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Cap.

2 – A Argumentação, o Orador e o seu Auditório

“O fim de uma argumentação não é deduzir consequências de certas


premissas, mas provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que
se apresentam ao seu assentimento.” (pág. 29)

Cap. 3 – As Premissas da Argumentação

“ [...] o orador que queira agir eficazmente pelo seu discurso deve adaptar-se
ao seu auditório” (p. 41).
“Em que consiste esta adaptação[,] que é uma exigência específica da
argumentação? Essencialmente, em o orador só poder escolher, como ponto
de partida do seu raciocínio[,] teses admitidas por aqueles a quem se dirige.
Com efeito, a finalidade da argumentação não é, como a da demonstração,
provar a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas, mas
transferir para as conclusões a adesão concedida às premissas. Arriscando-se
a fracassar na sua missão, o orador só deverá partir de premissas que
beneficiem de uma adesão suficiente: se esta o não for, a primeira
preocupação daquele que quer persuadir deve ser a de a reforçar por todos os
meios de que dispõe, pois a transferência da adesão só se realiza pelo
estabelecimento de uma solidariedade entre as premissas e as teses que se
esforça por fazer admitir.” (p. 41)

Se tentarmos argumentar com base em premissas que o nosso auditório não


perfilha, incorremos numa “petição de princípio”.
“Aquele que, na sua argumentação, não se preocupa com a adesão do
auditório às premissas do seu discurso comete a mais grave das faltas: a
petição de princípio.” (p. 41-2)

“Entre os objectos de acordo dos quais o orador tirará o ponto de partida do


seu discurso, há que distinguir os que incidem sobre o real [...] e aqueles que
incidem sobre o preferível [...].”

As premissas ancoradas no real são as que dizem respeito a factos e verdades.

As premissas ancoradas no preferível são as que dizem respeito a valores e a


hierarquias.

O que daqui resulta é que numa argumentação tem de se partir de um


consenso (ou então será preciso construir esse consenso) relativamente aos
factos, às verdades, aos valores e às hierarquias.

Cap. 4 – Escolha, Presença e Argumentação

“É [...] de entre as teses admitidas pelo seu auditório que o orador que
argumenta deverá colher as suas premissas: ele deverá, inevitavelmente,
proceder a uma escolha.
Toda a argumentação implica uma selecção prévia, selecção de factos e
valores, a sua descrição de uma forma particular, numa certa linguagem e
com uma insistência que varia consoante a importância que se lhes confere.”
(p. 54)

“A escolha de certos elementos, sustentados e apresentados num discurso,


trá-los para o primeiro plano da consciência, dando-lhes, com isso, uma
presença que impede negligenciá-los.” (55)

“É [...] indubitável que, para criar a presença, é útil insistir demoradamente


em determinados elementos [...]: prolongando a atenção que se lhes dispensa,
aumenta-se-lhes a presença na consciência dos auditores; estendendo-se
sobre um assunto cria-se neles a emoção procurada. Diversas técnicas foram
recomendadas, para este efeito, pelos mestres de retórica. A insistência pode
resultar da repetição, da acumulação de detalhes, da acentuação de certas
passagens. Tratar-se-á um assunto, primeiro de forma sintética, depois pela
enumeração das partes. [...] Esta técnica para desenvolver um assunto
recebeu, na teoria retórica, o nome de amplificação. Trata-se de uma figura de
retórica que utiliza, procurando criar a presença, a divisão de um todo nas
suas partes, e dela falaremos mais adiante como esquema argumentativo.”
(57).

[Salta-se o capítulo 5]

Cap. 6 – As Técnicas Argumentativas

Há três grandes tipos de argumentos: os argumentos quase lógicos, os


argumentos fundados sobre a estrutura do real e os argumentos que
fundam a estrutura do real.

Os argumentos quase lógicos são aqueles que se assemelham a raciocínios de


natureza lógica ou matemática.

“Tomemos o argumento por divisão, no qual se tira uma conc1usão sobre o


todo depois de se ter raciocinado sobre cada uma das partes. Assim se
procurará mostrar que, não tendo o acusado agido, nem por ciúme, nem por
ódio, nem por cupidez, não tinha nenhum motivo para matar.
Este raciocínio lembra a divisão de uma superfície em partes: o que não se
encontra em nenhuma das partes também não se encontra no espaço
subdividido.
Mas, para que o argumento produza efeito, é necessário que a enumeração
das partes tenha sido exaustiva [...].” (p. 69)

Procede-se assim a uma espécie de espacialização do real. Isto projecta


também uma capacidade de compreensão analítica da realidade por parte do
orador.

“Os argumentos fundados sobre a estrutura do real baseiam-se em ligações


que existem entre elementos do real.
A crença na existência de tais estruturas objectivas pode incidir sobre
realidades variadas; relações de causalidade, de essências de que certos
fenómenos não seriam senão a manifestação; o que interessa é a existência
de acordos seu respeito, que não se põem em causa, e a partir dos quais o
orador desenvolverá a sua argumentação.” (p. 69)

“Os argumentos que fundam a estrutura do real são os que, a partir de um


caso conhecido, permitem estabelecer um precedente, um modelo ou uma
regra geral, como os raciocínios pelo modelo ou pelo exemplo. ” (p. 70)

Cap. 7 – Os Argumentos Quase Lógicos


Os argumentos quase lógicos são aqueles que se aparentam com os raciocínios
formais, lógico-matemáticos.

A Incompatibilidade: estamos perante uma incompatibilidade “quando uma


regra afirmada, uma tese sustentada, uma atitude adoptada acarreta, num
determinado caso, sem que se queira, um conflito, seja com uma tese ou uma
regra afirmada anteriormente, seja com uma tese geralmente admitida e à qual,
como qualquer membro do grupo, é suposto aderirmos.” (pág. 74). E acrescenta
Perelman: “É ridículo aquele que, sem disso se dar conta, é levado à
incompatibilidade. O riso sanciona a sua cegueira”.
Se a imprensa política é assim harmónica na exposição da doutrina, nem
sempre o é na apreciação dos factos.
Assim, por exemplo, o ministério Fulano propõe em cortes : – que, atentos os
serviços da ostra, o Governo seja autorizado a declarar que se considera para com
a ostra como um verdadeiro pai.
Então os jornais Fulanistas exclamam: «O Governo acaba de se declarar pai
da ostra. Medida de grande alcance! E uma garantia para a ordem, um penhor
solene de zelo pelos serviços públicos. Quando um Governo assim procede, pode-
se dizer que ampara com mão segura o leme do Estado!»
Mas no dia imediato, por qualquer coisa, o ministério Fulano cai. Sobe o
ministério Sicrano, e logo em seguida propõe em cortes: – que de ora em diante,
atentas grandes vantagens para a causa pública, o Governo se declare para todos
os efeitos em relação à ostra, mais que um pai, uma verdadeira mãe!
Dizem os mesmos jornais Fulanistas: «O ministério ominoso, que com mão
tão incerta dirige o leme da coisa pública, declarou-se mãe da ostra. É mostrar um
profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um ministério assim
pratica é que vai no caminho da anarquia, e nos leva direitos ao abismo!» (Farpa I)
A Definição: Sempre que uma noção possa ser definida de várias maneiras,
definir será efectuar uma escolha que não poderá ser admitida sem discussão, a
menos que não tenha qualquer consequência para o raciocínio. Se, pelo contrário,
uma definição orienta o raciocínio, ela deve ser justificada.
A Regra da Justiça: “Segundo a definição de Leibniz, dois seres, a e b, são
idênticos se toda a afirmação relativa a um deles for equivalente a uma
afirmação relativa ao outro. Daqui resulta que seria racional tratar da mesma
maneira seres idênticos, pois não existe nenhuma razão para as tratar de
maneira diferente.” (pág. 83). A regra da justiça aplica-se a seres que, ainda
que não idênticos integralmente, têm uma identidade essencial no aspecto
que estiver em causa. Assim, “os seres de uma mesma categoria essencial
devem ser tratados da mesma forma” (pág. 84).
No folhetim do Diário Popular de 24 de Junho lêem-se notáveis considerações
de ordem moral. São em verso. O poeta dirige-se, na sua declamação solitária, a
uma mulher.
Numa prosa anterior (prelúdio) escreve que a missão da arte é ensinar a
amar (!) – e que na arte não entra realidade, justiça ou moral pública porque
(acrescenta) a arte nada tem com os direitos civis. Colocado assim à larga, na
anarquia da voluptuosidade e do lirismo, aí está o que o poeta expõe e ensina num
jornal popular, com uma tiragem de 20000 exemplares, que anda por cima das
mesas e nos cestos de costura!
Começa por dizer:
– Que é bom amar no campo, à tarde e a sós!
Depois continua:
– Que prefere o campo, porque nas salas do mundo não lhe é dado beijar a
mão dela às largas! Que o campo é livre e as sombras um refúgio!...
Por fim acrescenta:
– Que queria que os raios cintilantes os cingissem a ele só com ela, erguidos
em êxtase, longe de tudo o que é vil...
(Quanto é vil, na gíria da poesia lírica, é o mundo real, a família, o trabalho, as
ocupações domésticas, etc.).
Dispensamo-nos de citar mais estrofes lascivas.
Aquelas bastam para legitimar as seguintes afirmações:
Nenhum jornal publicaria semelhantes teorias em prosa;
Nenhum homem que as escrevesse ousaria lê-las a sua filha, sem gaguejar, e
sem comer as palavras;
Nenhuma senhora que por acaso as tivesse lido ousaria citá-las.
Como se consente então a sua publicação em verso?
A higiene não é só a regularização salutar das condições de vida física; nela
devem também entrar os factos da moralidade. Se é proibido que um monturo
imundo ou um cão morto corrompam o ar respirável das ruas – porque há-de ser
permitido que um poeta, com as suas endechas podres, perturbe o pudor e a
tranquilidade virgem?
Há uma postura da Câmara que impõe uma multa a quem pronuncia palavras
desonestas: porque não há-de ser igualmente proibido publicar ideias desonestas?
Um ébrio, um pobre homem a quem se não deu educação, a quem se não
pode dar leitura, a quem quase se não dá trabalho, diz uma praga numa rua,
ouvida apenas de três ou quatro pessoas, e vai para a cadeia ou paga uma multa
de 3$000 réis. Um poeta lírico, esclarecido, aprovado nos seus exames,
empregado nas secretarias, publica num jornal de cinquenta mil leitores, em letra
impressa, permanente e indelével, uma série de desonestidades, e é apreciado,
cumprimentado no Martinho, indigitado para uma candidatura!
Pedimos pois:
Ou que seja permitido livremente dizer na rua e no jornal pragas e
desonestidades;
Ou que a multa da Câmara Municipal seja aplicada a todos – e que tanto o
ébrio que não sabe o que diz à esquina de uma rua, como o poeta lírico que
escreve, com reflexão e rascunho de uma semana, ao canto de um jornal, paguem
os 3$000 réis à Câmara, um pela sua praga, outro pela sua endecha. (Farpa IX)
A Transitividade: Entende-se por transitividade a propriedade formal de uma
relação que permite passar da afirmação de que ela existe entre um termo e
um segundo, e entre este segundo termo e um terceiro, para a conclusão de
que ela existe entre o primeiro termo e o terceiro. A relação aRc é sempre
verdadeira quando são verdadeiras as premissas aRb e bRc.
De modo que a opinião liberal, que no parlamento protestou ser católica
apostólica romana, censurando a defesa do poder temporal, censura a defesa do
catolicismo e a defesa da unidade. E através dos seus protestos ortodoxos mostra-
se inimiga do catolicismo – por consequência inimiga do cristianismo, porque o
catolicismo é a expressão mais lógica do cristianismo – por consequência inimiga
da religião, porque o cristianismo é a expressão mais lógica do conceito religioso.
(Farpa V)

A Inclusão: «A inclusão da parte no todo permite dizer que o todo é maior que
cada uma das suas partes. O que é verdade demonstrável em aritmética e em
geometria toma-se argumento quase lógico se dele se tiram consequências do
tipo «o todo vale mais que uma parte» ou «o que não é permitido ao todo não
permitido à parte», «quem pode o mais pode o menos» em que “o menos” é
considerado como uma parte do todo que é “o mais”.» (pág. 89).
Pois quê! Podem ler-se nas Bibliotecas e no Grémio, jornais republicanos,
jornais da Comuna, toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas –
e não há-de ser permitido falar do que há de mais abstracto na política, de mais
estranho e superior às agitações humanas e às violências partidárias, a História?
Pois é permitido à Nação publicar, em prosa impressa e permanente, ataques
rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucional – e não pode ser
permitido ao Sr. Antero condenar as monarquias absolutas, e ao Sr. Soromenho
condenar os romances eróticos? Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a
sua política, e não é permitido a um conferente do Casino fazer a crítica da política
dos jesuítas?
Argumentemos! Eu posso comprar um livro de Proudhon que combate o
catolicismo, as monarquias, o capital: estou na legalidade. Posso lê-lo em voz alta
aos meus amigos, ou aos meus criados: estou nos limites da Carta. Posso decorá-
lo: haverá alguma lei que me proíba este exercício de memória? Posso recitá-lo, à
luz do Sol ou à luz do gás, com gestos moderados ou com gestos descompostos:
tudo isto é legal. Que eu trate no Casino de algum dos pontos de que se ocupa
esse livro, proíbem-mo! (Farpa XII)

A Divisão: v. supra.
Aqui está esta pobre Carta Constitucional que declara com ingenuidade que o
País é católico e monárquico. É por isso talvez que ninguém crê na religião, e que
ninguém crê na realeza! E que ninguém crê em ti, ó Carta Constitucional! Os
ministros que te defendem, os jornais que te citam, os jurisconsultos que te
comentam, os professores que te ensinam, as autoridades que te realizam, os
padres que falam em ti à missa conventual, aqueles mesmos cuja única profissão
era crer em ti, todos te renegam, e, ganhando o seu pão em teu nome,
ridicularizam-te pelas mesas dos botequins! (Farpa I)
O País está desorganizado: esta certeza é dada pelas discussões do
parlamento, pelos relatórios dos ministros, pelas afirmações da imprensa, pelas
conversações dos cidadãos. (Farpa XIV)
Os Pesos e Medidas: «Enquanto numa pesagem ou numa medição real a escala
de medida é neutra e invariável, as comparações de qualquer espécie sofrem o
contra-golpe do termo de comparação escolhido, pois os dois termos são, pela
própria comparação, reunidos numa mesma classe, tornando-se, por isso, mais ou
menos homogéneos. Dizer de um escritor que ele é inferior a um reputado mestre,
ou que é superior a uma nulidade patente, é exprimir, em qualquer dos casos, um
juízo defensável, mas cujo alcance é bem diferente.
Este efeito não escapou a Bossuet, que o sublinha expressamente: «[...] os
soberanos piedosos pretendem que toda a sua glória se apague perante a de
Deus; e bem longe de se ofenderem por esta perspectiva lhes diminuir o poder,
sabem que nunca serão tão profundamente venerados como quando só forem
rebaixados se comparados com Deus». Aproximando entre si dois termos bem
distantes, eleva-se o termo inferior, mas rebaixando em certa medida o superior.
Donde a superioridade do que é incomparável, daquele que não pode ser
comparado senão a si próprio, do que se considera único.” (pág. 93)
A revolução aparece ao mundo conservador, como o cristianismo ao mundo
sofista. Os sofistas tinham tomado o partido de rir daqueles nazarenos. É o que faz
agora o periódico a Nação, quando se trata da revolução. Não és original, ó Nação!
(Farpa III)

8. Os Argumentos Baseados na Estrutura do Real

A maior parte dos argumentos fundados no real apelam para relações de


sucessão, como a relação de causa-efeito, ou para relações de coexistência, como
a relação entre a pessoa e os seus actos.
Relações de sucessão:
A relação causal é, por assim dizer, o protótipo da relação de sucessão. Dado um
acontecimento procura-se encontrar uma ou várias causas antecedentes que o
determinam. Por outro lado, pode-se igualmente pensar nas consequências de
uma determinada medida.

[Os deputados rejeitam uma proposta de revisão da Carta: embora reconheçam que essa reforma é
necessária, consideram-ma inoportuna]
Vós o que não quereis é nenhuma reforma da Carta! O que tentais evitar é
que intervenha na vossa política a força da opinião popular! E sabeis porquê?
Porque se a democracia, mesmo sob a forma monárquica, tivesse o seu advento –
as vossas doces e rendosas sinecuras ficariam estateladas no chão! E vós quereis
ouvir Bellini em S. Carlos, e tomar sorvetes no Verão com sossego! Eis aí!
Ah! vós dizeis que amais o progresso. Amais o progresso que vos inventa
cadeiras mais cómodas; o progresso que vos monta operetas de Offenbach para
acompanhar alegremente a digestão do jantar; o progresso que descobre
melhores limas para cortardes os calos! Esse progresso decerto o amais! Mas o
que não amais é o progresso político, porque esse traria uma ordem de coisas que
extinguiria os vossos ordenados, levantaria as vossas décimas sonegadas,
transtornaria as vossas posições; – isto é, este progresso tirar-vos-ia os meios de
poderdes gozar o outro. E aí está o que vós não quereis, amáveis bandidos! (Farpa
XXI)

[O marquês de Ávila decretou o encerramento das Conferências do Casino]


Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a
adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa...
E achas certamente na tua consciência que este acto do sr. marquês de Ávila,
não tendo de certo modo equidade, não tem de modo algum legalidade; que é
sobretudo profundamente inábil; e que o sr. Marquês, dando um golpe de Estado
contra alguns escritores que no Casino faziam crítica de história e de literatura, foi
criar uma atitude política onde só havia um intuito científico. (Farpa XII)

Sublinho o argumento pragmático: “é aquele que permite apreciar um facto pelas


suas consequências” (98). As consequências podem ser observadas ou previstas,
asseguradas ou presumidas.
[...] sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX – e
vendamos as colónias.
Sim, sim! bem sabemos! a honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama,
etc.! Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de um fidalgo (quando os
havia) que deixasse em redor dele seus filhos na fome e na imundície – para não
vender as salvas de prata que foram de seus avós? Todos diriam que era um
imbecil canalha!
Pois bem, estes 4 milhões de portugueses são os filhos esfomeados do
Estado, para quem as colónias estão como velhas salvas de família postas a um
canto num armário. E hesitará o Estado em as vender? Sobretudo quando temos
de as perder? Se o País se pudesse reorganizar – bem! As colónias seriam no
futuro uma força. Mas assim! com esta decadência progressiva, irremissível...
(Farpa XVIII)

Relações de coexistência:
Estabelecem um vínculo entre realidades de nível desigual, das quais uma é
apresentada como expressão ou manifestação da outra, como a relação entre
uma pessoa e as suas acções, os seus juízos ou as suas obras.
Sublinho o argumento de autoridade: «O argumento de autoridade só tem
interesse na ausência de prova demonstrativa». «As autoridades invocadas são
muito variáveis: tanto pode ser “parecer unânime” ou “a opinião comum”, como
certas categorias de homens, “os cientistas”, “os filósofos”, “os Padres da Igreja”
“os profetas”; por vezes, a autoridade será impessoal: “a física”, “a doutrina”, “a
religião”, “a Bíblia”; outras vezes, tratar-se-á de autoridades explicitamente
nomeadas» (p. 109).

A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O


homem é “profundamente filho da mulher”, disse Michelet.

9. A Argumentação pelo Exemplo, a Ilustração e o Modelo


(Argumentos que Fundam a Estrutura do Real)

Neste tipo de argumentação um caso particular é utilizado para estabelecer aquilo


que se acredita ser uma estrutura do real socialmente construído. Mas há que
distinguir variantes deste tipo de argumento:
O exemplo pretende generalizar estabelecendo uma regra a partir de um caso
concreto.
Depois, o soldado índio, mal ouve o nome de paqueló – treme. Aí vem o
paqueló – foge! Vê o paqueló – atira-se de bruços, já moribundo.
Há tempos, em Mapuçá, um regimento de 400 praças revoltou-se. Sai para a
rua e vem fazer babadé para defronte da casa do comandante. O comandante, à
janela, em chinelas, tomava café, e entre os goles, vagarosamente sorvidos,
exclamava para o regimento insurgido:
– Ah! vocês revoltaram-se?
Depois para dentro, ao criado:
– Mais açúcar!
E continuava:
– Bem, eu já vos falo. – Uma colher! – Assim é que estais disciplinados,
velhacos?
– Dá cá o cachimbo! – Ora deixai estar que os paquelós aí vêm! – lume!...
O regimento hesitava. Nisto aparece, numa pequena elevação, a distância, o
tenente Bruno de Magalhães, que vinha, com 20 paquelós, bater os 400
revoltosos. Os 400 revoltosos, só com ver ao longe os 20 paquelós, debandaram
aos gritos. Nem mesmo se chegou nunca a saber por que se tinham revoltado!
(Farpa XXXIV)

A ilustração como argumento procura reforçar a adesão à crença numa regra já


estabelecida. Ilustra-se a regra com casos particulares que tomam a regra mais
presente. “Os exemplo servem para provar a regra, as ilustrações para a tornar
clara”.
Escrevemos no primeiro número das Farpas: «As sessões da Câmara não têm
seriedade. Aí reinam o tumulto, a confusão..., etc.»
Uma nova justificação desta verdade apareceu na sessão do dia 29.
O sr. presidente do Conselho falava. Houve um momento em que S. Exª, ou
cometeu um erro de gramática, segundo o dizer de alguns jornais, ou arremessou
desdenhosamente à circulação a eloquente palavra bomba, segundo a afirmação
de outros. O facto é que a maioria entendeu que a melhor maneira de manifestar
ao sr. presidente do Conselho que não tinha confiança na sua política, era apupá-
lo! E a Pátria deve agradecer aos senhores deputados que eles não lhe tivessem
dado bengaladas! (Farpa XV)

O uso do modelo na argumentação propõe a sua imitação. O comportamento de


um grande homem é frequentemente utilizado como modelo que se pretende
deve suscitar a imitação: “o valor da pessoa, previamente reconhecido, constitui a
premissa de onde se tirará uma conclusão preconizando um comportamento
particular”

Jesus, quando não sofria ainda aquela áspera melancolia que lhe deu mais
tarde a presença de Jerusalém branca e dura, era um meigo rabi, que percorria
perpetuamente, no infinito enlevo do seu sonho, a sua tranquila e humana Galileia,
ora a pé, ora num desses pequenos burros que têm os olhos tão grandes e tão
doces e que vêm da alta Síria. Entrava nas sinagogas; e, comentando os velhos
papiros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casais, sentava-se às portas,
sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sicômoros. As mulheres
davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: – «fala, rabi, fala!» As crianças tomavam-
lhe as mãos, ou puxando-lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por
uma corda da pele de camelo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discípulos
afastavam as crianças. Mas o Mestre murmurava sorrindo:
– Deixai vir ter comigo as crianças, abençoadas são elas! Elas sabem muitos
segredos que os sábios ignoram.
Parece que ultimamente o clero não tem esta consoladora ideia de Jesus. O
Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, no dia de Finados, depois da missa
conventual, paramentado, sobre o degrau do altar, voltou-se para o povo, e
repreendeu as mães que levavam consigo as crianças à missa! E aí estão enfim as
crianças expulsas da Igreja, não podendo ao menos ir uma vez por semana erguer
as suas pequeninas mãos para aquele que foi outrora, nas sombras da Galileia, o
seu amigo imortal!

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