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Política Cultural Política Cultural Como Reversão da Destruição Luiz Carlos

Garrocho

Pretendo discutir alguns tópicos de política cultural. Neste artigo, apresento os seguintes
pontos: a) uma política cultural deve levar em conta o fato de que a cultura e a arte não são
"produtos governamentais", mas realidades humanas situadas; b) as sociedades de
mercado operam incessantemente o desenraizamento da vida humana, gerando ausência de
sentido; c) a cultura é um modo de apropriação/produção do sentido, aberto e em
constante mudança; d) uma política cultural se faz por diretrizes e visa a construção de
programas e projetos permanentes, criando um rede de serviços culturais.

Como ponto de partida, devemos reconhecer que a arte e os movimentos culturais se


produzem por necessidade humana. Porém, essas necessidades estão configuradas
atualmente, e de modo predominante, no contexto das sociedades de mercado, onde os
seres são arrancados dos seus âmbitos de vida, as tradições soterradas e todo o horizonte
de sentido corroído sistematicamente. Neste contexto, os valores de uso (apropriação e
produção de sentido) são transformados em valores de troca (tudo vira mercadoria). Joseph
Beuys, um dos artistas e performers mais radicais do século XX apontava para o mal que
consume as nossas sociedades: fenecimento dos Sentidos e fenecimento do Sentido.

As políticas culturais têm por meta a reversão desse quadro, como modo de reaver perdas e
ao mesmo tempo operar avanços. Como reversão do quadro de destruição do sentido, não
se busca voltar atrás, mas refazer o caminho, ou como disse Walter Benjamin, escrever a
história a contrapelo, subvertendo o raciocínio vencedor. No caso, o de que a história se
desenvolve numa progressão linear, onde as perdas de sentido não se tornam mais
significativas, mas antes se deixam saturar pelas novidades que entulham nossas feridas...
Pelo contrário, como nos mostra a psicanalista Cristiane Barreto Napoli, a partir de J. A.
Miller:

"Todo o problema é (...) que a cultura atual fabrica, propõe sintomas, os 'sintomas
de Supermercados'. Vivemos um tempo onde nos é ofertado em larga escala a idéia
de que não se faz necessário inventar nossos próprios sintomas, afinal os objetos de
consumo estão ao alcance dos olhos. O individualismo, tido como uma característica
preponderante da pós-modernidade, a toxicomania, a delinqüência, são na verdade
sintomas de um tempo às voltas com o objeto, o não-intercambiável do gozo".
Inventar seus próprios sintomas é algo que somente os sujeitos que sofrem na carne a
violência das perdas podem realizar, sejam os sujeitos coletivos, as comunidades, sejam os
sujeitos individuais. Portanto, as políticas culturais não são estão a serviço dos governos e
nem dos interesses do mercado ou das corporações culturais ou artísticas. Nesse sentido, a
definição de princípios e de prioridades, com a demarcação dos valores, é mais do que
necessária. Não existe política cultural que não se faça a partir desses pressupostos: por
quê, para quem, e que áreas de convívio humano e social pretende atingir.

As operações de reversão do quadro de desenraizamento, de destruição dos valores e


desapropriação das formas de vida cultural, se entrelaçam necessariamente com as
operações que eu chamo de avanço. Quando se diz avanço, pensa-se no desconhecido, no
que está por fazer e não necessariamente no apego ao novo pelo novo. Ao contrário,
avançar é ter por suposto que a cultura ou as culturas desejam continuar desejando, e que
ninguém pode dizer onde isso deve parar. As culturas operam transgressões que são
próprias das formas de resistências à destruição, geradoras de a experiências não contidas
em recipientes, mas, em alguns casos, disseminadas pelo mundo afora.

As políticas culturais precisam estar assentadas em princípios e orientadas para a


construção de uma rede de serviços culturais. Falamos de princípios em termos de diretrizes
de toda ação. São os princípios que permitem o planejamento e monitoramento dos
programas e projetos, que delineiam os horizontes. Falamos em programas e projetos e não
em eventos isolados, pois entendemos que os serviços permanentes são um direito do
cidadão, numa proposta de inversão de prioridades (democratização do acesso às formas de
criação, produção e fruição cultural). Os eventos especiais (festivais, encontros, grandes
mostras etc.) fazem parte desse processo, por alavancarem temas, organizarem
efemérides, pontuarem ações. Mas, deve ficar claro que não se concebe mais uma ação
cultural apenas pontual e eventual, principalmente quando voltada somente para os
objetivos mais imediatos, sem pensar a longo prazo. Assim como se constrói uma rede de
educação e de saúde, deve-se construir uma rede de serviços culturais. Infelizmente, ainda
encontramos concepções equivocadas em termos de política cultural:
- ação cultural como evento ou mera atividade isolada;
- identificação com valores de mercado (os valores mais imediatos do mundo do espetáculo
comercial ao lado dos valores assentados na "alta cultura" como valores de troca, tais como
os produtos e bens oriundos das "belas artes", com seus preços, circuitos mercadológicos
etc.);
- visão assistencialista (como se a ação cultural se definisse, para as comunidades e
pessoas menos favorecidas economicamente, como ensino e doação, em vez de procurar
estabelecer relações de diálogo com seu mundo de cultura).

Contra esses equívocos, devemos afirmar incessantemente: a) a necessidade de serviços


culturais gratuitos e permanentes, dentro de linhas programáticas, acompanhados de
diagnósticos e indicadores, b) a não redução da arte e da cultura aos valores do mercado;
c) a compreensão de que todo ser humano é um sujeito cultural. As políticas culturais são
aquelas que favorecem a invenção de espaços do re-fazer: distribuição das oportunidades
através da reversão das prioridades e inserção dos valores como invenção e conquista e não
como experiências programadas de antemão. E nem mesmo o mercado fica de fora disso,
pois é preciso recuperá-lo como mercado mesmo, isto é, lugar das trocas e negociações,
onde se pode ver o rosto com o qual falamos. Ver o mercado como lugar das trocas não é o
mesmo que ver tudo se transformando em mercadoria, virando objeto de troca. Há valores
e vivências, bem como processos humanos, que jamais podem ser submetidos a qualquer
interferência do mercado. Há coisas que não têm preço.

As políticas de reversão de perdas e criação de avanços não podem, entretanto, se realizar


no vazio: somente num espaço público. Espaço de construção, não coincidente com o
mercado, no qual a diferença se faz ouvir. No espaço público as pessoas podem discutir o
que se propõe como política pública para a cultura. Lembro, aqui, as insistências do
historiador e consultor cultural, Bernardo Mata Machado, para que haja distinção entre
política governamental e política pública. Por fim, o espaço público pode ajudar também a
criar redes de solidariedade, de expansão das trocas e intercâmbios, criando condições para
que os agentes culturais possam se encontrar. Sem investimento público, entretanto, não há
política cultural que vingue. Isto é, um projeto de desenvolvimento humano, que não seja
alicerçado somente nos grandes trunfos do mercado cultural, que seja capaz de construir
democraticamente o espaço público da cultura, superando a falsa dicotomia entre "alta
cultura" e "cultura popular". Não podemos aceitar que de um lado esteja o investimento no
"atacado", com uma cultura de grandes eventos e grandes marcas, e de outro o "varejo",
com a distribuição de ofertas variadas para a população "em geral". Aceitar isso é ser
conivente com a morte da cultura.

Espaço público será definido, principalmente no campo da cultura, sem qualquer espécie de
harmonia pré-estabelecida, pelo contrário, onde as prioridades devem ser discutidas.
Justamente por ser a cultura um campo polissêmico, plural e divergente. Nessa perspectiva,
é preciso dizer uma coisa: se uma política cultural se dá num espaço público e se este
espaço está sempre se construindo, deve ficar claro que os governos não inventam e não
produzem cultura.

Artistas, intelectuais e agentes culturais são as forças críticas da sociedade, apesar de não
estarem fora da sociedade. Quanto à arte, esta especialmente deve ser entendida como o
negativo da sociedade. Aquilo que resiste, que é heterogêneo aos processos de socialização,
às suas condutas habituais, nisso reside a força da arte. Quando o teatro estava submetido
aos jogos sociais, no advento das casas de teatro, com a burguesia nascente e a nobreza
assistindo mais a si mesmos do que aos espetáculos, Wagner mergulha a platéia na
escuridão. Com isso, ele desfaz a predominância do comportamento social sobre a cena e
faz emergir um mundo mítico, retornando naquele espaço convencional o lugar do
estremecimento, da diferença que a arte realiza em contraste com a sociedade.

Se uma política cultural sensata não quer fabricar artistas, intelectuais e agentes culturais,
pode, se tiver antenas sensíveis, localizá-los e promovê-los, além de favorecer a formação
artística e cultural. Isso vai ao encontro, é certo, do bem comum. Não ao gosto exclusivo
dos governos, quando a governabilidade instrumental quer engolir ou simplesmente
suprimir a alteridade a que ela deve servir, ou de uma sociabilidade arrogante, cheia de si
em sua pública superfície. Porém, uma coisa é certa: uma sociedade forte, possuidora de
um projeto democrático de governo e voltado para o coletivo, possui igualmente uma arte e
uma cultura que lhe são heterogêneas. Um bom governo não quer a sua própria reprodução
burocrática, mas a continuidade do sonho humano e a distribuição mais equânime das
oportunidades de realizá-lo. A cultura é o caminho para o desenvolvimento humano, se não
queremos apenas um desenvolvimento unilateral, calcado somente nos interesses
econômicos.

Mas a cultura somente existe como tal se realiza enquanto apropriação constante e
incessante, gerando sentido numa paisagem de contra-sentido. Em vez de "a cultura",
talvez seja interessante dizer "culturas"... E contra-sentido porque a vida nos impele
continuamente a dialogar com a pulsão de morte. Em primeira mão, tudo nos é exterior, e a
poesia, num sentido amplo e não meramente literário - Novalis nos mostra isso - acontece
quando transformamos uma necessidade externa numa necessidade interna... A cultura só
existe quando alguém realiza sua experiência.

As forças culturais surgem em pontos e regiões nem sempre facilmente identificáveis. Elas
agem subterraneamente, percorrem canais nem sempre lícitos para as definições
dominantes, dialogam com suas negações... Muitos falam de Brecht em termos de um
teatro discursivo, intelectual, frio e racional. Esquecem que Brecht se alimentava das
canções dos teatros de cabaré e circense, da tradição das canções luteranas perpetradas
pelas empregadas domésticas na Alemanha... Não é por acaso que Nietszche via como
autêntica sobrevivência do espírito dionisíaco não a ópera, mas justamente essa música das
tradições luteranas cultivadas pelo povo. Alguma coisa com a diáspora africana? Veja o que
diz Hermano Vianna, quando analisa a cultura do ambiente tecno-urbano:

"O hip hop (pai do trip hop e do acid jazz) nasceu nos guetos negros de Nova York.
O house (pai do acid house e do garage) nasceu nos guetos negros (e gays) de
Chicago. O tecno (pai do trance) nasceu nos guetos negros de Detroit (EUA). E o
jungle nasceu nos guetos negros de Londres. Ao tentar desenhar a árvore
genealógica de todos esses vários "beats" (não importa as medidas de BPM, ou
"beats" -batidas- por minuto, que os diferenciam), chegaremos aos mesmos
antepassados do rock, do funk, do soul, do blues, do jazz." (Folha de São Paulo -06
/Abr/97).
Ou o que diz a nossa saudosa Lígia Avelar, no texto Dinâmica Cultural do Brasil
Contemporâneo:

"Se a modernidade permitiu aos euro-americanos projetar sua civilização, sua


história e conhecimento como se fossem a civilização, a história e o conhecimento, a
teoria pós-colonial tem acentuado a queda dos muros e limites e apontado a
construção de pontes, que mesclam o local e o global, o familiar e o estranho, o
privado e o público, o sagrado e o profano e assim deslocam as fronteiras da cultura
e descentram as identidades culturais. "
A cultura, portanto, ou as culturas, passam por caminhos imprevisíveis, pois são caminhos
onde a necessidade humana de apropriação se faz valer. Esses caminhos não são exclusivos
do mundo do mercado cultural e nem a ele redutíveis, mas quando negociam ou dialogam
com ele contribuem para a sua ampliação e complexidade, ao mesmo tempo em que
passam a valorizar os próprios meios de sobrevivência. Por isso é equivocado separar uma
"alta cultura" de uma "cultura popular", principalmente pelo fato de os cruzamentos, ou
formações híbridas ocorrerem o tempo todo. São formações que reinventam sua própria
ética: mais do que nunca, num mundo de valores trocados, é preciso produzir sentido, ainda
que às próprias custas. Isso significa procurar por meios que possam permitir ao campo da
cultura sua abertura para o imprevisível, ao mesmo tempo em que possibilita a
formação de identidades culturais.

De modo prioritário, num campo polissêmico como o campo da cultura contemporânea, e


com a crescente presença de novos agentes e novos códigos culturais, além da urgência de
reverter a marginalização social através da cultura, é necessário um trabalho exaustivo de
diagnóstico em termos de economia da cultura. Sem isso e sem indicadores, uma política
cultural fica submetida ao sabor dos caprichos dos governantes. As necessidades das áreas,
como as linguagens artísticas - música, artes cênicas, artes gráficas e visuais, literatura e
suas relações intermídias - as identidades culturais, o patrimônio histórico e cultural
(edificado e não edificado), tudo isso precisa ser compreendido em suas dinâmicas próprias
e interdisciplinares, a partir de estudos mais sistêmicos. Nesse aspecto, deve-se relacionar
políticas para a produção e criação, para a formação especializada e ampla, e para a
circulação. Assim como deve haver políticas voltadas para o fortalecimento dos laços
comunitários e para a promoção da solidariedade e tolerância. Dois pontos precisam ser
equacionados: o público-produtor, voltado para a profissionalização e o público-leitor (leitura
no sentido amplo). Quase sempre, as políticas culturais encontram dificuldades, por não
realizarem ainda diagnósticos e indicadores em termos de economia da cultura. O outro lado
da moeda é supor, quando se realiza algum diagnóstico, que a questão se resume numa
ponta à ampliação de público e noutra à profissionalização para o mercado - sem discutir
que tipo de ampliação, que tipo de público quando parte da população nem é considerada
"público", e ainda em que moldes e para que fim se dá uma profissionalização. Entre uma
coisa e outra há dimensões que precisam ser incorporadas: os coletivos de criação (grupos
culturais que fundam novas éticas e princípios), associações e formações comunitárias etc.

Portanto, se de um lado apostamos no caráter irredutível da arte e cultura, no sentido de


que existem como necessidades humanas e como movimentos da própria sociedade, temos
a certeza de que sem o espaço público, sustentado por investimentos públicos, nada
sobreviverá como valor humano se prevalecerem somente as orientações geradas numa
sociedade de mercado.
Luiz Carlos Garrocho : Diretor e Professor de Teatro, gestor cultural, formado em Filosofia pela
UFMG

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