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FILOSOFIA DO DI REITO

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Kleber Sales

UMA ANÁLISE
RESUMO
Faz uma análise epistemológica da Teo-
ria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pro-
curando evidenciar até que ponto pode

EPISTEMOLÓGICA
ser ela considerada como positivista.
Questiona a concepção de ciência
subjacente ao pensamento kelseniano,

DA TEORIA
mais especificamente a influência do
positivismo filosófico na definição de seu
objeto de estudo, refletida na atribuição
ao Direito de uma tarefa meramente des-

PURA DO
critiva, como se todo conhecimento fos-
se somente a constatação de uma reali-
dade que existisse por si só.

DIREITO DE
Demonstra que a própria teoria elaborada
por Kelsen mitiga sua opção epistemológica,
na medida em que sua argumentação
adentra o espaço virtual, admitindo pressu-

HANS KELSEN
postos não-advindos da experiência.

PALAVRAS-CHAVE
Filosofia do Direito; positivismo; Hans
Ana Paula Repolês Torres Kelsen; empirismo; Teoria Pura do Direito.

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006


Hans Kelsen, jurista austríaco de ori- opção epistemológica, pois sua argumen- para analisar as ciências do homem, o que
gem judaica nascido em 1881, cuja Teo- tação adentra o espaço virtual, admitindo nos levaria, como Granger, a considerar
ria Pura do Direito (1934) será objeto de pressupostos não-advindos da experiência. como arte a história, na medida em que se
análise no atual trabalho, pode ser apre- O positivismo jurídico, como método parte do pressuposto de que a singularida-
sentado como um pensador de seu pró- interpretativo, na medida em que se volta de dos fatos não pode ser contida em
prio tempo, pois ele radicaliza toda uma para o estudo do Direito positivo, ou seja, modelos abstratos.
guinada positivista que vinha sendo rea- para o estudo do Direito criado, posto em Kelsen é justamente um desses pensa-
lizada desde o século XIX, na medida em uma determinada ordem político-jurídica, é dores que transpõe o método das ciências
que tenta separar do Direito positivo as- muito mais amplo do que o positivismo em naturais para a análise do Direito, acredi-
pectos que lhe são estranhos, como o Di- sentido estrito ao qual Kelsen se filia. De fato, tando ser tal metodologia indispensável para
reito Natural. O fundador da Escola de desde a antiguidade podemos identificar ju- se alcançar a objetividade que o conheci-
Viena, da qual participaram grandes juris- ristas que se dedicam ao estudo do Direito mento científico do fenômeno jurídico, em
tas como Alfred Merkel, Felix Kauffmann e positivo, aos comentários das leis então vi- seu entender, requereria. Nesse sentido, já
Josef Kunz, entre outros, foi influenciado, gentes, como os próprios romanos ou os no prefácio à primeira edição da Teoria
quando se encontrava em exílio nos Es- glosadores da Idade Média. Entretanto, so- Pura do Direito, obra que sintetiza todo o
tados Unidos da América, pela Escola mente após o surgimento do positivismo fi- pensamento do citado jurista, ele assim se
Analítica Inglesa, mais especificamente losófico de Augusto Comte (1798-1857), o pronunciou sobre ela: Há mais de duas
pelas idéias de John Austin (1790-1859), positivismo jurídico chega à reformulação décadas que empreendi desenvolver uma
haja vista a identidade de objetos de do próprio conceito de Direito, retirando teoria jurídica pura, isto é, purificada de
ambas as escolas, qual seja, o Direito deste todo resquício metafísico, opondo-se toda a ideologia política e de todos os
positivo, tendo Kelsen levado às últimas assim às concepções jusnaturalistas, sejam elementos de ciência natural, uma teo- 73
conseqüências a teoria austiniana1. elas de base natural, divina ou racional, que ria jurídica consciente da sua especifici-
Positivista é o qualificativo normal- desde os primórdios serviram para a defini- dade porque consciente da legalidade es-
mente atribuído à obra jurídica de Hans ção do Direito. A partir de então, o Direito é pecífica do seu objeto. Logo desde o co-
Kelsen, porque se considera sua assumi- identificado à lei, não havendo nada acima meço foi meu intento elevar a jurisprudên-
da pretensão de somente descrever as dele que funcione como parâmetro de afe- cia6, que – aberta ou veladamente – se
normas jurídicas existentes, tomando-as rição de sua justeza. esgotava quase por completo em raciocí-
por coisas existentes, como padrões de Na Filosofia positiva de Comte, o co- nios de política jurídica, à altura de uma
comportamento a serem apreendidos nhecimento – que seria o positivo, em genuína ciência, de uma ciência do espíri-
pelos cientistas do Direito, retirando des- oposição aos históricos estados teológico e to. Importava explicar, não as suas ten-
tes a tarefa, reservada à Filosofia do Di- metafísico – caracterizar-se-ia pela elabora- dências endereçadas à formação do Di-
reito, de questionar a própria validade ção de leis tendo em vista a regularidade reito, mas as suas tendências exclusivamen-
dessas normas, isto é, de emitir juízos de dos fenômenos. A busca de tais leis, mais te dirigidas ao conhecimento do Direito, e
valor com relação ao seu conteúdo. O especificamente, das leis naturais, seria feita aproximar tanto quanto possível os seus
Direito, nessa perspectiva, descreve o pela observação, abdicando-se de qualquer resultados do ideal de toda a ciência:
valorado como justo, ou seja, o valor que pergunta por uma causa última. O espírito, objetividade e exatidão7.
foi objetivado por meio da positivação do num longo retrocesso, detém-se por fim Demonstrado o conceito de ciência de
Direito, e não o que deveria ter sido ou perante as coisas. Renuncia ao que é vão que parte Kelsen, conceito cujos limites aptos
deveria ser valorado dessa forma2 . tentar conhecer e só procura as leis dos à apreensão do fenômeno jurídico serão pos-
Essa separação de tarefas entre a ciên- fenômenos4 (sic). Tal concepção de ciên- teriormente apresentados e discutidos, resta
cia e a filosofia jurídica reflete a própria cia, com seu método experimental corres- resgatarmos fragmentos de sua teoria, para
concepção de ciência subjacente ao pen- pondente, e não obstante ter surgido atre- que assim possamos, a partir de dentro, reali-
samento kelseniano, qual seja, o entendi- lada às ciências da natureza, foi e ainda é zar uma análise do alcance do pensamento
mento, surgido com o positivismo filosófi- largamente utilizada nas ciências humanas, positivista, bem como do impasse em que
co e especificamente nas ciências natu- apesar das especificidades dos fenômenos este sempre recai.
rais, de que as ciências trabalhariam com destas que, por carregarem consigo uma Falamos anteriormente sobre a ne-
o empírico, com a observação dos fatos carga de significações, levam alguns a ques- gativa kelseniana de realizar juízos
da realidade, ao passo que a filosofia se tionar, tal como o faz Granger 5, a própria valorativos sobre as normas jurídicas. No
restringiria à especulação, à mera erudi- possibilidade de considerá-las como ciên- entanto, tal postura nada mais representa
ção3. Pretende-se demonstrar que a pró- cia. Pergunta-se se é ainda legítimo adotar a do que o método utilizado por Kelsen para
pria teoria elaborada por Kelsen mitiga sua concepção de ciência das ciências naturais estudar o seu objeto, pois pretende conhe-

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cer o fenômeno jurídico em sua “pureza”, esvaziado de qualquer para exigir de alguém qualquer soma em dinheiro. Esse exemplo
elemento externo, como aspectos sociológicos, psicológicos, políti- ilustra o sistema escalonado de normas tal como desenvolvido por
cos ou éticos que estejam a ele conectados. Para assim proceder, o Kelsen, pois este considera que a validade de uma norma, ou seja,
autor tem de definir o objeto da ciência jurídica – a norma – e o faz seu sentido objetivo, decorre de outra hierarquicamente superior,
distinguindo o Direito da natureza, o mundo do dever-ser, do e assim sucessivamente, até se chegar à Constituição. O ato criador
mundo do ser 8. A estrutura da norma seria: Se A, deve ser B. Se da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só
alguém comete um crime, matando ou roubando, por exemplo, subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que
deve ser-lhe aplicada uma sanção. Entretanto, a frustração de tal nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua12.
expectativa punitiva, dentro de certos parâmetros, não faz com Assim, para garantir o respeito à própria Constituição – na
que o Direito perca sua normatividade9 . Utilizar dinheiro não medida em que não se reconhece nenhuma norma positiva, posta,
contabilizado em campanhas é crime eleitoral, mesmo quando acima dela, apta a dar competência a seus autores, a dar sentido
os responsáveis por tais práticas não são penalizados. objetivo às normas por estes elaboradas –, Kelsen criou a norma
As leis naturais, por sua vez, apresentam estrutura diferen- fundamental, uma pressuposição lógico-transcendental, utilizando
te, pois, se a hipótese A acontece, B necessariamente também aqui, por analogia, um conceito da teoria do conhecimento de
ocorre ou ocorrerá (Se A, é – ou será – B). Ilustrativamente, se Kant13, uma norma que, em última instância, conferiria validade a
uma maçã se solta de uma árvore, ela necessariamente cairá no todo o ordenamento jurídico, ao estabelecer o caráter vinculante
chão. Nessa perspectiva, no Direito vigoraria o princípio da im- da Constituição. Dessa forma, a norma fundamental surge, tal como
putação, segundo o qual uma conseqüência deve ocorrer caso a a denominada “constante cosmológica” de Einstein, como um arti-
condição a ela atrelada se verifique, ao passo que, no âmbito da fício mental do autor para tornar coerente e operacional sua teoria,
natureza, existiria o princípio da causalidade, que ligaria causa e apresentando-se tal norma como a “saída” para as seguintes ques-
efeito de maneira necessária10 . tões: Se toda norma adquire validade a partir de uma norma supe-
Definindo mais detalhadamente a norma jurídica, Kelsen a rior, de onde adviria a validade da Constituição? Como solucionar
considera um esquema de interpretação do mundo, pois, par- o paradoxo de ser a Constituição o fundamento de validade das
tindo da distinção entre os dois mundos, ser e dever-ser, afirma demais normas e não possuir, ela mesma, fundamento? Como
que o que interessa ao jurista não são os fatos, mas a significa- “solucionar” essas questões sem romper com sua opção
ção jurídica a eles atribuída. Por exemplo, a morte de uma pes- metodológica, isto é, sem recorrer a elementos externos ao Direito
soa, um fato natural, pode ter relevância jurídica quando, por para justificá-lo, como à natureza ou a Deus?
74 exemplo, o falecido deixa bens, devendo então ser aberta sua Antes de retornarmos à influência do pensamento de Kant
sucessão testamentária. No âmbito penal, uma ação humana sobre a teoria kelseniana, o que nos ajudará a delimitar a exten-
não é criminosa por si só, ou seja, é o Direito que lhe atribui tal são da dimensão positivista da obra do citado jurista, devemos
sentido. Nessa perspectiva, Kelsen afirma que o que faz com esclarecer que papel a Teoria Pura do Direito confere ao Direito.
que um fato constitua uma execução jurídica de uma sentença A função do Direito, para Kelsen, é somente descrever as nor-
de condenação à pena capital e não um homicídio, essa quali- mas jurídicas existentes em determinada ordem jurídico-políti-
dade – que não pode ser captada pelos sentidos – somente ca, sem realizar qualquer juízo de valor sobre ela. Nesse sentido,
surge através desta operação mental: confronto com o código sua função difere da atividade de criação do Direito atribuída
penal e com o código de processo penal11. Entendemos então aos órgãos jurídicos, como o legislador, que elabora normas
por que milhões de mortes de combatentes inimigos em uma gerais e abstratas, ou o juiz, que aplica o Direito a um caso con-
guerra pode criar heróis e gerar condecorações, enquanto matar creto, estabelecendo uma norma individual. Na perspectiva do
uma única pessoa pode privar o autor de sua liberdade. conhecimento jurídico, Kelsen faz uma analogia entre leis natu-
rais e proposições jurídicas, entendendo que as normas podem
Kelsen é justamente um desses pensadores ser descritas, como os fatos, por meio da observação empírica; a
que transpõe o método das ciências naturais única diferença consistiria na circunstância de não ser aplicável
para a análise do Direito, acreditando ser tal ao âmbito do Direito o princípio da causalidade. As normas en-
tão seriam diferentes das proposições hipotético-condicionais
metodologia indispensável para se alcançar a elaboradas pelo Direito, mas somente poderiam ser conhecidas
objetividade que o conhecimento científico do por meio dessas proposições, que nada mais são do que re-
fenômeno jurídico, em seu entender, gras, cujo modelo Kelsen buscou na lógica formal – por isso sua
requereria. teoria é denominada de “normativismo lógico”14 .
Tais proposições elaboradas pelo Direito, em virtude de não
Prosseguindo em seu raciocínio, o autor em questão pergunta: terem caráter prescritivo, configuram um quadro de leituras possí-
como distinguir a ordem de um funcionário de finanças e de um veis das normas, leituras estas que demonstram não existir, se-
gângster para que lhe seja entregue uma determinada quantidade de gundo a teoria tradicional da interpretação, um método que levas-
dinheiro? Ambas as situações nos remetem a um dever-ser, ou seja, se, anteriormente e em abstrato, a uma resposta correta para cada
trata-se de atos de vontade cujo sentido subjetivo é um dever-ser, caso jurídico, revelando assim a tessitura aberta do Direito e a
mas somente a ordem do funcionário de finanças configura uma discricionariedade do aplicador, na medida em que este poderia
norma, haja vista que se fundamenta em outra norma, isto é, em uma escolher qualquer dos sentidos atribuídos às normas pelo Direito.
norma fiscal. A ordem do gângster não é vinculante porque não A discricionariedade atribuída ao aplicador possibilitou a Kelsen
possui sentido objetivo; nenhuma norma lhe confere competência admitir que questões metajurídicas, como fatores morais, éticos,
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políticos etc., influenciassem a decisão do essencial a definição de Direito positivo17 podendo se apresentar como uma partícula
juiz, sem que restasse comprometida a como direito criado, em oposição às con- ou uma onda. Nem mesmo a natureza é hoje
pureza metodológica de sua teoria. cepções jusnaturalistas de Direito, ou, mais tão natural assim, basta observamos que as
Entretanto, o próprio Kelsen deu uma especificamente, a definição de norma ju- modificações climáticas que têm provocado
guinada decisionista na segunda edição da rídica. Na verdade, toda observação da degelo nos círculos polares, diminuição ou
Teoria Pura do Direito, de 1960, quando “realidade” pressupõe uma escolha teóri- aumento do índice pluviométrico em deter-
admitiu que o juiz poderia decidir um caso ca prévia, em outras palavras, todo realis- minadas regiões etc. são fruto de uma inte-
sem adotar qualquer das interpretações mo epistemológico é sempre enfraqueci- rferência humana, de um “avanço” no domí-
disponíveis na moldura elaborada pelo Di- do na medida em que invariavelmente nio da natureza.
reito e, a partir de então, a única coisa que adentra o espaço virtual18. Lembrando- Até mesmo Kelsen teve de admitir que
vincularia o aplicador seria uma norma de nos de Sócrates, em toda pergunta está a complexidade do Direito moderno é in-
competência, ou seja, uma norma superior latente uma resposta. Assim, concordamos capaz de ser apreendida e traduzida em
que lhe desse poder para decidir a contro- com Michel Miaille ao afirmar que nenhum leis, ressaltando assim a abertura interpre-
vérsia jurídica a ele encaminhada para jul- cientista vai ao encontro da realidade que tativa do Direito para situações futuras,
gamento. Nessa perspectiva, Kelsen acaba quer explicar sem “informação”, sem for- porém o fez a custo de, implicitamente,
se aproximando do realismo jurídico 15, ao mação: e, como veremos, uma idéia fal- negar seus pressupostos epistemológicos,
afirmar que o juiz cria direito, ou seja, que sa a de acreditar que a observação é a ao afirmar que o dever-ser descrito pelo
o Direito pode ser construído na situação fonte da descoberta. Não se descobre Direito seria substituído pelo ser, pela deci-
de aplicação, desprezando-se, de certa for- senão aquilo que se estava pronto inte- são do aplicador. O único problema é não
ma, a própria atividade legislativa. lectualmente para descobrir 19, 20. podermos entender essa tessitura aberta
Feito esse resgate de algumas passa- Portanto, essa implicação entre o pon- do Direito como uma questão de simples
gens da obra kelseniana, resta pergun- to de partida de uma descrição científica, o escolha do magistrado na situação concre-
tar-nos sobre o alcance do positivismo recorte que necessariamente sempre se faz ta ou como discricionariedade. Se assim o
em sua teoria. De fato, a tarefa do Direi- e o próprio conhecimento daí advindo fizéssemos, não teríamos como justificar que
to foi pensada a partir de uma concep- nada mais revela do que o retorno do su- os cidadãos devem obediência às leis, pois,
ção de ciência advinda do positivismo jeito, recalcado nas teorias – como as de se nem mesmo os aplicadores oficiais o
filosófico, segundo a qual o conhecimen- base positivista – que pretendem uma su- devem, por que eles seriam diferentes?
to deriva da observação dos fatos. Assim, posta neutralidade científica, acreditando- Dessa forma, se a obra de Kelsen foi 75
ao Direito caberia somente descrever as se ainda possível um conhecimento desin- importante para delimitar o âmbito da ciência
normas jurídicas existentes, elaborando teressado. O lema de tais teorias, qual seja, jurídica, que Kant já havia tentado 23, seu pen-
proposições que funcionariam tal como é preciso anular o sujeito para nos atermos samento apresenta limites para a compreen-
as leis naturais. Entretanto, em alguns mo- às coisas mesmas e estas melhor nos são do Direito moderno, na medida em que
mentos, a teoria de Kelsen afasta-se des- revelarem seu em si21, é ilusório, haja vista tende a um puro formalismo, abrindo espaço
sa base empírica requerida pelo posi- que a imbricação recíproca entre sujeito e para que se atribua qualquer conteúdo às
tivismo, pois, além de recorrer a um pres- objeto faz com que nem mesmo a “realida- normas jurídicas, o que o levou a considerar
suposto lógico-transcendental para tor- de” possa ser apreendida em termos como juridicamente aceitável a experiência na-
nar coerente sua teoria, no caso, a men- ontológicos, sendo sempre construção, zista. Em outra perspectiva, partindo da vira-
cionada norma fundamental , todo caracterizando-se toda análise que dela da hermenêutico-pragmática, com autores
o empenho do autor para construir uma se faça como uma perspectiva, uma ob- como Gadamer e Habermas, podemos com-
ciência jurídica autônoma, livre de ele- servação que apresenta pontos cegos, preender a importância do contexto para a
mentos externos, donde a sua “pureza”, conforme Niklas Luhmann22 . própria atribuição de sentido às normas jurí-
relaciona-se com a indagação sobre as
condições de possibilidade do próprio Na perspectiva do conhecimento jurídico, Kelsen faz uma
conhecimento científico do fenômeno
analogia entre leis naturais e proposições jurídicas,
jurídico, condições essas que configuram
um conhecimento a priori, já que não entendendo que as normas podem ser descritas, como os
passível de demonstração experimental. fatos, por meio da observação empírica (...)
A Teoria Pura do Direito se propõe, as-
sim, a ser uma crítica do conhecimento Nesse entendimento, questiona-se a uti- dicas. Assim, têm de ser abandonadas postu-
jurídico, mas uma crítica do conheci- lização de métodos das ciências naturais para ras unilaterais, como a de Kelsen, que privile-
mento que já parte de uma concepção o trabalho das ciências do espírito, mais espe- gia a forma, ou, por exemplo, a de Carl Schmitt,
pré-definida do que seja o conheci- cificamente a pretensão de objetividade típica que, contrariamente, despreza a Constituição
mento científico do Direito16. das ciências naturais, pois a concepção de escrita, considerando-a como “ideal”, dando
Nessa linha, antes de descrever a re- uma ciência neutra foi problematizada, inclu- preferência ao conteúdo, às decisões políticas
alidade do fenômeno jurídico, a ciência sive pelas disciplinas que lidam com os fenô- fundamentais de um povo, para se reconhe-
do Direito, no caso a Teoria Pura do Di- menos da natureza, como a Física, ao enuciar, cer a necessária complementariedade entre
reito, deve partir de um conhecimento por exemplo, que as propriedades da luz de- texto e contexto, ideal e real, global e local,
prévio do objeto de análise, por isso é pendem do modo como ela é observada, enfim, entre forma e matéria.
Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77,, abr./jun. 2006
mente válidas descritíveis em proposições jurídicas? KELSEN, Teoria
pura..., op. cit., p. 225.
REFERÊNCIAS
14 Sobre o tema, esclarecedora é a seguinte passagem: E as normas são
1 Kelsen fez um balanço das continuidades e descontinuidades entre a concebidas – já no campo epistemológico – como categorias lógicas
jurisprudência analítica e a Teoria Pura do Direito. Nesse sentido, ver: que pertencem não ao campo do ser mas do dever-ser. AFONSO, op.
KELSEN, Hans. The Pure Theory of Law and Analytical Jurisprudence. cit., p. 27. (Grifos nossos). Nesse sentido, parece-nos haver na teoria
Harvard Law Review, n. 55, p. 44-70, 1941-1942. kelseniana uma certa influência do Círculo de Viena, um grupo de
2 Sobre tal questão, esclarecedoras são as palavras de Elza Maria filósofos, matemáticos e economistas que, na década de 1920, empre-
Miranda Afonso: mesmo tendo como objeto as normas jurídicas, a endeu um esforço para elaborar uma concepção científica do mundo,
ciência do Direito não pode apreciar os valores que elas contêm. isto é, afastada da metafísica e da teologia, utilizando a lógica como
AFONSO, Elza Maria Miranda. O positivismo na epistemologia jurídi- linguagem unificadora das ciências. Uma análise sucinta do Círculo de
ca de Hans Kelsen. 1984. (Tese de Doutrado) – Faculdade de Viena, também denominado de “empirismo lógico”, pode ser encontra-
Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1984. da em: MAGALHÃES, Theresa Calvet de. Filosofia analítica: d e
p. 220. Na verdade, a Teoria Pura do Direito somente admite valoração Wittgenstein à redescoberta da mente. Belo Horizonte: Movimento
dos fatos e não das normas, pois afirma que the behavior that Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 1997. p. 3-34. Sobre o
conforms to the norm has a positive value, the behavior that does normativismo lógico de Kelsen, conferir: MACHADO, Edgar da Mata.
not conform, a negative value. The norm that is regarded as Elementos de teoria geral do Direito. 4. ed. Belo Horizonte: Editora
objectively valid functions as a standard of value applied to actual UFMG, 1995. p. 150-154.
behavior. KELSEN, Hans. Norm and Value. California Law Review, n. 15 Realismo jurídico é uma corrente de pensamento do Direito que
54, p. 1.624, 1966. ressalta a natureza política do juiz, na medida em que entende este
3 Temos assim duas categorias diversas de definições do Direito, que como criador de direito novo quando da decisão de um caso concre-
podemos qualificar, respectivamente, como definições científicas e de- to, não apresentando o magistrado, desta forma, qualquer compro-
finições filosóficas: as primeiras são as definições fatuais, ou avalorativas, misso com o passado do ordenamento jurídico em questão. Sobre
ou ainda ontológicas, isto é, definem o Direito tal como ele é. As o realismo jurídico, principalmente o norte-americano, ver: SCHWARTZ,
segundas são definições ideológicas¸ ou valorativas, ou deontológicas, Bernard. Direito Constitucional americano. Trad. de Carlos Nayfeld.
isto é, definem o Direito tal como deve ser para satisfazer um certo Rio de Janeiro: Forense, 1966. O realismo jurídico é qualificado
valor. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do como positivismo jurídico em sentido genérico, pois, tal como o
Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 138. positivismo jurídico em sentido estrito, como o de Kelsen, ele se
4 MARÍAS, Julián. História da Filosofia. Porto: Ed. Sousa & Almeida, 1959. p. 339. caracteriza por uma abordagem avalorativa do Direito, em oposição
5 GRANGER, G. Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo: USP, 1994. p.85. ao jusnaturalismo, adquirindo um caráter puramente formal ao ficar
6 Cabe ressaltar que o termo “jurisprudência” aqui aparece como sinônimo em aberto qual seria o conteúdo do Direito. Sobre a conceituação
de ciência do Direito, sendo tal esclarecimento importante porque na seara de positivismo jurídico em sentido genérico e estrito, ver: BOBBIO,
jurídica também se atribui a tal significante o sentido de decisões reiteradas op. cit., p. 142-146.
de um tribunal. 16 AFONSO, op. cit., p. 24. (Grifos nossos).
7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. São 17 A Teoria Pura do Direito de Kelsen, dessa forma, além de ser uma teoria
Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 11. (Grifos nossos) do conhecimento, apresenta-se como uma ciência do Direito. Em decor-
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8 Nota-se aqui, como em outras passagens da obra kelseniana, uma nítida rência dessa identificação, o objeto da Teoria Pura do Direito torna-se o
influência de Kant. Esclarecedora é a seguinte passagem de Miguel Reale mesmo objeto da ciência do Direito. E esse objeto é o dado da realidade
sobre Hans Kelsen: Há em toda sua obra as idéias fundamentais, de fonte jurídico-empírica, o Direito positivo. AFONSO, op. cit., p. 24.
kantista, de que ‘o conhecimento científico não pode ir além do dualismo 18 A dimensão virtual está presente na obra de Kelsen por meio da lógica,
de natureza e espírito, de realidade e valor, de ‘ser’ e ‘dever-ser’; que ‘não e não das matemáticas. Estas se caracterizam por tradicionalmente
é possível deduzir um valor da simples verificação de um fato, ainda quando serem o instrumento de criação de mundos possíveis. Kelsen utiliza a
freqüente e normal. REALE apud AFONSO, op. cit., p. 17. matemática qualitativa para designar o sistema escalonado de normas,
9 Apesar de Kelsen afirmar que a validade, a existência de uma norma referindo-se a uma pirâmide normativa, cujo ápice seria a Constituição,
independe de sua eficácia, pois admitir o contrário seria reduzir o Direito, o mas tal recurso somente possui uma função heurística, não sendo
dever-ser, ao ser, o próprio autor admite que um mínimo de eficácia é constitutivo de sua teoria. A presença da lógica na Teoria Pura do Direito
essencial para a própria validade das normas jurídicas, o que representa já foi mencionada ao longo do artigo, basta lembrarmos as proposições
uma ruptura de seu pressuposto epistemológico, na medida em que a “pu- jurídicas como categorias lógicas e a norma fundamental como um
reza” do Direito é relativizada pela introdução dessa dimensão sociológica. pressuposto lógico não passível de comprovação empírica.
Sobre o tema, ver: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Interpretação 19 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. 2. ed. Lisboa: Ed. Estampa,
como ato de conhecimento e interpretação como ato de vontade: a tese 1989. p. 30.
kelseniana da interpretação autêntica. Revista de Direito Comparado, Belo 20 Nessa linha, a descoberta da teoria da relatividade por Newton só foi
Horizonte, v. 1, n. 1, p. 223, jul. 1997; MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. possível em virtude de um referencial teórico prévio, ou seja, deve-
Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, Belo Hori- se à elaboração do que se costuma chamar de “síntese newtoniana”.
zonte, v. 3, p. 429, maio 1999. O primeiro passo de Newton foi realizar na imaginação o que a
10 Há autores, como Emile Durkheim, que aplicam o princípio da causalidade à história não pudera realizar: unir Kepler e Galileu. Mais exatamen-
análise dos fenômenos sociais, mais especificamente em seu estudo sobre te, unir uma metade de Kepler e uma metade de Galileu, e repelir
o suicídio, em que o fundador da sociologia procura relacionar os fatos, as metades redundantes. KOESTLER apud AFONSO, op. cit., p. 213.
atentando para a sucessão destes e erigindo leis para sua explicação, man- 21 DOMINGUES, op. cit., p. 646. (Grifos nossos)
tendo-se assim refém do antes e do depois, o que o leva a projetar 22 Ao assumir a auto-implicação cognitiva de toda forma de conhecimento, ou
sombras, dessa forma, sobre a interação entre os fenômenos, ou seja, sobre seja, que toda descrição é criação de realidade, Luhmann tem como pres-
a dimensão de simultaneidade que a atividade de compreensão também suposto que o sujeito que observa não é capaz de enxergar a si mesmo, por
requer. Uma análise pormenorizada da estratégia discursiva de Durkheim, isso sua observação sempre implicará uma latência, um ponto cego. Sobre
evidenciando os limites da explicação causal, pode ser encontrada em: o tema, ver: LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della società. 5.
DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas – tomo 1: ed. Milano: Franco Angeli, 1993. 400 p. e CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena;
positivismo e hermenêutica – Durkheim e Weber. São Paulo: Loyola, 2004. BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Guada-
p. 116-119. lajara: Universidad Iberoamericana, 1996. 191 p.
11 KELSEN, Teoria pura..., op. cit., p. 4. 23 Apesar de Kant ter pretendido conferir independência à ciência do
12 Idem, p. 9. (Grifo nosso) Direito, separando Direito e moral, ao se preocupar com questões de
13 Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia justiça, o filósofo em questão acaba por retornar ao Direito natural, ou
a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis natu- seja, introduz no Direito aspectos que lhe são estranhos, aspectos estes
rais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito que tornam implausível sua autonomia. Sobre a questão, conferir: AFON-
pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a SO, op. cit., p. 28-43.
autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido sub-
jetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetiva- Artigo recebido em 20/2/2006.

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006


ABSTRACT
The authoress proposes an epistemological analysis of
Hans Kelsen’s Pure Law Theory, probing to which extent it may
be considered as positivist. She questions the underlying
conception of science pertaining to the Kelsian thought, more
specifically the influence of the philosophical positivism on the
definition of its object of study, reflected on the attribution to
Law of a simply descriptive task, as if all knowledge were merely
a verification of a reality that existed by itself.
She demonstrates that the very theory elaborated by Kelsen
mitigates his epistemological option, since his argument reaches
the virtual field, admitting presuppositions that do not arise
from experience.

KEYWORDS
Philosophy of Law; positivism; Hans Kelsen; empiricism;
Pure Law Theory.

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Ana Paula Repolês Torres é mestre em Direito Constitucional pela


Faculdade de Direito da UFMG.

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77,, abr./jun. 2006

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