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Os tropeços da razão

"A geografia do progresso é cheia de


grotões sombrios, nos quais ainda impera
o espírito da Inquisição. E na topografia
brasileira há muitos grotões"

Galileu disse que a Terra gira em torno do Sol. Darwin afirmou que os homens e os
macacos têm antepassados comuns. Einstein disse que massa vira energia e que o
tempo anda mais devagar em um avião. Essas mudanças de paradigmas foram
marcos importantes no desenvolvimento da ciência.

Com sua espantosa imaginação, cada um desses gigantes da ciência abalou as


bases do conhecimento em sua área. Mas, no fundo, a revolução científica maior
ocorreu na forma pela qual se passou a decidir quem tinha razão. Galileu foi
condenado e quase queimado em praça pública pelos tribunais da Santa Inquisição.
Os curadores da verdade eram os religiosos e seus critérios de verdade, as
escrituras sagradas. Após décadas titubeando, Darwin arrostou o pensamento
religioso da época. Mas já não se arriscava a ser queimado vivo, e a discussão
lentamente pendeu para os argumentos científicos. No início do século XX, tomou
corpo a teoria da relatividade, incendiando a física clássica. Mas, diante da
novidade, a Igreja nada disse, e os físicos perguntaram: "Ah, é? Cadê a evidência?"

A marca do progresso científico é justamente o maior peso que vai ganhando a


evidência empírica para decidir quem está certo. Perdem espaço a fé, a ideologia e
a superstição nessa tarefa. Cada vez mais é o teste da realidade que decide,
marcando a transição de Galileu para Einstein. Obviamente nem todas as ciências
avançam em igual ritmo. E a geografia do progresso é cheia de grotões sombrios,
nos quais ainda impera o espírito da Inquisição. E na topografia brasileira há muitos
grotões.

Avança a medicina baseada em evidência. Ótimo. Contudo, embora a preocupação


com os transgênicos não seja descabida, trata-se de um assunto científico em que
houve retrocesso. Voltamos aos tempos de Darwin. Em vez de vasculhar a
evidência científica disponível, o assunto recende a anticapitalismo, protecionismo
europeu e querelas de poder.

Na economia, as cores ideológicas tingem cada vez menos o processo decisório.


Nosso bom jornalismo econômico fala do mundo real, desvencilhando-se da
mitologia e dos modelos simplistas. Mas ainda há pregadores falando de FMI e Alca
sem nada conhecer do assunto. Volta a Santa Ilustração Ale Setti
Inquisição, agora vestida de patrulha ideológica.

Muitos cometem o erro elementar de duvidar dos


resultados das estatísticas. Devemos duvidar dos
métodos de coleta, dos procedimentos de análise e das
interpretações. De resto, boa parte da formação
científica consiste em aprender a desconfiar e a
encontrar erros nessas etapas. Contudo, se não somos
capazes de detectar vícios nos processos usados, não
podemos recusar os resultados. Pena que essa
disciplina intelectual seja mais difícil do que dar
palpites sobre o que não se estudou e ainda menos se
aprendeu.
Já se disse que existe um limite para o que se pode fazer com números, bem como
um limite para o que se pode fazer sem números. Julgamentos morais e escolhas
acerca de nosso futuro não se resolvem por números. Mas o erro oposto também
ocorre, pois na educação resvalamos para épocas pré-científicas, tratando assuntos
quantificáveis sem usar números. É como discutir o peso de alguém, em vez de
pedir que suba na balança. Não registramos os avanços da quantificação para
medir o que os alunos aprenderam na escola. Queremos discutir se a educação
piorou sem usar nem entender as estatísticas. Decidimos qual forma de ensinar é
melhor sem medir se com ela os alunos aprendem mais. Os supostamente doutos
criticam o Provão sem ter a cultura técnica para fazê-lo. Não fosse o bastante, a
evidência rigorosamente controlada é tratada como mais um palpite de mais
alguém. De Einstein, involuímos para Galileu.

Para José Guilherme Merquior, "os problemas [no Brasil] são sempre apresentados
de maneira abstrata, principista e apriorista. Portanto, o coeficiente de análise
empírica, de exame concreto de realidades verificáveis é muito pequeno. (...)
Falam de noções abstratas (...) O resultado é que se restaurou no Brasil o estilo
escolástico de debate. Uma das melhores definições de escolástica como estilo
retórico diz que ela era uma maneira precisa de falar de coisas vagas".

Claudio de Moura Castro é economista

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