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Minha biblioteca

Ana Miranda

Existe uma estranha geografia em minha cabeça, que se refere a um mundo em torno de
mim, um mundo físico, palpável, mas de significados infinitos. Essa estranha geografia
surgiu do meu hábito de viver trancada num escritório cheio de livros. Esses livros
dispostos numa serena ordem um ao lado do outro representam a minha mente como um
mapa a um país. Se fecho os olhos, as prateleiras de livros se acendem dentro de minha
cabeça, como se minha cabeça fosse também um aposento forrado de estantes de livros em
que cada um deles é uma porta para um mundo diferente. Todos são logicamente
posicionados, de acordo com um sistema funcional. Se me recordo de um desses livros,
meu olhar vai diretamente ao lugar em que se encontra. Raras vezes algum se perde, mas
quando isso acontece caio numa espécie de desespero. Algumas vezes basta olhar a
lombada de um deles para receber sua influência, como uma secreta ligação, feito as ondas
do mar em relação à Lua. Às vezes sinto um apelo irresistível, como se um deles me
chamasse, e seja em que momento for, levanto da cadeira, retiro o livro da estante e o
folheio, para ouvir o que tem a dizer. Esses livros determinam meus sentimentos, meus
pensamentos, meu entendimento do mundo. Eles são o mapa de minha alma. Cada um
deles representa uma região, um lugar onde estive, e onde ainda estou.

Há entre eles, claro, os livros escritos por mim, mesmo os traduzidos em outras línguas.
Ficam separados numa das prateleiras, rabiscados desde a primeira página onde se
encontram as palavras manuscritas: “meu exemplar de trabalho”. A leitura sistemática e
assídua que realizei nestes últimos anos, sendo grande parte sobre livros de história ou
história literária, dotou minha mente de uma desconfortável consciência histórica. Assim,
tenho sempre a sensação de que nada me pertence, de que nenhuma palavra que escrevi é
minha, de que não sou autora de meus próprios trabalhos, mas apenas um elo na construção
literária da humanidade, uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, massacrada
pelas circunstâncias históricas.

Todos esses livros são para mim seres vivos, que sorriem, choram, zombam, ensinam,
atraiçoam, respiram. Há cerca de vinte anos vivo por eles dominada. Quando criança tive
uma pequena biblioteca, da qual me lembro de apenas alguns títulos. Ao sair da casa de
meus pais, aos dezessete anos, ela ficou em meu quarto, e se perdeu. Tive depois disso
apenas uma biblioteca que se foi ampliando com o tempo. A cada vez que eu me mudava de
casa, levava caixotes repletos de livros. A cada mudança eram mais e maiores caixotes.
Houve um momento em que a minha coleção de livros passou a ser realmente uma
biblioteca, quando precisei criar uma ordem, a fim de que pudesse encontrar os volumes.
Isso aconteceu cerda de quatro anos antes de eu publicar o meu primeiro romance, quando
eu morava numa mansarda cujas janelas se abriam para uma paisagem de telhados, quando
aprendi a conhecer o mundo dos telhados, povoado de gatos, estrelas e a Lua, além de
alguns animais repugnantes, como lagartixas ou algum camundongo perdido. A mansarda
tinha apenas dois ambientes: um escritório, uma cozinha-armário e um jirau que servia de
quarto formavam o primeiro ambiente; o outro era apenas um desproporcionalmente grande
banheiro onde cabiam máquina de lavar e de secar roupas. O escritório tinha apenas uma
das paredes coberta de livros, organizados por gêneros, como romance e conto, poesia,
ensaio, livros de referência. Eu tinha uma vida austera e comprava livros com parcimônia.
Cada livro que passava a fazer parte de minha biblioteca tinha um significado para mim,
havia sofrido uma espécie de prova e se integrado à minha estrutura pessoal. Eu os sentia
todos ligados a mim por fios invisíveis. Sair de perto deles era uma espécie de rompimento,
e eu me sentia perdida. Passei a gostar de permanecer apenas ali perto deles, uma espécie
de prisioneira voluntária, conformada, até mesmo feliz.

Em seguida me mudei para um lugar maior, onde o escritório todo em madeira era voltado
para um jardim – também apareciam gatos, estrelas, a Lua, ratos e lagartixas, além de
caracóis, lesmas, vorazes lagartas verdes que acabaram se tornando minhas amigas,
minhocas, joaninhas, uma infinidade de bichos moradores ou visitantes – e três paredes de
estantes abrigavam uma quantidade bem maior de livros. Lembro-me de minha atividade ao
mesmo tempo frenética e monótona, subindo de descendo degraus, tirando e devolvendo
livros, abrindo e fechando páginas, guardando, registrando na mente cada lugar, cada
palavra, cada frase que se tornava importante para mim. Na época eu ainda dispunha de
espaço, estava numa situação financeira um pouco melhor e tinha uma incontível ganância
em adquirir livros, que se amontoavam na minha cabeceira esperando a vez de serem lidos
até merecerem entrar no recinto sagrado de meu escritório. Eu buscava não apenas livros
novos, quer dizer, ainda não lidos por mim, como tentava recuperar os que havia lido na
adolescência ou mesmo na idade adulta e que estavam perdidos, fisicamente. Ainda tinha a
ilusão de que poderia guardar comigo todos os livros do mundo.

Hoje vivo num escritório mais amplo, branco, com janelas de vidro rasgando uma das
paredes de um a outro lado, por onde se avistam a cidade do Rio de Janeiro, o mar, as ilhas
Cagarras, Palmas, Redonda etc., o céu, estrelas, a Lua. Em vez de gatos ou insetos vejo
pássaros ou surpreendentes balões dirigíveis, ou helicópteros, ou aviões. A biblioteca que
me circunda é imensamente maior do que as anteriores, apesar de meu rigor na entrada e
permanência dos volumes. Os meus livros convivem pacificamente com os livros de meu
marido. É uma casa onde os livros são o centro de tudo. Há livros na sala, no quarto, na
cozinha, no corredor, nos quartos das crianças, claro, no quarto da empregada (minha
assessora especial diz que na próxima vida voltará como escritora), livros no banheiro. Os
livros, como as pessoas, têm seu destino. Penso sempre no que acontecerá com esses livros,
depois de minha morte, se é que algum dia eu vá morrer, sempre tenho a esperança de
assistir à descoberta da fonte de imortalidade. Meu filho não terá interesse por eles? Quem
sabe algum neto. Alguém os comprará a quilo para serem vendidos num sebo? Talvez eu
possa doá-los a uma instituição, ou a pessoas amadas, como fez um amigo meu que morreu
muito jovem e sua morte anunciada permitiu que ele fizesse um testamento distribuindo sua
biblioteca.

Graças a ele, tenho edições antigas de Proust, Updike, Milan Kundera ou Guimarães Rosa.
Ana Miranda nasceu em 1951 em Fortaleza, Ceará. Parte de sua infância e juventude
passou em Brasília (1959/1969) morando no Rio de Janeiro desde então. Sua vida literária
teve início em 1978 com a publicação de um livro de poesias. Seu primeiro romance,
"Boca do Inferno", foi publicado em 1989, obra que já foi traduzida nos Estados Unidos,
Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países.
Recebeu o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. Escreve roteiros cinematográficos,
ensaios e resenhas críticas para jornais e revistas, além de realizar palestras em
universidades e outras instituições.

Bibliografia:

Anjos e demônios, José Olympio/INL, 1978

Celebrações do outro, Antares, 1983

Boca do inferno, Cia das Letras, 1989

O retrato do rei, Cia. das Letras, 1991

Sem pecado, Cia. das Letras, 1993

A última quimera, Cia. das Letras, 1995

Desmundo, Cia. das Letras, 1996

Amrik, Cia. das Letras, 1997

Que seja em segredo, Dantes, 1998

Clarice, Cia. das Letras, 1999

Noturnos, Cia. das Letras, 1999

Caderno de sonhos, Dantes, 2000

21 Histórias de amor, Francisco Alves, 2002 (em conjunto com outros escritores).

Dias e dias, Cia. das Letras, 2002 (Prêmio Jabuti - 2003)

Deus-Dará - Crônicas publicadas na Caros Amigos, Casa Amarela, 2003

Boa companhia: Contos, Cia. das Letras, 2003 (em conjunto com outros escritores)

Flor do cerrado, Cia. das Letrinhas, 2004

Prece a uma aldeia perdida, Record, 2004

Obras traduzidas no exterior:


Hellemond. Holanda, Amber, 1990.

Helvetesgapet. Suécia, Wahlström & Widstrand, 1990.

Helvedeskaeften. Dinamarca, Samleren, 1990.

Helvetesmunn. Noruega, Gyldendal Norsk Forlag, 1990.

Boca del infierno. Argentina, Sudamericana, 1990.

Boca do inferno. Portugal, Dom Quixote, 1990.

Boca del infierno. Espanha, Anagrama, 1991.

Bocca d'inferno. Itália, Rizzoli, 1991.

Bay of All Saints and every conceivable sin. EUA, Viking, 1991.

Bay of All Saints & every conceivable sin. Inglaterra, Harvill, 1992.

Höllenmaul. Alemanha, Kiepenheuer & Witsch, 1992.

Bouche d'enfer. França, Julliard, 1992.

Texto publicado na revista “Caros amigos”, Editora Casa Amarela – São Paulo – SP,
exemplar de fevereiro de 1998.

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