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FESTA E DIVERSÃO

NA HIST~RIA DA MADEIRA

O arraial madeirense é a componente mais Gaspar Frutuoso refere que no çéculo de


evidente das nossas festas e romarias. As a romaria mais importante era a qu
romanas tradicionais foram as que adquiriram realizava a 8 de Setembro na freguesia do
maior brilhantismo. As romarias tinham lugar na em honra de Nossa Senhora da Nativid
época estival, após as colheitas da cana de era uma oportunidade para a folia mas ta
açúcar, do cereal ou do vinho, o que permitia a para a realização de uma feira para venda
aventura, por terra e por mar, ao encontro do produtos agrícolas.
orago protector. As festividades mais Uma breve incursão ao processo histó
representativas que se realizavam na ilha da ilha revela-nos que os nossos avós n
incidiam no período estival. Primeiro a procissão reservavam a sua efusiva alegria apenas para
do Corpus Christi no Funchal, com a festividades religiosas. O madeirense na s
participação de toda a ilha e depois as romarias labuta diária soube manter-se em perfei
harmonia com o meio que o rodear
expressando uma natural alegria, patente na
danças e cantares que animaram o se
quotidiano. Muitas das manifestações surge
na ilha com os primeiros colonos, resultando a
variedade da múltipla origem. Aqui é
dominante, a avassaladora presença das
manifestações rituais do norte de Portugal, local
de origem do maior grupo de povoadores. As
danças, os nomes das principais romarias vão
buscar a i a sua origem. Assim sucedeu com a
devoção do Senhor Bom Jesus, que foi
transplantada para Ponta Delgada por Manuel o
Sanha, como com a N.S. dos Remédios na
Quinta Grande.
Não sabemos quando se iniciaram as
das freguesias rurais. A sua realização estava principais romarias madeirenses pois faltam-nos
ordenada de acordo com o calendário religioso e documentos comprovativos. Das que persistem
agrícola, estabelecendo um roteiro em toda a na actualidade -Monte, toreto, Ponta Delgada,
ilha; primeiro as da vertente sul a culminar a Rosário e Machico- sabe-se que são muito
safra do açúcar e o período da ceifa, depois as antigas, ligando-se aos principais povoadores.
do norte a concluir com as vindimas. Têm Os santos venerados são os principais
tradição as festas de Nossa Senhora do Monte intercessores. Com o tempo algumas das
(15 de Agosto), Senhor Bom Jesus (I*Domingo romarias ficaram esquecidas e outras
de Setembro) cuja celebração remonta aos apareceram a disputar a sua posição, pois
primórdios da ocupação da ilha, A primeira apenas as do Monte, Ponta Delgada, Loreto e
chamava os romeiros ao Funchal, enquanto a Machico continuaram a pautar o ritmo das
segunda fazia-os percorrer léguas sem fim para festividades e devoção madeirenses. Mas a
atingir a longínqua freguesia do norte da ilha. romaria de N. S. do Monte a 15 de Agosto fõi,
sem sombra de dúvida, a maior festividade muitos para o estabelecimento de contratos,
madeirense. Ela atraiu a devoção de todos os troca e venda de produtos e, por vezes, uma
madeirenses mercê da eficaz- protecção que fugaz aventura amorosa. As $ncipais romarias
exerceu sobre ele, quando solicitada. Ao longo da ilha demarcavam o ritmo de vida dos nossos
do século XVII o rnadeirense colocou-se s o b a avoengos e actuavam como mecanismo
sua protecção, implorando a sua intercessão, unificador da vivência religiosa e do quotidiano,
para fazer cessar a seca (1627 a 1695) ou a por isso, elas, para alem da impofiância na
peste (1686) . Em 1803, em face da aluvião que expressão da religiosidade do madeirense,
assolou a cidade, recorreu-se mais uma vez a destacam-se como momentos de uma
sua protecção passando a partir de então a excessiva sociabilidade que conduziu a definição
condição de padroeira menor da cidade. Tais do modo de ser.
condições favoreceram a perpetuação e As dificuldades de comunicação, nomea-
afirmação do culto e a passagem as comuni- damente na vertente norte da ilha, não
dades da emigração madeirense. Desde o impediram que os romeiros afluíssem em
planalto de Cubango em Angola (1885) as Ilhas grande número as festividades do Senhor Bom
Havai (1902), passando pelos Estados Unidos Jesus. A devoção ao senhor Bom Jesus começou
da América, África do Sul e Austrália, é por ser particular e resultou da origem de um
manifesta a ~obrevivência. dos principais povoadores do lugar. Foi Manuel
A romaria, para alem do tradicional Afonso Sanha, oriundo de Braga, quem trouxe
pagamento da promessa ao patrono, expressa para aqui o culto ao Senhor Bom Jesus, ao
em valor pecuniário ou numa homenagem construir em 1470 nas suas terras uma capela
fervorosa, é um momento decisivo para o da mesma invocação. O culto ao senhor Bom
encontro das gentes da ilha, aproveitado por Jesus espalhou-se rapidamente a toda a ilha.
Por terra ou Dor mar. a ~é OU a
cavalo, todo; conv&iah para
esta manifestação ritual. Desde o
I século dezassete que o santuátio
do norte ficou a marcar a nova
aposta da reforma tridentina,

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ganhando dimensão particular na
religiosidade madeirense. No
primeiro domingo de Setembro a
pequena povoação de Ponta
Delgada recebia inúmeros romei-
ros que para aí se dirigiam a
cumprir as promessas. A passa-
I gem era anunciada pelos cantares
e mbsicas apropriadas que davam
ao ambiente serrano do norte da
I ilha uma animação inaudita. A
pr6pria igreja tomou algumas
medidas no sentido de facilitar
este movimento, aconselhando as
autoridades municipais para os
necessários cuidados na manu-
tenção dos caminhos ou punindo
os proprietários de gado com
excomunhão, pois conforme refe-
re o bispo em 1706 sucediam-se,
~
por vezes, desastres mortais, devido queda de manifestava-se, por vezes, no numero de
pedras provocadas pelas cabras que pastavam lâmpadas acesas, no fogo queimado, fias
nos precipícios sobranceiros aos caminhos do bandas de música e, mais recentemente, nos
lado de S. Vicente e Boaventura. Para apoio dos conjuntos de ritmos modernos.
romeiros abriram-se caminhos, construíram-se Hoje a realidade é outra e ao madeirense
casas de romeiros junto dos templos de são oferecidas inúmeras formas de diversão
devoção. Algumas destas construções, gemi- que colocam em plano secundário as festas e
nadas com as igrejas, são, ainda hoje, visíveis. romarias. Primeiro a rádio (1948), depois a
O bispo, nas visitações, recomendava ao televisão (1972) e as hodiernas formas de
município a recuperação dos caminhos e proibia diversão urbana com as discotecas (1973)
os pastores de manter o gado na serra quase que as apagaram para alguns grupos
sobranceira. etarios da população. O século XX deu um novo
O folguedo ou arraial, no espaço vizinho colorido as festividades e romarias, o arraial
da igreja/capela do orago, é efémero dura ganhou em luz mas perdeu em animação e
apenas quarenta e oito horas. Mas, para que forma de afluência dos forasteiros. Os cami-
isso acontecesse havia todo um trabalho de nhos e casas dos romeiros ficaram ao aban-
engenho e arte na criação das flores de papel dono e não mais se ouviu ecoar os cantares
ou de tapetes para a procissão. Os enfeites, de cadenciados que os denunciavam nos caminhos
alegra-campo e loureiro, contrastam com o sinuosos da montanha. As romarias adap-,
garrido das flores e o vermelho da Cruz da taram--se aos novos desafios do progresso ma$
Ordem de Cristo que flutua nas bandeiras. O perderam o carácter bucólico. A estrada facili-;
progresso trouxe mais luz e o feérico da cor, tou o acesso e o romeiro passou a excursio-
fazendo-os prolongar pela noite fora. A luz nista.
eléctrica, a paflir da década de quarenta, veio Em síntese, esta breve incursão históric
revolucionar o arraial. Aqui, para além da revela que o madeirense fez transbordar a su
oferta de um variado conjunto de barracas de alegria nestas manifestações festivas, dist
comes e bebes, onde pontua a espetada, buídas ao longo do ano, e que hoje são um dad
temos a feira para venda dos produtos da terra adquirido da vivência dos nossos avoengos e d
ou de fora. Este era e é um momento de todos nós, actuais e lidimos representantes
encontro, devoção e partilha da riqueza desta tradição.
arrancada a terra. Afinal, o arraial era a altura
em que todos se encontravam irmanados pela
devoção ao santo padroeiro. BIBUOGRAFIA: 1. De Sousa Coutinho, O Natal na Madeira, DMM,
IV, no,19-20, 1955. João Cabral do Nascimento, o Natal de há 30
Na segunda metade ao século XIX o emi- anos, DAHM, I, n0.4, 1951, 26-27. Eduardo Antonino Pestana, O
grante regressado do Havai, Demerara, Brasil, Natal Madeirense num Auto de Gil Vicente, DAHM, V, n0.27, 1957,
1-9. Eduardo Antonino Pestana, Ilha da Madeira I. Estudos
Venezuela, África do Sul e Austrália reforça a Madeirenses, Funchal, 1970. Manuel Juvenal Pita Ferreim, O Natal
animação destas festividades, dando-lhe uma na Madeim. Estudo folclórico, Funchal, 1956. Alberto Artur
Sanento, O Natal na Madeim. Quando eu em Estudante, DAHM, 11,
nova dimensão; este era o festeiro, que reco- n0.9, 1951. Fernando C. De Menezes Vaz, O Natal na Madeim,
nhecendo a protecção do santo, prestava a sua DAHM, Vol.1, n0.4, 1950. José de Sousa Coutinho, O Natal na
Madeim, DAtlM, I, n0.4, 1960, 38-39 IDEM, O Natal da
farta homenagem. As romarias passaram a ser Madeira(Estud0 Ebog~áfico),DAHM, IV, 19-20,1955,58-70. Alvaro
o momento para a visita aos familiares ou o Manm de Sousa, Curiosidades do Passado, DAHM, I, nO.l, 1950,II,
no.2, 1951. Ana Maria Ribeiro, O Natal em Câmara de Loks,
regresso desta promissora aventura. A anima- Xarabanda, 7, 1995, 29-35. Danilo Femandes, O Baile e as
ção feçtiva pasçou para o exclusivo controle do Romarias, Xarabanda, 2, 1992, 7-9. RUI Camacho, Festas e
Romarias da Madeim, Xambanda, 1, 1992, 31-36. IDEM, Festas e
emigrante, dependendo o brilhantismo da sua Romarias da Madeira. Novas Datas, XaraBanda, 2, 1992, 41-42.
disponibilidade financeira. Era o emigrante João Nelson Verissimo, A Festa do Esplrito Santo, Atl4ntim, 1, 1985,
9-17. A. A. Samento, A Festa do Eçpfrito Santo na Madeira, DAHM,
quem pagava as despesas dessa realização, I, no. 6, 1951, 23-24. Maria de Fátlma Gomes, Festas romarias na
assumindo aqui este acto uma forma de Madeira, AMntko, 14, 1988, 140-148. Vitor Sardinha, Cantigas de
Embalar, Xambanda, no espedal, 1993,7-8. Jorge Couto, Para uma
devoção ao santo patrono do çucesso alcan- bibliografia Madeirense da Cultum Popular. Festividades ciclicas,
çado. A ostentação da riqueza amealhada Xambanda, 9(1996), 45-53.

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