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Garrocho
Pretendo discutir alguns tópicos de política cultural. Neste artigo, apresento os seguintes
pontos: a) uma política cultural deve levar em conta o fato de que a cultura e a arte não são
"produtos governamentais", mas realidades humanas situadas; b) as sociedades de
mercado operam incessantemente o desenraizamento da vida humana, gerando ausência de
sentido; c) a cultura é um modo de apropriação/produção do sentido, aberto e em
constante mudança; d) uma política cultural se faz por diretrizes e visa a construção de
programas e projetos permanentes, criando um rede de serviços culturais.
As políticas culturais têm por meta a reversão desse quadro, como modo de reaver perdas e
ao mesmo tempo operar avanços. Como reversão do quadro de destruição do sentido, não
se busca voltar atrás, mas refazer o caminho, ou como disse Walter Benjamin, escrever a
história a contrapelo, subvertendo o raciocínio vencedor. No caso, o de que a história se
desenvolve numa progressão linear, onde as perdas de sentido não se tornam mais
significativas, mas antes se deixam saturar pelas novidades que entulham nossas feridas...
Pelo contrário, como nos mostra a psicanalista Cristiane Barreto Napoli, a partir de J. A.
Miller:
"Todo o problema é (...) que a cultura atual fabrica, propõe sintomas, os 'sintomas
de Supermercados'. Vivemos um tempo onde nos é ofertado em larga escala a idéia
de que não se faz necessário inventar nossos próprios sintomas, afinal os objetos de
consumo estão ao alcance dos olhos. O individualismo, tido como uma característica
preponderante da pós-modernidade, a toxicomania, a delinqüência, são na verdade
sintomas de um tempo às voltas com o objeto, o não-intercambiável do gozo".
Inventar seus próprios sintomas é algo que somente os sujeitos que sofrem na carne a
violência das perdas podem realizar, sejam os sujeitos coletivos, as comunidades, sejam os
sujeitos individuais. Portanto, as políticas culturais não são estão a serviço dos governos e
nem dos interesses do mercado ou das corporações culturais ou artísticas. Nesse sentido, a
definição de princípios e de prioridades, com a demarcação dos valores, é mais do que
necessária. Não existe política cultural que não se faça a partir desses pressupostos: por
quê, para quem, e que áreas de convívio humano e social pretende atingir.
Espaço público será definido, principalmente no campo da cultura, sem qualquer espécie de
harmonia pré-estabelecida, pelo contrário, onde as prioridades devem ser discutidas.
Justamente por ser a cultura um campo polissêmico, plural e divergente. Nessa perspectiva,
é preciso dizer uma coisa: se uma política cultural se dá num espaço público e se este
espaço está sempre se construindo, deve ficar claro que os governos não inventam e não
produzem cultura.
Artistas, intelectuais e agentes culturais são as forças críticas da sociedade, apesar de não
estarem fora da sociedade. Quanto à arte, esta especialmente deve ser entendida como o
negativo da sociedade. Aquilo que resiste, que é heterogêneo aos processos de socialização,
às suas condutas habituais, nisso reside a força da arte. Quando o teatro estava submetido
aos jogos sociais, no advento das casas de teatro, com a burguesia nascente e a nobreza
assistindo mais a si mesmos do que aos espetáculos, Wagner mergulha a platéia na
escuridão. Com isso, ele desfaz a predominância do comportamento social sobre a cena e
faz emergir um mundo mítico, retornando naquele espaço convencional o lugar do
estremecimento, da diferença que a arte realiza em contraste com a sociedade.
Se uma política cultural sensata não quer fabricar artistas, intelectuais e agentes culturais,
pode, se tiver antenas sensíveis, localizá-los e promovê-los, além de favorecer a formação
artística e cultural. Isso vai ao encontro, é certo, do bem comum. Não ao gosto exclusivo
dos governos, quando a governabilidade instrumental quer engolir ou simplesmente
suprimir a alteridade a que ela deve servir, ou de uma sociabilidade arrogante, cheia de si
em sua pública superfície. Porém, uma coisa é certa: uma sociedade forte, possuidora de
um projeto democrático de governo e voltado para o coletivo, possui igualmente uma arte e
uma cultura que lhe são heterogêneas. Um bom governo não quer a sua própria reprodução
burocrática, mas a continuidade do sonho humano e a distribuição mais equânime das
oportunidades de realizá-lo. A cultura é o caminho para o desenvolvimento humano, se não
queremos apenas um desenvolvimento unilateral, calcado somente nos interesses
econômicos.
Mas a cultura somente existe como tal se realiza enquanto apropriação constante e
incessante, gerando sentido numa paisagem de contra-sentido. Em vez de "a cultura",
talvez seja interessante dizer "culturas"... E contra-sentido porque a vida nos impele
continuamente a dialogar com a pulsão de morte. Em primeira mão, tudo nos é exterior, e a
poesia, num sentido amplo e não meramente literário - Novalis nos mostra isso - acontece
quando transformamos uma necessidade externa numa necessidade interna... A cultura só
existe quando alguém realiza sua experiência.
As forças culturais surgem em pontos e regiões nem sempre facilmente identificáveis. Elas
agem subterraneamente, percorrem canais nem sempre lícitos para as definições
dominantes, dialogam com suas negações... Muitos falam de Brecht em termos de um
teatro discursivo, intelectual, frio e racional. Esquecem que Brecht se alimentava das
canções dos teatros de cabaré e circense, da tradição das canções luteranas perpetradas
pelas empregadas domésticas na Alemanha... Não é por acaso que Nietszche via como
autêntica sobrevivência do espírito dionisíaco não a ópera, mas justamente essa música das
tradições luteranas cultivadas pelo povo. Alguma coisa com a diáspora africana? Veja o que
diz Hermano Vianna, quando analisa a cultura do ambiente tecno-urbano:
"O hip hop (pai do trip hop e do acid jazz) nasceu nos guetos negros de Nova York.
O house (pai do acid house e do garage) nasceu nos guetos negros (e gays) de
Chicago. O tecno (pai do trance) nasceu nos guetos negros de Detroit (EUA). E o
jungle nasceu nos guetos negros de Londres. Ao tentar desenhar a árvore
genealógica de todos esses vários "beats" (não importa as medidas de BPM, ou
"beats" -batidas- por minuto, que os diferenciam), chegaremos aos mesmos
antepassados do rock, do funk, do soul, do blues, do jazz." (Folha de São Paulo -06
/Abr/97).
Ou o que diz a nossa saudosa Lígia Avelar, no texto Dinâmica Cultural do Brasil
Contemporâneo: