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A IDÉIA surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã e entrou a
amansá-la. Não era propriamente idéia: era o desejo vago de realizar qualquer ação
notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia.
Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros, de
perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas
das esporas dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para trás, preso
debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um
círculo enorme em torno da cabeça.
Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido da mãe,
desejando comunicar-se com ela. Sinha Vitória soltou uma exclamação de
aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.
Retirou-se zangado, encostou-se num esteio do alpendre, achando o mundo todo ruim
e insensato. Dirigiu-se ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando, erguendo os
focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de
A hora do almoço Sinha Vitória repreendeu-o: - Este capeta anda leso. Ergueu-se,
deixou_ a cozinha, foi contemplar as perneiras, o guarda-peito e o gibão pendurados
num torno da sala. Daí marchou para o chiqueiro - e o projeto nasceu. Arredou-se, fez
tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã
e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também.
Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser
Fabiano. Conversando, talvez conseguisse explicar-se. Pôs-se a caminhar, banzeiro, até
que o irmão e Baleia levaram as cabras ao bebedouro. A porteira abriu-se, um fartum
espalhou-se pelos arredores, os chocalhos soaram, a camiSinha de algodão atravessou
o pátio, contornou as pedras onde se atiravam cobras mortas, passou os juazeiros,
desceu a ladeira, alcançou a margem do rio.
Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando o céu cheio de nuvens
brancas. Algumas eram carneirinhos, mas desmanchavam-se e tornavam-se bichos
diferentes. Duas grandes se juntaram - e uma tinha a figura da égua alazã, a outra
representava Fabiano. Baixou os olhos encandeados, esfregou-os, aproximou-se
novamente da ribanceira, distinguiu a massa confusa do rebanho, ouviu as pancadas
dos chifres. Se o bode já tivesse bebido, ele experimentaria decepção. Examinou as
pernas finas, a camiSinha encardida e rasgada. Enxergara viventes no céu,
considerava-se protegido, convencia-se de que forças misteriosas iam ampará-lo.
Boiaria no ar, como um periquito.
2
Viu as nuvens que se desmanchavam no céu azul, embirrou com elas. Interessou-se
pelo vôo dos urubus. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho
um urubu. Sentou-se, apalpou as juntas doídas. Fora sacolejado violentamente,
parecia-lhe que os ossos estavam deslocados. Olhou com raiva o irmão e a cachorra.
Deviam tê-lo prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade : o irmão
ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e
mesquinho, exposto a quedas, coices e marradas.Ergueu-se, arrastou-se com desânimo
até a cerca do bebedouro, encostou-se a ela, o rosto virado para a água barrenta, o
coração esmorecido. Meteu os dedos finos pelo rasgão, coçou o peito magro. O tropel
das cabras perdeu-se na ladeira, a cachorrinha ladrou longe. Como estariam as
nuvens?
Provavelmente algumas se transformavam em carneirinhos, outras eram como bichos
desconhecidos. Lembrou-se de Fabiano e procurou esquecê-lo. Com certeza Fabiano e
Sinha Vitória iam castigá-lo por causa do acidente. Levantou os olhos tímidos. A lua
tinha aparecido, engrossava, acompanhada por uma estrelinha quase invisível. Aquela
hora os Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de milho. Se possuísse
um daqueles periquitos, seria feliz. Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o
gado esvaziara. Uns riachos miúdos marejavam na areia como artérias abertas de
animais. Recordou-se das cabras abatidas a mão de pilão, penduradas de cabeça para
baixo num caibro do copiar, sangrando. Retirou-se. A humilhação atenuou-se pouco a
pouco e morreu.
Precisava entrar em casa, jantar, dormir. E precisava crescer, ficar tão grande como
Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer,
espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru.
Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando
fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas
tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento,
levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim torto,
de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O menino mais
velho e Baleia ficariam admirados.