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O Principezinho

"- Por favor... Prende-me a ti! - acabou finalmente por dizer.


- Eu bem gostava [...], mas não tenho tempo. Tenho amigos por descobrir e uma data
de coisas para conhecer...
- Só conhecemos as coisas que prendemos a nós - disse a raposa. - Os homens, agora,
já não têm tempo para conhecer nada. Compram as coisas já feitas nos vendedores. Mas com
o não há vendedores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, prende-me
a ti!
- E o que é preciso fazer?
- É preciso teres muita paciência, Primeiro sentas-te um bocadinho afastado de mim,
assim, em cima da relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada [.
..] todos os dias te podes sentar um bocadinho mais perto..."
"Principezinho", Saint – Exupéry
Estou cansada, demasiado cansada, exausta. Um nó de sentimentos mora dentro de mim
e não consigo fazer-lhe frente. Não consigo dominá-lo, não consigo ter pensamentos lógico
s, normais. Já foi há um ano, mas nem dei por dia nenhum passar.
Dou-lhe no máximo um mês…
Foi o prazo estabelecido. O Dr. Mendonça dava-lhe um mês de vida. A ele, ao meu bebé.
Eu, que esperei nove meses para conhecer o meu bebé; eu, que tinha vivido cinco an
os perfeitos com ele, tão perfeitos!; eu, que esperava ansiosamente pelo seu prime
iro dia de escola primária, pelo seu crescimento, pelas suas amizades, pelas suas
descobertas… eu dava-lhe a eternidade. Mas agora, a eternidade só podia durar um mês.
Na melhor das hipóteses, claro. Podia durar menos, partir antes do tempo.
Dou-lhe no máximo um mês…
As palavras ecoavam e não me saiam da cabeça, dos ouvidos, da vida. E ali estava o m
eu bebé, sem saber o que se passava, brincando com o seu melhor amigo, como em tod
os os dias. O urso João acalmava-o nas noites de sonhos maus, acompanhara-o na sua
primeira ida ao dentista e viajava sempre ao seu lado no carro, cinto posto e t
udo! Agora, o urso João acalmava-me a mim deste sonho mau. Só queria acordar, abraçar
o meu bebé e saber que aquilo não era real. Mas isso não aconteceu e o mês ia passando.
Cada vez que olhava para ele, tranquilo nas suas brincadeiras, cada vez que pent
eava os seus caracoizinhos louros de anjo, cada vez que o deitava na cama e o ac
onchegava, um sufoco no peito tirava-me a respiração. Não sabia se era a última vez que
ele brincava, ou se o voltaria a pentear e a sentir o seu cabelinho, tal e qual
o cabelo do pai, ou talvez nunca mais o deitasse naqueles lençóis de comboiozinhos o
u mesmo noutros quaisquer.
Não penses na data, amor. Só é pior para ti. Se não soubesses de nada, de certeza que fa
rias a tua vida normal. E mesmo sem data, podia-lhe acontecer alguma coisa. Pode
sempre acontecer qualquer coisa a toda a gente. A diferença é não sabermos quanto tem
po ainda temos. O Miguel continuava a tentar dar-me forças. Dava por mim em pranto
a meio da noite e nunca se cansou de tentar, mesmo que dissesse o mesmo, noites
seguidas. Continua a viver como viveste estes cinco anos. Foram bons. O tempo e
stá a passar, por isso aproveita o tempo que ainda tens com o nosso bebé. Até pode dur
ar mais, não sabes… Agradece estes cinco anos, agradece termos tido a hipótese de o co
nhecer.
Eu não percebia como conseguia ele estar tão calmo. Mas ele era assim e tinha sido e
ssa sua calma que me fizera apaixonar por ele, tinha sido a sua paciência que me f
izera casar com ele seis anos antes.
20 de Março de 2010. O dia amanheceu triste. Menos uma borboleta para celebrar a f
esta da primavera. Bateu as asas e voou para bem longe. Deixou um vazio, como se
sempre tivesse existido, como se eu sempre o conhecera.
Hoje, um ano depois, recomeça a primavera. Eu estou em constante inverno. Mesmo qu
e o sol doire lá fora, cá dentro faz frio, tanto frio! E eu estou cansada de mim. Es
tou cansada de me sentir assim, de não conseguir pensar em mais nada, de não consegu
ir dormir, de não conseguir comer, de não viver. Tenho noção que parei no tempo. Tenho n
oção que me tornei desleixada, que já não sou a companhia certa para o Miguel. Ele conse
gue continuar o caminho. Consegue estar bem, sorrir, ser o Miguel que era, ser o
marido perfeito. Eu não. Mas já nem me importo. Somos companheiros de casa, de vida
e de silêncio. Abraço-o, choro e adormeço. Acordo, choro e abraço-o.
A manhã estava quente e cheia de sol. Fiz a vontade ao Miguel, vim passear. Mal sa
io de casa, as lágrimas começam a turvar-me a vista e respiro fundo. Já chega. Já passou
um ano. Tenho que conseguir continuar. Repito para mim.
O jardim fica a cinco minutos e depressa avisto um banco para me sentar. Casais
jovens, crianças, o carrossel a girar, duas gémeas a saltarem à corda, crianças, os balo
iços a subir, a descer, a subir, a descer, crianças, o escorrega amarelo por onde de
slizam gargalhadas rápidas, crianças… E oh! O meu bebé. Lá está ele a dizer-me adeus com a
zinha, os seus caracóis dourados, lindo, tão lindo, a rir, a outra mão a abraçar o urso
João, os ténis que comprámos quando passámos na montra da loja de desporto. Quero aquele
s ténis mamã, quero jogar à bola com aqueles ténis.
Ai, o meu pé! Olhei para baixo, para ver o que tinha causado aquela dor. Um carrin
ho vermelho estava à minha frente. De onde veio? Não o vi chegar…
- Olá! Desculpa, senhora. Eu estava a brincar com o meu carrinho e ele…
- Margarida? Já não te via há tanto tempo! Lembraste de mim? - claro que me lembrava.
Eu a Maria tínhamos andado juntas nas aulas pré parto e tínhamos ficado amigas. - Já não t
e via desde que fui ver o teu bebé à maternidade, ainda eu estava grávida. Ah, desculp
a… o carrinho do meu filho veio com muita força e ele não conseguiu agarrá-lo.
- Sou o Francisco – cumprimentou ele, estendendo-me a mão.
- É o Francisco. Tem trissomia 21 – a Maria sussurrou a última parte, talvez para o Fr
ancisco não saber o que tem ou o que é.
- Olá, Francisco! – apertei-lhe a mãozita que estava estendida.
- Olha, posso-te pedir um favor? Posso deixar-te com ele cinco minutos? Tenho me
smo que atender esta chamada… Venho já. Francisco, é a amiga da mãe, a Margarida. Porta-
te bem e não saias daí! – e afastou-se, falando ao telemóvel.
- Hum… Queres brincar, Francisco? – não me ocorreu outra pergunta para lhe fazer.
- Sim, pode ser. Olha o meu carro. – Pegou no carro vermelho que chocara com o meu
pé, minutos antes. - É meu amigo, é o meu amigo carro. Diz-lhe olá!
- Olá, carro, amigo do Francisco!
- Não! – ofende-se - Tens que dizer só “olá, amigo”.
- Ah, desculpa! Olá amigo! - cumprimento o carro.
- Ouviste? – aponta com o dedo indicador para o carro.
- O quê? - tento escutar, mas nem sei o quê.
- Ele disse-te “olá”!
- Ah isso, claro que ouvi! - descobriria ele a minha mentira?
- Ele voa, sabes? Estás a ver o céu? O meu carro às vezes anda lá, muito aaaaalto. Tu já lá
foste, não já?
- Onde? Ao céu? – já não estava a perceber nada daquela conversa.
- Sim! Nunca lá foste?! - parece surpreendidíssimo comigo - Eu sou pequeno e já voei.
Tu és grande e nunca voaste? – e nem me olha mais. Eu devia ser agora uma criatura m
uito estranha para ele. O Francisco corre à volta do banco, senta-se na relva, faz
barulhos, rugidos, ruídos, sirenes, sempre a segurar o carro pelo ar. - Viste? O
meu amigo adora voar! Como eu!
- E como se voa? Achas que me podes ensinar?
- Claro! É mesmo, mesmo fácil! Fechas os dois olhos… – as suas pálpebras fecham, em demons
tração. Abre um olho para se certificar que eu estava mesmo a seguir a lição. – Fechas os
olhos e vês de olhos fechados.
Pratico um pouco, em silêncio. Sem resultado! Não querendo dar parte de fraca, finjo
que consegui.
- Ah, obrigada, professor Francisco! Vou tentar mais, prometo!
- Pronto, já voltei! - anuncia ofegante a Maria - Chateou muito? Tentei ser rápida.
Bem, temos que ir almoçar, Sr. Francisco. Dá um beijinho à Margarida. Temos que combin
ar alguma coisa, um dia destes.
- Amiga, podes vir brincar comigo amanhã? - os seus olhos fixam-me, aguardando a m
inha resposta.
- Amanhã sei se posso, Francisco, mas prometo que um dia destes brincamos outra ve
z.
- Está bem. Agora vou papar, a minha barriga tem fome. Adeus!
- Adeus, amigo! Obrigada! – sussurrei. Não sei se terá ouvido.
Joana Farinha Marques Maria,
n 40580

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


Escrita Criativa

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