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TEMPO COMUM. TRIGÉSIMA TERCEIRA SEMANA.

TERÇA-FEIRA

86. A FIDELIDADE DE ELEAZAR


– O exemplo de Eleazar.

– Obstáculos à fidelidade.

– Lealdade à palavra dada e aos compromissos adquiridos.

I. NO REINADO DE ANTÍOCO, desencadeou-se uma fortíssima perseguição


contra Israel. O Templo foi profanado e introduziu-se nele o culto aos deuses
gregos. Proibiu-se a celebração do sábado, e todos os meses os judeus eram
obrigados a celebrar o aniversário do rei participando dos sacrifícios que se
realizavam e comendo as carnes que se imolavam.

Eleazar, um venerável ancião de noventa anos, manteve-se fiel à fé dos


seus pais e preferiu morrer a participar desses sacrifícios. Antigos amigos
quiseram trazer-lhe alimentos permitidos para simular que tinha comido carnes
sacrificadas, conforme a ordem do rei. Fazendo isso – diziam-lhe –, livrar-se-ia
da morte. Mas Eleazar manteve-se fiel à vida exemplar que tinha levado desde
criança: Não é digno da minha idade – dizia-lhes – usar de uma tal ficção. Dela
poderá resultar que muitos jovens, julgando que Eleazar, aos noventa anos,
passou para a vida dos pagãos, venham também eles a cair em erro por causa
desse meu fingimento e para conservar um pequeno resto de uma vida
corruptível; com isso atrairia a vergonha e a execração sobre a minha velhice.
E ainda que me livrasse presentemente dos suplícios dos homens, não poderia
fugir à mão do Todo-Poderoso nem na vida nem depois da morte.

Eleazar foi arrastado ao suplício e, estando a ponto de morrer, exclamou:


Senhor, tu que tens a ciência santa, sabes bem que, podendo eu livrar-me da
morte, sofro no meu corpo dores acerbas; mas sinto na alma alegria em
padecê-las pelo temor que te tenho. O autor sagrado regista a exemplaridade
da sua morte não só para os jovens, mas para toda a nação. Este relato1
recorda-nos a fidelidade sem fissuras aos compromissos contraídos em relação
à fé, para que sejamos leais ao Senhor também quando talvez fosse mais fácil
entrarmos em concessões pela pressão de um ambiente pagão hostil ou por
alguma circunstância difícil em que nos encontremos.

São João Crisóstomo chama a Eleazar “protomártir do Antigo Testamento”2.


A sua atitude gozosa no martírio é como um prelúdio daquela alegria que Jesus
preconizou aos que seriam perseguidos por causa do seu nome 3. É o júbilo
que o Senhor nos faz experimentar quando, por sermos fiéis à fé e à nossa
vocação, temos de enfrentar contrariedades.

II. OS PRIMEIROS CRISTÃOS eram designados frequentemente como


fiéis4.
O termo nasceu em momentos de dificuldades externas, de perseguições,
de calúnias e de pressão de um ambiente pagão que procurava impor a sua
maneira de pensar e de viver, muito oposta à doutrina do Mestre. Ser fiel era
manter-se firme ante esses obstáculos externos. Sê fiel até à morte – lê-se no
Apocalipse –, e eu te darei a coroa da vida5. Já antes o Apóstolo advertia: Não
temas nada do que terás que sofrer. Eis que o demónio fará encarcerar alguns
de vós, a fim de serdes provados; e tereis tribulação durante dez dias.

Isso é a vida: dez dias, um pouco de tempo. Como não havemos de


permanecer fiéis se sofremos alguma contradição, muitas vezes pequena?
Acabaremos por envergonhar-nos da nossa fé, que tem consequências
práticas no modo de actuar, só porque talvez alguns nos mostrem a sua
discordância? “É fácil – recordava o Papa João Paulo II – ser coerente por um
dia ou por alguns dias. Difícil e importante é ser coerente toda a vida. É fácil ser
coerente no momento da exaltação, difícil sê-lo à hora da tribulação. E só pode
chamar-se fidelidade a uma coerência que dura toda a vida”6.

Às vezes, os obstáculos não são externos, mas interiores. A soberba é o


principal deles, e, com ela, a tibieza, que nos faz perder o impulso e a alegria
no seguimento de Cristo. Noutros casos, a escuridão da alma surge como
consequência da falta de vontade e da ausência de luta, ou porque Deus a
permite para nos purificar. Seja qual for a causa dessas trevas, a fidelidade
consistirá muitas vezes na humildade de sermos dóceis aos conselhos
recebidos na direcção espiritual, em mantermos um diálogo vivo com o Senhor,
em permanecermos num relacionamento diário com Ele, ainda que não
sintamos nenhuma alegria sensível ao fazê-lo.

“Ficaram muito gravados na minha cabeça de criança – conta S. Josemaría


Escrivá – aqueles sinais que, nas montanhas da minha terra, se colocavam à
borda dos caminhos; chamaram-me a atenção uns paus altos, geralmente
pintados de vermelho. Explicaram-me então que, quando a neve cai e cobre
caminhos, sementeiras e pastos, bosques, penhascos e barrancos, essas
estacas sobressaem como ponto de referência seguro, para que toda a gente
saiba sempre por onde segue o caminho.

“Na vida interior, passa-se algo parecido. Há primaveras e verões, mas


também chegam os invernos, dias sem sol e noites órfãs de lua. Não podemos
permitir que a relação com Jesus Cristo dependa do nosso estado de humor,
das alterações do nosso carácter. Essas atitudes delatam egoísmo,
comodismo, e evidentemente não se compadecem com o amor.

“Por isso, nos momentos de nevasca e vendaval, umas práticas piedosas


sólidas – nada sentimentais –, bem arraigadas e adaptadas às circunstâncias
próprias de cada um, serão como essas estacas pintadas de vermelho, que
continuam a marcar-nos o rumo, até que o Senhor decida que o sol brilhe de
novo, os gelos se derretam e o coração torne a vibrar, aceso com um fogo que
na realidade nunca esteve apagado: foi apenas o rescaldo oculto pela cinza de
uns tempos de prova, ou de menos empenho, ou de pouco sacrifício”7.

III. A LEALDADE DE ELEAZAR à fé dos seus pais serviu, além disso, para
que muitas outras pessoas permanecessem firmes nas suas crenças e
costumes. A fidelidade de um homem nunca fica isolada. São muitos os que,
talvez sem o saberem expressamente, se apoiam nela. Uma das grandes
alegrias que o Senhor nos fará experimentar um dia será podermos contemplar
todos aqueles que permaneceram firmes na sua fé e na sua vocação por se
terem apoiado na nossa sólida coerência.

A virtude humana correspondente à fidelidade é a lealdade, essencial à


convivência entre os homens. Sem um clima de lealdade, as relações e os
vínculos humanos degenerariam quando muito numa mera coexistência, com o
seu cortejo inexorável de insegurança e desconfiança. A vida propriamente
social não seria possível se não se desse “aquela observância dos pactos sem
a qual não é possível uma tranquila convivência entre os povos”8, feita de
confiança mútua, de honestidade, de sinceridade recíproca.

Acontece com frequência que na sociedade, na empresa, nos negócios...,


nem sequer se ouça falar de lealdade. A mentira e a manipulação da verdade
são mais uma arma que alguns utilizam com a maior desfaçatez nos meios de
opinião pública, na política, nos negócios... Muitas vezes, sente-se a falta de
honradez no cumprimento da palavra dada e nos compromissos livremente
adquiridos. Infelizmente, vai-se mais longe: comenta-se a infidelidade conjugal
como se os compromissos adquiridos diante de Deus e diante dos homens não
tivessem valor algum. São coisas da vida privada, dizem; portanto, respeitemo-
las. Outros, desejando aumentar as suas posses ou satisfazer os seus desejos
desordenados de subir na escala social, deixam de cumprir os seus deveres
familiares, sociais ou profissionais, traindo os mais nobres e santos
compromissos.

Urge que nós, os cristãos – luz do mundo e sal da terra –, procuremos ser
exemplo de fidelidade e de lealdade aos compromissos adquiridos. Santo
Agostinho recordava aos cristãos do seu tempo: “O marido deve ser fiel à
mulher, a mulher ao marido, e ambos a Deus. E os que prometestes
continência, deveis cumprir o prometido, já que não vo-lo seria exigido se não o
tivésseis prometido [...]. Guardai-vos de fazer trapaças nos vossos negócios.
Guardai-vos da mentira e do perjúrio”9. São palavras que conservam plena
actualidade.

Perseverando, com a ajuda do Senhor, nas coisas pequenas de cada dia,


conseguiremos ouvir no fim da nossa vida, com imensa felicidade, aquelas
palavras do Senhor: Muito bem, servo bom e fiel, já que foste fiel em poucas
coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gozo do teu Senhor10.

(1) Mac 6, 18-31; Primeira leitura da Missa da terça-feira da trigésima terceira semana do
Tempo Comum, ano I; (2) São João Crisóstomo, Homilia 3 sobre os santos Macabeus; (3) cfr.
Mt 5, 12; (4) Act 10, 45; 2 Cor 6, 15; Ef 1, 1; (5) Apoc 2, 10; (6) João Paulo II, Homilia, 27.01.79;
(7) S. Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 151; (8) Pio XII, Alocução, 24.12.40, 26; (9)
Santo Agostinho, Sermão 260; (10) Mt 25, 21-23.

(Fonte: Website de Francisco Fernández Carvajal AQUI)

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