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Duas notas não tão diferentes como isso

José Manuel Fernandes (pÚBLICO, 10.08.09)

Onde se fala de como tão facilmente nos "esquecemos" dos que depois celebramos
quando morrem e de mais um triste e grave episódio de falta de rectidão na escolha
dos que se irão pronunciar, durante cinco anos, sobre temas de bioética

1.Aqui ao lado, na sua coluna "Ainda ontem", Miguel Esteves Cardoso escreve sobre
Raul Solnado mas escreve sobretudo sobre nós todos - ou quase todos. "O que mais
me custa na morte do Raul foi ter sido morto por nós todos muito antes de ele ter
morrido."

Pois é. Não há como os portugueses para "na morte de uma pessoa grandiosa, a quem
devemos muito, lamentar que tenha morrido". Isto depois de o termos tratado mal em
vida.
Raul Solnado, que deu a volta ao humor em Portugal, que o tratou com inteligência
e cultura, que, como recordou a sua companheira, sabia que "era uma vedeta", não
passava por cima dos outros nem tapava a porta aos novos talentos que via
aproximarem-se. Foi suficientemente grande tantas vezes que não podemos dizer que
só os humoristas mais novos eram seus tributários - o Portugal que somos, nalguns
dos seus lados mais positivos, é tributário do atrevimento do Solnado da Guerra de
1908 ou do Zip-Zip, tal como é tributário da sua forma de criticar pelo humor e
sempre com ternura.
Gostava de ver os outros felizes e de lhes arrancar uma gargalhada, duas
qualidades raras entre nós, que invejamos a felicidade alheia e confundimos a
brincadeira com o insulto.
Por tudo isso custou ver a forma como Pedro Santana Lopes ontem fez do funeral do
actor um momento de campanha eleitoral. Por isso só podemos estar aqui com o
vizinho MEC e repetir com ele que "havíamos de pedir desculpa pela maneira como o
tratámos enquanto ele estava ainda vivo".
Mais: talvez seja a altura de olhar em volta e procurar os que arrumámos cedo de
mais no sótão das recordações, pois há valores que nem nestes tempos apressados
que fazem e desfazem vedetas são passíveis de descartar num Portugal onde o
talento rareia. Porque não chega apenas guardarmo-nos para a homenagem ao seu
génio no dia do seu funeral.

2.Aquilo de que falamos quando falamos de Solnado e da forma como o arrumámos é de


carácter e de valores. De uma ética na vida e no estar no espaço público que,
infelizmente, parece ter cada vez menos valor. Um exemplo disso é o que acaba de
se passar com a Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Aquela Comissão sempre funcionou e devia continuar a funcionar como um lugar onde
profissionais qualificados e reconhecidos, mas de sensibilidades diferentes,
debatessem de forma livre e sem qualquer tipo de coacção ou subserviência temas
delicados que não devem ser deixados apenas às conjunturas políticas. Sempre
integrou personalidades com pontos de vista diferentes, nunca teve poder
deliberativo, era por regra ouvida com respeito e nunca se suspeitou que pudesse
ser instrumentalizada politicamente.
Algumas mudanças cirúrgicas na lei, algum sectarismo nas escolhas, uma tomada de
possa ultradiscreta e mais uma trapalhada com epicentro no gabinete do primeiro-
ministro feriram a autoridade de uma comissão que se terá de pronunciar, no seu
mandato, sobre alguns temas que dividem muito os portugueses, do testamento vital
à eutanásia, do casamento entre homossexuais às regras da adopção, para só citar
alguns exemplos.
João Lobo Antunes ficou de fora, e não restarão muitas dúvidas que ficou de fora
porque assim o quis José Sócrates. Apesar de a deputada socialista Maria de Belém
ter começado o dia de ontem a dizer que só não integrou o conhecido neurocirurgião
na lista do Parlamento por estar convencida de que o Governo o faria e ter
terminado a desdizer-se afirmando que nunca poderia dar indicação se ele seria ou
não nomeado pelo Governo, a verdade é que o Executivo de José Sócrates não o quis
nomear. Terá sido por ter redigido recentemente um parecer que contrariava uma
proposta do Governo? Terá sido por não se recordar do que se terá falado em Belém
quando Presidente e primeiro-ministro analisaram aquele diploma?
O resultado final é uma Comissão pouco equilibrada, que não reflecte as diferentes
sensibilidades existentes na sociedade portuguesa, mas onde existe uma maioria
clara de figuras nomeadas ou pelo PS, ou pelo Governo do PS, ou por organismos que
respondem perante o Governo.
Desde o início deste Governo que o seu líder mostrou uma enorme vontade de
controlar tudo e todos, o que se viu em inúmeras nomeações que fez. Este foi
apenas mais um episódio que não destoa do que foi sempre a marca de água desta
legislatura de maioria absoluta.

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