do en-
do crime, ou do criminoso, é a criminalida- carceramento punitivo. O objecto da pena
não eram já representações, mas de novo o
de que se torna o objecto da intervenção
corpo e a alma do indivíduo. Os instrumen-
penal. A objectivação do crime, enquanto
tos utilizados não eram mais os discursos,
isso, teve efeitos mais rápidos e decisivos,
os sinais, as mensagens implícitas, como na
na medida em que estava mais directamente
época dos suplícios, mas formas de coerção,
ligada à reorganização do poder de punir:
esquemas de limitação, exercícios repetidos.
codificação, definição dos papéis, aplicação
A finalidade já não era reconstruir o sujeito
das penas, regras de procedimento, defini- de direito, o cidadão preso ao pacto social,
ção do papel dos magistrados. mas de novo o sujeito obediente, o indi-
Michel Foucault termina esta parte da obra víduo sujeito a hábitos, regras e ordens, e
deixando-nos uma questão para reflexão: que interiorizaria uma autoridade exterior
teremos entrado, verdadeiramente, na era a si. Tratando-se de formar indivíduos sub-
dos castigos incorpóreos? E uma convicção/ missos, o encarceramento trazia consigo um
certeza: esta técnica das punições, este po- novo factor, claramente facilitador: o segre-
der ideológico, “vai ficar em suspenso e será do. Porque a dimensão do espectáculo, ou
substituído por uma nova anatomia política da partilha da pena por terceiros, era total-
em que o corpo, novamente, mas de uma mente excluída, o poder era total, como o
forma inédita, será o personagem principal” era a autonomia de quem aplicava a punição.
(p. 93). Assistiremos uma vez mais, segundo E este segredo, e esta autonomia no exercí-
ele, a uma nova política do corpo. cio do poder de punir, vinham pôr em causa
toda a teoria política da penalidade propos-
A sanção normalizadora ta pelos reformadores: a sua clareza, a sua
transparência, a negação do arbítrio…
No contexto histórico de suavização das
penas generaliza-se a ideia de utilizar a Castigos secretos e não codificados pela le-
gislação, um poder de punir que se exerce
prisão para cumprimento de praticamente
na sombra, de acordo com critérios e instru-
todas as penas e castigos. Os reformado- mentos que escapam ao controle – é toda a
res não a aceitavam porque aparecia mar- estratégia da reforma que corre o risco de
cada pelos abusos do poder despótico do ser comprometida. Depois da sentença, é
soberano, e chegam mesmo a pedir a sua constituído um poder que lembra o que era
exercido no antigo sistema. O poder que se
supressão: “pensamos que as cadeias devem aplica às penas ameaça ser tão arbitrário, tão
ser arrasadas” (Foucault, 1977, p. 107). Mas, despótico, quanto aquele que antigamente as
surpreendentemente, em menos de 20 anos decidia (Foucault, 1977, p.115).
a prisão mudou de estatuto. O Império de-
cidiu-se pelo encarceramento como medida A questão era: o que se pretendia, afinal?
óptima e programou um grande edifício car- Uma cidade punitiva, com um poder penal

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
173

repartido por todo o espaço social, legível atravessam a pedagogia, a medicina, a tácti-
como um livro aberto? Ou uma instituição ca militar e a economia, levando à mutação
coerciva, com um funcionamento compacto do regime punitivo no limiar da época con-
do poder de punir, e um sistema de autori- temporânea, bem como ao nascimento do
dade e de saber que apostava na sua gestão homem do humanismo moderno. A discipli-
autónoma e isolada, na correcção individual, na acelerou-se e mudou a sua escala, criou
na sua separação do poder judicial propria- todo um conjunto de técnicas, um corpo
mente dito? Como se conseguiria melho- de processos e de saberes, de descrições,
rar a institucionalização do poder de punir, de receitas e de dados. Só que, para que se
tal como ele era entendido no final do séc. exercesse eficazmente, a condição primeira
XVIII? Para MF não estamos perante teorias era a da distribuição eficiente dos indivíduos
do direito que derivam de escolhas morais, no espaço: o encarceramento, numa cerca
mas sim de modalidades do direito de punir. heterogénea, de vagabundos e miseráveis;
De tecnologias do poder. Porque é que a os colégios com internato, segundo o mo-
prisão se impôs? delo do convento; os quartéis, que fixavam
o exército, evitando deserções e conflitos
A disciplina e a docilidade com as populações e autoridades civis; os
dos corpos hospitais, onde todos estes mecanismos ti-
veram início, por necessidade do controle
Na época clássica registava-se já um gran- e vigilância médica das doenças e perigo de
de interesse pelo corpo, enquanto objecto e contágios.
alvo do poder. Exemplos disso são a publi- Esta distribuição disciplinar do espaço
cação do livro Homem-máquina, escrito em passou a revestir-se de um carácter de utili-
dois registos: o anátomo-metafísico e o téc- dade quando começaram a surgir as oficinas,
nico-político. Um, abordaria a submissão e as manufacturas e as fábricas, já na segunda
utilização do corpo; o outro o seu funciona- metade do séc. XVIII. Era “preciso ligar a
mento, explicando-o. Tratava-se do ressurgi- distribuição dos corpos, a arrumação espa-
mento, anunciado por MF, do interesse pelo cial do aparelho de produção e as diversas
corpo, na perspectiva da sua utilidade e da formas de actividade na distribuição dos
sua inteligibilidade. Assistia-se a mecanismos postos” (Foucault, 1977, p. 132), surgindo,
de adestramento do corpo e a esquemas assim, o princípio da economia dos espaços,
de docilidade, nomeadamente nos conven- da localização imediata, a que MF chamou
tos, nas escolas, nos exércitos e, de certa quadriculamento: cada indivíduo no seu lu-
forma, nas oficinas, que se foram tornando gar e em cada lugar um indivíduo, dispostos
mais refinados, sob a forma de disciplinas, em fila, em posições hierarquizadas, segun-
que surgem no momento em que nasce uma do a sua habilidade e rapidez, por forma a
arte do corpo humano e mecanismos para que, percorrendo-se o corredor central da
o tornar mais obediente e útil. “A disciplina oficina, fosse possível realizar uma vigilância
fabrica, assim, corpos submissos e exercita- ao mesmo tempo individual e geral. Ponto-
dos, corpos dóceis” (1977, p. 127). “A disci- chave desta organização: a repartição do
plina é uma anatomia política do detalhe” espaço disciplinar da força do trabalho dá
(1977, p. 128). Surge, desta maneira, com as origem à divisão do processo de produção e
técnicas minuciosas, muitas vezes íntimas, ao nascimento da grande indústria. Na esco-
que definem um certo modo de investimen- la, o problema colocava-se da mesma manei-
to político e detalhado do corpo, uma nova ra. Havia que organizar e disciplinar a gran-
microfísica do poder. de heterogeneidade, pôr o espaço escolar
Em algumas dezenas de anos, apenas, vão a funcionar como uma máquina de ensinar,
impor-se e imperar a minúcia, o olhar es- organizando uma nova economia do tempo
miuçante, o controle das mínimas parcelas de aprendizagem 5 . Os colégios dos jesuítas
da vida e do corpo, o ínfimo, o infinito… que foram pioneiros, avançando para uma dispo-

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
174

sição espacial inspirada na hierarquia e na cronológico do comportamento. A melhor


vigilância piramidal, por forma a tirar dela o relação entre um gesto e a atitude global
maior número possível de efeitos. Organizar do corpo era condição de eficácia e de ra-
o múltiplo, percorrê-lo e dominá-lo, impor- pidez: na escola, no desenho da caligrafia;
lhe uma ordem é, ao mesmo tempo, como nos quartéis, no simples acto de marchar; na
se vê, uma técnica de poder e um processo fábrica, na produção produzida. “Um corpo
de saber. disciplinado é a base de um gesto eficiente”
Outro aspecto importante da disciplina e (Foucault, 1977, p. 139). Por isso, através de
docilidade dos corpos é o do tempo e do prescrições explícitas e coercivas, o poder
seu uso. A imposição e a sujeição a horários vai-se introduzindo e amarrando o corpo
não tiveram grande dificuldade em se impor, ao objecto. A disciplina corporal vem, deste
porque se integravam nos antigos esquemas, modo, criar uma nova economia do tempo,
na velha herança das comunidades monásti- e o tempo disciplinar começa a impor-se na
cas. Aliás, já mesmo no séc. XIX as congre- prática pedagógica, na organização militar,
gações religiosas tinham dado uma preciosa nas oficinas.
ajuda quando foi necessário utilizar popula- Ainda na época clássica, em grande parte
ções rurais na indústria e acostumá-las ao por razões de ordem económica, vem colo-
trabalho em oficinas, nas chamadas fábricas- car-se uma questão nova: a da relação entre
conventos. o indivíduo e o colectivo, entre a parte e o
Também nas escolas elementares a divisão todo. Para que fosse mais rentável, mais efi-
do tempo se tornou cada vez mais esmiuçan- ciente, mais útil, mais produtivo, o todo teria
te, as actividades cada vez mais subjugadas a de ter um efeito superior à soma das for-
ordens que exigem uma resposta imediata: ças elementares que o compunham, o que
implicava que houvesse combinação e coo-
No começo do séc. XIX serão propostos para peração. Nasce, assim, a força do trabalho
a escola mútua horários como o seguinte: social tal como ainda hoje é entendida no
8h45 - entrada do monitor; 8h52 - chamada
do monitor; 8h56 -entrada das crianças e ora- Ocidente, e com ela uma nova ideia de disci-
ção; 9h - entrada nos bancos; 9h04 - primeira plina e de corpo. “O corpo singular torna-se
lousa; 9h08 - fim do ditado; 9h12 - segunda um elemento que se pode colocar, mover,
lousa … (p.137). articular com outros (…), [constituindo-se]
como peça de uma máquina multissegmen-
No entanto, não se tratava apenas de cum- tar” (Foucault, 1977, pp. 147-148), o que leva
prir horários. Tinha também de se garantir a que MF atribua à disciplina quatro carac-
a qualidade do tempo utilizado, através de terísticas: é celular, é orgânica, é genética
um controle ininterrupto e da eliminação de e é combinatória. E outras tantas funções:
tudo o que pudesse perturbar e distrair. Im- constrói quadros, prescreve manobras, im-
punha-se construir um tempo integralmente põe exercícios, organiza tácticas.
útil, sem impureza nem defeito, um tempo
de boa qualidade. A exactidão, a aplicação e a A vigilância hierárquica
regularidade eram as virtudes fundamentais
do tempo disciplinar. A elaboração temporal O sonho de uma sociedade perfeita é atri-
do acto era um aspecto muito importante buído, historicamente, aos filósofos e juris-
da disciplina. Assim, na segunda metade do tas das Luzes. Mas Foucault, céptico quanto
séc. XVIII, começa a ser dada uma particular à bondade das suas intenções, considera que
atenção ao grau de precisão dos movimen- havia sobretudo um sonho de militarizar a
tos, à decomposição dos gestos, à maneira sociedade, tendo como referências funda-
de ajustar o corpo a imperativos temporais. mentais as engrenagens de uma máquina, as
A esta programação da elaboração do acto, coerções permanentes, os treinos indefini-
imposta do exterior mas controlada do in- damente progressivos, a docilidade automá-
terior, viria MF a chamar esquema anátomo- tica. Enfim, uma espécie de disciplina nacio-

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
175

nal, o que implicava a vigilância hierárquica, é uma invenção técnica do séc. XVIII, vem
a sanção normalizadora e o exame, como afectar, de alto a baixo, a rede de relações
formas por excelência de adestramento dos sociais. A disciplina faz funcionar um poder
corpos e das mentes. Começa por afirmar relacional que se auto-sustenta pelos seus
que, na época clássica, a par das grandes próprios mecanismos, um poder aparente-
descobertas científicas, se desenvolveram mente menos corporal mas cientificamente
técnicas de vigilância, olhares que viam sem mais físico. Para além de uma microfísica,
ser vistos, verdadeiros observatórios da uma macrofísica do poder. “Na essência de
multiplicidade humana que almejavam um todos os sistemas disciplinares funciona um
saber novo sobre o homem, através de téc- pequeno mecanismo penal” (Foucault, 1977,
nicas e de processos que o submetessem e p. 159). O importante é que cada indivíduo
permitissem a sua utilização. E o paradigma compreenda, interiorize e integre a função
desses observatórios seria o acampamento punitiva, ao ponto de se sentir simultanea-
militar, com a sua geometria, as suas filas, mente punidor e punível.
as suas colunas, a distribuição espacial das O castigo disciplinar, assim generalizado,
tendas. começa a perder o seu carácter penalizador
O acampamento tornava-se, assim, “o dia- e a assumir um carácter essencialmente cor-
grama de um poder que age pelo efeito de rectivo, uma função de correcção de desvios.
uma visibilidade geral (...), o encaixamento Deve-se “evitar, tanto quanto possível, usar
espacial das vigilâncias hierarquizadas (...), castigos (…) e tornar as recompensas mais
o princípio do encastramento” (Foucault, frequentes que as penas” (Foucault, 1977,
1977, p. 154). De tal forma isto se revelou p. 161). Mudança profunda na filosofia dos
eficaz que, durante muito tempo, o urbanis- castigos: “os aparelhos disciplinares hierar-
mo, a arquitectura em geral, nomeadamente quizam (…) os bons e os maus indivíduos”
a construção das cidades operárias, dos hos- (p. 162), ou seja, a penalidade deixa de se
pitais, dos asilos, das prisões, das casas de reportar aos “actos, mas [passa a reportar-
educação, tentaram copiar o seu modelo e se] aos próprios indivíduos, à sua natureza,
adoptaram o seu princípio: a transformação às suas virtualidades, ao seu nível ou valor”
dos indivíduos através dos olhares. Surgem, (ibid.). Na escola, essa penalidade hierar-
assim, o hospital-edifício, a escola-edifício e a quizante tem como objectivos classificar
oficina-edifício, concebidos com uma geome- os alunos segundo as suas aptidões e o seu
tria exacta e uma arquitectura inicialmente comportamento, e exercer sobre eles uma
circular, que permitiam uma vigilância cada pressão constante para que sigam todos o
vez mais detalhada dos comportamentos in- mesmo modelo, se sujeitem à subordinação,
dividuais, e funcionavam como uma espécie sejam dóceis e disciplinados. Para que to-
de microscópios do comportamento, apa- dos se pareçam. Ou seja, a penalidade, que
relhos disciplinares perfeitos. Mas depressa atravessa e controla todos os instantes das
esta vigilância se revelou insuficiente. Com instituições disciplinares, compara, diferen-
o desenvolvimento do processo produtivo e cia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Numa
a necessidade de um trabalho cada vez mais palavra, normaliza.
especializado, as fábricas já não podiam vi- Nisso, a disciplina e a penalidade discipli-
ver com um sistema de vigilância corporati- nar opunham-se à penalidade judiciária. Esta
vo, os operários vigiando-se uns aos outros. não tinha por função julgar os indivíduos
Houve necessidade de constituir um sistema mas os seus actos, num sistema normativo
piramidal, ao mesmo tempo peça interna do de igualdade formal, onde a homogeneidade
aparelho de produção e engrenagem espe- era a regra, e que por isso não reconhecia
cífica do poder disciplinar, mas sempre um nenhuma gradação das diferenças individu-
operador económico decisivo. ais. Foi então que as disciplinas inventaram
Esta organização piramidal, esta vigilân- um novo funcionamento punitivo, tendo por
cia hierarquizada, contínua e funcional, que base o poder da norma e, consequentemen-

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
176

te, inventaram também novos mecanismos verdadeira e constante troca de conheci-


de sanção normalizadora. É disto que MF fala mentos e saberes do mestre para o aluno,
quando refere “o funcionamento jurídico- a escola torna-se no local de elaboração
antropológico (…) da história da penalidade da pedagogia, e marca o nascimento desta
moderna” (1977, p. 164). A norma, o normal, como ciência. No exército, por seu turno,
juntamente com a vigilância, tem um poder em função de constantes inspecções e de
que obriga à homogeneidade, à existência de manobras indefinidamente repetidas, desen-
um corpo social homogéneo, onde o exame volveu-se um imenso saber táctico.
é eleito como o exemplo, por excelência, Para Foucault, porém, a mais relevante
da combinação óptima das técnicas de hie- consequência do exame situa-se ao nível da
rarquia vigilante e da sanção normalizadora. individualidade do indivíduo. No exército,
Trata-se de uma invenção da era clássica que nos hospitais e nos estabelecimentos de en-
os historiadores injustamente deixaram na sino, foram criadas e desenvolvidas técnicas
sombra, equiparando-se a sua importância, e inovações importantes (registos e anota-
para Foucault, às experiências realizadas ções escritas) relativas à identificação, à des-
com cegos de nascença, com a hipnose ou crição, à evolução dos corpos e das mentes,
com os meninos-lobo. “A sobreposição das consubstanciadas numa série de códigos ho-
relações de poder e das de saber assume, mogeneizantes: código físico, código médico,
no exame, todo o seu brilho visível” (1977, código escolar, código militar que, ainda que
p. 165). bastante rudimentares na sua forma quali-
tativa e na sua forma quantitativa, marcam
O exame o momento de uma primeira formalização
do individual dentro das relações do poder,
O exame, em Foucault, é um conceito mui- “o momento em que se efectua o que se
to mais abrangente que um mero jogo de poderia chamar a troca do eixo-político da
perguntas e respostas, um sistema de no- individualização” (1977, p.171).
tas ou classificações. O exame é válido para Essa escrita disciplinar de anotação, de
todas as ciências humanas, da psiquiatria à registo, de constituição de processos, de
pedagogia e ao diagnóstico clínico, passan- correlação de elementos, de organização
do pelo simples acto de contratação de de campos comparativos, de classificação,
mão-de-obra. E tão importante é, que MF de categorização, de estabelecimento de
considera mesmo que uma das condições médias, de fixação de normas, realizada es-
essenciais para a libertação epistemológi- sencialmente nos hospitais e nas escolas,
ca da medicina, no final do séc. XVIII, foi a não só permite a “constituição do indivíduo
organização do hospital como aparelho de como objecto descritivo e analisável” (1977,
examinar. As inspecções e visitas médicas p. 171), como permite também “a libertação
de antes, irregulares, rápidas e descontínuas, epistemológica das ciências do indivíduo”
transformaram-se numa observação regular, (ibid.), o nascimento das ciências do homem,
que punha o doente em situação de exame cuja génese se encontra no “jogo moderno
quase permanente. Quanto ao hospital em das coerções sobre os corpos, os gestos e
si, de local de assistência vai passar, por for- os comportamentos” (1977, p. 170).
ça do exame, a local de formação e aperfei- O exame, acompanhado de toda a sua pa-
çoamento científico, de constituição de um rafernália documental, traz ainda uma outra,
saber, de afirmação da disciplina médica. O e talvez maior, novidade: cada indivíduo pas-
mesmo processo e o mesmo tipo de modi- sa a ser um caso. Um caso que não é mais
ficações atravessam a escola, tornada uma um acto ou um conjunto de circunstâncias,
espécie de aparelho de exame ininterrupto como era entendido na casuística ou na
que, para além de medir, classificar e san- jurisprudência, mas um indivíduo tal como
cionar, força uma comparação permanente pode ser descrito, mensurado, medido, com-
de cada um com todos. Representando uma parado a outros na sua própria individuali-

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
177

dade. É também o indivíduo que tem de ser que ia até ao pormenor mais ínfimo, de um
treinado ou retreinado, classificado, norma- olhar alerta por toda a parte, que penetrava
lizado, excluído. Cada um tem, então, o seu até aos mais finos detalhes da existência de
próprio status, a sua própria individualidade, cada um, criando uma rede capilar do po-
e quanto mais marcado e estrito for o seu der, “onde os menores movimentos eram
enquadramento disciplinar, mais estudado e controlados, todos os acontecimentos eram
descrito será. Não surpreende, então, que registados e um trabalho ininterrupto de es-
seja em direcção das crianças, dos doentes, crita ligava o centro e a periferia” (Foucault,
dos loucos e dos condenados que, a partir 1977, p.174). Era aquilo que MF denominou
do séc. XVIII, se viram todos os mecanismos o modelo da peste, da cidade pestilenta, ma-
individualizantes. Mais que para o adulto, o gistralmente descrito em Vigiar e Punir.
homem são, o normal, o não delinquente. Mas outro dispositivo disciplinar existia na
mesma época que suscitou exclusões: era o,
Todas as ciências, análises ou práticas com também para MF, modelo da lepra. “O lepro-
radical psico, têm o seu lugar nessa troca his- so era visto dentro de uma prática de rejei-
tórica dos processos de individualização. O
momento em que passamos de mecanismos ção, do exílio-cerca (…), uma massa que não
histórico-rituais de formação da individuali- tinha muita importância diferenciar” (1977,
dade, a mecanismos científico-disciplinares, p. 175). Aí, tratava-se de uma força discipli-
em que o normal tomou o lugar do ancestral nar que existia “para destacar mais do que
e a medida o lugar do status, substituindo as-
sim a individualidade do homem memorável para combinar e compor, para repartir mas-
pela do homem calculável, esse momento sas mais que para recortar detalhes, para
em que as ciências do homem se tornaram exilar mais que para esquadrinhar” (Deleu-
possíveis, é aquele em que foram postas em ze, p. 179).
funcionamento uma nova tecnologia do po- O exílio do leproso e a prisão domiciliá-
der e uma outra anatomia política do corpo.
(Foucault, 1977, p. 172) ria da peste não trazem consigo, portanto,
o mesmo sonho político. O primeiro, repre-
A austeridade das instituições senta o ideal de uma comunidade pura. O
segundo, o de uma sociedade disciplinada,
Como já antes vimos, o processo históri- exclusiva, segregadora. Esquemas diferentes,
co, pelo qual a burguesia se tornou, durante mas nem por isso incompatíveis. Lentamen-
o séc. XVIII, a classe politicamente domi- te eles vão-se aproximando, e o séc. XIX
nante, refugiou-se por detrás de um quadro acaba por aplicar ao espaço de exclusão de
jurídico explícito, codificado, formalmente que o leproso era o habitante simbólico, a
igualitário, e da organização de um regime técnica de poder própria do quadriculamen-
de tipo parlamentar representativo. No en- to disciplinar. O mesmo fez relativamente
tanto, o desenvolvimento e a generalização aos mendigos, aos vagabundos, aos loucos,
dos dispositivos disciplinares constituíam a aos violentos, pelo que surge, no início do
outra vertente, obscura, destes processos. século, o asilo psiquiátrico, a penitenciária,
A forma jurídica geral que garantia um sis- a casa de correcção, o estabelecimento de
tema de direitos, em princípio igualitários, educação vigiada, os hospitais, e a divisão
era sustentada por mecanismos minúsculos, binária louco/não louco, perigoso/inofensi-
quotidianos e físicos, por sistemas de mi- vo, normal/anormal. Punir passa, então, a ser
cro-poder essencialmente inegualitários e uma função formalizada, como o são tratar,
dessimétricos, constituídos pelas disciplinas. educar, disciplinar, fazer trabalhar, na prisão,
As disciplinas reais e corporais formavam o no hospital, na escola, na caserna, na oficina.
subsolo das liberdades formais e jurídicas. É exactamente a propósito da loucura,
Não esqueçamos que, no final do século, a quando confrontado com a existência de
ordem e a disciplina se impunham através de instituições de segregação e trabalhos for-
um policiamento espacial estrito, de uma vi- çados que desde o séc. XVIII se vinham ex-
gilância constante, de um esquadrinhamento pandindo um pouco por toda a Europa, que

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
178

MF se confronta com duas perspectivas do essencialmente sobre as prisões e os hos-


poder: uma, social, da relação dos indivíduos pitais.
com o Estado; outra, de formas de poder Mas para Foucault, o problema dos espa-
individual. Na primeira, os loucos, os pobres, ços não é senão um problema histórico-po-
os desempregados e deserdados de toda a lítico, e a fixação espacial uma forma econó-
espécie, são considerados problemas sociais mico-política. Importava, por isso, fazer uma
que o Estado chama a si, assumindo a cons- história dos espaços que fosse ao mesmo
trução de hospitais, casas de trabalho, etc. tempo uma história dos poderes, que estu-
Na segunda, é criado um conjunto de técni- dasse desde as grandes estratégias da geo-
cas de poder orientadas para os indivíduos, política até às pequenas tácticas do habitat,
que se destinam a dirigi-los de forma contí- da arquitectura institucional, da sala de aula,
nua e permanente. Nesta, pretendia-se que da organização hospitalar, da organização pe-
o poder, mesmo tendo uma multiplicidade nitenciária, da oficina e da caserna, mas tam-
de homens a geri-lo, fosse tão eficaz como bém das prisões. Foi o que se propôs fazer,
se se exercesse por um só, através de for- elegendo como elemento de estudo e princi-
mas sofisticadas de controle social e psico- pal instrumento de análise o Panóptico6.
lógico, mais direccionadas para a mente que Foucault apresenta o Panoptismo (visão
para o corpo, tendo em vista a moralização de conjunto, possibilidade de tudo ver à
e a homogeneização da população em geral. sua volta, se possível com um só olhar) não
Para a burguesia de então era como que a meramente como uma imagem de um novo
imposição, pela força, do bem, a todos que sistema prisional mas como o paradigma do
era suposto pertencerem ao mal. Assim, em esquema geral de funcionamento do poder
Michel Foucault, através dos seus estudos no mundo moderno. No projecto arquitec-
sobre a instituição médica (o nascimento da tónico do Panóptico identifica os elementos
clínica) e a instituição prisional, vai-se con- constituintes fundamentais desse poder: a
solidando a ideia de que a supervisão e a in- centralização, a moralização, a eficácia e, de
tervenção no domínio social são a principal todos o mais relevante, a individualização.
característica das sociedades modernas. Em suma, a estrutura unilateral e monolítica
do poder dos nossos dias: centralizado, anó-
O panoptismo nimo, disseminado e altamente eficaz.
Quando um único observador, como su-
Foi quando estudava as origens da medici- cede no Panóptico, posicionado numa tor-
na clínica e a arquitectura hospitalar da se- re central, vigia a totalidade dos indivíduos,
gunda metade do séc. XVIII, época do gran- isolados e separados entre si, estes, porque
de movimento de reforma das instituições não têm acesso ao acto de vigilância a que
médicas, que MF descobriu o Panóptico do estão sujeitos, interiorizam o sentimento
jurista inglês Jeremy Bentham. A arquitectu- de permanente observação e são levados
ra começara a espacializar-se, a articular-se a transformar-se nos agentes mais zelosos
com os problemas da população, da saúde, da sua própria vigilância, bem como nos da
do urbanismo, e os médicos tiveram nisso vigilância dos outros. Em cada camarada, um
uma participação social considerável, de- vigia, podia bem ser o lema. O mero dispo-
sempenhando um papel de organizadores do sitivo geométrico e arquitectónico faz cada
espaço (foram, juntamente com os militares, indivíduo interiorizar os constrangimentos
os primeiros administradores do espaço co- que lhe chegam do exterior, sob a forma de
lectivo). A higiene social nasce nesta época. um controle meticuloso, tanto do seu corpo
Em nome da limpeza e da saúde controla-se como da sua mente. Era um poder omnipre-
a colocação espacial de uns e de outros. Os sente, omnividente e ubíquo. Daí Foucault
médicos estão entre os mais sensibilizados considerar a invenção do Panóptico como
para os problemas do ambiente, do lugar, da um acontecimento na história do espírito
temperatura, e debruçam a sua investigação humano, e um tipo de ovo de Colombo na

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
179

ordem da política. Aquilo que médicos, pena- de uma forma tão evidente como a polícia
listas, industriais e educadores procuravam, e a prisão.
Bentham ofereceu-lhes: um poder contínuo
e de custo irrisório, por não necessitar de A formação da sociedade disciplinar está liga-
da a um certo número de amplos processos
armas, violências físicas ou coações mate-
históricos, no interior dos quais ela tem lugar:
riais. Apenas de um olhar. económicos, jurídico-políticos, científicos (p.
As técnicas do poder no interior do Pa- 191). As disciplinas atravessam, então, o limiar
nóptico eram realmente surpreendentes. tecnológico (...). O hospital, primeiro, depois
Embora se tratasse essencialmente do olhar, a escola, mais tarde ainda a oficina (…) foram
aparelhos e instrumentos de sujeição. Foi a
também a palavra era importante (os famo- partir desse laço, próprio dos sistemas tecno-
sos tubos de aço que ligavam o inspector lógicos, que se puderam formar no elemento
principal a cada cela onde se encontravam disciplinar a medicina clínica, a psiquiatria, a
pequenos grupos de prisioneiros) para os psicologia da criança, a psicopedagogia, a ra-
cionalização do trabalho (…). (Foucaul, 1977,
dissuadir de fazerem o mal e perderem a
p. 196).
vontade de o querer fazer. Ou seja, não po-

der e não querer fazê-lo. A impressão que
Para Michel Foucault as sociedades mo-
se tinha era a de se estar num mundo infer-
dernas são, então, sociedades essencialmen-
nal do qual ninguém podia escapar, tanto os
te disciplinares, constituídas por disciplinas
que olhavam como os que eram olhados. O
corporais e por um formidável crescimento
espaço estava organizado de tal forma que
do poder e da coerção. Mostra-se céptico
podia ser utilizado e visitado por qualquer
relativamente à modernidade, da mesma ma-
um, em qualquer momento, para além de
neira que o faz em relação às ciências sociais
quem estava na torre central. Era uma má-
e humanas. Se se pensava, no séc. XIX, que
quina que não se circunscrevia a alguém iso- as ciências do homem contribuiriam para a
ladamente mas a toda a gente, tanto àqueles libertação do ser humano na sua plenitu-
que exerciam o poder como àqueles sobre de, bem depressa, em sua opinião, a expe-
os quais era exercido (afinal, a máquina de riência mostrou que, ao desenvolverem-se,
vigilância perfeita, a utopia-programa, era conduziam bem mais depressa ao desapa-
também um aparelho de desconfiança total). recimento do homem que à sua apoteose.
De custo político igualmente irrisório, cria- Tornaram-se, segundo ele, funcionalistas, e
va a ilusão de um poder que se exercia pela simultaneamente produto e instrumento da
transparência e pela iluminação, o que levou acção do biopoder, já que são elas que in-
a que a Revolução só encontrasse no Pa- tervêm sobre os corpos por processos de
nóptico objectivos humanitários. E, uma vez individualização sempre mais sofisticados,
mais, a burguesia fez não só uma revolução acutilantes e penetrantes, da mesma forma
política, como também soube instaurar uma que são elas que disponibilizam as imensas
hegemonia social que nunca mais perdeu. técnicas de pesquisa e de registo de da-
Pelo descrito, concluímos que uma das dos sobre os indivíduos, os seus corpos, as
ideias principais de Vigiar e Punir é, preci- suas vidas, as suas paixões. São um efeito
samente, a de que as sociedades modernas não visível da nova forma subtil do poder
podem ser definidas como sociedades disci- que, imperceptivelmente, opera ao nível dos
plinares, mas que a disciplina não pode ser hábitos inculcados e das normas de vida
identificada com uma instituição ou com um quotidiana, tanto dos grupos sociais como
aparelho. É, antes, um tipo de poder, uma dos indivíduos isolados. São os dispositivos
tecnologia que atravessa toda a espécie de eleitos por um poder que mobiliza e põe
aparelhos e de instituições para os ligar uns em prática novos instrumentos científicos
aos outros, os prolongar, os fazer conver- de cálculo, estatística, medida, generalização,
gir, os obrigar a exercerem-se de um modo abstracção, destinados ao conhecimento
novo. Isto, ainda que se trate de peças ou dos corpos humanos, e que permitem que
de engrenagens que pertençam ao Estado o controle e a dominação se tornem cada

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
180

dia mais eficazes (já tínhamos encontrado e humanidade, criando “uma justiça que se
esta ideia antes, embora formulada de ou- diz igual, um aparelho judiciário que se diz
tra maneira, aquando da descrição da cida- autónomo” (Foucault, 1977, p.207). A prisão
de pestilenta). É o domínio da biopolítica, como pena das sociedades civilizadas.
a ideia da sociedade disciplinar enquanto Desde os primeiros anos do séc. XIX a
panoptismo generalizado. Então, o proces- prisão tornou-se, então, uma coisa tão ób-
so civilizacional culmina nas organizações via que se impôs sem alternativas e fez es-
votadas à dominação, que têm o poder de quecer todas as outras punições imaginadas
controlar e de regular inteiramente a vida pelos reformadores do séc. XVIII. Este ca-
social. A estabilidade das sociedades alta- rácter óbvio da prisão, Foucault situa-o a
mente desenvolvidas não é senão o resul- vários níveis: era óbvio que se tratava de um
tado de operações reguladoras, conduzidas castigo igualitário, que correspondia a uma
por organizações de uma grande perfeição clareza jurídica; era óbvio que a privação
administrativa, que se manifestam por meio da liberdade tinha uma função de reparação
do exercício da disciplina e do controle, por económico-moral, já que permitia quantifi-
meio da manipulação e da domesticação, no car exactamente a pena segundo a variável
espaço de vida de cada indivíduo, para fazer do tempo; era óbvia a sua aceitação enquan-
dele um colaborador social dócil. to aparelho transformador dos indivíduos, já
Assim, e devido à sua concepção de do- que os mecanismos que impunha ao corpo
minação, talvez possamos dizer que, para social pré-existiam-lhe no quartel, na esco-
Foucault, as sociedades modernas são tam- la, na oficina; era óbvia, finalmente, porque
bém, um pouco, sociedades totalitárias. Da aparecia como a forma mais imediata e mais
mesma maneira, o indivíduo moderno não civilizada de todas as penas. Mas em pouco
passa de uma ficção realizada. Assiste-se a mais de um século este clima tornou óbvios,
uma desconstrução do sujeito: o sujeito, en- também, todos os inconvenientes da prisão,
quanto produto histórico de um processo que se poderia tornar perigosa se fosse inú-
civilizacional que remonta ao início da his- til. Para o evitar, havia que tomar medidas,
tória do género humano, é condicionável, de nomeadamente no que respeitava ao isola-
uma forma quase behaviorista, o que parece mento e à ocupação dos detidos, bem como
pôr em causa também, a ideia de subjectivi- ao seu objectivo último: reformar o mau.
dade humana. Uma vez operada essa reforma, o criminoso
devia voltar à sociedade. Não podiam ser
A prisão as instâncias judiciárias, as mesmas que jul-
garam e condenaram, a decidir pela modu-
Numa escrita de avanços e recuos temáti- lação das penas. Assim, o sistema penitenci-
cos ou conjunturais, de permanentes retor- ário, constituído pelo director da prisão e
nos, MF retoma o tema das prisões. Para ele, seus vigias, bem como eventualmente por
a prisão é menos recente do que se pensa, fiscais, sacerdotes, professores, começou a
e não decorre do nascimento dos códigos ganhar uma certa autonomia relativamen-
penais. Pré-existe-lhe. Já antes funcionavam te ao tribunal de aplicação das penas, rei-
modelos de detenção penal nos quais, sem vindicando para si uma parte da soberania
se usar a denominação e a forma – prisão, os punitiva. Naturalmente que, em pleno séc.
indivíduos eram repartidos e fixados espa- XIX, esta mudança não aconteceu de forma
cialmente, por forma a melhor poderem ser pacífica. Mesmo no séc. XX, podemos dizer
observados, controlados e treinados. Então, que ela não ficou completamente resolvida:
que novidade representou o surgimento da na perspectiva de Foucault, os juízes nunca
prisão? Supostamente, a do sentido de hu- aceitaram de bom grado a apropriação do
manidade, de justiça social. A burguesia, clas- controle desse suplemento penitenciário
se dominante na passagem dos dois séculos, que lhes retirava poderes sobre o detido e
pretendeu dar uma imagem de civilização o sistema. E se o sistema penitenciário ga-

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
181

nhou esta contenda, foi porque conseguiu categorização etnográfica em vigor na pri-
introduzir na justiça criminal relações de sa- meira metade do séc. XIX, pela qual os con-
ber, um saber clínico sobre os condenados, denados são outro povo no mesmo povo,
o tratamento das doenças morais. Porque que tem hábitos, instintos e costumes à
se exigia à prisão que regenerasse o detido parte, como o posterior diagnóstico crimi-
– recebia das mãos da justiça um condenado nológico, psicológico ou médico da loucura,
e devia devolver à sociedade um cidadão útil que apagava, ou visava apagar, o carácter de-
– surge um novo personagem no lugar do lituoso do acto praticado. Em suma, a jus-
infractor: o delinquente, que se tornou num tiça penal ocupa-se do infractor, enquanto
indivíduo a conhecer. o aparelho penitenciário se ocupa de outra
pessoa – o delinquente – considerado como
“o delinquente distingue-se do infractor pelo unidade biográfica, núcleo de perigosidade,
facto de não ser tanto o seu acto quanto a representante de um tipo de anomalia. A
sua vida o que mais o caracteriza. A opera-
ção penitenciária, para ser uma verdadeira técnica penitenciária e o delinquente são,
reeducação, deve totalizar a existência do de- então, indissociáveis, e impuseram-se aos
linquente (…). O castigo legal refere-se a um tribunais e às leis. Agora, é a delinquência
acto; a técnica punitiva a uma vida... (Foucault, que tem de ser conhecida, avaliada, medida,
1977, p. .223). diagnosticada, tratada, quando se proferem
sentenças, e é essa anomalia, esse desvio,
A este novo personagem segue-se novo esse perigo inexorável, essa doença, essa
conceito: o da biografia do infractor, o do forma de existência, que deverão ser con-
seu conhecimento biográfico, passo extre- siderados na reelaboração dos códigos. No
mamente importante na história da penali- dizer de Foucault, a delinquência é a vingan-
dade. Já não interessam só as circunstâncias ça da prisão contra a justiça.
mas as causas do crime, e estas devem ser Mas não se fica por aqui sem antes, de uma
procuradas na história da sua vida, na sua forma consequente e coerente, denunciar a
educação, na sua posição social. O crimino- prisão como “o grande fracasso da justiça
so existe antes do crime e até fora deste. penal” (1977, p. 234), elencando uma série
Começam a estabelecer-se causalidades psi- de críticas que lhe foram feitas logo na altura
cológicas, os discursos penal e psiquiátrico da sua implantação, e que se repetem hoje:
começam a confundir-se e, na perspectiva de as prisões não diminuem a taxa de crimina-
MF, entra-se num labirinto criminológico do lidade, funcionando mesmo como quartéis
qual ainda hoje não conseguimos sair. Surge do crime; a detenção provoca a reincidên-
um novo saber científico – a criminologia cia e, como tal, fabrica delinquentes; vigora
– que tem por objectivo o indivíduo enquan- uma administração arbitrária, a corrupção, o
to delinquente e o delinquente enquanto medo e a incapacidade dos guardas; assiste-
indivíduo. A delinquência passa a ser consi- se à exploração do trabalho penal, sem ca-
derada uma síndrome mórbida, um desvio rácter educativo. A prisão é, assim, um duplo
patológico da espécie humana, e é elaborada erro económico: directamente, pelo custo
uma tipologia sintomática dos delinquentes: intrínseco da sua organização; indirectamen-
os que são dotados de inteligência e recur- te, pelo custo da delinquência que ela não
sos intelectuais superiores à média, que se reprime. Palavra por palavra, de um século
tornaram perversos por predisposição inata a outro, repetem-se as mesmas proposições
ou questões morais e sociais que lhes são fundamentais.
exógenas; os viciosos, limitados, embruteci-
dos ou passivos, que se deixaram arrastar A sanção normalizadora e a
por más incitações; os inaptos ou incapazes, emergência das ciências humanas
levados ao crime pelos seus instintos pesso-
ais e incapacidades próprias. Na parte final de Vigiar e Punir, Michel
Esta tipologia vem pôr em causa não só a Foucault retoma, quase em jeito de sínte-

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
182

se, os temas da disciplina, do adestramento, social. Esta nova economia do poder arras-
da docilidade dos corpos, bem como a sua ta, segundo MF, um “desejo furioso, da parte
relação com os cinco modelos de referên- dos juízes de medir, avaliar, diagnosticar, re-
cia: família, exército, oficina, escola, poder conhecer o normal e o anormal” (1977, p.
judiciário. Cita o exemplo de Mettray, co- 259). Como se tivessem vergonha de conde-
lónia penal para jovens, como o paradigma nar, reivindicam a cura ou a readaptação.
da técnica disciplinar. Para ele, é aqui que Esta multiplicação do poder normaliza-
nasce uma nova categoria de vigilantes, a dor fez surgir, então, juízes da normalidade
que chama “técnicos do comportamento, por toda a parte. Vivemos na sociedade do
engenheiros da conduta, ortopedistas da in- professor-juiz, do médico-juiz, do educador-
dividualidade” (1977, p. 258), e que não são juiz, do assistente social-juiz, fazendo todos
juízes, professores, contramestres, oficiais reinar a universalidade do normativo e do
ou pais, mas um pouco disso tudo. Agora, o poder normalizador na sociedade moderna.
adestramento dos corpos já não é apenas Isto, considera Foucault, é o funcionamento
observação, é também avaliação contínua do panóptico da sociedade actual. O aparelho
comportamento, um conhecimento de téc- de punição, outra vez, mas agora de acor-
nicas organizado num saber apoiado na me- do com a nova economia do poder. Também
dicina, na educação, na direcção religiosa, e o melhor instrumento para a formação do
aprendido em escolas especializadas. A arte saber de que essa mesma economia tem ne-
das relações do poder e a técnica disciplinar cessidade. O exame, que veio objectivar o
tornam-se “uma disciplina que também tem comportamento humano, levou, então, a que
a sua escola” (id., p. 259). Daí, Foucault con- se passasse da
siderar que a abertura oficial de Mettray, em
era da justiça inquisitória à da justiça exami-
1840, é a data que melhor marca o comple- natória [ao mesmo tempo que deu] lugar às
tamento da formação do sistema carcerário ciências do homem (...). Não quer dizer que
e, mais importante do que isso, marca o nas- da prisão saíram as ciências humanas. Mas se
cimento da psicologia científica. elas puderam formar-se (…) é porque foram
levadas por uma modalidade específica e nova
A partir desta data assiste-se, efectiva- de poder: uma certa política do corpo, uma
mente, a um novo tipo de controle que é certa maneira de tornar dócil e útil a acu-
ao mesmo tempo conhecimento e poder: mulação dos homens (…) o que incluía no-
o controle da normalidade sobre os indi- vos procedimentos de individualização (...). A
rede carcerária constitui uma das armaduras
víduos que resistem à homogeneização e à
desse poder-saber que tornou historicamente
normalização disciplinar, e que é exercido possível as ciências humanas (Foucault, 1977,
pelos profissionais da disciplina, da norma- pp. 266-267).
lidade e da sujeição, fortemente enquadra-
dos pela medicina ou pela psiquiatria, o que
lhes garante cientificidade, e apoiados num Foucault termina interrogando-se, e inter-
aparelho judiciário, o que lhes dá caução le- rogando-nos, sobre se o desafio político ac-
gal. Essa técnica de controle das normas foi tual estará na alternativa-prisão ou em algo
estendendo os seus suportes institucionais de diferente. E adianta a sua convicção: a pri-
e específicos aos hospitais, às escolas, às são, tal como funciona, num regime panópti-
repartições públicas, às empresas privadas. co e numa sociedade como a nossa, não só
Tratava-se, em suma, de normalizar o po- deve ser modificada como é, definitivamen-
der da normalização, de difundir as técnicas te, dispensável.
penitenciárias às disciplinas mais inocentes,
de montar uma rede carcerária subtil, com Em jeito de resumo
instituições e com procedimentos parcela-
res e difusos, de reunir todos os dispositivos Michel Foucault centra no corpo do ho-
disciplinares disseminados pela sociedade e, mem (homem-indivíduo, homem-ser históri-
por último, de os transmitir a todo o corpo co e homem-actor social) todas as formas

Revista Lusófona de Educação


Recensão Crítica
183

de domínio e de manifestação do poder, gação oportuna dos estudos que interessam


bem como a essência das relações sociais. É ao poder; a filosofia, com a imposição das
através da sua subjugação – física, psicológi- ideias e teorias mais convenientes; a psiquia-
ca e moral – através da disciplina de que é tria, com as suas separações e isolamentos;
alvo – disciplina espacial, temporal, corporal a política, através da definição do interesse
no sentido estrito do termo – que o corpo e do bem comuns… são para ele exemplos
enforma a mente, disciplinando e uniformi- do refinamento a que chegaram os meca-
zando os comportamentos e os pensamen- nismos do poder na tentativa de dominar
tos, o que torna mais fácil o domínio por os homens. Ao contrário da ideia corrente
parte de quem detém o poder. e da que se pretende fazer passar, a emer-
Alma sã em corpo são, objectivo já perse- gência destas disciplinas, na sua perspecti-
guido na Antiguidade Clássica pelos gregos va, não representa uma maior humanização
continua a ser, através dos séculos e dos e preocupação com o homem, no sentido
diferentes modelos políticos, aquilo que se da sua libertação individual e colectiva, mas
efectivamente se pretende: chegar à alma, o apurar de estratégias de dominação. Por
ou à mente do homem, através da discipli- isso, entende que aquilo que parecia e podia
na/subjugação do seu corpo, disciplinando-a ser libertador – a modernidade e as ciências
e subjugando-a também: controlar a mente humanas – não passa de um prolongamento
através do controle do corpo. mais “civilizado”, porventura mais eficaz, dos
Dependendo das épocas e dos regimes em espectáculos supliciantes do Antigo Regime
vigor, bem como das tradições, dos usos e e dos encarceramentos do passado.
dos costumes dos povos, assim essa tenta-
tiva de subjugação usou tácticas, estratégias Notas
e técnicas mais ou menos violentas (os su- 1
Rússia – 1769; Prússia – 1780; Pensilvânia e Tosca-
plícios), mais ou menos “viris” (o encarcera- na – 1786; Áustria – 1788; França – 1791, 1808 e
mento), mais ou menos refinadas (a separa- 1810. (p.13).
ção, o isolamento). Com todas se pretendia
2
Proposta de Guillotin, a 1 de Dezembro de 1789:
castigar ou, numa perspectiva mais humani- “A experiência e a razão demonstram que o modo
em uso no passado para decepar a cabeça de um
zada, tratar o diferente até que se rendesse criminoso leva a um suplício mais horrendo que
e acabasse por se tornar igual. A uniformi- a simples privação da vida, que é a intenção for-
zação, a homogeneização, foram e são uto- mal da lei. Para que a execução seja feita num só
pias de qualquer poder, político, económico, instante e de uma só vez (...) é preciso necessa-
riamente, para a certeza do processo, que ele de-
corporativo, social.... penda de meios mecânicos invariáveis, cuja força
As leis, os códigos, as regras, consubstan- e efeito possam ser igualmente determinados. A
ciam o poder judicial e ditam as penas. Po- decapitação será feita num instante, de acordo
dem ser mais ou menos violentas ou mais com a nova lei. Tal aparelho, embora necessário,
ou menos eficazes. Não serão nunca, porém, não causaria nenhuma sensação e mal seria per-
cebido” (p. 18).
alheias às pretensões e aos interesses do 3
Na verdade, a passagem de uma criminalidade de
poder dominante, e serão sempre enforma- sangue para uma criminalidade de fraude, faz parte
das por valores ético-filosóficos. Se assim de todo um mecanismo complexo onde figuram o
não acontecer, o seu pontualismo ditará o desenvolvimento da produção, o aumento das ri-
seu anacronismo, acabando por ditar a sua quezas, uma maior valorização jurídica e moral das
relações de propriedade, métodos de vigilância
falência e a mudança de regime, como vimos
mais rigorosos, um policiamento mais estreito da
acontecer na Europa num passado recente. população, técnicas mais ajustadas de descoberta,
É neste contexto, de tentativa de domí- de captura, de informação: o deslocamento das
nio da individuação do indivíduo que, para práticas ilegais é correlativo de uma extensão e de
Foucault, surgem as ciências sociais e hu- um afinamento das práticas punitivas” (Foucault,
1977, p. 72).
manas: a psicologia, com as suas medições 4
“Que o magistrado pronuncie em voz alta a sua
e categorizações; a sociologia, com as suas
opinião, que seja obrigado a reproduzir, no seu
classificações; a antropologia, com a divul- julgamento, o texto da lei que condena o culpado

Revista Lusófona de Educação


Revista Lusófona de Educação, 10, 2007
184

(...) que os processos que se ocultam misteriosa-


mente na escuridão dos cartórios sejam abertos a
todos os cidadãos que se interessam pelo destino
dos condenados” (p. 88).
5
Haverá em todas as salas de aula lugares determi-
nados para todos os escolares de todas as classes,
de maneira que todos os da mesma classe sejam
colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os
escolares das lições mais adiantadas serão colo-
cados nos bancos mais próximos da parede e em
seguida os outros segundo a ordem das lições
avançando para o meio da sala... Cada um dos alu-
nos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará
nem trocará sem a ordem e o consentimento do
inspector das escolas. Será preciso fazer com que
aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos
fiquem separados dos que são limpos e não os
têm; que um escolar leviano e distraído seja co-
locado entre dois bem comportados e ajuizados,
que o libertino ou fique sozinho ou entre dois
piedosos.” (p. 135).
6
O Panóptico consistia numa construção em anel,
dividida em celas, na periferia, cada uma ocupando
toda a largura da construção. Ao centro, uma tor-
re envidraçada, com grandes janelas que se abriam
para a parte interior do anel. As celas tinham duas
janelas: uma, abrindo para o interior, correspondia
às janelas da torre; outra, dando para o exterior,
permitia que a luz atravessasse a cela de um lado
ao outro. Bastava colocar um vigia na torre cen-
tral para que, devido ao efeito de contra-luz, os
detidos (loucos, doentes, condenados...) fossem
vistos sem verem. Em Lisboa encontramos ainda
em funcionamento dois exemplos deste modelo
arquitectónico: a Penitenciária, famosa estrela de
seis pontas, e o hospital psiquiátrico Miguel Bom-
barda.

Revista Lusófona de Educação

Você também pode gostar