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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIN.E

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
AKO V

FU
A. f U4 57
S E T E M B R <

1 9 6
ÍNDICE

Pág.
I. FILOSOFÍA E BELIGIAO

1) "Que há de certo xóbre a morte de Voltaire ? Ter-se-á


finalmente convertirlo no Catolicismo ?" 359

II. DOGMÁTICA

2) "Em nosson dias fnln-se milito da nniño dos cristáos en


tre si.
Que poderíam os fiéis católicos fazer para favorecé-la ?" 367

3) "Como se explica que o principe Don Juan da Espanha


se tenha casado com a princesa Dona Sofía da Grecia, realizando
dois ritos : um na Igreja Católica, e o outro -no templo ortodoxo
cismático ?
A Igreja tero permitido ao principe católico o matrimonio
■ ero urna denomma$üo religiosa nao-católica ?" 3*5

m. MORAL

i) "Haverá casoa em gtie <t Igreja reconhece a legitimidade


do suicidio ?
E como jxdgar a atitude de Santa Apolmia, que. no persegui-
cdo religiosa se atirou ás chaman dan quais era ameacada pelos
perseguidores ?" ^B

5) "Será lícito a um réu, condenado á morte em justa sen-


tenca judiciária, executar sobre si mesmo a sentenga capital ?" .. 387

6) "Alguém receia sucumbir a urna tentacáo e cometer pe


cado, como, por exemplo, a violando de um segrédo profesional.
Nao teria entáo o direito de por fim d. sua vidp, antes de incorrer
em tal culpa?" S88
7) "Será moralmente licito o recurso & greve de fome para
vromover o bem de um povo ? Os casos se tém multiplicado última
mente" 389

TV. SOCIOLOGÍA

8) "Qual o papel do Cristianismo e dos eristaos diante dos


problemas sociais contemporáneos ? Há quem deseje que os cris
táos e a Igreja atuem mais, como há também quem oche que as
questdes profanas nao sño da aleada da Igreja.
Que pensar a propósito t" 392

CORRESPONDENCIA MIÚDA 399

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano V — N* 57 — Setembro de 1962

I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

O. R. (Curitiba) :

1) «Que há de certo sobre a morte. de Voltaire? Ter-se-á


finalmente convertido ao Catolicismo?»

Frangois-Marie Arouet de Voltaire é um dos máximos cori-


feus da Filosofía racionalista do séc. XVIII na Franga. Nascido
em Paris aos 21 de novembro de 1694, veio a falecer ai aos 30
de maio de 1778. Empregou o seu talento satírico e seu apreciado
estilo literario no combate á Igreja Católica; a sua atitude em
relagáo a esta se exprime claramente no estribilho com que
concluia muitas de suas cartas : «Aimez moi écrlinf» (em lugar
de «... écrasez l'infame»), isto é, «Estimai a mim; esmagai,
porém, a infame (a Igreja Católica)».

Depois de dominar o pensamento do seu século na qualidade de


«Roí Vollaire» (rei Voltaire), terá morrido em trágicas circunstancias:
refere urna antiga versáo que soíria atrozes dores físicas em seu leito
de morte, ás quais se associavam tremendas angustias de ánimo; vitima
de furor e desespero, terá «comido os seus próprios excrementos e le
vado aos labios o seu urinol, a fim de temperar a horrorosa sede que o
atormentava». Isto tudo se haverá dado em castigo dos escarnios com
que Voltaire tratava o Profeta Ezequiel; éste, de fato, realizou gestos
semelhantes a íim de predizer, de man eirá dramática e simbólica, a
extrema aflicao e a miseria que haviam de acometer o povo de Israel
no exilio (el. Ez 4, 9-17). O filósofo francés, portanto, haverá morrido
como viveu, isto é, na impeniténcia, proferindo imprecagóes e blasfe
mias contra Deus e a Igreja.

Eis, porém, que o periódico francés «Le Fígaro Littéraire»,


em agosto de 1955, publicou cinco documentos recém-desceber-
tos por Jacques Donvez nos arquivos de um tabeliáo de Paris,
documentos segundo os quais Voltaire em seu leito de morte terá
retratado por completo os seus erros, fazendo, a seguir, urna con-
fissáo sacramental ao Pe. Gaultier (o jornal apresentava mesmo
o «fac-simile» da retratagáo assinada por Voltaire e duas teste-
munhas : o Pe. Gaultier e o Pe. Mignot, sobrinho do moribundo).
Esta publicagáo naturalmente surpreendeu o público e provocou
debates entre os historiadores, pois, enquanto uns afirmam que
realmente Voltaire se converteu para a Igreja antes de morrer,

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 1

outros guardam reservas ñas suas conclusóes, julgando que o


teor dos documentos nao é suficientemente claro para permitir
tal assercáo.
Contado hoje em dia, após novo estudo dos textos e das fon-
tes da historia, já se pode reconstituir com certa seguranga o
trámite dos acontecimentos que caracterizam o fim de vida de
Voltaire : delimita-se assim o que há de certo e o que há de in-
certo nesse setor. É a tal reconstituigáo que vamos agora proce
der, a fim de elucidar o caso na medida do possivel.

1. O inicio da etapa final

Sabe-se que a última etapa da existencia de Voltaire come-


eou com a viagem que ele fez de Femey para París, onde chegou
aos 10 de fevereiro de 1778, tendo cerca de 84 anos de idade.
Desde os seus 27 anos nao via mais a capital francesa; dessa vez
ia visitá-la a convite de admiradores seus, que lhe queriam pro
porcionar o prazer de assistir á pega teatral da lavra de Voltaire
mesmo : «Irene». A recepgáo foi apoteótica : académicos, artis
tas, homens e mulheres nobres lhe prestaram todas as homena-
gens; as ovacóes populares, retumbantes como eram, aclamaram
em Voltaire «o protetor dos oprimidos, o apostólo da tolerancia
universal»; um busto do filósofo foi coroado em varios teatros
da capital. Depois da representacáo da tragedia «Irene», Voltaire
interpelou o público nos seguintes termos : «Queréis sufocar-me
debaixo das rosas!»

Até mesmo o embaixador Franklin, dos Estados Unidos, em París


levou a Voltaire o seu netinho, o qual se ajoelhou diante do filósofo,
pedindo-lhe a béncáo. Voltaire estendeu entáo a máo sobre o menino,
exclamando: «Deus e Patria!». — Sao, porém, destituidas de funda
mento as noticias que íalam de visita de bispos franceses ao corifeu
racionalista.
Todo ésse entusiasmo era talvez especialmente agujado por pres-
sentirem todos que o velho pensador estava no íim dos seus dias. file
mesmo nao se enganava a propósito : em suas cartas e bilhetes, nessa
época, costumava chamar-se «o velho doente» e falava freqüentemente
sObre a sua morte próxima.

Quanto as suas disposicóes de alma, ele as revelou em 25 de


novembro de 1777, escrevendo a Frederico n da Prússia :

«Mais do que nunca experimento aversüo para com a extrema-


•ungáo e para com aqueles que a administram. Entrementes, prostromo
aos pés de V. Majestade e a invoco como consolador meu nesta vida
e na outra».

Foi, pois, com ésses sentimentos que Voltaire entrou na qua-


dra final da sua vida.

_ 360 —
VOLTAIRE CONVERTEU-SE NA HORA DA MORTE ?

2. Doenga e «retratacao»

Dias depois de chegar a Faris, o filósofo caiu doente ¡e teve


que se recolher ao leito. Foi entáo que entrou em cena o
Pe. Gaultier.

Ardendo de zélo sacerdotal, Gaultier tinha o coracáo confrangido


ao presenciar o triunfo da impiedade, como ele mesmo o refere poste
riormente em carta ao arcebispo de París :
«Dizia em mim mesmo :... Um homem que blasfemou contra a Re-
ligiáo e que por seus escritos destruiu os bons costumes, é honrado,
coroado e quase adorado?... Roguei ao Senhor que impega os estragos
que o Patriarca dos incrédulos podia catisar na capital (París)».

Como capeláo do Hospital dos Incuráveis em París, o sacer


dote resolveu destemidamente oferecer os prestimos da sua assis-
téncia ao «Patriarca dos incrédulos»; escreveu-lhe, pois, urna
carta nesse sentido, datada de 20 de fevereiro de 1778. A missiva
cheetava a Voltaire em boa hora, pois o enfermo já se preocupava
muito com os seus funerais e «nao quería em hipótese alguma
que seu cadáver fósse atirado ao monturo» (expressáo do pro-
prio Voltaire).
Por conseguirte, logo no día 21 de fevereiro o doente res
pondía ao Pe. Gaultier em termos muito corteses, mas também
muito imprecisos:

«Estou com oitenta anos; comparecerei em breve diante de Deus,


Criador de todos os mundos. Se V. S. tem alguma coisa a me comunicar,
considerarei como um dever e urna honra receber V. S. em visita, apesar
dos sofrimentos que me abatem».

O Pe. Gaultier nesse mesmo dia foi ter com Voltaire, entre-
tendo-se tres quartos de hora á sua cabeceira, mas em conversa
de mera cortesia. Tsto, de resto, Ihe bastava para aue comuni-
casse o ocorrido ao Vigário Geral de París. Pe. de l'Ecluse, e ao
cura de Sao Sulpício, em cuia paróauia residia Voltaire; como re
sultado désses oricontros, ficou deliberado que Voltaire deveria
proferir urna retratacáo formal dos seus erros, caso quisesse
receber os sacramentos da Igreja.
Ora aos 26 de fevereiro escrevia de novo o enfermo ao
Pe. Gaultier:

«V. S. me prometeu voltar para ouvir-me; rogo-lhe que venha desde


que possivel».
Note-se que a expressáo «para ouvir-me», na linguagem da época,
significava «para me confessar».

No dia seguinte, 27 de fevereiro, era a sobrinha de Voltaire,


Mme. Denis, quem escrevia :

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962. qu. 1

«Mme. Denis, sobrinha de M. de Voltaire, pede ao Pe. Gaultier,


queira ir visitá-lo; ficar-lheá muito grata».

Aínda aos 27/H foi Gaultier procurar o doente, mas nao o


pode abordar. Voltou entáo no dia 2 de margo; ao avistá-lo, o
filósofo agarrou-lhe a máo e pediu-lhe que o ouvisse em confis-
sáo. A isto respondeu o sacerdote ser necessário antepor urna
retratacáo, conforme as indicacóes do cura de S. Sulpício. Vol
taire nao recusou, redigindo entáo e assinando o seguinte texto :

«Eu, abaixo-assinado, declaro que, estando há quatro días atacado


de vómitos de sangue, na idadé de oitenta e quatro anos, nao me pude
arrastar até a igreja. O Sr. Cura de S. Sulpício, entáo, aos seus méritos
anteriores quis acrescentar o de me enviar o Pe. Gaultier; confessei-me
a ele. Se Deus dispuser de mim, morrerei na santa Religiáo Católica,
em que nasci, cheio da esperanca de que a santa misericordia de Deus
se digne apagar todas as minhas faltas; e, dado que alguma vez tenha
escandalizado a Igreja, pego perdSo a Deus e a Ela».
Foi éste o documento mais importante que «Le Fígaro» (n* citado)
publicou em 1955, dando margem, como se compreende, a debates. Já
se conhecia, anteriormente, a existencia dessa pega, mas sómente por
alto, nao em seu teor original; f6ra depositada pessoalmente pelo
Pe. Gaultier no cartório do tabeliáo de París.

Ao ler o texto. Gaultier se quedou pensativo: seria sufi


ciente retratagáo? Voltaire entáo acrescentou, de próprio punho,
a observagáo :

«O Pe. Gaultier deu-me a saber o seguinte: certas pessoas asseve-


raram que eu havia mais tarde de protestar contra tudo que eu viesse
a íazer em perigo de morte. Em vista disto, declaro que nunca tive ésse
propósito de protestar e que se trata de um gracejo, gracejo hipócrita,
alias, de que tém sido vitimas, já desde muito, varias sabios mais ilus
trados do que eu».

O Pe. Gaultier, hesitando aínda sobre a suficiencia do do


cumento, nao quis proceder á confissáo sacramental sem previa
mente o apresentar ao arcebispo de Paris. para saber se éste o
reconheceria ou nao. Eis o trecho do relato em que o sacerdote
expóe o resultado dessa consulta :

«O Sr. de Voltaire. entregando-me sua retratacáo, disseme na pfe-


senca do Pe. Mignot de Villevieille : 'Sem dúvida, Sr. Padre, V. S. está
autorizado a publicá-la nos i ornáis; nao me oponho a isso'. Respondí-
•Ihe: 'Aínda nao é tempo de o fazer'. Perguntou-me, a seguir, se eu
estava contente. Dei-lhe a saber que a retratacáo nao me parecía sufi
cientemente ampia e que eu a comunicaría ao Sr. arcebisoo de Paris.
Foi o aue fiz; mas ésse virtuoso prelado nao a julgou suficiente. Deixei
urna copia da mesma na sua residencia de Conflans, onde ele entáo se
achava. DeDois fui ter com o pároco de S. Sulpício Dará o informar do
meu procedimento, dando-lhe urna copia da retratacáo, que ele também

— 362 —
VOLTAIRE CONVERTEU-SE NA HORA DA MORTE ?

nao aprovou; entreguei-lhe ao mesmo tempo um bilhete de Voltaire,


que lhe prometía seiscentas libras para os pobres da sua paróquia».

Diante das duas recusas, o Pe. Gaultíer foi logo no dia se-
guinte, 3 de margo, procurar Voltaire, com a intengáo de lhe
pedir «retratagáo menos equívoca e mais explícita». Contudo nao
pode ser recebido. Repetiu a tentativa varias vézes, mas em váo;
Voltaire estava rodeado de «amigos» («D'A.... D...», dizem
os textos ; seriam D'Alembert, Diderot ?).
Ainda aos 13, 15 e 30 de margo o Pe. Gaultier escrevia car
tas em que se queixava de nao o quererem receber em casa de
Voltaire. Resolverá entáo aguardar novo chamado da parte
déste, de mais a mais que entrementes o enfermo havia recupe
rado a saúde...

3. Redivivo...

Nos tempos subseqüentes á cura, como terá procedido


Voltaire?
É o Pe. Gaultier quem o refere :

«Durante dois meses, Voltaire cometeu muita coisa que nao me


agradou e que eu talvez pudera impedir, se me fftra dado entreter-me
com ele».

E quais teráo sido essas coisas desagradáveis?


O sacerdote relata que Voltaire foi oficialmente recebido na
Magonaria e se prestou as cerimónias de coroagáo do seu busto
no teatro da Comedia Francesa, ato éste que tinha nítido caráter
de impiedade. Além disto, urna serie de cartas do filósofo datadas
dessa época revela que a retratagáo do dia 2 de margo ou nao foi
sincera ou foi, por sua vez, «retratada». Eis um ou outro dos
trechos mais significativos (note-se o estilo dissimulado e sa
tírico) :

Ao rei Frederico II da Prússia (monarca racionalista, deturpador


do Cristianismo) escrevia o doente redivivo, referindo-se ás atitudes
anticristas do soberano:

«Eu nao perdería a esperanca de mandar proferir dentro de um mes


o panegírico do Imperador Juliano (cheíe da reacáo paga contra o Cris
tianismo, de 361 a 363)... Vé-se, Majestade, que a opiniáo pública acaba
por se esclarecer e que os individuos que se julgam destinados a
obcecá-la nao conseguem sempre vasar os olhos do público... (referen
cia aos cristaos, que nao haveriam podido prevalecer contra a menta-
Ildade paga)! Gracas sejam dadas a Vossa Majestade! Vossa Majestade
veneeu os preconceitos, como derrotou seus outros inimigos... Triunfou
da supersticáo (Cristianismo) e se tornou sustentáculo da liberdade
germánica».

— 363 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 1

A De Vaines, pouco depols, se dirigía Voltaire :

«Os primeiros exemplares da obra 'Pascal-Condorcet' que chegarem


do estrangeiro, seráo para V. S. — Eis dois grandes homens : o primeiro,
porém, era fanático, e o segundo um sabio».
Note-se que Pascal era cristao, ao passo que Condorcet professava
impio racionalismo.

Em 16 de abril, eram as seguintes palavras enviadas ao Conde de


Rochefort:

«Creio que o Pe. de Beauregard, pregador de Versailles, tido como


jesuita, me recusaría de bom grado a sepultura — o que é muito injusto,
pois o público afirma geralmente que eu nada desejo táo ardentemente
como poder enterrá-lo. Sendo assim, parece-me que ele me deveria
semelhante cortesía».

Por fim, aos 16 de maio decantava Voltaire :

«Suporto com constancia


Minha longa e triste existencia,
Sem incorrer no erro da esperanga».

Pois bem; já a esta altura do ano o desenlace do «Patriarca da in-


•redulidade» se aproximava a passos rápidos.

4. Doloroso fim. Conclusoes

Por ocasiáo das mencionadas festas de coroagáo do seu


busto, Voltaire, desejando criar em si vigor e euforia, tomou as
ocultas dezoito jdcaras de café! Éste «tónico» reavivou néle os
gérmens da doenca latente. Passou a sofrer de insónia; deram-
-lhe entáo um frasco de calmante na base de opio; em vez de o
ingerir em tres ou quatro doses, liquidou-o todo de urna vez — o
que mais agravou o seu estado. Os familiares chamaram o
Dr. Tronchin para lhe assistir. Voltaire se prostrou no leito, pa-
decendo cruciantes dores físicas e entregando-se a urna lingua-
gem de injurias e ofensas (as espantosas circunstancias dessa
situacáo sao descritas pelo Dr. Tronchin nos termos que recor
damos no inicio desta resposta; o depoimentoj porém, nao tem
merecido o crédito de bons historiadores, pois Tronchin, calvi
nista puritano como era, parece testemunha suspeita).
O fato contudo é que aos 30 de maio Voltaire pediu a pre
senta do Pe. Gaultier... Éste sem demora foi ter com o en
fermo, levando dessa vez o texto de nova retratagáo, retratacáo
que o Pe. Mignot, sobrinho de Voltaire, examinara, comprome-
tendo-se a obter para ela a assinatura de seu tío. A declaracáo
assim rezava:

— 364 —
VOLTAIRE CONVERTEU-SE NA HORA DA MORTE ?

«Retiro tudo que eu tenha dito, íeito ou escrito contra os bons coa-
turnes, contra a Religiao crista (na qual tive a felicidade de nascer),
contra a adorável pessoa de Jesús Cristo, cuja Divindade me acusam de
haver atacado, contra a Sua Igreja, na qual desejo morrer.
Presto agora o desagravo devido em presenca do público escandali
zado pelas obras que já há tantos anos vém sendo publicadas com o
meu nome. Éste desagravo nao é conseqüéncia de debilitacáo das minhas
íaculdades combalidas por adiantada idade, mas é fruto da graca de
Jesús Cristo, da qual fui muito indigno; é ela que me faz ver o terrível
perigo em que os delirios da minha imaginacao me envolveram. Desejo
que éste desagravo seja publicado em todos os jomáis e gazetas da
Europa, a fim de que compense, tanto quanto possivel, os escándalos
que eu quisera destruir á custa mesmo dos poucos dias de vida que me
restam.

Dado em Paris, aos 30 de maio de 1778, na presenca do Sr. Cura


de Sao Sulpicio e do Pe. Gaultier».

Levando essa fórmula, o Pe. Gaultier e o cura de Sao Sulpi


cio foram introduzidos no apartamento de Voltaire. Chegando-se
perto do leito, o cura pós-se a falar, mas sem resultado, pois o
enfermo já nao o reconheciá. Gaultier entáo tentou, por sua vez,
estabelecer contato; é ele mesmo quem o narra :

«Voltaire apertou-mc as maos, c deu-me provas de coiifianca e ami-


zade; contudo fiquei muito surpréso quando me disse: 'Pe. Gaultier,
peco-lhe que transmita minhas saudagóes ao Pe. Gaultier'. Continuou a
dizer-mc coisas que nao faziam sentido. Assim perccbi que estava deli
rando, e nao lhe falei nem de confissáo .nem de retratacao. Apenas
pedi as pessoas presentes que me mandassém chamar de novo logo que
voltasse a ter consciéncia de si. Prometeram-mo. Infelizmente, porém,
eu, que esperava rever o doente, no dia seguinte recebi a noticia de
que havia falecido tres horas depois de o havermos deixado, isto é,
no dia 30 de maio ás 11 h da noite.
Se eu suspeitasse de que havia de morrer táo rápidamente, nao me
teria afastado e haveria empregado todos os esforcos para o ajudar a
morrer devidamente. Faleceu, portante, sem sacramentos; queira Deus,
nao tenha morrido sem conceber o auténtico desejo de os receber e de
íazer a retratac&o de todas as manifestacSes de impiedade da sua vida»
(extraído do relato dirigido pelo Pe. Gaultier ao arceblspo de París em
1» de junho de 1778).

Eis o que a documentagáo segura, incluindo os textos recém-


-descobertos, permite dizer a respeito do desenlace de Voltaire.
As conclusoes dai decorrentes se poderiam assim formular :

1) Voltaire nao se retratou suficientemente nem no dia 2


de margo, nem em data posterior. A retratacáo encontrada re-
centemente em Paris foi, sim, assinada por ele e por duas tes-
temunhas; contudo os seus dizeres sao táo pouco precisos que
nao pode no seu tempo (nem pode hoje) ser tida como genuina
desdita dos erros e das blasfemias anteriormente proferidos pelo

— 365 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 1

«Príncipe dos incrédulos». Tal documento, portante, nao basta


para se dizer que Voltaire morreu como-católico.

2) O filósofo nao se confessou nem no dia 2 de marca nem


no momento de sua morte.

3) • Pode-se alimentar a esperanga, expressa pelo Pe. Gaul-


tier, de que o moribundo haja ao menos concebido o desejo sin
cero de se converter á fé e de reparar o mal cometido. Sómente
Deus sabe até que ponto esta esperanga corresponde 'á realidade.
Quanto a nos, tendo em vista apenas o desenrolar sensível dos
acontecimentos, nao possuímos base (seja lícito repetir) para
asseverar que Voltaire haja morrido no gremio da Santa Igreja.
— Nessas condigdes, compreende-se que seu corpo nao podia ser
sepultado dentro do ritual fúnebre católico; o arcebispo de París
e o cura de Sao Sulpício o declararam explícitamente; do seu
lado, o bispo de Annecy proibiu, fósse inumado na igreja de Fer-
ney, lugar em que Voltaire vivera muitos anos. Contudo, o
Pe. Mignot, sobrínho do defunto, sendo Abade comendatario do
mosteiro de Scelliére, mandou transferir os despojos para éste
cenobio e os fez sepultar em urna cápela da Abadia.
Em 1791, a Assembléia Nacional da Franga decretou que
Voltaire era digno das honras que convém aos grandes vultos da
historia do género humano, e mandou trasladar as suas cinzas
para o Panteón de París. A cerimónia se deu aos 11 de julho
désse ano, havendo sido composto para essa ocasiáo um hiño
altamente significativo da mentalidade da época, hiño do qual
abaixo transcrevemos algumas estrofes (deixamo-las no seu teor
original, porque, traduzidas, perderiam muito da sua expressáo):

«Ah! ce n'est point des pleurs qu'il est temps de répandre;


C'est le jour du triomphe, et non pas des regrets.
Que nos chants d'allégresse accompagnent la cendre
Du plus ¡Ilustre des Franjáis.

Salut! mortel divin, bienfaiteur de la terre;


Nos murs, prives de toi, vont te réconquérir;
C'est á nous qu'appartient tout ce que fut Voltaire;
Nos murs l'ont vu naitre et mourir.

Ton souffle créateur nous íit ce que nous sommes;


Recois le libre encens de la France á genoux;
Sois désormais le dieu du temple des grands nomines,
Toi qui les as surpassés tous.

366
UNIAO DOS CRISTAOS

Sur cent tons différents ta lyre enchanteresse,


Fidéle á la raison comme á l'humanité,
Aux mensonges brillants inventes par la Gréce
Unit la simple vérité.

Chantez, peuples pasteurs, qui des monts helvé


Vites longtemps planer cet aigle audacieux;
Habitants du Jura, que vos accents rustiques
Portent sa gloire jusqu'aux cieux.

Fils d'Albion, chantez; Américains, Bataves,


Chantez : de la raison célébrez le soutien.
Ah! de tous les mortels qui ne sont point esclaves
Voltaire est le concitoyen.»

Esta pega ilustra bem um fato que se repete constantemente


na historia : quando os homens deixam de dar culto a Deus, pas-
sam a adorar os próprios homens!

II. DOGMÁTICA

APOSTÓLO LEIGO (Vitoria) :

2) «Em nossos días fala-se muito da uniao dos cristáos


entre si.
Que poderiara os fiéis católicos fazer para favorecé-la?»

Em primeiro lugar, exporemos urna ou outra característica


do movimento pró-uniáo dos Cristáos. A seguir, consideraremos
o papel que possa caber aos fiéis católicos nesse alvissareiro
movimento.

1. Urna grande aspiracao

1. Quem considera o panorama do Cristianismo em nossos


dias, verifica que está expandido pela face do globo, abrangendo
quase a térga parte da populagáo mundial, ou seja, 960 milhóes
de almas num total de aproximadamente 2.800.000 de habitan
tes da térra. Contudo essa térga parte nao é coesa em si, mas
está, por sua vez, dividida em tres fragóes. Existem, sim,

a) o bloco católico, isto é, universal, assim dito porque destinado a


todos os homens sem distingáo de nacionalidade;

apostólico, assim chamado porque se deriva de Cristo


e dos Apostólos ininterruptamente até o dia de hoje;

_ 367 —
sPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962. qu. 2

romano, assim designado, porque dentre os Apostólos


Cristo escolheu Pedro para confirmar seus irmaos na
íé (cí. Le 22,32) e apaseentar suas ovelhas (c£. Jo 21,
15-17). Ora Pedro viveu e morreu como bispo de Roma.
Donde se segué que «Igreja de Cristo vem a ser
«Igreja petrina> e, conseqüentemente, «Igreja Roma
na», sem que isto implique em nacionalismo ou relati
vismo patriótico. Compreende cérea de 500 milhóes de
fiéis;

b) o bloco ortodoxo, que desde 1054 nao está mais em comunháo


com Roma. Chama-se ortodoxo, porque nos sécu-
los V/VII, durante os quais se propagaram as grandes
heresias cristológicas (nestorianismo e monofisismo),
íicou fiel á reta doutrina ou á ortodoxia. Compreende
aproximadamente 200 milhóes de almas;

c) o bloco protestante ou evangélico, que tem suas origens na


«Reforma» do séc. XVI; conta 260 milhoes de crentes.
— A comunháo anglicana ou episcopal é geralmente
incluida dentro déste bloco. Os próprios anglicanos,
porém, se apresentam muitas vézes como «Igreja-
•ponte» ou traco de uniáo entre protestantes e católicos,
pois abracam simultáneamente algumas das caracterís
ticas de um e outro bloco.

Já que éste artigo tem por objetivo tratar da uniSo entre os cristáos,
nao é da nossa aleada expor as características doutrinárias da ortodoxia
e do protestantismo. Já foram apresentadas respectivamente em «P.R.»
10/1958, qu. 11; 17/1959, qu. 4.

2. A separagáo entre cristáos é muitas vézes considerada


como um fato que se aceita e contra o qual nada se pode em-
preender; «será preciso carregá-la até o fim dos tempos!». Pa
rece nao haver mais esperanga de reatar os vínculos rompidos.
Desde o inicio do sáculo presente, porém, o Espirito Santo
vem suscitando nos cristáos a dor da divisáo mutua e o deseio
cada vez mais vivo de reconstituir a unidade. Os discípulos de
Cristo váo tomando consciéncia sempre mais clara de que éste
estado de coisas nao se deve prorrogar, porque contradiz as in-
tencóes do Senhor (cf. Jo 17,21). É verdade que a Igreja Cató
lica,- apesar das dolorosas crises que do seu seio arrancaram
numerosos povos, nao foi afetada. Ela se assemelha a urna ár-
vore frondosa, da qual vendavais e tempestades quebraram e le-
varam ramos vigosos; a árvore permaneceu viva e firme, sim;
felá se renova a partir do seu intimo ou da sua seiva própria;
é inegável, porém, que foi mutilada e que o tronco e os ramos
arrancados permanecem relacionados entre si, como que a ape
lar mutuamente uns para os outros. — Destarte os fiéis católi
cos véem que, embora a natureza íntima da Igreia de Cristo nao
tenha sido afetada pelas heresias e os cismas, o desmembra-

— 368 —
UNIAO DOS CRISTAOS

mentó da Cristandade é urna verdadeira desgraga, desgraga para,


a qual o remedio seria o reatamento dos vínculos quebrados.

Entendamo-nos bem: o católico nao julga que esteja faltando á


Igreja Católica algo de essencial para ser a Igreja desejada por Cristo;
os tres blocos cristáos discriminados nao constituem fragmentos Incom
pletos de urna pretensa Igreja de Cristo que ainda deva ser constituida
pela uniao mutua désses blocos. Nao; o Cristo, que prometeu assistir
aos Apostólos e aos seus sucessores até a consumagáo dos séculos (cf.
Mt 28,20), nao terá frustrado a sua promessa, permitindo que a Igreja
por Ele fundada se esfacelasse no decorrer dos séculos; o tronco ou a
estrutura da Igreja nao foram atingidos pelas calamidades dos tempos.
Apesar disso, deve-se profundamente desejar que todos aqueles que pro-
fessam o Cristo, O professem num só rebanho visivel sob um Pastor,
como preconizou Jesús (cf. Jo 10,16). Ademáis, dizia Pió XI, «todas as
partículas de urna rocha aurífera sao auríferas»: o que quer dizer : qual-
quer dos blocos cristáos separados de Roma traz em si algo das riquezas
espirituais que o Senhor confiou á sua Igreja; qualquer désses blocos
tem suas características de doutrina e piedade que, ao-menos em parte,
podem ser profundamente edificantes para os fiéis católicos. Assim os
luteranos p5em o acento sdbre a absoluta gratuidade da grasa de Deus,
os calvinistas enaltecem o contato assiduo com a Biblia Sagrada, os
ortodoxos ensinam o aprégo pelos aspectos místicos da Igreja e por urna
liturgia mais participada ou vivida em comunidade.
Destas consideragOes é que se origina e deve nutrir, tanto nos fiéis
católicos como nos irmáos evangélicos e ortodoxos, o ardente anelo de
uniao mutua. É preciso que todos sintam a dor de estar separados entre
si, embora os cristüos católicos saibam que, por efeito da insondável
liberalidade divina, nada de essencial lhes falta na Santa Igreja a que
pertencem.

E como proceder para facilitar táo almejada uniáo?

2. Os recursos a empregar

A uniáo entre cristáos nao há de resultar própriamente de


sabios estudos realizados entre teólogos nem de entendimentos
diplomáticos, mas será genuino dom de Deus, e como tal deverá
ser, antes do mais, impetrada por meios sobrenaturais, dos quais
o primeiro será

1) a oracáo.

As autoridades eclesiásticas tém continuamente excitado os


fiéis a rezar pela uniáo. Em termos solenes fazia-o recentemente
o Santo Padre Joáo XXIH na encíclica «Ad Petri Cathedram»,
em que anunciava o próximo Concilio Ecuménico (o. qual terá
por finalidade remota favorecer a uniáo dos cristáos) :

«Nos, tendo em vista a conservacSo da unidade da Igreja e o au


mento do redil de Cristo e do seu reino, elevamos súplicas á Benignidade

— 369 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 2

Divina, dispensadora da luz celeste e de todos os bens, e exortamos tam-


bém a orar com perseveranca todos os Nossos Irmáos e íilhos em Cristo.
O bom éxito do futuro Concilio Ecuménico, mais do que da humana
atividade e diligencia, depende das ardentes oragóes elevadas por todos
a porfía. Para elevarem estas súplicas a Deus, convidamos com afeto
também aqueles que, nao sendo déste redil, contudo prestam a Deus
a devida honra e sinceramente procuram obedecer aos seus preceitos.
Aumente e coroe esta esperanga e estes Nossos votos a oracáo sa
cerdotal de Cristo: 'Pai Santo, guarda no teu nome aqueles que Me
deste, para que sejam um só, como Nos..., para que sejam perfeitos na
unidade* (Jo 17, 11. 23).
Esta oragáo, renovamo-la com o mundo católico unido a Nos; e
fazemo-Io nao só animados de viva chama de amor para com todos os
povos, mas também com espirito de sincera humildade evangélica.
Conhecemos a pequenez da Nossa pessoa, que Deus, nao pelos Nossos
méritos, mas por oculto designio Seu, se dignou elevar á dignidade de
Sumo Pontífice. Por isto, a todos os Nossos irmáos e filhos separados
desta Cátedra de Pedro repetimos as palavras: 'Eu sou José, vosso
irmao' (Gen 45,4). Vinde, 'compreendei-Nos1 (2 Cor 7,2); nao queremos
outra coisa, nao desejamos outra coisa, nao pedimos a Deus outra coisa
Benáo a vossa salvacao, a vossa eterna felicidade» (ene. cit. ns. 50-52).

Deve-se observar outrossim que, durante os preparativos da


Assembléia geral do Conselho Mundial das Igrejas (entidades
protestante e ortodoxa), realizada na cidade de Nova Delhi
(india) em novembro/dezembro de 1961, os bispos católicos da
Suíga, da Holanda e da India exortaram seus fiéis a rezar pelos
bons frutos de tal encontró.
Doutro lado, em todas as partes do mundo numerosas comu
nidades de cristáos náo-católicos tém orado pelo feliz éxito do
II Concilio Ecuménico do Vaticano.
Há mesmo duas épocas do ano que todos os cristáos (cató
licos e náo-católicos) costumam dedicar especialmente á oragáo
pró-uniáo : a oitava de 18 a 25 de Janeiro (isto é, da festa da
Cátedra de S. Pedro á da Conversáo de S. Paulo) e a novena
anterior a Pentecostés (festa da fundagáo da Igreja).

Importa notar que a oitava de oracóes de Janeiro (que é, alias, a


mais divulgada) foi instituida em 1908 por dols ministros anglicanos,
Spencer Jones e Paúl Watson, dos quais éste nove meses mais tarde se
converteu ao Catolicismo. — Foi Leáo XIII quem em 1895 instituiu a
novena de Pentecostés, para apressar «a obra de reconciliacHo dos
Irmáos separados».

Existem nao poucos formularios de oragóes para a oitava de


Janeiro, tanto de origem católica como de origem protestante e
ortodoxa. Para cada dia da oitava, costuma-se assinalar urna in-
tengio unionista especial.

— 370 —
UNIAO DOS CRISTAOS

Eis um espécime católico :

«18 de j aneiro em prol da unidade de todos os cristáos;


19 de aneiro ... que os cristáos sintam a dor da separacáo;
20 de aneiro em prol da santificagáo dos católicos;
21 de aneiro em prol da santificacáo dos ortodoxos;
22 de aneiro em prol da santiíicagáo dos anglicanos;
23 de aneiro em prol da santificacáo dos protestantes;
24 de aneiro em prol da santificacáo das Igrejas de Missáo;
25 de ' aneiro em prol da unidade de todos os homens na cari-
dade e na verdade de Cristo».

(Transcrito de um folheto publicado pelo Pe. Michalon P.S.S., Sé-


minaire Universitaire, place Abbé-Larue, Lyon [5éme.] Franca).

Da parte do Conselho Mundial das Igrejas (protestante-ortodoxo),


encontra-fie, por exemplo, a seguinte lista;

«1« dia da oitava — pela unidade de todos os cristáos;


2* dia da oitava — pelos católicos romanos;
3' dia da oitava — pelas Igrejas ortodoxas e as outras Igrejas
orientáis (nestoriana, monofisita...);
4* dia da oitava — pelos anglicanos e os Velhos-Católicos;
5* dia da oitava — pelos luteranos, presbiterianos e reformados
(calvinistas);
6' dia da oitava — pelos batistas, congregacionalistas e meto
distas ;
T> dia da oitava — pelos cristáos em favor dos quais ainda nao
oramos especialmente nos dias anteriores,
assim como pelas Igrejas que já se uniram
entre si;
8° dia da oitava — pela unidade de todo o género humano no
amor e na verdade de Cristo».

(Extraído de um íolheto editado pela Comissáo de Fé e ConstituicSo


do Conselho Mundial das Igrejas, para o ano de 1962).

Nao deve causar estranheza o fato de que se recomendé a um cató


lico a oracáo em prol da santificacáo dos protestantes e ortodoxos. Os
irmáos protestantes e ortodoxos que sejam fiéis ao que a sua conscién-
cia Ihes manda sem hesitacáo, santificam-se (por causa da*sua boa fé,
nao por causa da sua «verdadeira> fé); ora, santificando-se, aproxi
mante mais de Cristo, e, aproximando-se mais de Cristo, nao podem
deixar de ser beneficiados por mais pura visáo da verdade e mais ar-
dente amor a Cristo; adquirem assim novas possibilidades de voltar a
«um só corpo, um só espirito,... um só Senhor, urna só fés> (cf. Ef 4,4s).

É o que sugería ao Cardeal Saliége (de Tolosa) as seguintes pa-


lavras :

«Por conseguinte, orar para que nossos irmáos separados cresgam


em fervor, na íé em Jesús Cristo, será orar pela unidade».

Outro elemento sobrenatural que favorecerá a uniáo será

— 371 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 2

b) A pureza de vida dos cristáos.

O valor da pureza ou da santidade de vida se depreende, em parte,


do que acaba de ser dito.

Aos católicos incumbe, de maneira especial, o dever de se


santificar, pois sao particularmente responsáveis pela sorte da
Igreja de Cristo; toca-lhes, sim, a obrigacjio de apresentar a ge-
nuína face da genuína Igreja. Inegávelmente, quanto mais os
católicos fórem fiéis ao seu ideal cristáo, tanto maior será b
poder de atragáo da Igreja sobre os náo-católicos : «Éles espe-
ram ver resplandecer a luz do Cristo Jesús em nossa vida, para
se chegar a Ele, que é o Caminho, a Verdade e a Vida» (Cardeal
Léger). Aos olhos dos homens, a Igreja se exprime pelos seus
filhos, embora estes nem sempre correspondam aos ideáis de sua
Santa Máe a Igreja.

Justamente em vista de urna renovafiáo da vida católica é


que o Santo Padre Joáo XXIII convocou o próximo Concilio
Ecuménico; urna vez tornada mais pura e atraente a face hu
mana da Igreja, S. Santidade julga que mais fácil será dialogar
com os irmáos náo-católicos :

«Nao pedimos sómente orajes aos Nossos caríssimos íilhos, pedi-


mos-lhes também aquela renovacao da vida crista que, mais do que as
oraches, é. capaz de nos tornar Deus propicio, a nos e aos nossos irmáos.
Com prazer repetimos a todos vos as palavras... do Apostólo das
gentes : 'Revesti-vos do Senhor Jesús Cristo' (Rom 13,14)...
Se, portante, alguém tevé a desgraga de se afastar do Divino Re
dentor por causa de suas faltas e pecados, pedimos-lhe encarecidamente
que volte Aquele que é 'o Caminho, a Verdade e a Vida' (Jo 14,6); e,
se alguém está tibio, frouxo, remisso e negligente, renové a sua fé, e
com o auxilio da graca divina alimente e consolide a virtude; finalmente,
se alguém, com a ajuda de Deus, 'é justo, justifique-se mais; e, se é
santo, santiíique-se mais' (Apc 22,11).
... Esta' renovacao da vida crista, esta vida virtuosa e santa, dese-
jamo-la a todos vos e pedimos constantemente a Deus que vó-la conceda,
nao só aos que perseveram firmes na unidade da Igreja, mas também
aqueles que se esforgam por entrar nela, trazidos pelo amor da verdade
e por urna vontade sincera...
... Sem dúvida, o Concilio Ecuménico constituirá maravilhoso
espetáculo de verdade, unidade e caridade, espetáculo que, ao ser con
templado pelos que vivem separados desta Sé Apostólica, os convidará,
como esperamos, a buscar e conseguir a unidade pela qual Cristo dirigiu
ao Pai do Céu a sua fervorosa oracáo» (ene. «Ad Fetri Cathedram>
ns. 81s. 85. 36).

Muito importa lembrar aqui que os dois principáis fatóres


de uniáo — a oracáo e a pureza de vida — sao justamente os que
mais estáo ao alcance de toda e qualquer pessoa; nao dependem
*

— 372 —
UNIÁO DOS CRISTAOS

nem de estudo nem de posses materiais nem de saúde, mas qual-


quer crístáo, mesmo prostxado pela enfermidade e a dor, os pode
por em prátíca. É preciso até dizer que os doentes, precisamente
pelo fato de se configuraren! mais á Paixáo de Cristo-pelo sofri-
mento, mais habilitados estáo a colaborar na Redencáo do
mundo, na expiagáo dos pecados e, por conseguinte, na reuniáo
dos discípulos de Cristo em um só rebanho. Nao deixem, pois,
de oferecer ao Pai seus padecimentos em uniáo com os de Jesús;
assim fazendo, tenham certeza de que muito valiosa será sua vida
aparentemente inútil!

Convém ainda enumerar entre os elementos de uniáo

3) A abertura de mente é a melhor compreensáo dos


irmaos.

É Sua Santidade o Papa Joáo XXIH quem o diz:

«Se nos dizemos e somos realmente irmaos,... pense cada qual nao
no que divide as almas, mas no que as pode unir em mutua compreen
sáo e reciproca estima» (ene. «Ad Petri Cathedram» ns. 22s).

Os Sumos Pontífices tém manifestado o desejo de que os


fiéis católicos se esforcem por conhecer melhor o modo de pen
sar dos irmaos náo-católicos. Em vista disto, tém-se criado Ins
titutos e cursos de estudos, tém-se fundado revistas e editado
livros que divulgam na Igreja Católica o pensamento e os costu-
mes de protestantes e ortodoxos. Pió XI, um dos grandes incen*
tivadores désse movimento, observava :

«A íim de conseguir o reatamento dos vínculos, é, antes do mais,


necessário que nos conhegamos e amemos. O conhecimento mutuo é,
sim, necessário, pois se pode dizer que, se a obra de uniáo foi tantas
vézes frustrada, essas írustracoes se devem ao lato de que nao nos
conhecíamos reciprocamente; se de ambos os lados houve preconceitos,
é preciso que se dissipem».

Para facilitar o mutuo entendimento, é de grande valor a «volta ás


fontes» que se vai tornando cada vez mais comum entre os fiéis cató
licos. Sem dúvida, a Sagrada Escritura, a Liturgia e a tradic&o dos Pais-
da Igreja constituem bases comuns a todos os cristáos; sao mananciais
donde se depreendem a mais pura doutrina de Cristo e o mais auténtico
modo de rezar. É, pois, muito desejável que se intensifique mais e mais
tal movimento nos tres setores da Cristandade.

A guisa de conclusao da presente resposta, vai ababeo transcrita


urna fórmula católica de oracüo pro-uniáo, fórmula que bem atesta a

— 373 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 2

sinceridade com a qual a Igreja deseja que o assunto seja .considerado


pelos seus filhos:

«Pelos maus exemplos da nossa conduta, que tenham retardado,


diminuido ou destruido os efeitos da graca ñas almas de nossos irmáos
cristáos.. .T^Iós Vos pedimos perdao, Senhor (1).
Por havermos negligenciado a oracáo íreqüente, férvida e fraterna
por éles... Nos Vos pedimos perdió, Senhor.
Por cima das íronteiras de língua, raga e nacáo... Uni-nos, Jesús.
Por cima das nossas ignorancias, dos nossos preconceitos, das nos-
sas hostilidades espontáneas... Uni-nos, Jesús.
Por cima das nossas barreiras intelectuais e espirituais... Uni-nos,
Jesús (2).
ó Deus, para vossa maior gloria... Beuni os cristáos dispersos.
ó Deus, para o triunfo do bem e da verdade... Beuni os cristáos
dispersos.
ó Deus, para que haja um só rebanho e um só Pastor... Reuní os
cristáos dispersos.
ó Deus, para confundir o orgulho de Satanás e de seus agentes...
Beuni os cristáos dispersos.
ó Deus, para que finalmente reine a paz no mundo... Beuni os
distóos dispersos.
ó Deus, para a maior alcgria do vosso Filho... Beuni os cristáos
dispersos».

(extraído do folheto de Liáo na Franca, já citado nesta resposta).

Da parte protestante também é com lealdade que se reza :

«Senhor, Vos que queréis que os Vossos íilhos sejam Um em Vos,


nos Vos suplicamos pela unidade de Vossa Igreja. Perdoai ludo o que
nossas separacoes deve ao nosso orgulho, á nossa incredulidade, & nossa
falta de compreensao e de caridade. Nao deixeis que nos nos acostume-
mos com as nossas divisdes. Guardai-nos de considerar como normal
aquilo que é escándalo para o mundo e urna ofensa para o Vosso amor.
Mantende viva em nos a consciéncia do pecado que divide o que Vos
unistes (3).
Livrai-nos da nossa mesquinhez, dos nossos rancores, dos nossos
preconceitos. Ensinai-nos a reconhecer os dons da Vossa graca naqueles
que se consideram Vossos. Aprofundai a nossa fidelidade á Vossa pala-
vra e mantende-nos lúcidos e disponiveis em Vossas máos. Nao nos
deixeis iludir por visóes que nos mesmos imaginamos, andar temeraria
mente por caminhos que nao seriam os Vossos.
Por Vosso poder, Senhor, reuni o Vosso rebanho disperso sob a
única autoridade de Vosso Filho, para que se cumpra o designio de

(1) Oa pecados apontados nesta oracao nao Bao pecados da Igreja, mas
4e filhos da Igreja, que nem sempre estlveratn a altura da sua vocacao e que
constantemente necessltam de urna palavra de estimulo.

(2) Isto é, por cima das nossas modalidades humanas de pensar e vlver.

(3) Do ponto de vista católico, asslm se entenderá o texto ácima: nao 6 a


Igreja (Esposa de Cristo sem mancha nem ruga) que peca, mas sao os filhos
da Igreja que, déla 'destoando, pecam.

— 374 —
DOIS CASAMENTOS RELIGIOSOS PARA PRINCIPES ?

Vossa benevolencia e que o mundo conheca em Vos o único verdadeiro


Deus e Aquéle que Vos mandastes, Jesús Cristo. Amém».

(extraído da Liturgia da Igreja Reformada ou Calvinista).

E. B. íPorto Alegre):

3) «Como se explica que o príncipe Don Juan Carlos da


Espanha se tenha casado com a princesa Dona Sofía da Grecia,
realizando dois ritos : um na Igreja Católica, e o outro no templo
ortodoxo cismático?
A Igreja terá permitido ao príncipe católico o matrimonio
em urna denominacáo religiosa nao-católica?»

Para responder adequadamente, comegaremos por lembrar


alguns pormenores de ordem geral relativos a matrimonios ditos
«mistos» na Igreja Católica; depois, focalizaremos diretamente
o caso indicado no cabecalho.

1. Preliminares
1. A Santa Igreja nao é favorável a casamentes «de mista reli
giao», isto é, casamentos em que urna parte católica se une a outra
nao-católica. O motivo das reservas é bem compreensível: os esposos
que nao estejam unidos na base de urna merma proíissáo de fé, carecem
de um estelo de importancia primacial para manter a uniao e o amor
conjugáis. Pode-se mesmo dizer que se expSem ao perigo de graves
desentendimentos, pois a Religiao tem que ser sempre um valor capital
para quem á professa conscientemente. Além disto, o matrimonio misto
dá origem no lar a um ambiente de relativismo religioso do qual se
ressente, em grau maior ou menor, a prole; os íilhos, vendo que os geni
tores freqüentam cada qual a sua Igreja, sao espontáneamente levados
a admitir que qualquer confissáo religiosa é igualmente válida; chegam
mesmo a atribuir pouca ou nenhuma importancia á Religiao. Assim
se pode criar um clima de indiferentismo religioso, como, de resto, tem
acontecido em mais de urna regiáo em que os casamentos mistos se mul-
tiplicaram.

A fim de evitar, na medida do possivel, tao doloroso inconveniente,


a Igreja só permite a seus filhos o matrimonio misto por motivos real
mente ponderosos e mediante duas cláusulas :

1) só se faca urna cerimónia religiosa, a saber: a celebrado do


sacramento do matrimonio na Igreja Católica;

2) toda a prole do casal seja batizada e educada na Santa Igreja.

A parte nao-católica deve-se comprometer, por juramento, a obser


var as duas condigSes ácima. Para se entender esta exigencia, tenha-se
em vista o vinculo que prende a Igreja a seus filhos; Ela tem o poder
e o dever de proteger a íé de seus fiéis; por conseguinte, se um déstes
pede favor excecional, compete á autoridade eclesiástica formular as
condicoes que ela julgue necessárias ao bem do fiel católico; a parte
nao-católica será assim atetada, mas indiretamente apenas, ou seja, pelo

— 375 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 3

fato de querer entrar em relaces matrimoniáis com um membro da


Igreja.

2. Quanto ao casamento civil, a Igreja nada tem em contrario.


Verdade é que se trata de urna instituicáo relativamente nova, pois data
da Revolucáo Francesa de 1789 e só se generalizou no decorrer do sé-
culo passado (cf. «P.R.» 3/1958, qu. 6). A Esposa de Cristo compreende
que o Estado tenha interésses em questSes matrimoniáis, visando garan
tir o bem comum da nagáo. Embora o casamento meramente civil nio
seja sacramento nem supra o matrimonio religioso, a Igreja nSo se op5e
a que seus filhos o celebrem, a fim de obtér o reconhecimento civil ou
do Estado para a sua uniio conjugal.
Estas observacóes já sao suficientes para se avaliar devidamente o
ocorrido no caso de Don Juan.

2. E o casal de principes?

1. O príncipe Don Juan Carlos, católico, quis casar-se com


urna pretendente crista, cismática, dita «ortodoxa» (a respeito
dos cristáos ortodoxos, veja «P. R.» 10/1958, qu. 11). Para rea
lizar o consorcio na Igreja Católica, obteve a respectiva licenca
mediante observacáo das duas cláusulas ácima referidas (o jor
nal do Vaticano «Osservatore Romano» o noticiou explícita
mente) . A cerimónia religiosa católica alcancou pleno efeito civil
no foro espanhol, ao qual Don Juan está sujeito.
A esposa, porém, de Don Juan pertence a um país, a Grecia,
cuja legislacáo matrimonial se reconstituí brevemente nos seguin-
tes termos:
Existe urna só forma de casamento na Grecia : o casamento
religioso (cf. Código de Direito Civil da Grecia, art. 1367
e 1371). Éste se realiza de acordó com leis que o Estado for
mula e que as autoridades religiosas ortodoxas reconhecem, leis
chamadas «nomocanones» (nomos = lei civil; canon = leí reli
giosa) . Conseqüentemente, o casamento religioso tem pleno vigor
na vida civil; é mesmo obligatorio para todo e qualquer cidadáo
grego, pois, como dizíamos, nao há cerimónia de casamento me
ramente civil. Vé-se assim que era absolutamente necessária a
Don Juan Carlos e Dona Sofía a realizagao do matrimonio reli
gioso-civil grego, caso desejassem que a sua uniáo fósse reconhe-
cida pela legislacáo do reino da Grecia. É o que explica, tenha
Don Juan procurado o templo ortodoxo cismático de Atenas após
haver firmado em rito católico a sua uniáo com Dona Sofía; esta
segunda cerimónia, ele a considerava como cerimonial, antes do
mais, civil (foi assim também que o «Osservatore Romano» a
considerou).

2. Falando mais precisamente, podemos dizer: o Código


Civil da Grecia distingue tres modalidades de cidadáos gregos
de acordó com a respectiva religiáo :

— 376 —
DOES CASAMENTOS RELIGIOSOS PARA PRÍNCIPES ?.

a) os ortodoxos, ou seja, aqueles que seguem a religiáo


crista cismática do país;
b) os cristáos nao-ortodoxos, ditos heterodoxos: sao os
católicos romanos, os protestantes, os anglicanos e os armenios;
c) os fiéis de religiáo nao-crista reconhedda pelo Estado
(heterothresM ou allothreski). A Constituicáo de 1» de Janeiro
de 1952, art. 1», enuncia nesta categoría o Judaismo e o Isla
mismo.

Nao gozam do reconhecimento do Estado certas seitas dissidentes


da Religiáo crista ortodoxa (como a dos palaiohimerologitas), alguns
cultos estrangeiros e os católicos (crist&os unidos a Roma) que sigam
rito oriental e nao rito latino (ser de ritb oriental e estar unido a Roma
é reputado hediondo, na Grecia).

Feita a distingáo das confissóes, a legislagáo matrimonial


grega estipula:

1) se os dois noivos pertencem ambos a religiáo ortodoxa,


tém a obrigagáo de se casar perante um sacerdote da sua con-
fissáo religiosa, o qual é considerado pela teología ortodoxa mi
nistro do sacramento do matrimonio (a teología católica, ao
contrario, ensina que os próprios nubentes sao os ministros do
sacramento, sendo o sacerdote apenas o delegado da Igreja para
o caso). Cf. Código Civil da Grecia, art. 1367 § 1 e 1371;

2) se os pretenderles professam ambos urna religiáo náo-


-ortodoxa, celebrem o matrimonio no rito religioso ao qual per
tencem, contanto que ésse rito seja reconhecido pelo Estado. E
tal casamento terá efeito civil. Cf. Código Civil, art. 1371;

3) se um dos consortes é cristáo ortodoxo e o outro nao,


duas ulteriores hipóteses se devem distinguir :
a) o consorte náo-ortodoxo é cristáo pertencente a outra
denominaba© (católico, protestante ou anglicano); o matrimonio
entáo se deve realizar perante um sacerdote ortodoxo, para que
seja reconhecido pelo Govérno grego (foi justamente o que se
deu no caso de D. Juan e Da. Sofia). Cf. Código Civil da Grecia,
art. 1367, § 1 e 1371.

Esta determinacao resulta outrossim da lei n* 696 de 1861, confir


mada por urna decisáo da Corte de Cassacáo (Areópago) n° 280, de
1932. — Acontece, porém, que no periodo compreendido entre 30 de
novembro de 1941 e 11 de outubro de 1944 um decreto das autoridades
de ocupacáo militar reconhecia como válidas as nupcias entre consorte
ortodoxo e consorte católico romano abencoadas por um sacerdote cató
lico romano. Tal decreto íoi ab-rogado pela lei n' 184 de 22/26 de marco
de 1946, lei dotada de efeito retroativo a partir de 11 de outubro de 1944.

— 377 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 3

b) o consorte náo-ortodoxo professa urna religüto nao-


-cristíL Neste caso, há o impedimento de «disparidade de culto»;
o matrimonio é simplesmente vedado pela lei sob pena de
absoluta nulidade, ainda que a religiáo do consorte náo-cristáo
seja reconhecida pelo Estado. Cf. Código Civil, art. 1353 e 1372.
Quanto aos membros de comunidades religiosas nao reco-
nhecidas pelo Govérno, só se podem casar na Grecia dentro do
ritual religioso da ortodoxia ou de urna religiáo reconhecida pelo
Estado. O mesmo se diga com relagáo aos ateus.

3. Ainda a respeito dos matrimonios Interconfessionais na Grecia,


pode-se, a titulo de ilustragáo, observar o seguinte :
O casamento entre parte crista (de confissáo ortodoxa ou de outra
confissao) e parte nao-crista é, por si mesmo, nulo (akyros) em virtude
do impedimento de disparidade de culto, como atrás dissemos. Assim
n3o se podem casar na Grecia cristáos com israelitas,... com muculma-
nos,... com budistas, ainda que israelitas, muculmanos e budistas sejam
cidadáos gregos. Estes deveráo procurar consorte fora de qualquer de-
nominagáo religiosa crista e celebrar seu matrimonio perante um mi
nistro náo-cristáo reconhecido pelo Estado. Se tal matrimonio íór válido
segundo a respectiva religiáo náo-cristá, o Estado o aceitará e lhe atri
buirá, efeitos civis. .
Pode-se observar que já o Código de Teodósio Imperador (t 395)
proibia sob pena de morte o casamento entre cristáos e judeus (XVI 8,
6), ... entre cristáos e bárbaros (ni 14,1); chegava a considerar como
adulterio o matründnio entre cristáo e Israelita (II 3,7 e V 9,7). Veja
também o Código de Justiniano Imperador bizantino I 9,6 (séc. VI).
Quanto aos casamentos entre cristáos ortodoxos e cristáos «hetero
doxos» (que seriam, do ponto de vista grego, os católicos romanos, os
anglicanos, os protestantes...), a antiga tradigáo oriental tende a proibi-
-los. Ficam sendo até hoje vedados em principio (kat'acrivian) sob pena
de nulidade, conforme os concilios de Laodicéia (345-e 381), can. 10;
Cartago (345 e 348), can. 21; Constantinopla I (381), can. 7; Calcedo
nia (451), can. 14; Trulano II ou Quinissexto (691/2), can. 72. Contudo
em virtude de tolerancia (kat'lkonomlan) as autoridades os permitem,
de modo que se podem tornar válidos após obtida a devida licenca. Fot
o canonista grego Zonaras (t 1150) quem abriu as perspectivas da tole
rancia em relacáo aos casamentos de ortodoxos gregos com católicos
romanos (cí. Syntagma, ed. Ralli-Potli t. IV pág. 93).

Possam estes tópicos servir para se reconstituir o quadro


dentro do qual se situou o casamento do príncipe Don Juan Car
io com a princesa Dona Sofía!

— 378 —
SUICIDIO PODE SER LEGITIMO?

MOKAL

A. V. (Sorocaba) :

4) «Haverá casos em que a Igreja reconhece a legitimi-


dade do suicidio?
E como julgar a atitude de Santa Apoldnia, que na perse-
guicáo religiosa se atiron as chamas das quais era ameacada
pelos perseguidores?»

Suicidio vem a ser o ato pelo qual alguém voluntariamente


inflige a si mesmo a morte. A cláusula «voluntariamente» signi
fica que nao ha suicidio no sentido próprio quando a pessoa ex
tingue a sua vida num acesso de amencia ou numa crise doentia
que a torne irresponsável.
O suicidio pode ser direto ou indireto.
Suicidio direto é o que resulta de um ato cuja flnalidade
primaria é matar e que é praticado' com a intengáo imediata de
provocar a morte do agente.
Suicidio indireto é o que resulta de um ato que por si nao
provoca necessáriamente a morte da pessoa que o executa,mas
apenas a coloca em grave perigo de morte (tal ato é praticado
em vista de outro finí que nao o de matar; acontece, porém, que
também mata o agente).
Consideraremos separadamente o suicidio direto e o
indireto.

1. Suicidio direto

O suicidio direto é condenado pela própria lei natural, que vem a


ser lei de Deus e que a Igreja sempre inculcou. Tres sao os grandes mo
tivos de reprovacao do suicidio: éste constituí, sim, urna ofensa a Deus,
ao individuo e á sociednde.

a) Ofensa a Deus.

A vida é um dom concedido pelo Criador ao homem. Nao é


éste quem dá a si mesmo a existencia; nem é ele capaz de deter
a vida que, no decorrer dos tempos, lhe vai escapando. Tendo
recebido do Criador a sua existencia, é a Ele que a criatura hu
mana deve dar contas; vindo de Deus, é para Deus que ela há
de viver e morrer (cf. Rom 14,7s). Donde se vé que nao lhe toca
dispor da sua vida a seu bel-prazer.

O Sto. Padre Pió XII o asseverava categóricamente em urna aló-


cucao a médicos:

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 4

«Um dos principios fundamentáis da Moral natural e crista ensina


que ao homem nao compete o dominio nem a posse, mas apenas o
usufruto do seu corpo e da sua existencia » (A. A. S. XXXIX [1957]
129s).

Compreende-se entáo que intervir violentamente nos de


signios da Providencia, truncando ou extinguindo a vida, vem a
ser violagáo dos direitos de Deus sobre o homem (o que nao pode
deixar de ser também detrimento ou desfíguragáo do próprio
homem, como se dirá mais explícitamente abaixo).

A mesma verdade se poderia exprimir também mediante urna metá


fora : o universo é comparável a solene sinfonía, na qual cada ser hu
mano desempenha o papel de urna nota melódica, e o Criador o de
Chefe de orquestra. Pois bem; quem, por própria iniciativa; queira de
terminar a hora da sua morte, suicidándose, implícitamente afirma já
ter desempenhado a sua funcjio dentro do grande conjunto de notas
musicais. Ora, assim fazendo, é evidente que está usurpando um papel
para o qual nao tém competencia. Sómente Deus ou o regente da sin
fonía conhece o conjunto das partituras; sómente Ele ouve simultanea-
mente todos os instrumentos na sua respectiva funcao; sómente file é
capaz de avaliar a beleza de cada um déles em particular, assim como a
do todo melódico; por conseguinte, sómente o Criador está á altura de
determinar entradas e saldas, isto é, de assinalar onde e quando come-
cou ou acaba a fungao de cada qual das unidades do conjunto. Ao
homem, pois, nao compete retirar-se ou por termo á sua vida aqui na
térra quando bem lhe apraza.
Esta reflexáo é ulteriormente explanada pelo argumento que se
segué.

b) Ofensa a si mesmo.

A natureza humana possui o instinto de conservagáo ou de


preservagáo da sua própria existencia. Tal instinto, inato como é,
só lhe podia ter sido dado pelo Senhor Deus, e há de ter um sen
tido ou um significado importante (já que é táo espontaneo). De
fato, é sinal de algo que a experiencia mesma confirma : o pro-
gresso e a perfeigáo da natureza humana se obtém normalmente
no decurso do tempo e em dependencia do fator «tempo». Com
outras palavras : o fator «tempo» é essencial para que o homem
«se realize» e atinja a sua perfeigáo. Disto se segué que o suici
dio, extinguindo a vida do homem sobre a térra, lhe corta toda
possibilidade de chegar a plena maturidade; conseqüentemente,
além de ser ofensa ao Criador, vem a ser urna ofensa á própria
natureza e dignidade do homem.

Repetindo: a vida constitui o primeiro e o maior de todos os bens


que a pessoa possua; é a condicao para se adquirir qualquer outro bem
(ciencia, virtude, méritos...). Quem, portento, extingue a própria vida,
priva-se nao sómente déste bem, mas também de urna serie de outros
valores.

_ 380 —
SUICIDIO PODE SER LEGÍTIMO?

Éste raciocinio poderá parecer um tanto simplório. Contra ele urna


objecao sera demora se levanta :
«Ha casos em que a existencia humana sobre a térra parece táo
vazia e infeliz que difícilmente atada pode ser tida como um valor ou
um bem!»

— A isto devele responder que o criterio para se medir o valor de


urna vida humana nao é a felicidade temporal ou terrestre do sujeito.
Ao contrario, a experiencia ensina que urna pessoa muito afagada pela
sorte neste mundo tende a se empalidecer e embotar; o egoísmo e o
«gocentrismo fácilmente se apoderam déla. Ao invés, pelo sofrimento o
homem quebra a crosta do seu egoísmo, desdobra suas virtualidades;
vai-se enobrecendo. Nao há escola táo eficaz quanto a da luta ardua.
Por isto, vida penosa está longe de ser vida sem valor ou vida que me-
reca ser extinta.
Nao há dúvida, o homem, entregue exclusivamente ás suas fórgas,
difícilmente aproveitaria do sofrimento para se aperfeicoar. Note-se,
porém, que Deus, ao permitir seja alguém atribulado, envia sempre a
graca necessária para que a dor seja salutar; o Senhor nunca impSe a
criatura um fardo pesado demais, mas tempera devidamente a cruz. Se
nessas circunstancias o homem nao consegue sempre os efeltos bené
ficos da cruz, isto se dá por culpa do seu livre arbitrio (Deus nao forca
ninguém a aceitar a graca). Contudo, enquanto a criatura humana per
manece em vida, resta sempre a esperanca de que para o futuro ela
aproveite melhor da graca, esperanca esta que o suicidio apagarla por
completo. A ninguém, portante será licito truncar a sua vida, baseando-
•se na suposicáo de que a ulterior duracáo só serviría para mais o de
formar moralmente; nao há fatalismo que obrigue ao mal, mas há
certamente a graga de Deus oferecida a todos a fim de transformar
aqueles que sinceramente procurem lutar contra o mal. Que o pecador,
portanto, munido com o auxilio do Senhor, reaja contra o vicio, e verá
que sua vida sobre a térra tomará novo sentido, tornando-se mais bela
e mais feliz!

Voltando agora ás idéias expressas sob o titulo «Ofensa a


Deus», dir-se-á : nao é em funcáo do homem, mas em funcáo do
Autor do homem ou de Deus, que se mede o verdadeiro valor da
vida humana. A grandeza do ser humano consiste em cumprir
fielmente, e até o fim, a vontade de Deus, qualquer que ela seja,
• ainda que para isto ele deva sofrer. Mesmo urna vida doente e
(do ponto de vista humano) improdutiva pode ser preciosa, por
que nao é pelo rendimento temporal que a criatura humana vale,
nem é nesta térra que ela se consuma, mas é na vida postuma ou
na eternidade. Neste mundo o único criterio de rendimento se
guro é o cumplimento da vontade de Deus; esta transforma
sempre os males temporais em bens eternos.
A titulo de ilustracáo, lembramos as palavras de Sao Francisco de
Sales dirigidas a urna pessoa que se queixava de perna doente : a perna
doente é «a melhor das duas para fazer progredir na perfeicao do amor
divino» (cf. «L'amour qui choisit» par un bénédictin et un chartreux.
Lyon 1959, pág. 152).

A historia contemporánea consigna também o caso do filósofo


alemáo Paulo Luis Landsberg:' desde 1930 empenhado na luta contra

— 381 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 4

o nacional-socialismo, ésse personagem trazia sempre no bolso urna dose


de veneno, que ele estava disposto a ingerir antes de cair vivo ñas maos
da Gestapo. Encontrava-se na Franca durante a ocupacáo nazista (após
1941), sempre pronto a se suicidar em caso de perigo de encarcera-
mento. Eis, porém, que no verao de 1942 suas concepcQes se mudaram :
«Encontrei o Cristo; Ele se me revelou», escreveu entáo; e destruiu a
porcáo de veneno que trazia consigo... Alguns meses mais tarde, foi
realmente encarcerado, mas nao quis de modo algum por termo á sua
vida; esta íindou em campo de concentracáo no mes de abril de 1944,
em conseqüéncia de total exaustáo. Tal filósofo, urna vez feito cristáo,
deixou as seguintes reflexóes, que elucidam a sua mudarla de atitude :

«Por natureza, o ser humano tem horror do soírimento e procura a


felicidade. Quando o homem póe termo á sua vida, ele o faz quase sem
pre para escapar aos sofrimentos da existencia presente, em demanda
de urna felicidade ou de urna paz que ¿le ainda desconhece... Diz ele :
'Nao quero suportar estes padecimentos, que ultrapassam minhas fór-
cas e que nao tém sentido'. É entáo que o espirito cristáo deve intervir
com sua concepcao paradoxal. Sim, viver e sofrer... Nao te deves sur-
preender pelo fato de sofreres. Se a felicidade (terrestre) fósse a pedra
de toque do valor desta vida, sofrer seria algo de revoltante e, em última
análise, insuportável. Tudo muda, porém, para quem admite que a
vida presente seja, antes, urna purificacáo e urna caminhada para a
felicidade transcendente, purificacáo e caminhada cujo sentido se maní-
festa e se realiza precisamente pelo sofrimento... Quando Deus permite
que soframos, Ele o permite para nossa salvacüo e purificacáo. É mister,
nos lembremos do espirito com que Jesús padeceu a mais horrenda das
mortes> (Le probléme moral du suicide. Paris 1951, pág. 140s).

Leve-se em conta outrossim um terceiro aspecto do suicidio, que é


o de

c) ' Ofensa á sociedade.

1. Explorando ainda a metáfora da nota musical dentro de


urna sinfonía, observar-se-á: todo ser humao tem um papel
social que ele deve preencher dando a sua presenca no lugar e
na duragáo que o regente da orquestra ou o Criador lhe assinala.
A ninguém será possivel furtar-se a essa presenga sem acarretar
injuria ou detrimento para a comunidade ou a sociedade.

Em conseqüéncia, há autores que comparam o suicidio a urna deser-


cáo ou á fuga do soldado que, por covardia, abandona o campo de ba-
talha. Essa desercáo nao pode deixar de deprimir o ánimo da comuni
dade : o exemplo contagia, até mesmo o horrendo exemplo do suicida...,
criando como que urna especie de psicose coletiva. Com efeito, tem-se
verificado que um caso de morte voluntaria freqüentemente desenca-
deia outros; assim numa aldeia dos Alpes em poucos anos contaram-se
mais de quinze suicidios, todos éles cometidos da mcsma forma (as pes-
soas se deixavam resvalar por um aqucduto vertical que ia terminar cm
Impetuosa torrente de aguas).

2. Contudo talvez replique alguém: mas a existencia de


certas pessoas na sociedade é totalmente inútil para o bem

— 382 —
SUICIDIO PODE SER LEGITIMO?

. comum ou mesmo pesada e desagradável. Nao é o que se dá


com doentes, paralíticos, cegos e anciáos? Se a sociedade nao
tem o direito de atentar contra a vida déles, nao teráo éles, ao
menos, o direito (ou até o dever) de por termo a sua existencia
terrestre a fim de já nao incomodar o próximo? Nao seria o sui
cidio um ato de coragem e nobreza da parte désses indigentes?
Em resposta, faz-se oportuno lembrar que as pessoas bene-
ficiam a sociedade nao apenas na medida do que lhe dáo (no
setor da familia, da profissáo, da ciencia ou da técnica), mas
também na medida em que recebem; pode, sim, alguém servir ao
próximo pelo fato mesmo de proporcionar a éste a ocasiáo de
praticar a caridade. Dizia o Senhor Jesús : «Há mais felicidade
em dar do que em receber» (At 20, 35). Donde se vé que aqueles
que trabalham em favor dos pobres e doentes nao se devem jul-
gar molestados, mas, antes, felizes por poder fazé-lo; saibam ser
gratos aqueles que aceitam humildemente os seus prestimos de
caridade. Ésses pobres e humildes nao sao inúteis nem destitui
dos de valor.

«A verdadeira riqueza de uma sociedade nao se avalia segundo um


utilitarismo terra-a-terra. Mede-se própriamente a grandeza de um no-
mem pela sua capacidade de se dar, pela sua generosidade e pelo íervor
do seu amor» (V. de Couesnongle, La théologie morale devant le sui
cide, em «Lumiére et Vie» XXXII [abril de 1957] pág. 127).

«E a pena de morte?» dir-se-á. «Nao é justa sangáo que a


sociedade impóe em vista do bem comum mesmo? Como entáo
pode estar a sociedade empenhada em que uma pessoa infeliz
nao se suicide?» — Leve-se em conta que a pena de morte supóe
um réu incorrigível, cuja sobrevivencia seria estímulo para o
crime e a delinqüéncia de outros cidadáos (fora déste caso, a
pena de morte seria injusta). Ora o suicidio nada disto supóe,
mas tem geralmente por sujeito e objeto uma pessoa inocente,
que se vé acabrunhada (ou mesmo acovardada) pelos sofrimen-
tos da vida presente; nesta situacáo, p6r termo á própria vida já
nao é prestar servigo á coletividade, mas, antes, dar o mau exem-
plo e abrir uma lacuna (a propósito da execucáo da sentenca
de morte proferida pelo juiz, veja-se a resposta n» 5 déste
fascículo).

Passemos agora ao caso do

2. Suicidio indireto

1. O suicidio Indireto, como dissemos, resulta de um ato que nao


visa diretamente a morte da pessoa que o pratica, mas faz que esta in-
corra em perigo extremamente grave de perder a vida.

— 383 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 57/1962, qu. 4

Pergunta-se : será lícito praticar tal ato e arriscar-se a se-


melhante perigo?
Os moralistas respondem afirmativamente, desde que se
preencham as quatro seguintes condigóes :

1) o referido ato deve ser, em si mesmo, bom ou indiferente (nao


poderá ser algo de intrínsecamente mau ou pecaminoso, como um ato
de luxúria ou roubo):

2) haja motivo muito grave (ou seja, um grande bem a salvar)


para se correr o risco de suicidio;

3) o agente deve desejar diretamente (e sámente) os efeitos bons


do seu ato; quanto á morte eventual (suicidio) do sujeito, ele a tolerará
apenas, mas nao a desejará em si;

4) nao haja, para resolver a difícil situacáo, outro recurso que nao
ésse ao qual está anexo o perigo de suicidio.

2. Eis algumas aplicagóes dos principios assim enunciados :

a) desde que o bem comum esteja em jógo, há motivo


grave para que o individuo se exponha a perder a própria vida :

assim em tempo de guerra é lícito a um militar incendiar urna nave


ou fazer saltar urna ponte, ainda que preveja, com seguranca quase
absoluta, que morrerá em conseqüéncia disso. Também será permitido
(ou até, em certo grau, obrigatorio) aos sacerdotes, médicos e magis
trados exercer suas funcSes em prol da sociedade, com o risco da vida,
pois dessas funcóes dependem a vida (natural ou sobrenatural) e a segu
ranca de seus concidadáos. — Considerando as circunstancias da época
moderna, julga-se ser licito a jovens adestrados submeter-se a provas
de viagens ao espaco, mesmo com perigo de vida (ou desde que nao
haja certeza de morte subseqtiente), pois nestas provas está interés-
sado, de maneira mais ou menos próxima, o bem comum.

b) Caso se trate de salvar um bem particular (nao estri-


tamente o bem comum, como nos casos anteriores) de valor
maior do que a vida do próprio corpo, pode a pessoa arriscar-se
ao perigo de morte.

Assim é iicito a alguém expor-se a morrer para salvar a vida de


um familiar, de sua esposa (ou seu esposo), de um amigo e, em geral,
do próximo. O náufrago que renuncia a usar do seu salva-vidas em be
neficio de outrem, pratica algo de louvável, que Sao Tomaz chega a
tachar de «períeitlssimo ato de caridade» (In ni Sent., dist. XXIX,
a. 15, ad 3).
Em periodo de perseguicáo religiosa, é licito a alguém apresentar-se
ao juiz e professar o credo, caso tal pessoa julgue ser ésse gesto neces-
sário para corroborar a íé do próximo.
Pode um criminoso entregar-se espontáneamente á justica (embora
preveja sentenca de morte), a íim de evitar que outros sejam molesta
dos ou condenados em seu lugar. Cf. «P. R.> 52/1962, qu. 6.

— 384 —
SUICIDIO PODE SER LEGITIMO?

E que dizer'do caso de urna virgem cuja integridade corpo


ral esteja sendo ameagada?

A questáo teni"sido debatida entre os teólogos desde os pri-


meiros sáculos da Igreja. Sao Jerónimo (t 421), sem restricáo,
reconhecia a tal donzela o direito de se matar para nao ser vio
lada (com. in lo 1402, ed. Migne lat. 25,1129); da mesma forma
pensava Graciano na Idade Media (séc. XII). Outros autores,
como Sto. Agostinho (t 430), eram mais reservados, asseve-
rando que o suicidio, em tal caso, só poderia ser licitamente
empreendido se Deus o inspirasse á virgem de maneira especial
(cf. De civ. Dei I 26). Sao Tomaz seguía S. Agostinho: em tese,
afirmava nao ser lícito á virgem empreender contra si mesma o
maior de todos os crimes (o suicidio) a fim de evitar um delito
menos grave a ser cometido por outrem; a própria virgem nao
seria culpada de violacáo, desde que nesta nao consentisse. Con-
tudo os teólogos mais recentes preferem geralmente a sentenga
de S. Jerónimo: é lícito á donzela, dizem, fugir do tirano, ati-
rando-se mesmo por urna janela com o perigo de morrer; dis-
cutem, porém, a questáo de saber se tem ou nao a obrigagáo de
recorrer a tal expediente para se salvar da desonra (que, para
ela, seria totalmente involuntaria). Na prática, visto que fica
aberta a discussáo, nao se pode impor tal dever, mas pode-se
perfeitamente admitir a liceidade da morte voluntaria ñas cir
cunstancias mencionadas.

A historia refere que certas virgens, de fato, procuraram a morte


para nao se deixar violar: tais íoram Sta. Pelágia, Sta. Apolfinia (t 249),
Sta. Dominica, Sta. Sofrónia.
A respeito de Sta. Apoldnia em particular, diz S. Dionisio (t 264),
bispo de Alexandria, que era urna virgem crista dessa cidade, que os
pagaos apreenderam e maltrataram sob o Imperador Dedo (248/49).
Depois de lhe haver quebrado os dentes, acenderam urna íogueira tora
da cidade, incitando-a a blasfemar contra Deus; caso nao o fizesse, seria
tancada ao fogo; Apoldnia entáo pediu um momento de liberdade e se
atirou espontáneamente as chamas, vindo conseqüentemente a morrer
(cf. Eusébio, Hist. ecl. VI 41). — É invocada especialmente contra as
dores de dente.
Paralelamente, o inocente a quem um tirano cruel queira infligir
morte atroz, tem o direito de se precipitar do alto de urna torre para
evitar tal género de morte. Mais aínda : quem está para perecer num
incendio, pode em consciéncia atirar-se por urna janela, principalmente
se assim há esperanza de evitar a morte.

c) Está claro que, por motivos Ievianos (vá gloria, temeri-


dade), torna-se ilícito expor-se a grave perigo de morte.

"* Tal é o caso do toureiro, que se arrisca a perecer por razñes fúteis;
tal é também a situacáo de quem se entrega intemperantemente á be
bida e ao j6go.

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 57/1962, qu. 4

Merecem censura outrossim os detentes que, podendo-o, recusam


tratar-se devidamente (contudo ninguém está obrigado a recorrer a re
medios ou tratamentos extraordinariamente caros ou difíceis).
Quanto as pessoas que, movidas por desejo de perfeicáo religiosa,
se entregam a exercicios de penitencia tais que lhes abreviem de algum
modo a vida, nada se lhes pode objetar, contanto que nao pratiquem atos
dos quais decorra evidentemente um grave prejuizo para a saúde.
A considerado de casos particulares aqui apresentada completar-
-se-á ñas questóes n' 5, 6 e 7 déste fascículo.
Procedamos agora ás

3. Observacoes fináis

1. Embora a Moral crista nao reconheca conjunturas em


que o suicidio direto, considerado em si ou no foro externo, seja
lícito, contudo ela nao julga o foro interno ou o grau de culpa
subjetiva de cada suicida. Só Deus vé as circunstancias atenuan
tes (como também as agravantes) de cada situagáo : influencias
patológicas, estados neuróticos.'.. podem diminuir, em grau
maior ou menor, a Iucide2 da mente e, conseqüentemente, a res-
ponsabilidade de quem póe fim á sua própria vida.
A Igreja impóe sangóes aos suicidas que morram sem dar
o mínimo sinal de arrependimehto... Note-se, porém, que essas
sangóes visam apenas o foro externo ou a maneira visível de ce
lebrar sufragios pelos suicidas (a Sta. Missa, por exemplo, pode
ser oferecida em favor da alma de um suicida, mas sem soleni-
dade alguma). Tal procedimento da Igreja tem por objetivo in
culcar a hediondez do suicidio considerado em si mesmo e impe
dir venha a ser equiparado á morte natural (do ponto de vista
moral). Cf. «P. R.» 5/1957, qu. 6.

Os psiquiatras modernos, ao mesmo tempo que chamam a atenyao


para os influxos patológicos atenuantes da gravidade do suicidio, íazem
observar que nem por isto todo suicida pode ser tido como um irrespon-
sável, isento de culpa moral.
É um médico psiquiatra, o Dr. H. Duchesne, quem escreve :
«O doente mental, por mais comprovada que seja a sua doenca,
conserva em proporc.5es ora maiores, ora menores, a sua consciéncia
tanto moral como psicológica... O psiquiatra nao está... em condi-
goes de ... avaliar a.parte de responsabilidade de cada suicida> (Le
psychiatre devant le suicide et l'euthanasie, em «Lumiére et Vle>, vol.
cit. pág. 17).
2. A titulo de ilustra cao, seguem-se aqui alguns dados estatisticos
colhidos por especialistas americanos, principalmente médicos :
No ano de 1959, a cota máxima de suicidios verificou-se em Berlim
Ocidental: 33 suicidas em 10.000 habitantes;
seguiram-se o Japao, com 24 casos em 10.000 habitantes; a Austria,
com 22,8; a Dinamarca, com 22,5.
A Irlanda, nessa escala, aparece em último lugar, com dois suicidas
apenas em 100.000 habitantes.

— 386 —
EXECUTAR A SI MESMO ?

Nos Estados Unidos, os peritos averiguaram que o suicidio se dá


mais freqüentemente entre os homens do que entre as mulheres, mais
entre os ricos do que entre os pobres. As idades perigosas seriam os
1549 anos e o periodo da vida posterior aos 55 anos, principalmente as
proximidades dos 75 anos. Os suicidios constituem entre 8 e 12% das
causas de morte entre os universitarios norte-americanos.

Na Alemanha Ocidental, era espantoso o número de suicidios mes-


mo depois de iniciada a recuperado económica; embora nao faltasse
trabalho e pao, parece que muitos cidadaos sentiram o vazio em sua
alma. A vista disso, o Pe. Pehl fundou a associagáo «Método e cura de
almas», a qual congregou numerosos médicos, psicólogos e pedagogos,
de diversos credos religiosos; essa associacao punha sempre a disposicáo
do público urna equipe de tais especialistas, os quais atendiam pelo tele
fone, prestando sua palavra de orientacáo ou sua visita reconfortadora
a todas as pessoas desesperadas que pensassem em se suicidar e a éles
recorressem por telefone.

Na Suíga estabeleceu-se semelhante servico telefónico intitulado


<A mao estendida»; urna voz amiga ficava sempre de plantáo para aten
der a quantos, desesperados, por ela chamassem. Muito oportuna e be
néfica foi tal instituicáo. visto que na Suíca se contava urna media de
tres suicidios por dia!

5) «Será lícito a ttm reo, condenado á morte em justa


sentenca judiciária, executar sobre si mesmo a sentenca capital?»

Para responder adequadamente, faz-se mister distinguir duas ulte


riores hipóteses:

1) As próprias autoridades públicas dáo ao réu a ordem


dése matar...

a) Alguns asseveram que o réu, em tais circunstancias,


pode executar a sentenga de morte. Sendo justa a condenagáo,
dizem, o juiz tem o direito de confiar a execucáo da mesma a
quem ele queira, inclusive ao próprio condenado; neste caso, o
magistrado nomeia para as fungóes de carrasco o próprio réu,
que se tornará assim o carrasco de si mesmo. Sem dúvida, tal
alvitre do juiz é cruel; contudo será lícito ao réu prestar-lhe
obediencia.
b) Outros' moralistas negam essa liceidade. Partem do
principio de que o juiz nao tem o direito de mandar que o réu
se execute a si mesmo, pois tal ordem nao seria ditada pelo bem
comum da sociedade, nem concorreria para éste, ainda que a
execugáo do condenado fósse, sim, exigida pelo bem comum.
Executar-se a si mesmo, portante, fica sendo um ato intrínseca
mente mau, que nenhum juiz tem o direito de impor ao réu e que
nenhum réu tem o direito de praticar.
Diga-se agora que, por própria iniciativa,

— 387 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 5 e 6

2) O réu, condenado a morte, desfere o golpe mortal con


tra si mesmo...

Os moralistas julgam que nao há argumento para justificar


urna atitude dessas, embora nao a reprovem peremptóriamente;
lembram que o cristáo deve confiar em Deus, e aguardar, como
Cristo, a hora previamente estabelecida pelo Pai para deixar
éste mundo.

Em suma, vé-se que a casuística abordada nesta questao é assaz


delicada, podendo tomar aspectos e matizes bem variados. Por conse
guirte, a fim de nao proferir sentenca temeraria, torna-se necessário ao
interessado ponderar as circunstancias concretas de cada caso em par
ticular.

6) «Alguém reoeia sucumbir a urna tentacao e cometer


pecado, como, por exemplo, a violacáo de um segredo profissio-
nal. Nao teria entao o direito do por fim a sua vida antes de in-
correr em tal culpa ?»

Tornou-se famoso recentemente o nome de Brossolette, soldado


francés que estava envolvido em intensa campanha de resistencia aos
nazistas durante a guerra de 193945. Feito prisioneiro, Brossolette re-
solveu matar-se, pois temia revelar, sob a pressáo dos adversarios, os
segredos estratégicos de seus compatriotas resistentes.

A Igreja, como diziamos, nao julga a consciéncia intima dessa pes-


soa, mas ela pode e deve proferir um juízo sobre a sua maneira visivel
de se comportar.

Os casos do tipo assinalado sao capciosos, pois o motivo da


morte se reveste entáo de aparéncia nobre e brilhante.
Nao obstante, a Moral crista condena até mesmo tal modo
de proceder. O principio que a move, é simples e claro : «Nao é
licito cometer um mal certo para evitar um mal incerto ou hipo
tético», ou aínda : «o fim nao justifica os meios». Ora, no caso
indicado,
a pessoa agiría diretamente para obter a morte de um ino
cente (no caso,... do próprio sujeito) — e isto é sempre um mal
moral;
o bem só seria obtido em conseqüéncia désse efeito mau...;
e seria um bem muito problemático e incerto. Com efeito, nin-
guém pode assegurar que de fato há de violar o segredo profis-
sional ou val cometer pecado, de sorte que o único meio de esca
par a isto seja matar a si mesmo antes que venha a tentacáo.

Creia o cristSo na graga de Deus; saiba que Éste é Pal e nunca


coloca seus filhos ém situacSes desesperadas, ñas quais seja impossível

— 388 —
LÍCITA A GREVE DE FOME ?

evitar o pecado. A experiencia aponía mesmo numerosos episodios em


que pessoas, tidas como moralmente iracas, deram provas de surpreen-
dente coragem na tentacáo, resistindo a toda seducáo ao mal (em parti
cular. .. as ameacas feitas para que revelassem segredos de guerra ou
de profissáo). É Sao Tomaz quem o inculca:
«A ninguém é licito matar a si mesmo por médo de calr no pecado.
Pois a consciencia nao permite cometer o mal para se obter o bem ou
para se evitarem outros males (principalmente quando se trata de males
menores ou incertos). Ora ninguém pode garantir que caira no pecado
(caso seja submetido á tentacáo). Deus é bastante poderoso para nos
preservar do pecado, quaisquer que sejam as tentacdes que-nos assal-
tem» (Suma Teológica IVII 64,5c).

Confianga, portante», no Pai Celeste! Tal atitude nao será


temeraria no caso.

ORIVALDO (Curitiba,) :

7) «Será moralmente licito o recurso á. greve de fome para


promover o bem comum de um povo? Os casos se tem multipli
cado últimamente».

Em resposta, formularemos primeiramente alguns preliminares, que


ilustrarao a problemática; a seguir, focalizaremos diretamente a mora-
lidade da prática assinalada.

1. Preliminares

1. «Greve de fome» própriamente dita significa voluntaria


abstenffáo de qualquer alimento empreendida por um individuo
ou um grupo de pessoas com o fim de protestar contra alguma
injustiga ou reivindicar determinados direitos.
Note-se bem : a eficacia dessa tática consiste simplesmente
em impressionar a opiniáo pública e as autoridades competentes,
movendo-as & compaixáo humanitaria e á aquiescencia para com
o grevista.
Nao há, pois, própriamente greve de fome
quando o sujeito respectivo nao observa completa abstinen
cia de alimentos
ou quando se reduz, sim, a completa abstinencia, mas só-
mente até o momento de nao tolerar mais, excluindo, portante,
a hipótese de vir a morrer de fome.
Particularmente discutida é a greve de fome no sentido pró-
prio, pois toma o aspecto de um suicidio ou de um verdadeiro
delito.

— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 7

2. A historia registra famosos casos de greve de fome nao só-


mente na antigüidade (entre os cínicos, por exemplo), mas principal
mente nos séc. XIX/XX. Tenham-se em vista, entre outros,
a feminista inglesa Emmeline Pankhurst (1858-1928) : mediante
abstencáo de alimentos, encabecou o movimento que visava obter o di-
reito de voto para as mulheres na Inglaterra;
o Mahatma Mohandras Karamachand Gandhi (1869-1948), que, pelo
recurso ao mesmo expediente sustentado com extraordinario ardor, de-
fendeu interésses nacionais hindus;
emigrantes italianos que recentemente na Australia resolveram
tazer tal greve, pois se achavam desempregados, visto nao ter o govérno
local cumprido cláusulas de contrato.
Em maio de 1962 cérea de mil estudantes da Universidade de Coim-
bra (Portugal) iniciaram greve de fome contra urna decisáo da polícia;
a pacificacáo, porém, foi obtida sem demora.
Dentre todos, o caso que maior atencáo mereceu da parte dos mora
listas, foi o de Lord Mayor de Cork, Mac Swiney, o qual, em protesto
contra o dominio inglés na Irlanda, empreendeu greve de fome. Após
73 dias de tal regime, faleceu, reconfortado pelos sacramentos da Santa
Igreja; estava evidentemente procedendo de boa fé. Foi éste episodio
que de modo especial chamou a atencáo dos teólogos para a questáo da
liceidade de tal praxe, provocando debates, culos resultados váo abaixo
discriminados.

2. A moralidade da praxe

Para proferir um juizo adequado sobre o assunto, faz-se mister dis


tinguir entre greve de fome incompleta ou impropriamente dita (exclui
da a hipótese de morte do grevista) e greve de fome completa.

1) A greve de fome incompleta, por excluir o suicidio, é


considerada lícita, pois entáo equivale a urna tática ou estrategia
de campanha, tática cuja ñnalidade nao é matar o individuo, mas
impressionar as autoridades e constrangé-las moralmente a con
descender com o grevista. Éste nao tem obrigagáo de declarar
que intenciona suspender seu regime antes que lhe acarrete a
morte; as autoridades teráo também seus recursos estabelecidos
para contrabalangar os do grevista.

Contudo, para que a consciéncia crista nada tenha a objetar contra


táo grave e perigosa praxe, requer-se que o objetivo visado pelo gre
vista seja realmente justo, de interésse comum ou público, e nao haja
outro meio para reivindicá-lo; procure-se também evitar todo escándalo
na opiniáo pública.

2) Tratando-se de greve completa ou incondicional, as opi-


nióes dos teólogos se dividem :
a) há quem equipare tal tática a verdadeiro suicidio. Ora,
já que éste é condenado pela consciéncia crista, a greve completa
também o vem a ser. Pecaría, portante, gravemente quem em-
preendesse irrestrita greve de fome;

— 390 —
LICITA A GREVE DE FOME ?

b) outros moralistas preferem dizer que a greve, mesmo


completa, nao visa a morte do sujeito (portante, nao pode ser
equiparada ao suicidio), mas visa, sim, a promogáo do bem
comum; a extingáo do grevista, dizem tais autores, poderá ocor-
rer em conseqüéncia, mas nao terá sido intencionada em si mes-
ma; será apenas tolerada como efeito secundario ou indireta-
mente derivado. Ora, afirmam os mesmos moralistas, é licito rea
lizar tais atos dotados de duplo efeito (um efeito, bom, visado
diretamente em si mesmo; o outro, mau, nao visado em si, mas
apenas tolerado) desde que se trate de obter algo de muito im
portante e justo (por exemplo, a libertagáo de um povo oprimido,
a restauragáo de direitos políticos ou civis) que nao se possa
conseguir mediante outro expediente.
Acontece, porém, que esta distíngáo sutil, que visa legitimar
a greve de fome completa, nao é reconhecida pelos estudiosos
de renome, os quais asseveram que a morte do grevista nao pode
ser tida como efeito indireto dessa tática; ela se segué, sim, ime-
diatamente do fato de que alguém se abstenha indiscriminada
mente de alimentos; o efeito bom (ou a libertagáo do povo, a
restauragáo dos direitos violados...) é que se seguirá indireta-
mente ou derivadamente. Ora querer promover o bem mediante
o mal é sempre ilícito, pois o fim nao justifica os meios (a finali-
dade boa nao legitima meios maus). Ademáis, observam, nin-
guém pode assegurar que a greve de fome seja o único recurso
eficaz para obter o efeito desejado (quem pode garantir que as
autoridades se dobraráo perante o grevista de fome?). — Por
conseguinte, tal tática é tida pelos mencionados autores como
urna arma igual a qualquer outra para promover o suicidio; vem
a ser, portante, ilícita.

Os debates em torno das duas sentencas referentes á completa


greve de fome continuam abertos até hoje.
Cada urna das duas opinioes (a que distingue sutilmente e a que
rejeita a distincáo) encontra seus defensores abalizados; portanto, fica
a cada leitor a liberdade de adotar urna ou outra. Na prática, nao se
poderá tachar de suicida quem empreenda greve de fome, contanto que
estejam em causa bens de grande valor, que provávelmente nao se sal-
variam por recurso a expediente mais brando.
Quanto ao médico p5sto em presenca de um grevista de fome, nao
lhe é vedado em consciéncia ía'zer o possivel para que a pessoa nao
morra em conseqüéncia dlsso; poderá prover (até mesmo... íorgar a
tomar) alimentacáo secreta (por sonda, sdro, clister nutritivo...), de
mais a mais que, asslm fazendo, o médico nao estará tirando & tática
do grevista o seu eíeito estratégico ou a sua Índole de protesto (Índole
de protesto necessária para a obtencao do efeito bom ou dos interésses
públicos a que o grevista aspira).

— 391
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 8

IV. SOCIOLOGÍA

HESITANTE (Porto Alegre) :

8) «Qual o papel do Cristianismo e dos cristáos diante dos


problemas socíais contemporáneos? Há quem deseje qne os cris
táos e a Igreja atnem mais, como há também quem ache que as
questoes profanas nao sao da aleada da Igreja.
Que pensar a propósito?»

Ñas crises sociais em que se debate o mundo de hoje, propSem-se


as mais diversas atitudes a ser tomadas pela Igreja.
1) Alguns homens públicos desejariam por si sos, ou seja, apenas
com recursos de ciencia e técnica, resolver os problemas da humani-
dade; a Religiáo seria assunto de foro meramente privado; ela se de
senvolvería e consumaria no fundo da consciéncia de cada individuo;
quando muito, poderia exteriorizar-se nos templos e sacristías; mas
nunca transparecerla na esfera pública.
2) Outros pensadores, ao contrario, julgam que a Religiáo, e em
particular a Igreja Católica, devem tomar parte muito intima ñas tare-
fas de reconstrucáo do mundo atual. Chegam mesmo a equiparar a
Igreja ás demais sociedades beneficentes e humanitarias; relegam para
um plano secundario as tarefas religiosas do culto e do santuario, como
se fóssem coisas de séculos passados, coisas que hoje em dia só fazem
subtrair tempo e energía as tarefas urgentes de distribuicáo de pao,
veste, teto, emprégo, etc.; em poucas palavras : opoem á administraejío
dos sacramentos a «pastoral da justica social» (como dizem), dando a
esta o máximo de importancia. Assim falam, por exemplo, os católicos
ditos «da esquerda». A sua atitude, alias, parece fazer eco fiel ás pala
vras que já o líder socialista Saint-Simón, em 1825, dirigía a S. Santidade
o Papa:

«O verdadeiro Cristianismo deve tornar os homens felizes nao sd-


mente no céu, mas sobre a térra... É preciso que uséis franca e enér
gicamente de todos os meios da Igreja militante para melhorar pronta
mente o estado moral e físico da classe mais numerosa» (Novo Cris
tianismo).
Um discípulo de Saint-Simón, o israelita Isaac Péreire, cinqüenta
anos mais tarde, pedia instantemente ao Papa prestasse eficaz colabora-
cSo para resolver «o terrivel problema do pauperismo e do trabalho» :
«Nao é a Igreja... a mae de todos os humildes, a protetora de todos os
oprimidos? ... Após haver destruido a es.cravidao antiga e o regime
servil do feudalismo, ela deve agora memorar a sorte do trabalhador
moderno» (citado por L. Garriguet, Question Sociale et Écoles Sociales.
París 1922,13* éd.).
Enfim, algumas correntes socialistas recentes, proíessando idéias
religiosas, repetlram semelhantes apelos; quiseram substituir o credo
religioso por um credo social e transformar a missao espiritual da
Igreja em missáo temporal. — Éste programa, como diziamos, aínda
atrai a muitos dos nossos contemporáneos, que desejam ser católicos
e ao mesmo tempo colaborar com a acáo social dos esquerdistas.

— 392 —
OS CRISTAOS PERANTE A QUESTAO SOCIAL

É lógico, pois, que, em meio a táo diversos pareceres, se indague


qual deva ser a genuina atitude do. cristáo e da Igreja diante dos pro
blemas sociais contemporáneos.
Procuraremos elucidar a questáo percorrendo tres etapas :

1) A missáo do Cristianismo neste mundo é, antes do mais,


religiosa e sobrenatural.

Isto está longe de significar que o Evangelho e a Igreja pas-


sam ao lado dos problemas reais e cotidianos do homem e dos
povos, ficando no plano do inyisívél e abstrato. Muito ao contra
rio; isso significa que o Cristianismo faz eco justamente á mais
intima aspiragio que todo e qualquer ser humano (seja primi
tivo, seja civilizado) traz em si: a aspiracáo ao Infinito, ao
Transcendente. Sim; o Cristianismo veio explícitamente dizer
que há urna resposta a ésse apelo; há urna realidade correspon
dente a ésse anelo; há urna vida eterna,... de modo que o ho
mem nao foi feito simplesmente para éste mundo; a materia e o
tempo sao valores exiguos demais para a alma humana.
Conseqüentemente, o Cristianismo veio excitar nos homens
a sede da consumagáo dos tempos e a consciéncia de que sao pe
regrinos sobre a térra, peregrinos cujo olhar deve estar constan
temente voltado para a eternidade, donde provém a verdadeira
luz a fim de avaliarem os afazeres temporais. Os primeiros cris-
táos exprimiam bem essa consciéncia, terminando as suas reu-
nióes litúrgicas com a exclamacáo : «Passe o mundo e venha a
graga!» (Didaqué 10,6).

Seja licito Irisar : a aspiracáo ao Invisivel ou a intuicáo de que há


um Misterio que os sentidos nao conseguem abarcar, nao é algo de arti
ficial ou incutido ao homem por determinada época ou cultura, mas está
arraigada da natureza humana como tal: mesmo o náo-cristáo, como
seriam o hinduista, o yogui, o muculmano e o próprio ateu dao, cada
qual do seu modo, expressáo a ésse anelo (o atcu moderno, marxista,
por exemplo, o faz aspirando a um paraíso futuro, que ele quer prepa
rar mediante nova distribuicáo dos bens materiais e o progresso da
ciencia).
Ora, essa aspiracáo fundamental, bem ou mal orientada pelas diver
sas correntes ideológicas da humanidade, o Cristianismo a aguca e lhe
dá a auténtica resposta. Dai se vé que a missáo primaria do Cristia
nismo está longe de ser alheia á realidade intima dos homens.

Consciente disto, a Igreja nao pode deixar de anunciar ao


mundo, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua missáo reli
giosa, embora Ela assim se arrisque a sofrer incompreensáo e
criticas. O Episcopado Francés o declarava solenemente aínda
em abril de 1954 :

— 393 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 8

«Restituir aos homens o sentido de Deus, da sua santidade, da sua


transcendencia, da sua bondade — eis a primeira das tarefas missioná-
ñas. A crenca em um Deus Soberano e Criador constituí o ámago
mesmo da Religiáo, a condicáo da salvacao, o fundamento da morali-
dade, o vinculo da sociedade humana» (Documentation Catholique
ti> 1173 [1954] col. 608).

Pió XI, por sua vez, o asseverava categóricamente:

«Nao íoi, por certo, confiada á Igreja a missáo de encaminhar os


homens para a conquista da íelicidade transitoria e deficiente, mas da
eterna» (ene. «Quadragesimo anno»). Antes, «a Igreja eré nao dever
intrometer-se sem motivo nos afazeres terrestres» (ene. «Ubi Arcano»).

Isto equivale a dizer que a Igreja nao interfere, por exem-


plo, em questóes de forma de govérno (monarquía, república,
presidencialismo, parlamentarismo...), ou de escolha de partido
político, a nao ser que estejam em causa valores religiosos e
moráis. Vé-se também que nao se pode nem deve esperar que a
Igreja, ñas circunstancias normáis (excetuam-se naturalmente
situagóes extraordinarias), funde partidos políticos, dite normas
para o orgamento nacional ou empreenda obras de caráter
profano...
Alias, é fato comprovado que, justamente a atitude da
Igreja voltada primariamente para os valores eternos, por muito
que a primeira vista desconcerté os homens, é o que dá fasci-
nacáo e encanto á Esposa de Cristo; sim, aquilo de que os ho
mens tém sede nos aiossos dias é, em última análise, o Misterio,
o Invisível, ou, em outros termos, Deus.

Para ilustrar esta af irmacSo, lembramos aqui o tópico já consignado


em «P. R.» 56/1962, qu. 1: perguntaram ao ex-lider comunista británico
Douglas Hyde se julgava Inevitável a vitória do comunismo no mundo.
Douglas respondeu que o perigo é realmente grande, pois o esquerdismo
está desenvolvendo urna acao possante para dominar os povos, e cha-
mava a atencao para o fenómeno seguinte: Moscou procura atrair as
nac5es mediante palavras, promessas e propaganda, enquanto Washing
ton tenta contrabalancar esta acao levando dinhelro e auxilios materiais
aos povos necessitados; nao obstante, as palavras de Moscou (que nao
enchem a bolsa nem o ventré) atraem mais do que os subsidios finan-
ceiros norte-americanos. Como explicar o paradoxo? Prosseguia Hyde:
os técnicos norte-americanos sao «meros técnicos, espiritualmente va-
zios, nao preparados para a sua mlssao social» (palavras textuais); ao
contrario, os emlssários soviéticos vém como portadores de idélas ou
mesmo de urna mística : créem em algo de futuro e invisível, que apre-
goam com entusiasmo; dai o seu sucesso (cf. a revista «Orizzonti» de
8/III/1962). — A explícacao de Hyde parece adequada. O fenómeno
bem mostra que, apesar das campanhas de reivindicacSes materiais de
nossos tempos, os homens, em seu fundo intimo, desejam valores maio-
res do que os materiais,... desejam os valores do espirito, desejam a

— 394 —
OS CRISTAOS PERANTE A QUESTAO SOCIAL

Deus. E estáo certamente íadados ao éxito a ideología e a sociedade que


revelem o verdadeiro Deus ou a auténtica face de Deus aos homens.

Parece oportuno mencionar também uma passagem do fa


moso escritor francés Saint-Exupéry (o qual, de resto, nunca
chegou a ser própriamente católico) :

«Há um só problema, um só no mundo inteiro : restaurar nos ho


mens o senso do espiritual e as inquietudes espirituais. Nao podemos
mais viver de refrigeradores, de política, de balarlos e de palavras cru
zadas. .. Nao o podemos mais!... Há um só problema, um só : deseo-
brir de novo que existe uma vida do espirito mais elevada aínda do que
a vida da inteligencia, a única vida que satisfaga ao homem» (transcrito
do livro de L. Becqué, Faut-il réformer les sermons? Paris 1957, 21).
A guisa de comentario, acrescenta Becqué :
«Ainda que nao tenham sempre muito viva consciéhcia disto, os
homens geralmente estáo sufocados, sentindo que Inés falta ar; experi-
mentam fome e sede de algo que nao sejam os interésses {mediatos, ou
que nao sejam os objetos materiais, utilitarios, fabricados, técnicos,
inventados; algo que esteja ácima de tudo isso, que seja anterior a tudo
isso, que viva mais do que tudo isso; algo que nao saia nem de uma
usina, nem de um cerebro; algo que nao se perca, nem se quebré, nem
se discuta nem se termine, e que jamáis possa vir a faltar. Que seria?
Quem seria ? Em todos os tempos, tal ser foi chamado Deus» (1. c. 22s).

Precisamente a essa fome e sede é que a Igreja deve, antes


do mais, responder; nao lhe será licito, em caso algum, renunciar
a essa tarefa primaria. Nao obstante, faz-se mister acrescentar :

2) O Cristianismo sabe que lhe tocam outrossün uma mis-


sao e uma responsabilidade temporais, ou seja, o dever da pre-
senga e do testemunho no tempo e no espago.

1. O misterio central da fé crista é, sim, o misterio do


Verbo Encarnado ou de Deus feito homem ou, ainda, de Deus
que interveio sob formas sensiveis no tempo e no espago. Donde
se vé que o Cristianismo deve também atuar sensivelmente no
tempo e no espago. Por conseguinte, apregoar existencia crista
desencarnada ou «angelismo» vem a ser atraigoar o próprio
Cristo. Um Cristianismo tristonho que se fechasse na pura con-
templacáo ou no pranto, esquecendo a vida terrestre, seria de-
turpagáo do Evangelho. O discípulo de Cristo tem que tomar
parte nos empreendimentos temporais que beneficiam a huma-
nidade, porque tais empreendimentos, em última análise, tocam
o substrato sobre o qual se desenvolve a vida espiritual e eterna
dos homens. Aos cristáos que, sob o pretexto de uma espiritua-
lidade mais pura, se recusassem a prestar colaboracáo á socie
dade, poder-se-iam aplicar as palavras, táo irónicas como gra
ciosas, de Charles Péguy:

— 395 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 8

«Éles tém as máos puras, mas nao tém máos».


O que quer dizer: a pureza da espiritualidade de tais cristáos seria
pureza artificial, pureza sem vida, que certamente nao agradaría a Deus.
Práticamente estariam mutilados, porque nao teriam as máos do Cristo.

2. Pode-se mesmo dizer : o cristáo ama as criaturas mate-


riais e temporais mais ainda do que o seu concidadáo materia
lista, precisamente pelo fato de as amar em Deus e por causa
de Deus. Dedica-lhes estima religiosa, porque sabe que tudo no
mundo foi consagrado pelo misterio da Encarnacáo e, por con-
seguinte, tem valor religioso. Nao é, pois, com pessimismo, mas
com otimismo, que o discípulo de Cristo olha para o mundo, pro
longando o olhar que ele langa para Deus. É Sao Paulo quem
o diz:
«Tudo é vosso :... o mundo, a vida, a morte, as coisas pre
sentes, as futuras, Tudo é vosso. Vos sois de Cristo, e Cristo é
de Deus» (1 Cor 3,22s).
Na verdade, nao é o Cristianismo, mas por vézes é a nega-
cáo de Deus, que leva o homem a negar o próprio homem ou a
desprezar a miseria e as situagóes angustiosas da sociedade.

Com efeito; tenha-se em vista o existencialismo em sua forma atéia,


que, no dizer de Jean-Paul Sartre, é a forma mais lógica da irreligiáo:
tal filosofía anuncia o absurdo das criaturas, até mesmo da vida hu
mana, c a náusea em relacüo a tutlo. Interpretando bem tal mentalidade,
a revista «Temps présent», em estilo humorista inglés, assim caracteriza
o existencialismo:
«O existencialismo se resume em duas proposicoes muito simples:
1) é urna teoria negra, que proclama ser muito lamentável, termos nos
vindo a éste mundo: 2) dá provas de comportamento genulnamente
existencialista o individuo que se encontra a bordo de urna nave prestes
a ir a pique... : no tombadilho, tripulacáo e passageiros se esforcam
denodadamente por salvar-se; entrementes o existencialista desee calma
mente ao seu camarote, a fim de colocar ao pescoco urna gravata
negra...» (transcrito da obra «Les grands appels de l'homme contem-
porain». Paris 1947, 209).
A náusea que o existencialismo professa frente a éste mundo, chega
ao ponto do sarcasmo... Quanto ao cristáo, por mais desejoso que seja
de outra vida (melhor do que a presente), nunca lhe será licito repro-
duzir tal atitude. Justamente por ser portador da Redencáo de Cristo,
ele procurará estendé-la ao mundo com otimismo, removendo as lnjus-
ticas e os males sociais que afligem os homens; procurará ser sal da
térra..., luz do mundo..., bom odor de Cristo (cf. Mt 5,13s; 2 Cor 2,15).

3. Eis, porém, que, ao se tratar de acáo social do cristáo,


surge a grande questáo, que muito agita os nossos contemporá
neos : nao será entáo oportuno que o discípulo de Cristo una os
seus esforgos aos do marxismo, prestando-lhe colaboragáo no
que diz respeito á melhora das atuais condicóes de vida? O cris-

— 396 —
OS CRISTAOS PERANTE A QUESTAO SOCIAL

táo assim daría a máo ao marxista, sem compromisso ideológico.


A solugáo pode parecer bela, mas é de todo impossível.
Na, verdade, a agáo social do cristáo e a do marxista sao
inseparáveis de sua respectiva ideologia. Sim; o marxista visa
reformar o mundo para reformar o homem,
ao passo que o cristáo intenciona
reformar o homem para reformar o mundo.

Expliquemo-nos melhor :
Para o marxista, o cerne do problema social é a produgáo
de bens materiais; esta constitui o valor básico da historia dos
individuos e das sociedades. Os demais valores (filosofía, cons-
ciéncia, moral,, direito, religiáo, arte...) sao fungóes da produ
gáo material (sao superestrutura) e variam com ela, de modo
que os homens sao bons e honestos se há suficiencia de bens ma
teriais, e sao maus, caso haja penuria.
Para o cristáo, dá-se justamente o contrario : o valor básico
está dentro do homem, é a consciéncia moral. Esta é que possi-
bilitará ao cidadáo e á sociedade melhor aproveitamento e dis-
tribuigáo dos bens materiais. Sem reforma ética, nao so resolve
o problema social. Os homens nao dependem tanto do seu tempo
e ambiente, como o tempo e os ambientes dependem do homem.
É de dentro da criatura, e nao de fora, que se derivam as gran
des injusticas sociais e as calamidades dai decorrentes. Sim; sao
palavras do Senhor no Evangelho :

«Do coragao do homem procedem os maus pensamentos, o adulte


rio, a íornicacáo, o homicidio, o íurto, a avareza, a iniqüidade, a fraude,
a concupiscencia, a inveja, a blasfemia, a soberba, a estupidez. Todos
estes males se derivam do intimo do homem» (Me 7,21-23).

Em vista disto, compreende-se que é utópica ou inexeqüível


qualquer forma de colaboracáo entre comunismo e marxismo; na
prática, um dos dois absorverá o outro, sendo que geralmente a
vantagem redunda para o marxismo, pois éste tem por lícito o
emprégo de qualquer meio violento. Sao vaos, portanto, e iluso
rios os planos de católicos que em seu idealismo apregoam pac-
tuar com o comunismo. — O católico há de desenvolver, sim, in
tensa agáo social, mas independente da ac.áo marxista.

Urna terceira proposicao ainda se deve formular a respeito da ati-


tude da Igreja diante dos problemas temporais.

3) No exercício da sua missáo temporal, o cristáo nao se


ilude : sabe de antemao que será impossível atingir a ordem per-
feita neste mundo antes da consumacao dos séculos.

— 397 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 57/1962, qu. 8

E qual o motivo desta ressalva?


— Enquanto os homens fórem peregrinos na térra, traráo
sempre em si as conseqüéncias do primeiro pecado, entre as quais
é relevante o egoísmo ou egocentrismo. Esta desordem arraigada
dentro de todo individuo, por mais que seja combatida, consti
tuirá sempre grave ameaga aos sentimentos de justiga e al
truismo. — Levem-se em conta também as doengas, os flagelos
periódicos da natureza e outros males físicos que o primeiro pe
cado desencadeou no mundo e que o homem terá sempre que su
portar dolorosamente. Perceber-se-á entáo que é preciso, de an-
temáo, renunciar a instaurar o paraíso neste mundo.
Sómente quando Cristo voltar glorioso no fim dos tempos
para consumar a obra da Redengáo, cancelando as últimas con
seqüéncias do pecado e instaurando céus novos e térra nova,
haverá perfeita harmonía entre as criaturas.

Por isto, dizia o próprio Jesús : «Pobres, sempre os tereis convosco»


(Mt 26,11)- Estas palavras, longe de decepcionar ou desanimar o cristáo,
Ihe incutem urna visao muito sadia da realidade : ele procurará, de um
lado, com todos os meios combater a miseria e o pauperismo; mas, de
outro lado, nao se entregará a ilusoes utopistas. As palavras de Cristo
(embramo sempre aos homens que é preciso tender para a plenitude da
Redencáo, maniendo o olhar constantemente voltado para a eternidade.

Dizia o Episcopado Francés na sua citada Declaragáo :


«É necessário evitar o risco de confundir a esperanca do reino de
Deus com um ideal meramente terrestre; é preciso, nao nos iludamos
com um messianismo puramente temporal... A historia do género hu
mano toma entáo todo o seu sentido e todo o seu valor, quando vista na
perspectiva grandiosa do designio de Deus e da construcáo da Jerusa-
lém celeste» (1. c. 604).

De resto, o Evangelho ensina (e éste é o grande absurdo


para o homem que nao tem fé) que nem o sofrimento e a cruz
deixam de ser algo de bom e valioso. Aqueles que carregam a
cruz (e nao há quem nao a tenha que carregar do seu modo:
pela doenga, pela fome, pelo luto, pelo desemprégo...) podem
ter certeza de que também a cruz é graga; é instrumento de Re
dengáo; a ela se prende urna bem-aventuranga especial:

«Bem-aventurados vos que sois pobres, porque vosso é o reino


de Deus.
Bem-aventurados vos que agora tendes fome, porque seréis saciados.
Bem-aventurados vos que agora choráis, porque haveis de rir».
(Le 6, 20s).

Sim; valioso é o sofrimento, porque educa o homem, emanci-


pando-o do egoísmo e do amor próprio; faz-lhe compreender
melhor o próximo e mantém o seu olhar aberto para Deus e a
eternidade. Ao contrario, os afagos déste mundo (que Cristo

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caracteriza como dinheiro, saciedade e gozo) acarretam o grande


perigo de embotar o homem, de o fechar em si mesmo e no reino
da materia, fazendo-lhe correr o risco de perder os verdadeiros
bens, que sao os da vida eterna.
Conscientes disto, já os sabios gregos pagaos repetiam o trocadilho
«pathos-mathos», ou seja, «padecimento é aprendizagem, é burilamento».
Geralmente acontece que, para que os homens se tornem mais amigos
dos homens e de Deus, é mister que sofram; o sofrimento ensina...

Á luz destas idéias, vé-se muito bem que a presenga de


pobres no mundo até o dia de hoje está longe de significar que
o Cristianismo tenha falhado a sua missáo. A própria pobreza,
para o cristáo, é Redencáo, puriñcagáo, santificaeáo. O cristáo
tem que procurar debelá-la, nao há dúvida; mas, se a Providen
cia Divina julga que ela deve perdurar cá e lá por toda a historia
déste mundo, essa pobreza nao é simplesmente absurda ou des
tituida de sentido.

Conclusao

Hoje, talvez mais do que nunca, importa que os cristáos tenham


consciéncia dos seus genuinos valores e os estimem profundamente,
tanto em teoría como na prática. O que faz que os ateus tomem dian-
teira no mundo de hoje, é justamente o íato de usurparem valores reli
giosos (íé e esperanca no Invlslvel, mística dai decorrente), colocando-os
a servlgo de sua causa materialista, que, em última análise, nao é senáo
outra forma da procura de Deus (é a religlao do Anti-Deus). Se os ateus
conseguem vencer os cristáos com as proprlas armas dos cristáos, nao
se deverá isto ao lato de que os cristáos nao tém sabido utilizar cons
cientemente os seus recursos? Nao ter&b os cristáos deixado de dar o
testemunho que deveriam dar, de tal sorte que, por ironía, os adversa
rios dos cristáos se sentem impelidos a dar tal testemunho, mas o dáo
as avessas, matando e destruindo em vez de construir?
Possam estas questSes servir de breve roteiro para urna revis&o de
vida, na medida em que esta seja necessária!

CORRESPONDENCIA MIÚDA
CURIOSO (Rio de Janeiro): V. S. deseja saber o que é necessário
crer para ser católico ; menciona, além do Credo, o culto de Sao José,
de Nossa Senhora de Lourdes, de Fátima, do Sagrado Coracao de
Jesús, etc.
Distingamos bem do Credo as referidas manifestacóes da piedaile
moderna : aquéle se impóe k íé, pois contém verdades dogmáticas, ao
passo que essas manifestacóes sao expressóes de devogSo, que nao cons-
titu'em obrigacáo para os fiéis católicos. As mensagens do Sagrado Co-
racáo de Jesús, de Lourdes e Fátima pertencem á categoría das revela-
cóes particulares e nao se incutem necessárianfente nem á crenga nem
á prática do povo de Deus.
Para ter conhecimento exato do que é materia de fé católica, poderia
V. S. consultar : "Catecismo Católico" (Editora Herder, Sao Paulo, SP)

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ou a ótima obra "Teología Dogmática" de Bernardo Bartmann, em 3


vols. (Edicoes Paulinas, Sao Paulo, SP).
Quanto aos deveres moráis do cristáo, V. S. encontrará clara ex-
posicjio dos meamos, com aplicagao aos problemas mais modernos da
sociedade, no manual "A Lei do Cristo" de Bernardo Haering (Editora
Herder), em 3 vols. Muito mais breve, mas nao menos oportuno, é o
compendio "Teología Moral" de Teodoro da Torre del Greco (Edigóes
Paulinas).
Procure conhecer... Ninguém ama o que nao conhece 1
AMINTAS (Rio de Janeiro): O pensamento de Teilhard de Chardin
já foi analisado em "P. R." 8/1958, qu. 1. O otimismo désse autor é
avallado e ilusorio, bem merecendo as reservas que lhe tém sido feitas.
Nao se pode negar o que há de genial em Teilhard de Chardin ; o es
critor, porém, foi unilateral, nao exprimindo adequadamente toda a men-
sagem do Cristianismo, para a qual o pecado e a Redengáo sao elementos
de primeira linha.
A Santa Sé aínda recientemente emitiu seria advertencia sobre as
obras de Teilhard, declarando explícitamente haver nelas graves erros
teológicos. Embora a Santa Igreja nao tenha inserido o nome désse es
critor no Índice dos livros proibidos, Ela deseja vivamente lembrar ao
leitor que seus escritos nao transmitem em termos suficientes a dou-
trina católica.
PARSIFAL (Rio de Janeiro): Por falta de enderéjo, nao foi pos-
sível responder mais cedo á sua questáo, tembora muita atencáo me-
recesse.
Nao há obstáculo ao casamento do mencionado Jovem. É melhor nao
dar grande importancia ao problema ; poderia avultar-se sem necessi-
dade. O essencial, no caso, é guardar firmes os principios da moral
crista e a integridad© da conduta de vida. Estes sao valores que garan-
tirao o bom éxito do matrimonio.
CURIOSO (Curitiba): A historia do rei Luís VII te de Dona Eleo
nora da Aquitánia deverá ser elucidada em uro dos próximos números de
"P. R.". — Nao se deixe enredar, pois nao houve divorcio. A citada fonte
de informagóes confunde os acontecimentos. É o que umitas vézes se dá
quando se narrara tais casos.
CÉPTICO : A respeito da oportunidade e do valor da ora?áo veja
"P. R." 17/1969, qu. 2.
LEITOR ASSIDUO (Sant'Ana Grande): Esperamos poder escrever
em breve a propósito do Imperador medieval Frederico II.
INTERESSADA (Rio de Janeiro): Recebemos seu lembrete. Muito
oportuno. Com agradecimentos.

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O.S.B.

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