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QUE.

Proposição. As armas e os barões assinalados, etc. Invocação. E vós, Tágides minhas, etc.
Dedicatória e Narração. Epopeia é narrativa em verso, etc. Luís de Camões (1524?-1580). Morre a
1 de Junho de 1580, pobre e esquisito de todo. Sendo o seu enterro feito a expensas de uma
instituição de beneficência a Companhia dos Cortesãos. Salvou a sua obra com o braço no ar. Dez
cantos, verso decassílabo, clássico ou heróico, em estrofostâncias, oito versos cada. O herói de Os
Lusíadas é o povo português. Ocidental praia lusitana, sinédoque. Baco, contra. Vénus, Júpiter e
Marte, a favor. A nossa epopeia é superior porque a Europa domina o mundo. O Renascimento é
nada do que é humano me é estranho.
Isto sabia o Carlos com segurança. O resto logo se via, era questão de ir deitando o olho à
direita e à esquerda, quiçá mais além ainda, e inventar à medida. Não é o homem a medida de
todas as coisas? A verdade é que o tempo não dera para mais. Quedara-se na véspera com um
olho no hollywood e outro no resumo do Camões, ouvira a mãe rezingar antes de adormecer na
sesta que a prostrava sempre depois das notícias nacionais. De viés, o Carlos percebera que podia
enfim dedicar-se por inteiro ao filme.
Agora aprecia o mapa da sala e avalia os pontos de apoio. A Lídia não está. O Flávio, à
direita, só muito dificilmente terá alguma utilidade, o Ilya está longe de mais e o Idalino não é de
fiar. Acompanhando com o olhar a professora que fecha a porta da sala, o Carlos encomenda-se,
sem mesmo sabê-lo, à inspiração das Tágides e à boa vontade de Júpiter.
À doutora Formosa, por sua vez, dera o capricho de inovar. Em vez de propor aos alunos as
sinédoques do costume e as fatais prosopopeias, abalançara-se - porque os achara
eminentemente preparados, eminentemente motivados - a dar-lhes a ler estâncias que não
conheciam de antemão e a pedir-lhes que identificassem, que transcrevessem, que descrevessem,
que caracterizassem, que justificassem, que avaliassem. E que todas estas aptidões e actividades
se exercessem sobre matéria do Canto VIII que não fazia manifestamente parte do programa. O
delegado de grupo torcera um pouco o nariz, era bom funcionário, bem falante, ferrenho da
clareza dos objectivos, cognitivos, afectivos e mais além, ideólogo apertado das estratégias de
operacionalização, prestigiado pelas actas minuciosas de que ninguém poderia reclamar.
O Carlos correra os olhos pelo teste. Fora a primeira óbvia aliteração ("vagabundo vás
passando a vida") e a prosopopeia ou onomatopeia ou lá o que era do II.2.1. a), sobre pouco mais
ousaria dizer que tinha a certeza. A seu lado, o Flávio riu-se a mastigar uma frase. E o Carlos,
sôfrego, olhou para o teste na esperança de lhe encontrar a graça. À janela mostrou-se a
cabeçorra do Ricardo, de nariz colado às grades, curioso. A doutora Formosa sorriu, serena, e
acenou. Ele esticou-lhe o dedo médio e fugiu a correr. Estava calor para Maio. O Carlos conformou-
se, baixou os olhos à estância. "Mas aqueles avaros Catuais / que o Gentílico povo governavam/
Induzidos das gentes infernais/ O português despacho dilatavam./ Mas o Gama, que não pretende
mais/ De tudo quanto os Mouros ordenavam/ Que levar a seu Rei um sinal certo/ Do mundo que
deixava descoberto/ Nisto trabalha só(...)". O Carlos relê e passa à frente. Percebe que há ali coisa
entre os Mouros e o Gama e procura o léxico que Formosa teve o cuidado de anexar à prova. Ela já
nadava em águas bem turvas, era melhor não abusar. Quanto ao Carlos, resta-lhe informar-se
sobre estes Catuais, que será Gentílico, quem são as gentes infernais, que ele suspeita tenham a
ver com o Gentílico povo, qual o significado de despacho, o que seria aquela cena do dilatar, o que
está ali a fazer aquele ordenavam. Levar a seu Rei um sinal certo, e daí para a frente acha claro, o
Gama quer voltar a Portugal a dizer ao Rei D. Manuel que encontrou a Índia. Inspirou e de caneta
em riste confirmou que a Neide continuava debruçada sobre o teste, a cortina de cabelo vermelho
varrendo a folha para cá e para lá. Porque dilatavam os Mouros o português despacho? Porque,
escreveu o Carlos, porque os Portugueses, e separou por que, e ficou na dúvida. Porque. Resolveu
juntá-los de novo, soava melhor, depois fez um tracinho vertical todo trémulo a romper a ligação e
esperou em Deus que a professora percebesse que ele ao menos hesitara. O Carlos estava muito
treinado nas psiques dos professores. Sabia como eles eram sensíveis aos processos, identificar,
reconhecer, analisar, sintetizar, criticar, avaliar, reflectir, e que à falta de saber de facto responder,
o melhor era estar sossegado, mostrar-se empenhado, esforçar-se por manter os olhos abertos e
revelar-se participativo nem que fosse pela neutralidade. Em casa, na escola, o Carlos sabia que o
que mais contava para os outros era o seu assentimento.
Para a mãe havia as coisas importantes e as coisas sem qualquer importância. Estas
mudavam bastante ao longo do tempo. Era capaz de dizer, sábado, por cima da pizzado almoço:
- A única coisa importante é a nossa dignidade como nação.
E domingo, no barulho do centro comercial, à mesa colectiva do café, comendo o donut, o
Carlos ouvia-a dizer que:
- A única coisa que conta neste mundo é o dinheiro.
- Eiro, dizia o pai.
Isto irritava o Carlos porque, embora quieto e calado, reservado e secreto, era o tipo de
informação que lhe fazia falta e gostava de reunir. Às vezes tomava atenção, por baixo da
impassibilidade dos fins-de-semana, mas já percebera que não valia muito a pena. Dali só vinham
generalidades cambiantes, nervosas, que pareciam mero fruto de um sentimento de ameaça. Se
estava Janete, a amiga da mãe que trabalhava nos Correios, afirmava-se que sem saúde é que não
se ia lá. E a mãe tinha um olhar vago, duvidoso, porque saúde era coisa que nunca havia. Nem a
sua Ode ao Outono conseguira acabar a tempo de ser publicada no Diário do Cávado. Uma dor na
barriga da perna passava a ser a única coisa que importava. Depois vinha a crise de vesícula.
Suspendiam-se as rimas até ver. Permanecia a Língua Portuguesa. Aí, alto e pára o baile. Por isso,
lá em casa não havia fostes nem viestes, nem hades nem quaisquers, nem irá-se, nem virá-se,
nem meter-se, nem porque é ques, nem prontos. Mas vivia-se a crise permanente. De perna
traçada no sofá, o pai punha os óculos de ver televisão, gritava para dentro ao bater das oito:
- Olha o nacional, Susete!
E ela precipitava-se da cozinha com o pirexda lasagna descongelada e sentava-se ao pé do
pai, ainda com as luvas de forno calçadas, um pouco debruçada para a frente, como se cheirasse
em directo a corrupção de Portugal.
- Que vergonha! - dizia.
- Estamos acabados - dizia o pai. - Isto daqui para a frente é só putas e campos de golfe.
A mãe olhou-o numa censura, por causa do miúdo. Era por estas e por outras. Lá se
abastardava a Língua Portuguesa.
- Vamos ser a República Dominicana da Europa - concluía o pai, a tentar apagar o mau
passo - Mas sem os cocos.
Todas as noites se abatia sobre eles uma nova decepção. A guerra do Iraque sempre os
distraía do fado nacional. Mas o pai achava que era manobra deles, para não se falar no
desemprego e na crise da economia. E enquanto o país se sentava a ver pedofilia, o pai
comentava que ninguém queria saber da crise da cortiça e que Portugal era um país a prazo.
Alguém já se apercebeu de que dentro de dez anos todas as rolhas serão de plástico? E o país a
gastar milhões com o bicho da cortiça!
- Eles querem lá saber - dizia a mãe. O Carlos encolhia-se, começava a ficar consciente das
unhas dos pés, detestava que os pais falassem por cima do som da televisão.
A doutora Formosa, pequenina, cheia de minúcias competentes, era imensamente
dedicada às suas turmas, que enchia de objectivos, mapas, gráficos, palavras cruzadas, vídeos,
outros complementos didácticos e toda a casta de estratégias motivacionais. Tinha pelo Carlos
uma afeição especial. Achava-o reservado e sonhador, como ela própria era, no fundo. O
entusiasmo de Formosa pela épica camoniana só tinha igual na delícia da lírica, que funcionava
muito bem com os meninos e as meninas do nono ano. Nada que se comparasse ao sucesso do
fogo que arde sem se ver, delírio de risinhos e bilhetinhos pela turma, mas mesmo assim,
elevando a voz para o grandioso, Formosa tinha-os na mão. As armas e os barões assinalados
ainda lhe davam, ao fim de quinze anos de docência, algum tremor, uma exaltação melancólica
das coisas que tendo sido foram o que foram e davam saudade do tal futuro que nunca seria.
Porque entre o Quinto Império do Mundo que ela não sabia exactamente o que era e esta Europa
do Comércio e da Indústria, de onde o espírito escapara, mormente o épico, Formosa olhava para
as mesmíssimas grades nas janelas do imenso abarracamento temporário de anexos e pré-
fabricados em que passava os dias. Grades a que também o Carlos arrimava os olhos , perplexo
com os versos que lhe propunham. Parece que ser português era ter sempre vontade de fugir. De
ir por aí fora com barões ou sem barões. Buscar era coisa de grandeza. Ficar punha-nos doentes,
naquela moinha como quem coça - ou histéricos, pregados ao esgar perene dos anúncios.
Andou ali um bocado a brincar com o lápis por cima dos quadradinhos. O Gama era herói
épico na senda dos grandes heróis da epopeia grega. Quem era o protagonista da Ilíada? Aquiles?
Ulisses? Homero? O Carlos arriscou Aquiles, depois riscou Aquiles e pensou de novo. A vida toda
era um concurso. Era uma adivinha em que os vencedores davam saltos e socos de alegria no ar e
os vencidos dedicavam de olho enxuto a derrota aos vencedores. Isso aprendia-se e treinava-se.
No resto, talvez acertasse por acaso. O Carlos confirmou Aquiles por exclusão de partes, botou-lhe
uma cruzinha e foi para a gramática. "Nisto trabalha só; que bem sabia/ Que, depois que levasse
esta certeza,/ Armas e naus e gentes mandaria/ Manuel que exercita a suma alteza/ Com que a
seu jugo e Lei someteria/ Das terras e do mar a redondeza;/ Que ele não era mais que um
diligente/ Descobridor das terras do Oriente". Sete ques. Felizmente aqui não tinha de perceber o
sentido, só dizer o que era cada um dos ques. O Carlos, que gostava sobretudo da Neide, da forma
como penteava o cabelo com o que houvesse à mão, madeixas penduradas nos lápis, enroladas
nos pincéis da educação visual, a franja agarrada à cabeça por bocados de fita-cola, trancinhas,
repuxos, ganchinhos coloridos. Já comeste a Neide?, brincava o Flávio. O Carlos, que gostava.
Pronome relativo. Repara que na mesa lhe tinham feito um grafitti dos Aerokids. O qual, dissera-lhe
a mãe. Assim, sabes sempre. Quando puderes substituir por o qual. Manuel que, parecia
evidentemente relativo. Que bem sabia que. Aí, o Carlos ficava-se. Mas não eram os sacanas dos
ques todos relativos?
O Flávio apanhou-o a olhar para a Neide, mostrou-lhe a língua, riram os dois. O Flávio
levantou três dedos, também estava com dificuldades nos ques. Que bem sabia que. Quem sabe,
sabe alguma coisa. E o Carlos, depois de deitar um fugaz olhar significativo à professora, esticou o
dedo médio na direcção dela e o Flávio fungou de riso. Formosa desviou os olhos, não quis intervir.
Fingiu que tivera uma ideia de repente e puxou de um papelinho - e o Carlos, abandonado, teve de
voltar à solitária tarefa lusíada.

Luísa Costa Gomes, in http://www.luisacostagomes.com/conto_que.htm

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