Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Breves reflexões
Noutra passagem da Carta de 1988 ressoa essa mesma decisão. É o que se pode
concluir do tratamento conferido às comunidades indígenas, agora protagonistas de
capítulo autônomo da Constituição Federal, onde se positiva salvaguarda análoga,
direcionada à tutela dos "costumes, línguas, crenças e tradições", elementos
indissociáveis da identidade desses povos e tidos como fundamentais, por extensão, à
garantia da continuidade de sua existência como tal (art. 231 da CF) (5).
A norma do art. 216 se estrutura, portanto, como autêntica cláusula geral que
vocaliza o reconhecimento e a garantia do patrimônio cultural brasileiro, incidindo
indistintamente sobre todas as formas de manifestação que atendam ao requisito
valorativo previsto naquele dispositivo, em harmonia com a noção de patrimônio
cultural imaterial concebida na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial, da UNESCO, firmada em 17 de outubro de 2003, em Paris. (6)
Leciona Sandra Cureau (14) que o valor dos inventários no esforço de preservação
do patrimônio cultural é reconhecido no plano internacional, como se observa da
legislação de diversos países em que é reconhecido e manejado como fundamental
instrumento de catalogação de bens com vistas a seu posterior acautelamento.
Certo é que o estabelecimento de disciplina própria para esse tema não pode ser
postergado: é que, em contraposição ao vácuo legislativo no campo da disciplina desses
direitos, a política oficial de preservação cultural vigente tende a conduzir,
inexoravelmente, ao impulsionamento das atividades de inventário e registro, espargidas
pelas várias estruturas do Poder Público e da sociedade civil, suscitando questões dessa
ordem (20).
O art. 216 da Constituição Federal de 1988 assentou essa opção e encontrou eco
na aludida Carta de Fortaleza, a qual recomendou que "o IPHAN, através de seu
Departamento de Identificação e Documentação, promova, juntamente com outras
unidades vinculadas ao Ministério da Cultura, a realização do inventário desses bens
culturais em âmbito nacional, em parceria com instituições estaduais e municipais de
cultura, órgãos de pesquisa, meios de comunicação e outros" (21).
Não por outro motivo, entidades estaduais congêneres do IPHAN têm seguido
postura similar, estabelecendo e divulgando metodologias de inventário que visam à
produção descentralizada e capilarizada de conhecimento sobre o acervo cultural
imaterial brasileiro (23).
Como seu exame escapa à proposta deste trabalho, destacam-se aqueles que
reclamam maior destaque: 1) tombamento e desapropriação de imóvel que, por tradição,
acolha manifestações culturais constitucionalmente qualificadas (Decreto-Lei nº 25/37 e
Decreto-Lei nº 3.365/41); 2) exercício do poder de polícia administrativa assegurando
sua preservação; 3) políticas específicas de parcelamento do solo, zoneamento urbano,
transferência do direito de construir, operações urbanas consorciadas, outorga onerosa
do direito de construir, previsão de exercício do direito de preempção e orçamento
participativo, privilegiando áreas onde situados imóveis associados a bens culturais
imateriais (art. 4º da Lei nº 10.257/2000); 4) renúncia fiscal de Imposto Predial e
Territorial Urbano; 5) inclusão, como critério de repartição de receitas tributárias, da
adoção de medidas de preservação cultural pelo ente federativo destinatário; 6)
programas de financiamento de ações das organizações não-governamentais e demais
segmentos da sociedade civil direcionadas à preservação do patrimônio cultural. (29)
11. CONCLUSÔES:
8.O Ministério Público, pela missão institucional que lhe foi assinada, legitima-
se a requerer ou recomendar a instauração de procedimento tendente ao registro de bem
cultural imaterial.
NOTAS
1
A Constituição Federal de 1934 estabeleceu proteção pelo Poder Público às
"belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a
evasão de obras de arte", bem como dos "objetos de interesse histórico e o patrimônio
artístico do País" (arts. 10, III e 148). A Constituição outorgada em 1937 previu que "os
monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais
particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da
Nação, dos Estados e dos Municípios" (art. 134). A Carta de 1946 daí não se afastou, ao
dispor que "as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem
como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza
ficam sob a proteção do Poder Público" (art. 175). A Carta de 1967, em dispositivo
reposicionado pela EC nº 01/1969, seguiu similar orientação, protegendo "os
documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as
paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas (arts. 172, parágrafo
único e 180, parágrafo único).
2
Embora o anteprojeto do Decreto-Lei nº 25/37, de autoria de Mário de Andrade,
já propusesse o tombamento de manifestações folclóricas ameríndias e não-ameríndias,
de notório cunho imaterial. A ousada proposta não prevaleceu na redação final.
3
Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2001,
p. 30.
4
Ob. cit., p. 31.
5
No plano da legislação ordinária, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) impõe ao
Poder Público garantir às comunidades indígenas a "livre escolha de seus meios de
vida" (art. 2º, IV) e o respeito aos "valores culturais, tradições, usos e costumes" (art. 2º,
VI).
6
Ainda pendente de ratificação por número suficiente de países para entrar em
vigor. Disponível em http://erc.unesco.org/cp/convention.asp?KO=17116&language=E.
Acesso em 23.12.2004.
7
Em <http://www.iphan.gov.br/bens/P.%20Imaterial/imaterial.htm>. Acesso em
23.12.2004.
8
A Convenção de 2003 reflete avanço similar no terreno internacional, ampliando
o conceito de patrimônio cultural emergente da Convenção relativa à Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972.
9
Direito Ambiental e patrimônio cultural: direito à preservação da memória, ação e
identidade do povo brasileiro. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p.98.
10
Direito Ambiental Brasileiro. 11ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2003, p.
873.
11
"Diretrizes para proteção do patrimônio – sobre cultura e patrimônio cultural".
Disponível em http://www.iepha.mg.gov.br/sobre_cultura.htm. Acesso em 22.12.2004.
12
Seguem-se à legislação federal normas similares no plano estadual. O Decreto nº
42.505/2002, editado pelo governo de Minas Gerais, é mostra evidente dessa orientação.
13
Não se pretende abordar aqui a atividade conservativa protagonizada pela
própria comunidade produtora, destinatária ou espectadora da manifestação cultural,
agente principal do processo e senhora, em última análise, da decisão de perpetuar ou
não o bem cultural imaterial que a ela se relaciona.
14
"Algumas notas sobre a proteção do patrimônio cultural", in Boletim Científico
da ESMPU, Brasília, a. II – n. 9, p. 193 – out./dez. 2003.
15
"Art. 12. 1. To ensure identification with a view to safeguarding, each State
Party shall draw up, in a manner geared to its own situation, one or more inventories of
the intangible cultural heritage present in its territory. These inventories shall be
regularly updated."
16
Curiosamente, o Decreto nº 3.551/2000, que "institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro", não
prevê as formas de manifestação lingüísticas como passíveis de inscrição no Livro de
Registro das Formas de Expressão. Como há previsão de abertura de livros relacionados
a outras manifestações, é evidente a possibilidade de sua inclusão no Registro.
17
Luis da Câmara Cascudo, 1952, apud ARAÚJO, Alceu Maynard, Folclore
Nacional III – Ritos, sabença, linguagem, artes populares e técnicas tradicionais. 3ª ed.
São Paulo: Martins Fontes (Coleção Raízes), 2004, p. 174. Para breve resenha
illustrativa de manifestações orais e gestuais típicas em comunidades, idem, pp. 173-
257.
18
A possibilidade de aproveitamento industrial, comercial, artístico e turístico de
conhecimentos que se ligam a especiais modos de fazer e criar, bem como as formas de
expressão, são exemplos acabados da relevância dessa prospecção.
19
A propósito: SANTILLI, Juliana. Conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade: elementos para a construção de um regime jurídico sui generis de
proteção, in Diversidade Biológica e Conhecimentos tradicionais. Marcelo Dias Varella
e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp.
341/369 (Coleção Direito Ambiental).
20
Os membros da Comissão e do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial,
responsáveis pela concepção do Decreto nº 3551/00, anteviam a necessidade de
regulamentação específica da matéria. A propósito: "O registro do patrimônio imaterial
– Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio
Imaterial, Ministério da Cultura/IPHAN/Fundação Nacional de Arte – Brasília, 2000".
Atualmente o IPHAN exige, para a instauração do procedimento de registro, a formal
anuência de representante da comunidade produtora do bem, ou de seus membros.
21
Disponível em http://www.iphan.gov.br/legislac/cartaspatrimoniais/fortaleza-
97.htm. Acesso em 27.12.2004.
22
Disponível em http://portal.unesco.org/en/ev.php-
URL_ID=17716&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html. Acesso em
29.12.2004.
23
Como o IEPHA/MG. Disponível em
http://www.iepha.mg.gov.br/diretrizes_ipac.htm. Acesso em 27.12.2004.
24
O registro de determinado bem imóvel no Livro de Lugares não se confunde
com o tombamento. Trata-se de institutos jurídicos autônomos e distintos, pelo que não
necessariamente o bem cultural inscrito em Livro preencherá os requisitos para ser
tombado. É possível a possível dualidade de tutelas, do que parece ser exemplo o
Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, o qual, a par do inegável valor histórico-
arquitetônico que possui, hospeda tradicional feira da capital paraense.
25
São diretrizes da política de fomento do PNPI: 1) promover a inclusão social e a
melhoria das condições de vida de produtores e detentores do patrimônio cultural
imaterial; 2) ampliar a participação dos grupos que produzem, transmitem e atualizam
manifestações culturais de natureza imaterial nos projetos de preservação e valorização
desse patrimônio; 3) promover a salvaguarda de bens culturais imateriais por meio do
apoio às condições materiais que propiciam sua existência, bem como pela ampliação
do acesso aos benefícios gerados por essa preservação; 4) implementar mecanismos
para a efetiva proteção de bens culturais imateriais em situação de risco.
26
Art. 2o São partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro:
§ 3o A instrução dos processos poderá ser feita por outros órgãos do Ministério
da Cultura, pelas unidades do IPHAN ou por entidade, pública ou privada, que detenha
conhecimentos específicos sobre a matéria, nos termos do regulamento a ser expedido
pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
27
Sobre o tema, por todos: MILARÉ, Édis, ob. cit., pp. 284/285 (em especial, nota
186).
28
Disponível em
http://www.iphan.gov.br/bens/P.%20Imaterial/imaterial.htm#registro. Acesso em
27.12.2004.
29
Consultem-se, a propósito, MILARÉ, Édis, ob. cit., pp. 285/286 e 289/290 e
PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte: Del
Rey, 1994, pp.267/274.
BIBLIOGRAFIA
Sobre o autor
Antônio Arthur Barros Mendes
E-mail: [ não disponível ]
Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº633 (2.4.2005)
Elaborado em 03.2005.
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico
publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
MENDES, Antônio Arthur Barros. A tutela do patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Breves reflexões. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 633, 2 abr. 2005. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6543>. Acesso em: 21 abr.
2010.