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Editorial Presença
FICHA TÉCNICA
Wilda
Deitada numa fina camada de neve, ela vê terra cinzenta tocar em céu
cinzento e sabe que regressou. O horizonte parece arranhado, mas as
marcas de garras são apenas três arvores atrofiadas. Estão alinhadas em
fila, como se estivessem a agrafar a terra ao céu.
Arqueja subitamente, uma reação retardada, como se alguém estivesse
a tentar roubar-lhe a respiração e ela tentasse sugá-la de novo para a
garganta.
Senta-se. Ainda é pequena, não passa de uma rapariguinha de nove
anos. Tem a sensação de ter perdido muito tempo, mas isso não é verdade.
Não propriamente. Não perdeu anos. Talvez apenas dias, semanas.
Aconchega o casaco espesso em torno das costelas. O casaco é
impermeável. Ela toca nos botões prateados. Há um cachecol metido para
dentro do casaco depois de dar duas voltas ao pescoço. Quem a vestiu?
Quem deu duas voltas ao cachecol? Olha para as suas botas, azuis escuras
com atacadores grossos, novas, e para as mãos metidas em luvas, cada
dedo envolto num casulo justo.
Uma madeixa do seu cabelo ruivo escuro repousa sobre o casaco. O
cabelo brilha. Cada fio termina numa ponta grossa e perfeita, como se
tivesse acabado de ser cortado.
Puxa a manga do casaco para cima, expondo o braço. Tal como
acontecia sob a luz forte, o osso já não está torcido. Não há delgadas
cristãs de plástico ao longo da pele. Não está pontilhada de estilhaços.
Nem sequer ostenta um sinal ou uma sarda. A sua pele está branca —
branca como a neve devia ser, talvez ainda mais branca. Ela nunca viu
neve verdadeiramente branca com os seus próprios olhos. As veias finas
formam linhas azuis sob o branco. Ela esfrega a pele macia da parte de
dentro do pulso na face, depois nos lábios. Pele lisa contra pele lisa.
Olha em volta e sabe que eles estão perto; consegue sentir a
eletricidade dos seus corpos a encher o ar. Lembra-se de como foi quando
eles a levaram de entre os outros enjeitados; sem mãe, sem pai, viviam em
alpendres feitos à mão perto dos mercados. Não sabe ao certo por que foi
escolhida, levantada ao ar, agarrada. Um deles envolveu-a nos braços e
partiu a correr pelo meio dos destroços, enquanto os outros saltavam à sua
volta. A respiração dele era ritmada, mecânica, as suas pernas bombeavam
como pistões. Os olhos dela tinham ficado lacrimejantes por causa do
vento, pelo que o rosto anguloso dele permanecera pouco nítido. Nessa
altura, ela não tivera medo, mas agora tem. Eles estão ali, os seus corpos
fortes a zumbir como abelhas gigantescas, mas vão deixá-la. Sente-se como
uma criança num conto de fadas. Nas histórias da sua mãe — pois ela
tivera uma mãe, outrora — havia um caçador que fora encarregado de
levar o coração de uma rapariga a uma rainha malvada, mas não
conseguira obrigar-se a fazê-lo. Outro abrira a barriga de um lobo para
salvar as pessoas que ele comera. Os caçadores eram fortes e bons. Mas
por vezes deixavam rapariguinhas nos bosques, rapariguinhas que depois
tinham de se amanhar sozinhas.
Cai uma neve ligeira. Ela levanta-se devagar. O mundo oscila
bruscamente, como se tivesse ficado mais pesado de repente. Ela cai de
joelhos, depois ouve vozes no bosque; são duas pessoas que se aproximam.
Mesmo àquela distancia, ela consegue ver as cicatrizes vermelhas nos
rostos delas. Uma coxeia. Transportam sacos.
Aconchega o cachecol sobre o nariz e a boca. Tem de ser encontrada.
É uma enjeitada; lembra-se de essa palavra ter sido usada no quarto da luz
forte. «Queremos que ela seja uma enjeitada.» Era uma voz de homem, a
vibrar através de um altifalante. Era ele quem mandava, embora ela nunca
o tivesse visto. Willux, Willux, sussurravam as pessoas — pessoas de pele
lisa, que não estavam fundidas a coisa nenhuma. Deslocavam-se com
facilidade em torno da sua cama, rodeada por suportes de metal de onde
pendiam sacos de líquido transparente que pingava para tubos, por entre
fios e pequenas maquinas que apitavam. Era como ter mães e pais,
demasiados para contar. Ela lembra-se da grande luz, da lâmpada
brilhante, tão forte e próxima que a mantinha quente. Lembra-se da
primeira vez que passara a mão pela pele e de como a sua barriga também
estava lisa quando lhe tocara. O seu umbigo, a coisa que a sua mãe
chamava «umbiguinho» e a que as vozes no quarto se referiam como
cicatriz umbilical, tinha desaparecido.
Enfia a mão por baixo do casaco e da saia e passa-a sobre a barriga.
Como da outra vez, há apenas uma superfície lisa de pele e mais pele.
«Curada», tinham dito as vozes por trás de máscaras brancas, mas
havia nelas preocupação. «Um êxito, apesar de tudo», diziam. Alguns
queriam conservá-la lá para observação.
Ela começa a abrir a boca para chamar os vultos distantes que
transportam sacos, mas a sua boca não se abre completamente, É como se
os seus lábios estivessem parcialmente cosidos de ambos os lados — com
os cantos selados.
E que ia ela dizer? Não consegue lembrar-se de qualquer palavra. As
palavras são um turbilhão indistinto na sua cabeça. Não consegue ordená-
las, nem pronuncia-las. Por fim, chama, mas a única palavra que se forma
na sua boca é «Queremos! » Ela não compreende porquê. Tenta pedir
ajuda de novo, mas volta a gritar: «Queremos! »
Elas aproximam-se, duas mulheres jovens. São recoletoras; dá para
perceber pelas verrugas e cicatrizes que lhes marcam os dedos. Já tocaram
numa quantidade de bolbos, bagas e cogumelos venenosos. Uma delas tem
dois espigões prateados, como dentes de um garfo velho, no lugar de dois
dos seus dedos. É ela que coxeia e o seu rosto, embora queimado num tom
vermelho-escuro, é estranhamente bonito, sobretudo devido aos olhos, que
brilham num tom laranja-dourado, como metal líquido —foram marcados
pelo clarão das próprias bombas. E cega. Agarra no braço da outra
recoletora e diz:
— Quem és tu? — Parece o chamamento de um pássaro. A rapariga
ouvia pássaros no quarto da luz forte, o seu canto gravado e reproduzido
através dos altifalantes invisíveis. A arrulhar, pensa ela. Agora ouve outros
pássaros no bosque. Fazem o tipo de sons que acompanharam toda a sua
infância: não são notas límpidas e doces, como no quarto iluminado, mas
sons ásperos e roucos.
As duas jovens têm medo dela. Será que já perceberam que ela é
diferente?
Quer dizer-lhes o seu nome, mas não se lembra dele. As únicas
palavras que encontra na sua mente são Flor de Fogo. Era o que a sua mãe
lhe chamava, por vezes; nascida do fogo e da destruição, lançara raízes e
medrara. Nunca conheceu o pai, mas está convencida de que ele se perdeu
no fogo e na destruição.
Então o seu nome reparasse no seu cérebro: Wilda. Chama-se Wilda.
Pousa a mão no chão frio. Quer dizer-lhes que é nova. Quer dizer-lhes
que o mundo mudou para sempre. Mas o que diz é:
— Queremos o nosso filho.
As palavras surpreendem-na. Porque terá dito aquilo?
As duas jovens viram-se uma para a outra. A cega diz:
— Que significa isso? O filho de quem?
A outra tem uma cicatriz que lhe desce ao longo da bochecha, como se
lá tivesse ficado fundida uma trança, agora coberta por uma camada de
pele.
— Não é boa da cabeça — comenta ela.
— Quem és tu? — pergunta a cega de novo.
A rapariga responde:
— Queremos o nosso filho. São as únicas palavras que consegue dizer.
As jovens olham subitamente em redor, mesmo a cega. Ouvem as
sinapses elétricas que fazem estalar o ar. As criaturas que a trouxeram
estão irrequietas.
— São muitos diz a que tem a cicatriz da trança, com os olhos
arregalados. Estão a protegê-la. Não os sentes? Foram mandados pelos
nossos Vigilantes para olharem por ela.
— Anjos — diz a cega.
Começam a recuar.
Mas então Wilda arregaça a manga e mostra-lhes o braço — tão
branco que parece brilhar.
— Queremos — diz de novo, lentamente — a devolução do nosso filho.
Parte I
Capítulo 1
Pressia
Traças
Partridge
Besouro
El Capitan
Novo
Pressia
Sete
A morgue é fria e nua, com uma mesa de aço comprida. Desde a última
vez que ela ali esteve, há um par de semanas, Bradwell espalhou ainda mais
papéis e livros. Partes do manuscrito inacabado dos seus pais estão
dispostas em pilhas. Na parede, Bradwell colou a Mensagem, um original
que o avô dela guardou durante anos. Ela dera-a a Bradwell, quando este
regressara à barbearia para ir buscar o que restava. Afinal, é ele o
arquivista.
Sabemos que estais aqui, nossos irmãos e irmãs. Um dia sairemos da
Cúpula para nos reunirmos a vós em paz. Por agora, assistiremos de longe,
com benevolência.
Lyda
Banheiras De Metal
Partridge
Frio
El Capitan
Pira
Pressia
Cadete
Lyda
Carruagem De Metro
Pressia
Boneco De Neve
El Capitan
Aranhas
Pressia
Caramanchão
El Capitan
Rapazes Da Cave
Estão numa parte mais agradável das Terras Derretidas. As marcas das
casas são maiores e há mais que tinham piscinas, reduzidas agora a poços
de cimento em desagregação. As Mães aceitaram levá-los até Partridge,
mas Bradwell e El Capitan tiveram de deixar todas as suas armas. El
Capitan trancou o carro com a sua espingarda lá dentro. As Mães só
consentiram que Bradwell levasse Fignan porque Pressia as convencera de
que não se tratava de uma bomba, mas apenas uma espécie de biblioteca.
O músculo da barriga da perna de El Capitan arde intensamente. As
patas da aranha robótica cravaram-se na sua carne quase até ao osso.
Sempre que flete o pé, um pico de dor dispara pela sua perna acima.
Lembra-lhe a dor insuportável a seguir às Detonações, quando Helmud fora
fundido com ele. A dor sussurra: «Lembras-te de mim? Lembras-te de todo
aquele sofrimento? Ainda o sentes?»
Ele recorda-se da manhã das Detonações. O seu irmão era uma criança
tagarela, inteligente e engraçada. Mais esperto do que El Capitan, isso era
certo. A última coisa que El Capitan tinha dito ao irmão? «Não sejas parvo,
Helmud. Não sejas um raio de um parvo tão grande». Helmud ia atrás na
moto, com El Capitan a conduzir. Iam rebuscar os caixotes do lixo de um
minimercado. Helmud dissera que cantaria para distrair as pessoas. A
verdade é que Helmud tinha uma voz linda. A mãe dizia que Deus estava
naquela voz. Por aquela altura, a mãe já tinha desaparecido e ambos tinham
saudades dela.
E agora? Helmud é um raio de um parvo e aqueles anos todos
dedicados a manter ambos vivos estão a chegar ao fim. Morrerão dali a
cinco horas, vinte e três minutos e quinze segundos — pelo menos, da
última vez que ele foi ver. É estranho saber o segundo exato em que se vai
morrer. Um pouco de mistério arrancado à vida.
Chegará um momento em que ele e Helmud se porão a andar, tal como
os cães, por vezes, fogem para morrer.
A Mãe detém-se e faz-lhes sinal para se aproximarem.
— Há inquietação no ar.
Então uma seta feita à mão veio enterrar-se no chão perto dos seus pés.
Outra deslizou de um bloco de cimento.
— Rapazes da Cave! — grita a Mãe. — Corram!
Rapazes da Cave? Que raio é um Rapaz da Cave? E, por favor, pensa
El Capitan, tudo menos correr A sua perna está a arder. Jesus. Talvez não
aguente. Pressia agarra na rapariguinha e arranca a toda a brida. Bradwell
corre ao lado dela. El Capitan tenta acompanhá-los, mas está coxo por
causa da dor. Sente os restos das coxas de Helmud, que flete os músculos
como se El Capitan fosse um cavalo e ele estivesse a incitá-lo a acelerar o
passo.
— Calma aí, Helmud! Jesus!
— Jesus! — diz Helmud. Mais à frente, a Mãe mergulhou por trás de
um depósito de água corroído, tombado de lado junto de um muro baixo.
Mais algumas setas passam silvando. Ela empunha um segmento de tubo
metálico e uma caixa de dardos finos, provavelmente envenenados. Faz
pontaria a uma tampa levantada perto dos destroços de uma casa do outro
lado da rua.
El Capitan corre para junto dela e encolhe-se contra o depósito de
água.
— Que raio é um Rapaz da Cave? — Aperta a coxa com a mão,
fazendo uma careta.
— Eram adolescentes quando rebentaram as Detonações — explica a
Mãe. — Tinham voltado da escola, os pais estavam a trabalhar, e eles
sobreviveram encapsulados nas caves, a jogar videojogos. Tentámos cuidar
deles, mas eles querem a sua independência. As mãos de muitos deles
ficaram fundidas com comandos de plástico. Eles cortaram os comandos à
machadada, mas os restos ainda lá estão, nas suas palmas. Têm armas feitas
em casa.
— Ah.
— São atiradores furtivos pálidos. Abrigam-se numa área subterrânea.
Há rumores de que um grupo deles matou alguns desses Dadores de Morte,
despojou-os das armas e está agora fortemente armado.
— Dadores de Morte? Refere-se às Forças Especiais. Inteligente. —
Fita-a com uma expressão doce e diz: — É uma pena termos tido de deixar
as nossas armas.
A Mãe olha-o com desconfiança.
— O que posso dizer? Gostava de ajudar — prossegue El Capitan, com
um sorriso.
Ela rebusca as suas pesadas saias, que albergam coldres invisíveis.
— Sabes usar uma zarabatana?
— É uma arte. — Ele praticou um pouco durante uma fase inicial da
sua aprendizagem de caça. — Devo estar um bocado enferrujado.
Ela estende-lhe outro segmento de tubo e um conjunto de dardos.
— Cuidado — avisa. — Têm veneno na ponta. — Os olhos azuis do
filho dela viram-se para El Capitan.
— Terei cuidado.
— Cuidado! — diz Helmud.
El Capitan espreita pela borda do depósito e vê um lampejo sombrio
perto da plataforma de cimento, do outro lado da rua. Leva o tubo aos
lábios e sopra no preciso momento em que uma cabeça pálida aparece. O
dardo rasga a orelha do Rapaz da Cave, que a cobre com a mão em concha
enquanto o sangue lhe corre pelo pescoço. Desaparece.
— Boa — diz a Mãe.
— Boa — diz Helmud em resposta, quase como uma saudação.
Vão avançando de um antigo jacuzzi até um muro que alguém
construiu com pedras de calçada e lajes, e mesmo uma carrinha delapidada
e saqueada. Vão apanhando os Rapazes da Cave, um por um, até
conseguirem sair do seu território. El Capitan tem a sensação de ter a perna
em chamas.
Bradwell, Pressia e a rapariguinha estão escondidos atrás da estrutura
desmoronada de uma garagem para dois carros.
— Estamos safos — anuncia a Mãe. Pressia vira-se para El Capitan:
— Vieste todo o caminho a coxear.
Ela tinha estado a observá-lo?
— Cãibras musculares — responde. — Estou bem.
— Estou bem — diz também Helmud, como se ela lhe tivesse
perguntado.
— Sigam sempre por este caminho. Para oeste — indica a Mãe.
— Não vem connosco? — indaga El Capitan. — Achei que fazíamos
uma boa equipa.
Ela despe o casaco. O seu ombro foi atingido de raspão.
— Não somos os únicos que sabem envenenar. Deixem-nos. Não
conseguiremos chegar.
— Iremos buscar ajuda! — declara Pressia.
El Capitan sabe que não pode oferecer-se para correr em busca de
ajuda. Pode explodir pelo caminho. Não há tempo.
— Não — recusa a Mãe. — Nós seremos encontrados. As Mães virão
por nós.
— Freedle — lembra Bradwell. — Ele pode ter uma perspetiva aérea
da zona e encontrar outras Mães. Atraí-las aqui.
Pressia tira Freedle do bolso:
— Será melhor dar-lhe um bilhete?
— Basta soltá-lo — replica a Mãe, sentando-se e amparando a cabeça
do filho. — Elas saberão.
Pressia segura Freedle nas mãos em concha:
— Arranja ajuda. Procura Mães, trá-las aqui — diz. Depois ergue as
mãos e Freedle levanta voo, batendo as asas e desaparecendo no ar
carregado de cinzas.
— Partam agora. Ficarão bem — diz a Mãe.
— Tem a certeza disso? — pergunta El Capitan.
Ela levanta os olhos semicerrados para ele:
— Não. Não tenho a certeza de nada.
Capítulo 14
Partridge
Dois a Dois
Lyda
Globo De Neve
Partridge
Lança
Pressia
Chaminé
Lyda
Latão
El Capitan
Canta, Canta, Canta
Pressia
Rio
Partridge
Para Baixo
Pressia
As Meninas Fantasma
— Ouvi dizer que as coisas foram muito más por aqui. Bem, sabes
como foi onde quer que houvesse água. Piscinas, lagos com patos em
campos de golfe, rios como este. — Os juncos chocalham. Um corpo
pequeno e peludo desliza através da vegetação rasteira.
Pressia sabe o que Bradwell ouviu dizer. Toda a gente se dirigiu para a
água, uma procissão de morte, porque havia tornados de fogo e, por um
bocado, o mundo foi um barril de pólvora. Tudo ficou em chamas. As
pessoas procuravam água, como as meninas fantasma, e os rios ficaram
atulhados de corpos. As pessoas morriam na água, queimadas e
ensanguentadas. Mas ela não tem qualquer recordação disso.
Absolutamente nenhuma. Olha para o rio.
— Sabes o que eu gostava de saber? Se sei nadar. Parece algo que
devíamos saber sobre nós próprios, não é verdade?
— É, sim.
Mais vultos escuros rondam nas proximidades. Agora ouvem-se
rosnidos dispersos.
Bradwell vira-se e olha para Pressia.
— Então, como gostarias de testar isso?
— Nadar? Estás louco? A água está gelada. Onde fica o vau para
atravessarmos?
— Pois, acerca disso — diz ele. — Não tenho a certeza se fica cerca de
quilómetro e meio à nossa frente ou atrás de nós. E estas Bestas estão a
fazer-nos um ultimato.
— Eu não vou entrar nessa água gelada. É irrelevante se sei nadar ou
não. Vamos morrer de frio ali dentro!
A montante, canas estalam. Um animal pequeno e magro dardeja por
entre elas. Os rosnidos são cada vez mais altos.
Bradwell começa a desapertar as botas.
— É mais provável sermos devorados pelo que quer que anda para aí a
rosnar.
— O que é? — indaga Pressia num murmúrio.
— Não sei, mas estão com o pelo eriçado. Estás a ver aquele telhado
de zinco? — pergunta Bradwell.
Pressia franze os olhos para esquadrinhar o outro lado do rio. Mal
consegue distinguir a extremidade distante de um telhado por entre as
árvores.
— E o posto avançado?
— É.
— Ninguém construiu uma ponte, ou coisa do género?
— Como castores?
— Seja como for.
— Estás a ver alguma?
— Talvez se gritarmos, alguém no posto avançado nos ouça.
— Acima do barulho do rio? E que fariam se nos ouvissem? Davam as
mãos e faziam uma ponte para nós atravessarmos?
Uma ponte de corpos. Um rio. Há ali uma recordação. Pressia sente-se
enjoada, a sua boca enche-se de saliva quente. Inclina-se e cospe.
— Que se passa?
— Nada. Estou bem.
— Não pareces bem.
— Mas estou.
Entram na água para ser curadas, para as suas feridas serem seladas,
serem curadas. Morrem afogadas, a sua pele descascada, a sua pele
perlada, a sua pele descascada. Ela vê as meninas fantasma com o olhar da
mente, a conduzir-se umas às outras, cegamente, a cantar a canção da sua
escola. Corpos de água. Corpos. Bradwell tinha dito: Bem, sabes como foi
onde quer que houvesse água. Piscinas, lagos com patos em campos de
golfe, rios como este. Ela saberá mesmo?
— Olha. — Bradwell despe o casaco. — Se conseguires flutuar, eu
levo-te para a outra margem.
Caminhando às cegas com as vozes cantantes, vozes lastimosas, vozes
cantantes. Ouvimo-las até os nossos ouvidos zoarem, ouvidos gritarem,
ouvidos zoarem. Pressia olha em redor. Todos os arbustos assumem a
aparência curva de animais. Ela não quer pensar em flutuar num rio. Não
foi assim que os corpos das meninas vieram à tona, depois de mortos?
— Os mapas vão ficar molhados.
— Pois vão. Mas estão escritos a lápis, não a caneta. Isso ajuda.
— Ele puxa a camisa pela cabeça, talvez para poder deslocar-se na
água com mais facilidade. O seu peito é mais largo e mais forte do que ela
se lembrava. As feridas em cada um dos seus ombros musculosos sararam,
deixando cicatrizes vermelhas rosadas. É belo e rijo — e mais belo
precisamente por ter um aspeto tão rifo. Ela consegue ouvir as asas dos
pássaros, mas não os vê. Ele estará a manter as costas viradas para a floresta
por não querer que ela os veja? Ele nunca o confessaria, mas deve ser
verdade.
— Devias despir algumas das peças mais pesadas — diz ele.
— Não queres que o peso te puxe para baixo. — Desaperta o cinto e
detém-se. Esfrega energicamente os braços.
Fignan rola para a beira da água, com o motor a zumbir. Recolhe os
braços e as rodas. Dos flancos saem raios delgados, ligados por membranas.
Parecem delicados, mas fortes.
— Achas que ele vai ficar bem? — pergunta Pressia.
— Foi construído a pensar no apocalipse. Os delicados somos nós. Os
delicados. Ela pensa de novo nas meninas fantasma: tão delicadas!
— Vamos a isto?
Pressia olha para a água. Vê um remoinho que desaparece
rapidamente. Lembra-se do sonho febril que teve em criança, do horror que
a rodeava por toda a parte e como ela contava os postes das linhas
telefónicas. E quando deixou de haver postes, o avô disse-lhe para fechar os
olhos e imaginar postes de telefone para contar. Comichão no joelho. Sol,
ela vai.
— Só preciso de flutuar?
A vibração baixa dos rosnidos reverbera através dos juncos. Pressia vê
dezenas de olhos brilhantes, focinhos e dentes.
— Sim — responde Bradwell, olhando para os animais. — Só tens de
manter a calma, descontrair e flutuar. Eu trato do resto.
Ela deixa escorregar o casaco e desaperta rapidamente as botas,
arrancando-as pelos saltos frios e empastados de lama.
Bradwell despe as calças. Usa calções soltos por baixo. Tira o cinto das
presilhas, pega nos mapas e aperta o cinto diretamente sobre a barriga, com
os mapas comprimidos contra a pele.
— Estás a falar mesmo a sério acerca dessa história do peso —
comenta ela.
— Pois estou. — Ele entra na água, estremece de dor por causa do frio.
Agora ela vê os pássaros, as penas lustrosas, os pés cor de laranja vivo.
Aves aquáticas.
— Os frascos — diz ela, verificando se continuam intactos.
— Anda daí! — Uma das Bestas emerge do canavial. Ela vê um clarão
de pelo brilhante, quase como uma juba. Rosna com um som baixo e rouco.
A juba sedosa abre-se como uma cortina, dando passagem a um braço
enlameado e escuro. Um braço delgado, humano — uma menina fantasma?
Não, elas são apenas um mito. Um mito. Pressia recua para a água gelada,
que redemoinha em torno das suas pernas. Está tão fria que queima. A
frialdade assusta-a. Ela levanta os braços acima da cabeça quando a água
lhe atinge as ancas. Bradwell agarra-lhe na mão, com força e firmeza. Ela
saltita na ponta dos pés, começando a sentir a flutuabilidade.
— Deixa que a água te segure. Eu estou ao teu lado. — Passa o braço
molhado e nu em volta da cintura dela. Fá-la estender-se de bruços. Ela
passa um braço levemente em torno do pescoço dele e levanta as pernas. A
sua pele começa a ficar dormente.
Pressia olha para trás e vê Fignan entrar na água e começar a bater os
seus raios providos de membranas; depois desaparece nas profundezas.
Ela prende a respiração, mantém o queixo bem erguido. Bradwell
impulsiona-se para o leito do rio e começa a bater os pés.
— Também podes bater os pés — diz ele —, se te sentires inspirada.
Ela assim faz, mas sente-se tonta. Exala, inspira de novo rapidamente.
Desejaria ter tirado mais peças de roupa. Pesam-lhe.
— Estás a ir muito bem — encoraja Bradwell, arquejando.
De repente, Pressia sente algo deslizar-lhe pelas pernas. Puxa-as
rapidamente contra o peito e aperta o pescoço de Bradwell com mais força.
— Há alguma coisa lá em baixo!
— Provavelmente um peixe. Nada mais.
Pela maneira como ele olha para a água, ela percebe que ele também
está com medo.
A água é demasiado escura e turva para que se consiga ver abaixo da
superfície.
— Não — objeta ela. — Não foi nada desse género. — As meninas
fantasma. E se elas ali estiverem, a toda a volta deles, no bosque, agora
transformadas em bestas, a rosnar nos juncos, debaixo de água?
— Bate os pés! — diz Bradwell.
— Não consigo.
— Larga-me o pescoço! — brada ele, mas ela volta a sentir o
movimento em torno das suas pernas. Desta vez, parece uma mão a fechar-
se sobre o seu tornozelo, para logo desaparecer.
Pressia grita e agarra-se a Bradwell com tanta força que a cabeça dele
fica submergida. Ela apoia-se nele para se manter à tona, trepando pelo seu
corpo, empurrando-o para baixo. É instintivo. Estará a afogá-lo? Sente o
pânico invadi-la. Debatendo-se, grita o nome dele sobre o rio. É submergida
também, sentindo-se subitamente cega, surda e sem ar.
Agita os braços, rompe à superfície, engasga-se, cortando a água,
batendo com o punho da cabeça de boneca, mas acaba por ir ao fundo de
novo. Tem os olhos muito abertos, mas vê apenas escuridão. O som baixo
da água a correr enche-lhe os ouvidos. Tenta abrir caminho à força para a
superfície, mas quanto mais mexe os braços e as pernas, mais se afunda na
água gelada. Com o ar preso nos pulmões, o seu peito parece uma cavidade
a congelar de fora para dentro.
O seu coração poderá congelar ainda antes de ela se afogar? A sua pele
transformar-se-á em gelo. O seu cabelo ficará rígido. As suas roupas duras.
O seu corpo, morto e arroxeado, será arrastado para o mar. Comichão no
joelho — as palavras do sonho voltam-lhe à mente. — Sol, ela vai.
Os seus pulmões parecem prestes a rebentar e Pressia vê uma massa de
água após as Detonações; as imagens irrompem no seu cérebro. Uma ponte
perde-se no ar, e por baixo há uma ponte de corpos. O avô disse-lhe que não
podiam atravessar a nado. Agora ela lembra-se de tudo. Tiveram de rastejar
por cima dos corpos e, para isso, não houve contagens. Para isso, não houve
recitação de comichões nos joelhos, e sóis, e idas. E não houve o recurso de
fechar os olhos. Teve de atravessar de gatas, por cima de corpos. Lembra-se
de como os corpos cediam, enquanto as camadas em que se empilhavam
sustentavam o seu pouco peso. Aquilo ajusta-se ao seu sonho de contar
postes tombados e em chamas, à imagem de fios elétricos a bater ao vento,
de um corpo sem cabeça, de um cão sem patas, de ovelhas escaldadas. Isso
não aconteceu num sonho. Os corpos na água não eram um sonho. Aquilo é
uma recordação. Dela. O pânico torna-se avassalador. Ela vai ser engolida
por aquele rio. Ele nunca a largará. Os seus pulmões doem e ardem. Ela
podia abrir a boca, deixar entrar a água, afogar-se.
Pode deixar que isso aconteça agora.
Fecha os olhos à escuridão e encontra apenas mais escuridão. Onde
estará Bradwell? Já estará morto? Os seus corpos serão arrastados para o
mesmo oceano vítreo?
Então sente uma pressão vinda de baixo, como se houvesse um par de
mãos nas suas costas. Outra mão agarra o punho da cabeça de boneca e
puxa. Pressia tenta libertar a cabeça de boneca, mas depois percebe que
talvez esteja a ser salva. Talvez aquelas mãos a conduzam ao ar. As meninas
fantasma; imagina o cabelo espalhado em torno dos seus rostos, as camisas
dos uniformes a ondular lentamente na água.
Por fim, rompe à superfície. Suga ar para os pulmões, que ardem e se
contraem em espasmos. O seu pé toca no fundo do rio. Levanta-se
pesadamente, a água ainda a correr à sua volta. Engasga-se e tosse.
Ouve chamar o seu nome. É a voz de Bradwell. Depois ouve-o a
chapinhar em direção a ela, repetindo o seu nome uma e outra vez. Ele
levanta-a nos braços e carrega-a para terra.
Cai na margem, ainda molhado, os mapas encharcados no chão.
Cintilam gotículas nas penas das asas dos pássaros nas suas costas. O peito
e braços brilham.
Pressia tosse. O seu corpo retém a frialdade e ela sente-se flácida,
pesada, exausta. A sua blusa e calças ensopadas colam-se à sua pele; estão
geladas. Pisca os olhos, erguendo-os para a Lua esmaecida, depois o rosto
de Bradwell surge ao lado da Lua, o belo rosto dele. Ele afasta-lhe o cabelo
molhado da face.
— Respira — diz ele. — Continua a respirar.
Ela estica o braço e pousa a mão na face dele, fria, molhada, marcada
de cicatrizes:
— Não te matei — diz.
— Não, eu julgava que te tinha perdido.
— Eu julgava que estávamos ambos mortos.
— A culpa foi minha. — As pestanas dele estão molhadas e escuras.
Pinga-lhe água do queixo sobre o pescoço dela.
— Elas salvaram-me — diz Pressia.
— Quem te salvou?
— As meninas fantasma. — Ela sabe que parece loucura, mas tudo se
tornou confuso. Pode ser verdade.
Fignan sobe o barranco, zumbindo. Passa as luzes rapidamente sobre
os rostos deles, como se estivesse satisfeito por os ver.
— Ela está bem, Fignan — diz Bradwell. — Está viva. — Massaja os
braços de Pressia. — Tinhas razão. Estava demasiado frio.
Ela está a tremer. A sua respiração é rápida e superficial.
— Estou bem — diz ela, mas as palavras são lentas e rígidas na sua
boca e não consegue senti-lo a massajar-lhe os braços. É como se a sua pele
tivesse adquirido uma consistência de borracha, como a cabeça da boneca,
como se as extremidades dos seus nervos estivessem amortecidas.
— Temos de te tirar do vento. — Bradwell pega-lhe no braço, passa-o
em volta do seu próprio ombro e põe-na em pé. Pressia não tem força nos
joelhos para sustentar o seu próprio peso. Ele curva-se e levanta-a,
aconchegando-a contra o peito.
— Desculpa — diz ela. Por ser um fardo, mas não consegue articular o
resto das palavras. Tem o queixo a tremer. Os dentes a bater. Está a tremer
tanto que se torna difícil para ele levá-la. Terá sido salva pelas meninas
fantasma apenas para acabar por morrer de frio? Ela sabe que a sua
temperatura corporal está muito baixa. Permaneceu demasiado tempo
dentro da água fria. O vento é demasiado forte. A roupa pesada arrastou-a
para baixo e agora é como compressas frias. Na altura em que atravessou o
rio de cadáveres, em criança, tudo o que as pessoas queriam eram
compressas frias na pele, e agora é assim que ela vai morrer.
Estão a deslocar-se entre as árvores. Fignan ilumina o caminho
estreito. Bradwell segue. Ele também está a tremer. Ela sente o tremor dos
seus braços, a forma sacudida como caminha.
— Desculpa — diz ela outra vez.
— Não peças desculpa. — Ele cambaleia, depois cai para a frente.
Aterram no chão com violência. Ele põe-se de joelhos, levanta-a de novo
nos braços, põe-se em pé com esforço, vacilante. Recomeça a caminhar
penosamente, a pele nua vermelha viva.
— Pressia. — Ela olha para ele, para o queixo firme, a cabeça
molhada, os olhos escuros. — Pensa em algo quente — sussurra ele. —
Pensa em calor. Pensa em algo bom.
Pressia percebe que ele está com medo. A sua respiração é irregular.
Ela pensa no momento em que ele lhe deu a borboleta mecânica, que
salvara da casa dela, recorda como ele disse que parecia um milagre que
algo tão bonito pudesse sobreviver. Ele tem um jeito de a fazer sentir
afogueada. É uma memória de calor, de bondade. Dir-lho-ia, se se julgasse
capaz de formular as palavras.
Bradwell cai novamente. Desta vez, pragueja em voz baixa. Tenta
levantá-la, mas não consegue. O solo é duro e frio.
— Fignan — diz ele. — Continua a avançar. Segue por este caminho
até ao posto. Consegues fazê-lo? Estás a ouvir? Procura alguém. Pede
ajuda.
Pressia ouve o motor de Fignan, que vai zumbindo pelo caminho fora.
Mas ela duvida que ele encontre alguém, e mais ainda que consiga trazer
alguém ali para os salvar.
Bradwell desloca-se para um grupo de árvores cercado por um
emaranhado de mato e folhas densas. Cava um buraco nas folhas, deita-a lá
dentro.
— Não podes ficar com a roupa molhada. Tens de viver. Estás a ouvir?
Eu não consigo ir mais longe.
Ela faz um sinal afirmativo. Vê o rosto dele aos pedaços: uma
sobrancelha, depois os lábios, depois as mãos. Ela tem de viver.
Ele desaperta-lhe as calças, com os dedos a tremer violentamente, e
despe-lhas. Puxa-lhe a camisa pela cabeça. Ela tem a sensação de ter os
braços quebradiços. Ele deita-se de lado, para evitar sufocar os pássaros,
absorvendo a frialdade da terra por ela. Aconchega as folhas em torno deles
e envolve-a nos braços. Os pássaros estremecem, mal se mexem.
Com as costelas de frente para as dele, Pressia imagina-os encaixados
um no outro, costelas enganchadas em costelas. Ambos respiram
rapidamente, nuvens brancas a elevarem-se dos seus lábios vermelhos. O
rosto dela está encostado ao peito dele e ele abraça-a, esfregando-lhe as
costas e os braços, mas os seus movimentos são espasmódicos e lentos. Ele
afasta-lhe o cabelo frio e molhado da pele. Diz:
— Fica viva. Diz qualquer coisa. Fala.
Ela quer dizer-lhe que prefere morrer ali do que sem ele, no rio frio.
Ela quer dizer-lhe que, se morrerem agora, podem ficar ligados um ao outro
para sempre; costelas dentro de costelas, congeladas. Depois viria o degelo,
erva e plantas, o chão musgoso da floresta a cobri-los.
— Pressia? Fala comigo. Consegues falar?
Conseguirá falar? Lembra-se de novo de ser uma rapariguinha a
atravessar o rio pejado de cadáveres. Teria falado nessa altura? Dissera
palavras que ninguém compreendia. E, por fim, deixara de haver palavras
para as coisas que estava a ver e a sentir: o ceder de um corpo que oscila
quando se apoia o próprio peso nele, embatendo noutro corpo que está por
baixo.
— Comichão no joelho — sussurra ela, batendo os dentes.
— Comichão no joelho? — repete Bradwell. De súbito, como se
tivesse acabado de descobrir a chave para a parte misteriosa da mente dela,
como se lhe conhecesse os pensamentos, ele diz: — Comichão no joelho.
Sol, ela vai?
Ela não sabe o que aquilo significa, nem como ele pode saber as
palavras. Faz um sinal afirmativo, que é mais um safanão com a cabeça.
— Comichão no joelho. Sol, ela vai.
Dizem-no juntos:
— Comichão no joelho. Sol, ela vai.
Capítulo 23
El Capitan
Javali
Lyda
Gaiola De Arame
Partridge
Traidor
El Capitan
Andorinhas
Pressia
Gelo
Partridge
Limpo
Ele nunca voltará a ser Puro. Não é possível, mas é assim que vão
torná-lo limpo.
Transfusões de sangue novo, medula nova, uma quantidade de células
novas. O seu molde de múmia ainda existe, leve, resistente. Fica-lhe mais
justo do que antes, porque ele está mais forte. O seu corpo desaparece no
molde horas a fio. Ainda não há nada a fazer no que diz respeito à sua
codificação comportamental. Mas eles tentam abordagens diferentes,
aplicam as técnicas mais recentes. Nada resulta. Houve a aplicação de um
lençol frio, o seu corpo gelado e imobilizado. «Punção lombar», diz alguém
a certa altura, e injetam uma agulha na sua coluna vertebral.
É drogado para dormir, para estar acordado e para falar: uma sala
forrada de azulejos brancos com um dispositivo de gravação sobre a mesa.
As palavras revoluteiam do seu cérebro, do seu peito. Mal lhe chegam à
mente, saltam-lhe para a língua.
Por vezes ouve a voz do seu pai através de um intercomunicador.
Ainda não o viu, embora tenha perguntado repetidas vezes, «Onde está o
meu pai? Quando verei o meu pai? Digam ao meu pai que quero vê-lo.»
Pensa em Lyda. Às vezes grita por ela, o nome a ressoar no quarto
antes que ele perceba que é ele que está a chamar. Uma vez agarrou-se a
uma bata branca. Crispou a mão num punhado de tecido e disse:
— Lyda! Onde está ela?
A técnica afastou-se e a mão de Partridge bateu numa bandeja de
instrumentos afiados, de aço, que chocalharam.
— Bolas! — gritou alguém. — Esterilizem aquilo!
De vez em quando, uma mulher que usa uma bata de laboratório diz-
lhe que dia é, não com base no calendário, mas na data da sua chegada ali.
Estás no décimo segundo dia. Estás no décimo quinto dia. Estás no
décimo sétimo dia.
Quando acabara isto? Ela recusa-se a dizer.
O seu dedo mindinho é outra forma de calcular o tempo. Lyda tinha
razão. Arvin Weed tinha descoberto a solução com o seu rato-de-três-patas-
e-meia. Meu Deus. E se já descobriu aquilo, estará perto de descobrir a cura
para o seu pai? A colaboração complexa dos ossos, tecidos, músculos,
ligamentos e células da pele de Partridge está a ser recriada através de
injeções repetidas. O coto permanece tapado por um molde de fibra de
vidro, que o seu dedo vai enchendo à medida que cresce. Os técnicos,
cirurgiões e enfermeiros observam o seu mindinho através de instrumentos.
Às vezes aplicam pontas de calor que parecem agulhas, como se estivessem
a soldá-lo.
Está a regenerar bem. Estamos satisfeitos. A coloração da pele é
quase perfeita.
As estrelas-do-mar fazem aquilo. Será que ainda existem estrelas-do-
mar algures?
A questão é que ele não quer recuperar o dedo. Fez um sacrifício, e
agora esse sacrifício está a ser apagado. O passado, o mundo lá fora, o que
lhe aconteceu, a ele e aos outros, a morte da sua mãe e do seu irmão, tudo
isso parece existir menos, desvanecer-se, com o crescimento infinitesimal
das células.
Arvin Weed aparece por duas vezes. Os seus olhos pairam sobre a
cabeça de Partridge, o resto do rosto escondido por uma máscara. Partridge
gostaria de falar com ele, mas tem um tubo na garganta. Está amarrado a
uma mesa de exame.
Arvin não lhe dirige a palavra, mas, uma vez, piscou-lhe o olho. Foi
tão rápido que quase parecia um tique. Mas Partridge acredita que foi mais
do que isso. Arvin está aqui; vai assegurar-se de que Partridge é bem
tratado, não vai? Partridge quer contar a Weed o que se passa com Hastings
e o que aconteceu lá fora. Quer dizer o nome, Lyda.
Acorda sem memória de adormecer. A sua cabeça está pesada, os olhos
inchados, o tubo tirado. Está a ser levado numa maca, cujas rodas rangem
sobre os mosaicos. Passa por um conjunto de janelas. Do outro lado há filas
de bebés em incubadoras. Bebés minúsculos, quase do tamanho de
cachorrinhos, mas humanos. Cabem na palma da mão de uma enfermeira.
Será possível nascerem tantos bebés prematuros na Cúpula ao mesmo
tempo? Mas os bebés não são perfeitos, não são Puros. Têm cicatrizes e
queimaduras, e estão salpicados de detritos. Estará ele a sonhar com bebés
desgraçados? O que é real? As filas de incubadoras estendem-se
indefinidamente.
Está noutro quarto. A voz do pai ressoa através de um
intercomunicador.
— Ele é uma criança. Tem de haver castigo. O castigo vai Purificá-lo.
A Purificação será pela água. Um batismo.
A mulher diz-lhe que está no vigésimo primeiro dia.
A sua cabeça está firmemente presa a uma placa branca pesada,
inclinada de modo que a cabeça fique baixa. Tem os ombros presos. Não
consegue mexer-se. Fizeram tal progresso com o mindinho, que vem
crescendo gradualmente e cujos nervos formigam, que têm de ser
cuidadosos. O dedo não pode molhar-se.
A placa branca possui um motor que lhe permite baixá-lo lentamente
para dentro de água. Os técnicos estão a postos, seguindo ordens com
temporizadores e pequenos dispositivos portáteis. A cabeça de Partridge
sente a água primeiro. Está fresca, mas não fria, e encharca-lhe o cabelo,
inunda-lhe os ouvidos, sobe pelos lados do seu rosto. Partridge expele a
respiração e inspira rapidamente. Contém o fôlego, tenta soltar-se. Tem os
olhos muito abertos. A água é transparente e brilhante. A sala é iluminada
por lâmpadas fluorescentes. Dá para ver os rostos deformados dos técnicos.
Partridge deixa sair um pouco de ar pelo nariz. Só um pouco. Quanto
tempo o manterão ali? O seu pai não quer que ele morra, mas talvez queira
que ele fique a conhecer a morte. Deixa escapar um pouco mais de ar. Sente
os pulmões comprimidos.
Precisamente quando não aguenta mais, sente o pequeno puxão da
placa branca. O seu queixo emerge, depois a boca. Sorve ar ansiosamente
para os pulmões. O batismo terá terminado? Ele terá sido salvo? Sente outra
vez o motor, a baixá-lo de novo para a água. Implora aos técnicos:
— Não, não, não!
É possível que os ouvidos deles estejam tapados de alguma forma, para
os proteger das súplicas de Partridge.
Não consegue abanar a cabeça, não consegue arquear as costas em
busca de ar.
Submergem-no uma e outra vez: um batismo que não pega? Partridge
deixa de suplicar. Esforça-se para sincronizar a respiração. Tenta
aperfeiçoar um método. O seu cérebro perde a noção do tempo. Concentra-
se apenas em chegar à superfície, estar no ar.
Tenta agarrar-se à imagem do rosto de Lyda, à cor exata dos seus
olhos. Vem à tona para respirar e a sua laringe contrai-se num espasmo,
fecha-se completamente. Desta vez, não há ar. Não há som. Não há
respiração. Partridge tenta sinalizar o seu pânico aos técnicos com os olhos.
Eles tomam notas.
O motor zumbe de novo. Vai voltar para baixo de água sem ter
conseguido respirar.
Um dos técnicos parece compreender que algo correu mal. Estende a
mão para um intercomunicador.
Mas Partridge está já submerso. Não consegue ouvir o que está a ser
dito. Não consegue respirar, mesmo que quisesse sugar água para os
pulmões. É então que a luz forte do quarto se desvanece num borrão de
escuridão. Cinzas. Ele pensa em cinzas e neve e Lyda, o seu rosto a
desfazer-se pedaço a pedaço e a flutuar para o céu.
Capítulo 29
Pressia
Musgo
Lyda
Nove
Pressia
Pedras
Partridge
Quente
El Capitan
Pontos
Partridge
Alma
El Capitan
Livre
Pressia
Cygnus
Partridge
Piano
Pressia
Estrelas
Partridge
Flocos De Neve De Papel
Partridge
Em Baixo
Pressia
Sonho
Partridge
Bela Barbárie
Pressia
Chávena De Chá
Partridge
Árvore De Natal
Lyda
Veado-Anão
El Capitan
Olhos
Pressia
Crazy John-Johns
Partridge
Humanidade
Pressia
Fita Adesiva
Pressia
Pirilampos
Partridge
Bolo
Lyda
Moledos
Partridge
Sete Verdades Simples
Pressia
Solstício
Lyda
Votos
Partridge
Fibras
Quando ele acorda, Iralene já lá não está. O seu lado da cama está
impecavelmente feito e ela reprogramou o quarto para a decoração da praia.
Uma onda de pânico percorre as entranhas de Partridge. Iralene irá ser fiel à
sua palavra e repô-lo na casa rústica quando ele regressar? Caso contrário,
ele está tramado.
O pequeno-almoço está à espera dele. Mais uma vez, comida a sério:
papas de aveia e sumo cor-de-rosa. As câmaras observam-no com os seus
olhos vítreos. Ele olha diretamente para elas, como que para dizer aos que o
vigiam que não tem medo. E mentira. Está tão assustado que mal consegue
comer. Dirige-se para a janela e vê o velho a passar a praia a pente fino com
o seu detetor de metais. Debruça-se da janela e grita:
— Ei, velho idiota falso! Estás condenado! Nunca encontrarás coisa
alguma!
O homem vira-se, sorri, e leva a mão ao chapéu.
Batem à porta.
— Entre.
Partridge presume que será Iralene, visto que ela parece estar
constantemente com ele. Mas é a voz de Beckley que vem do outro lado da
porta:
— Estou aqui para te levar — diz ele.
— Já? — pergunta Partridge. — Dê-me um minuto.
Não sabe ao certo para que precisa de um minuto. Ele gostaria de
transformar o quarto de novo na casa rústica e verificar se o bilhete ainda
está no depósito do autoclismo. Sem Iralene, não pode fazê-lo.
— Eles precisam de ti lá já — diz Beckley.
— Raios partam — pragueja Partridge. Ouve o barulho da chave na
fechadura. Beckley abre a porta.
— Pronto?
Uma hora depois, Partridge está no centro médico, desinfetado e
vestido com uma bata de hospital, deitado na maca de uma sala do bloco
operatório, sozinho.
Ouve o estalido e o zumbido familiar do sistema de filtragem de ar.
Diretamente acima dele, no teto, há uma abertura de ventilação. O ar jorra
sobre ele e Partridge dá por si a desejar que se assemelhasse mais à
sensação do vento. A abertura de ventilação fora a sua via de fuga da outra
vez. Mas agora tem de ficar. Tem de ter fé em Arvin Weed.
Um técnico entra.
— Venho pôr as cintas de retenção.
— Cintas? — Partridge senta-se na maca; é um reflexo instintivo.
Tenta rir. — Então? Tenho ar de quem precisa de ser amarrado?
O técnico mantém as feições inexpressivas.
— O Dr. Weed disse que era necessário.
O facto de Weed o mandar prender à cama parece muito mau sinal.
— Doutor? O Weed não é médico.
— Agora é.
— Ouça, eu não preciso de cintas. — Partridge põe a mão no peito do
técnico. O técnico olha fixamente para a mão, depois para ele. E Partridge
dá-se conta de que aquele não é um técnico vulgar. Submeteu-se a
melhoramentos e, antes que Partridge perceba o que se está a passar, torce-
lhe o braço com força, paralisando-o de dor. A sua respiração sai em
gemidos curtos.
Com mais alguns movimentos rápidos, o técnico aperta as cintas de
retenção. Fica ao lado da maca até Arvin entrar, vestindo um fato
esterilizado completo, incluindo máscara, pelo que Partridge apenas
consegue ver-lhe os olhos.
— Dê-nos um minuto — diz Weed. — Quero explicar o procedimento
ao paciente, responder a quaisquer perguntas.
O técnico sai.
Partridge e Arvin ficam sozinhos, embora ainda existam câmaras.
Partridge precisa desesperadamente de algo que o tranquilize, mesmo que
seja em código.
— Por que o mandaste amarrar-me? Não preciso de ser amarrado.
— Vamos ter de te imobilizar quando te anestesiarmos, de qualquer
maneira — responde Arvin, olhando para uma das câmaras no canto da sala
de operações.
— Diz-me que isto vai correr bem — diz Partridge. — Podes fazê-lo?
— Isto é um trabalho verdadeiramente pioneiro, Partridge, e vamos
registá-lo para a posteridade.
— Tudo?
— Claro.
— Não posso ter um verdadeiro momento a sós contigo?
— Para que havias de querer isso?
Aquilo significará que Weed não poderá dar-lhe quaisquer garantias,
ou que nunca pretendeu sequer fazê-lo?
— Sabes por que motivo eu quereria isso, Weed.
— Bem, e se te explicasse a ciência da memória e este procedimento?
Partridge não está nada interessado em ciência naquele momento. Mas
receia que a voz lhe falhe se tentar dizer uma palavra sequer. Ele é capaz de
se ir abaixo, ali mesmo — e tudo ficaria registado para a posteridade.
Resolve deixar Weed falar enquanto se prepara interiormente.
— A memória de curto prazo é química. Mas, para além desse
processo de recordação rápida, a memória fica alojada no cérebro. É
anatómica. Basicamente, aprendemos como ligar e desligar neurónios e
padrões de neurónios específicos no cérebro. Quando as memórias se
formam, criam esses padrões. Portanto, se desligarmos os neurónios
corretos, podemos amortecer essas memórias. Chama-se optogenética.
Falámos sobre isso uma vez, quando foram reveladas novas descobertas,
lembras-te?
— Hum, isso diz-me qualquer coisa. Mais ou menos. — Na verdade,
Partridge era muito bom a desligar Weed quando este se lançava no jargão
científico. Mas agora talvez não seja o melhor momento para o confessar.
— Primeiro selecionamos, depois alteramos geneticamente os
neurónios escolhidos, usando vírus portadores de determinados tipos de
ADN. Sabes, microbiologia, e, no teu caso, introduziremos então no
neurónio uma suscetibilidade a ser desativado por luzes de cores
específicas. Utilizaremos fibras óticas extremamente finas, que vamos
introduzir, com muito cuidado, no teu cérebro. E atingiremos um desses
padrões. Desse modo, podemos, em seguida, desativar o neurónio e o
respetivo circuito enviando sinais de luz através das fibras. E voilà!
A ideia de alguém introduzir fibras no seu cérebro deixa-o doente.
— Voilà. Metem coisas no meu cérebro e piscam umas luzes.
— Essa é a versão resumida.
Partridge engole em seco.
— Encantador.
Arvin tinha-lhe dito na festa que, depois de as vias danificadas
cortarem o acesso às memórias profundas — às fossas no leito oceânico —,
haveria um curto período de tempo durante o qual ainda era possível
chegar-lhes antes de ficarem isoladas para sempre. De quanto tempo irá
dispor?
— Diz-me uma coisa, Dr. Weed. Quanto tempo tenho para nadar até ao
fundo?
— Nadar? De que estás a falar? — Arvin pega numa agulha.
— Vou ligar-te o sistema intravenoso, Partridge. Descontrai.
— Quanto tempo, Weed? — implora Partridge, virando a cabeça para
não ver a agulha entrar na pele macia da dobra do cotovelo. Arvin usa um
pouco de adesivo para prender tudo no sítio.
— Quieto agora.
Partridge olha para o cateter no seu braço, para a pele, vermelha e
franzida pelo adesivo, a formar uma ligeira lomba sobre ele. Arvin dá
alguns piparotes no tubo que liga o cateter a um saco de líquido
transparente, pendurado num varão de metal. Em breve, a sala escurecerá.
Partridge estará inconsciente, anestesiado.
— Quanto tempo para nadar até ao fundo do oceano?
— Ah! — exclama Arvin, dirigindo-se a quem quer que possa estar a
ouvir. — Começou com ligeiras alucinações. Não tarda a adormecer.
— Quanto tempo? — insiste Partridge. — Diz-me!
O rosto mascarado de Arvin começa a ficar turvo. Ele bate levemente
no molde do mindinho de Partridge.
— Quanto tempo achas que vai demorar para acabar de crescer? Cerca
de uma semana, não é? Incrível. Vai simplesmente voltar a existir, um
mindinho inteiro — diz Weed, num tom quase cantante. — Um mindinho
inteiro. Um mindinho inteiro.
Um mindinho inteiro, um mindinho inteiro, um mindinho inteiro,
pensa Partridge. Weed estará a dizer-lhe que tem uma semana para trazer as
memórias à superfície? Apenas cerca de uma semana? Vai ter de encontrar
a lista de sete verdades simples nesse espaço de tempo. Mas, mesmo que
acredite nelas, não terá qualquer indício de que dispõe apenas de sete dias
para recordar o que se tiver perdido. As luzes vacilam e tremulam. A sala
guina e gira. O rosto de Arvin está agora tão turvo que Partridge não tem a
certeza de ser ele. Entram mais algumas pessoas com máscaras, atarefando-
se à sua volta.
Partridge não pode perder a consciência. Não pode deixá-los meter
fibras no seu cérebro. Arqueia as costas, lutando contra as cintas de
retenção. Grita a Weed, mas não sabe ao certo se lhe sai algum som da
boca. As pessoas com as máscaras continuam a trabalhar, estoicamente,
metodicamente.
Ele empina-se e debate-se, pensando no velho que percorre a praia com
o detetor de metais. Será que vai esquecê-lo completamente? Chamou-lhe
idiota, falso, condenado. E se o velho for real e percorrer aquela praia todos
os dias, e achar que Partridge é falso? Isso faria alguma diferença?
Está a ficar flácido. Fecha os olhos, ouve apitos. É o detetor de metais?
Ele vê o homem na praia de novo, a olhar para Partridge à janela. Quando
sorri e leva a mão ao chapéu, Partridge vê que não é um velho. É um jovem.
É o próprio Partridge, muito satisfeito por acenar a um estranho falso de
uma praia real, com coisas reais enterradas em areia real e, para lá dele, um
oceano infindável.
Capítulo 57
Pressia
Dirigível
El Capitan
Nuvens
Partridge
Iralene
Lyda
Saber
Pressia
Aceso
Partridge
Baleias
Lyda
Fraqueza
El Capitan
Turvo
Estão a voar há dois dias e uma noite, e agora está a escurecer de novo.
Os olhos de El Capitan estão turvos de exaustão e os seus nervos sofrem
descargas irregulares de adrenalina. Helmud dormiu e acordou, e dormiu
outra vez. El Capitan acorda-o com um safanão. Estão a aproximar-se. Abre
brevemente os selos quase herméticos de vácuo dos três reservatórios,
permitindo uma ligeira entrada de ar para reduzir a altitude. Abaixo deles já
não está o oceano vítreo e interminável; um foco de luz por baixo do nariz
do dirigível revela que estão a deslizar sobre contornos escuros de colinas,
vales, cristas rochosas, lagos escuros e cidades destruídas, trechos de casas
e edifícios arruinados.
— Vês aquilo, Helmud? Um país diferente. Nunca pensaste que verias
um país diferente, pois não?
— Pensaste? — pergunta Helmud.
— Não, não pensei — diz El Capitan.
A consola de navegação disponibiliza um mapa topográfico, mas é
inútil. As Detonações alteraram a terra. El Capitan terá de aterrar em breve.
— Quanto falta? — pergunta ele a Fignan.
Fignan acende-se.
— Vinte e sete mil e quinhentos metros. Para leste.
— Muito bem — diz El Capitan. — Vamos começar a procurar um
trecho de terra plana.
O dirigível oscila bruscamente, empurrando El Capitan para trás, como
se Helmud estivesse a puxá-lo com força.
— Que diabo foi isto? — pergunta ele, com o coração a acelerar-lhe no
peito.
Fignan emite um sinal sonoro, sem saber o que fazer.
— Vinte e cinco mil e setecentos metros! — anuncia, como se isso
ajudasse.
O dirigível estabiliza e El Capitan suspira.
— Pronto. Foi apenas uma falha. Está tudo bem agora.
Mas não está. Acontece mais uma vez, de forma mais acentuada. El
Capitan põe-se em pé. A traseira do dirigível aderna, o nariz empina.
Helmud encolhe-se nas costas do irmão.
— Jesus, procura a parte do manual relativa a emergências! Achas que
é qualquer coisa no bucky da ré? — pergunta El Capitan a Fignan.
— Em caso de emergência — diz Fignan —, em caso de emergência.
Em caso de falha de motor no bucky da ré... — Estará a virar as páginas do
manual? As luzes da caixa negra estão todas acesas.
— Verificar o ecrã de navegação.
El Capitan senta-se de novo e passa os olhos pela consola. Uma luz
vermelha pisca num esboço da estrutura básica do dirigível, indicando uma
fuga capilar. Ele ativa as bombas no reservatório avariado, expelindo o ar
tão depressa como entra. A luz vermelha continua a piscar, mas a fissura é
pequena, contida. Desde que a vá monitorizando e mantendo o nível do ar,
o dirigível deve aguentar-se até ser possível aterrar.
— Tenho de o pousar.
— Pousá-lo! — diz Helmud.
O dirigível abranda outra vez. O bucky da ré está a admitir mais ar. O
aparelho arrasta-se. Aderna para trás.
— Que raio se passa aí dentro? — grita Bradwell.
— Uma pequena fuga. Está a entrar ar!
De repente, Bradwell avoluma-se à entrada da porta.
— Uma pequena fuga? O que significa isso?
— Estamos bem. Vai sentar-te. Aperta o cinto.
O facto de não poder apertar o cinto, com Helmud às costas, não tinha
preocupado El Capitan durante a descolagem, mas agora não se importaria
de ter essa proteção.
— Precisas de ajuda! — afirma Bradwell. — Precisas de um copiloto.
— Já tenho o Fignan, para além de um copiloto permanente.
— Aponta para Helmud nas suas costas.
— Cap — diz Bradwell. — Deixa-me fazer alguma coisa...
— Não podes! — corta El Capitan. — Volta para o teu lugar. Isto é
uma ordem.
Bradwell volta para a cabina, a cambalear. El Capitan ouve-o falar com
Pressia. Bradwell estará a miná-lo nas suas costas?
El Capitan não quer aterrar mais longe do seu alvo do que o
estritamente indispensável. Estão a menos de vinte e quatro quilómetros,
mas cada quilómetro que tenham de fazer a pé pode estar a transbordar de
criaturas letais, pode ser intransitável. Tem de os deixar o mais perto
possível. O foco ilumina um estranho rebanho de criaturas a galope: Bestas,
Agrupados, Poeiras, ou algo completamente diferente? As criaturas
desaparecem num pequeno maciço de árvores.
O dirigível rola para um lado. El Capitan puxa com força para o lado
oposto, para o endireitar. Ouve-se um silvo, proveniente do bucky da ré, e o
ecrã de navegação mostra uma fissura nova, mais comprida.
— O quê? Porquê? Fignan! — grita El Capitan. — Talvez eu esteja a
sobrecarregar as bombas e haja demasiada pressão!
— Demasiada pressão nas bombas pode resultar em fendas,
especialmente se o dirigível tiver estado a viajar em velocidade de cruzeiro
a altitudes elevadas por períodos superiores a quarenta horas — informa
Fignan.
— Bolas! Por que não me disseste isso antes?
Fignan fica calado. As suas luzes baixam, como se ele estivesse a
exprimir culpa.
— Fica comigo, Fignan! És tudo o que eu tenho!
— És tudo o que eu tenho! — diz Helmud.
— Não te ponhas com ciúmes, Helmud! — grita El Capitan ao irmão.
Ouve-se o som de algo a rachar, um ruído alto e forte. Algo se partiu e
soltou. O dirigível abana de novo, com mais violência, atirando El Capitan
e Helmud para trás na cadeira.
— Cap! — grita Pressia. — O que se passa?
Deus, ele não quer falhar, não com Pressia ali, não com a vida dela nas
suas mãos.
— Vou aterrar! Estamos a deixar entrar demasiado ar.
Ele não tem alternativa senão puxar pelas bombas dos reservatórios
bons, na esperança de não perder altitude com demasiada rapidez e entrar
numa pirueta descontrolada. Põe-se em pé e olha para o mapa topográfico e
o terreno, vasto e volumoso, que desliza por baixo da aeronave.
À sua frente há um anel de vegetação e bosques verdejantes, para lá do
qual o terreno parece relativamente plano. Mas não lhe parece que consiga
lá chegar; no entanto, há um prado antes da faixa de vegetação, no qual ele
fixa a sua atenção. Fica apenas a cerca de catorze quilómetros do alvo.
— O vento sopra de noroeste! — diz El Capitan a Fignan.
— Como faço para aterrar esta coisa?
— É melhor virar a aeronave contra o vento antes de pousar.
— Certo, muito bem. — El Capitan vira o nariz na direção do vento e
aponta ao centro de um campo. — Seria agradável ter uma equipa de
aterragem à mão.
Passa sobre uma colina e, quando chega à zona plana, começa a pairar,
com o nariz diretamente contra o vento e as hélices a propulsionar no
sentido contrário, de modo a manter o aparelho estável.
Mesmo assim, a cauda puxa-os para baixo. El Capitan alivia as bombas
dos outros dois reservatórios. O dirigível começa a descer rapidamente.
— Não muito depressa! Não muito depressa! — incita ele. Baixa os
pés providos de espigões sobre os quais devem pousar. — Com calma.
— Com calma! — diz Helmud.
Mas a parte de trás do dirigível está demasiado pesada. Estão a descer
demasiado depressa. El Capitan aplica pressão às bombas dos reservatórios
intactos, mas a pressão funciona como um jato, levantando abruptamente o
nariz.
— Segurem-se! — grita. — Preparem-se para aterrar!
Helmud agarra-se aos ombros do irmão, mas El Capitan não tem onde
se agarrar. Ainda está a tentar suavizar o impacto da aterragem, ligando as
hélices, cortando o reservatório de vante e puxando pelo reservatório
central.
— Preparem-se para aterrar — sussurra Helmud em voz rouca. —
Preparem-se para aterrar!
Quando tocam no solo, a cabeça de El Capitan embate violentamente
nas alavancas. Cai ao chão. Fica atordoado, um olho imediatamente turvo
por causa do sangue. O reservatório central ainda está a bombear, o que faz
com que o dirigível ainda tenha alguma flutuabilidade. É apanhado pelo
vento, que o atira de lado. O para-brisa bate em qualquer coisa, racha e
estilhaça-se. Estamos a capotar, pensa El Capitan.
É projetado contra o lado envidraçado do cockpit. Esforça-se para se
levantar, visto que o aparelho ainda tem vida.
— Preparem-se para aterrar! — grita Helmud. — Preparem-se para
aterrar!
— Está tudo bem, Helmud! Está tudo bem, irmão! — El Capitan estica
o braço e bate com o punho nos interruptores da bomba que ainda está a
trabalhar e das hélices. O dirigível solta um suspiro de alívio e oscila como
se estivesse no fundo do oceano. A consola de navegação é um ecrã em
branco.
Piscando sangue de um olho, El Capitan arrasta-se sobre os cotovelos
até ao para-brisa. O mundo do outro lado do vidro é escuro. Ele nota o
silêncio.
— Pressia! — chama, mas a sua voz está fraca.
E depois há apenas escuridão.
Capítulo 65
Pressia
Golpe Na Cabeça
Pressia está virada, quase de cabeça para baixo, presa ao banco pelo
cinto de segurança, que se enterra dolorosamente numa das suas coxas. Tem
o rosto encostado à vigia. Apenas vê lâminas de relva, espessas e aguçadas.
A gravidade fez rolar o dirigível, que jaz de lado, já sem flutuar.
A jovem mete a mão por baixo da camisola e verifica os frascos.
Intactos.
— Que diabo aconteceu? — pergunta Bradwell. Também está preso
pelo cinto de segurança, mas é suficientemente alto para estender a mão e
apoiar-se, fazendo força contra o lado da parede curva, acima da vigia.
— Aterragem de emergência. — Pressia encontra o fecho liso da fivela
do cinto, mas, se a abrir, pode cair desamparada.
Bradwell faz força com ambas as mãos contra o teto.
— Abre o meu cinto, depois eu ajudo-te com o teu.
Ela ajusta a mão ao fecho prateado flexível do cinto de segurança dele
e puxa-o para cima. A força dos braços de Bradwell amortece a queda. Ele
ergue-se, com os pés na parede lateral, passa o braço livre em volta da
cintura de Pressia, enquanto ela põe os dois braços à volta do pescoço dele.
Pressia gosta do facto de ele ser largo e forte, com músculos endurecidos
por anos de sobrevivência árdua. Bradwell desafivela o cinto de segurança e
ajuda-a a pôr-se em pé.
Correm para o cockpit, com o dirigível a balouçar sob o seu peso.
El Capitan está esparramado no chão, inconsciente, com os braços
abertos, um golpe na cabeça, o sangue a formar uma poça à sua volta como
um halo escuro. Está desmaiado.
Helmud levanta a cabeça do ombro de El Capitan.
— Preparem-se para aterrar — diz ele em voz baixa. — Preparem-se
para aterrar. Preparem-se para aterrar. — O seu rosto está vermelho e
molhado com o sangue do irmão.
— Jesus! — exclama Bradwell. — O que vamos fazer?
Fignan está ao lado deles.
— Aplicar gelo para reduzir o inchaço. Aplicar pressão para conter a
hemorragia.
Pressia ajoelha-se ao lado de El Capitan. Puxa a manga da camisola
para baixo, sobre a palma da mão, e cobre a ferida com ela.
— Arranja um cobertor — diz ela a Bradwell.
Ele desaparece rapidamente pela porta.
— Onde está a mala de primeiros socorros? — pergunta ela a Helmud.
— Preparem-se para aterrar — diz Helmud novamente, os olhos
arregalados e esquivos.
— Vai correr tudo bem, Helmud — diz Pressia.
Bradwell reaparece e entrega-lhe um cobertor. Ela dobra-o e
comprime-o sobre a ferida. O cobertor azul-marinho absorve rapidamente o
sangue, ficando um tom mais escuro.
— Vê-lhe os olhos — diz Pressia a Bradwell.
Este levanta uma das pálpebras de El Capitan.
— Que procuro? Dilatação?
— Sim — responde Pressia. — E esperemos que estejam ambos a
dilatar em sincronia.
Bradwell levanta as duas pálpebras ao mesmo tempo. Desloca-se para
trás e para frente, ora bloqueando a luz de Fignan, ora deixando-a passar.
— Não temos essa sorte.
— Ele está com um traumatismo craniano — conclui Pressia.
— Não podemos abandoná-lo.
— Não podemos abandonar a missão — afirma Bradwell.
— Preparem-se para aterrar — diz Helmud.
As pálpebras de El Capitan palpitam.
— Cap? — diz Pressia. — Estás bem? — Ela toca-lhe na face com o
seu punho da cabeça de boneca.
Ele pestaneja, erguendo os olhos para ela. Franze as pálpebras. Os seus
olhos focam e desfocam o rosto da jovem, até que se fixam nos olhos dela.
Ele tenta sussurrar qualquer coisa, mas a sua voz está demasiado rouca.
Pressia inclina-se para ele.
— O que é, Cap?
Ele levanta as mãos e segura-lhe suavemente no rosto.
— Pressia — sussurra, e depois beija-a. É um beijo breve, suave e
meigo nos seus lábios.
Pressia está estupefacta. Não sabe o que dizer. Dá por si a reter a
respiração. Tem os olhos muito abertos. Lembra-se de El Capitan a cantar a
canção de amor, e, mais tarde, na barragem, como tinham discutido todos
sobre a definição de romântico.
Ainda está comprimir o cobertor sobre o ferimento dele. Abana a
cabeça.
— Cap — diz ela. — Tu... — Beijaste-me. El Capitan beijou-a. Deve
ter sido um engano.
Então ele diz:
— Amo-te, Pressia Belze.
E não há qualquer engano a esse respeito.
As mãos dele tombam, os olhos desviam-se do rosto dela. As pálpebras
cerram-se. E, sem mais, ele está novamente inconsciente.
Helmud olha para ela e diz:
— Pressia? — Como se quisesse saber se ela corresponde ao amor de
El Capitan.
Ela tem vontade de chorar. Aquela canção de amor que ele estava a
cantar. Estaria a pensar nela? Sente-se aturdida. Pergunta-se há quanto
tempo ele se sentiria assim, há quanto tempo andava por aí com aquele
segredo. Agora compreende o olhar que ele lhe deitou quando ela estava
agarrada a Bradwell na ponte.
Bradwell levanta-se e dirige-se para a porta do cockpit.
— Eu não sabia — diz ele.
— Que queres dizer com isso? — Pressia é invadida por uma onda de
pânico. Bradwell estará a falar acerca dela e El Capitan? Julgará que havia
alguma coisa entre eles? — Não há nada que saber.
Bradwell dá um murro em qualquer coisa. Pressia ouve um baque
súbito. O dirigível oscila por um segundo. Ele estará com ciúmes? Ou
apenas zangado por não saber alguma coisa — ainda que não houvesse
nada para saber?
— Não estamos a raciocinar direito! — exclama Pressia. — Nenhum
de nós! Ele não estava a falar a sério. Ele...
— Ele estava a falar a sério — afirma Bradwell. — Eu tenho obrigação
de saber. Há muito que quero dizer aquelas palavras. E agora ele vem e di-
las?
— Ele apanhou uma pancada na cabeça! — diz Pressia, depois
interrompe-se, revendo o que Bradwell acabou de dizer. — Tu querias dizer
aquelas palavras?
Ele imobiliza-se, de costas para ela. Respira fundo.
— Sim.
— Sim — diz Helmud, como se soubesse desde sempre.
Pressia olha para Helmud, olha para ele a sério pela primeira vez em
muito tempo. Tem vontade de lhe perguntar se ele sabia daquele segredo.
Helmud compreende muito mais do que deixa transparecer. Ele morde
ansiosamente o lábio inferior com a sua pequena fileira de dentes
superiores.
— O que vamos fazer? — pergunta Pressia a Bradwell. — Um de nós
tem de ir. Outro tem de ficar.
Bradwell não responde.
Ela levanta o cobertor. A hemorragia abrandou. A ferida está inchada,
mas não jorra sangue.
— Helmud — diz ela. — Põe a tua mão onde eu tenho a minha. —
Estende-lhe uma secção limpa do cobertor. Ele pega-lhe e ela carrega-lhe na
mão. — Aplica uma pressão constante.
Ele diz:
— Pressão.
Pressia levanta-se e dirige-se para Bradwell. Apenas vê as suas costas,
os pássaros a agitarem-se por baixo da camisa. Ele está a olhar para os nós
dos dedos, que deve ter esfolado. Há uma mossa na parede, uma sombra em
teia de aranha no forro. Pressia passa por ele, trepa pela porta e vai buscar
um saco de provisões: alimentos e água. Trá-los para o cockpit.
— Eu vou — diz ela. — Tu ficas.
Ele vira-se, abanando a cabeça.
— Não, não, não. Nem pensar nisso.
Ela mete-lhe o saco de provisões nos braços.
— É assim mesmo.
— Não deves ir sozinha, de maneira nenhuma.
— Esqueces que estou aqui, até certo ponto, por motivos egoístas.
— Não vais encontrar o teu pai, Pressia.
— Se tu fores e o encontrares em vez de mim, ou se descobrires algum
indício, um único mísero indício, da sua existência, eu nunca te perdoarei.
Esta viagem é minha.
— Não é apenas tua, Pressia. Walrond deixou aquela mensagem para
os meus pais antes de se matar, antes de eu encontrar os meus pais mortos a
tiro na cama.
É claro que foi ele que os encontrou. Ela simplesmente nunca tinha
percebido isso.
— Encontraste-os?
Ele olha para Helmud, a comprimir o cobertor na cabeça do irmão.
— Bradwell — sussurra ela.
— Era de manhã. Desci para o pequeno-almoço. Eles não estavam na
cozinha. Fui andando pela casa, a chamar por eles. Depois comecei a
correr... Abri a porta. E lá estavam eles.
— Tenho tanta pena...
— No princípio não percebi que estavam mortos. O sangue não parecia
sangue. Tinha secado. Mas quando me aproximei e toquei no braço da
minha mãe, estava hirto e frio. E vi o tom arroxeado da pele dela.
— Por que não me tinhas contado?
— Tive anos para superar isso.
— Não se consegue superar uma coisa dessas.
— Portanto também sou egoísta. Estou a fazer isto porque os meus pais
estão mortos. Willux mandou-os matar. Não vim apenas para fazer
companhia. Não faço isto apenas pelo bem maior.
— Bradwell — sussurra ela. — Eu é que vou seguir. E tu é que vais
ficar, porque o meu pai ainda está vivo. — É cruel, mas é a verdade.
Fignan manobra para passar pela porta do cockpit.
— Não podes deixar-me aqui com o Cap depois de ele te ter beijado,
depois do que ele te disse!
Estará a culpá-la? Achará que ela encorajou El Capitan, ou que tinha
um relacionamento com ele ao mesmo tempo que o tinha com Bradwell?
Pressia vira costas e encaminha-se, vacilante, ao longo das paredes do
dirigível até à porta de saída da cabina, agora quase completamente ao nível
do teto.
— Espera! — diz Bradwell. — Não! Não podes...
Ela usa os bancos como uma espécie de escadote para subir até à porta.
Faz girar a grande roda que a mantém trancada, depois deixa-a tombar para
o lado de fora, aberta.
— Vais mesmo fazer isso.
— Passa-me o Fignan. Vou precisar dele para ajudar a orientar-me.
Pressia apoia-se nos cotovelos, içando-se até lá acima e sentando-se
depois no flanco da gôndola do dirigível. Está escuro, apesar da luz do
dirigível que jorra da porta, do cockpit envidraçado, das vigias.
Bradwell passa as mãos pelo seu cabelo e esfrega rudemente as
cicatrizes que lhe marcam o rosto.
— Então vou sem o Fignan. É isso que queres?
Bradwell suspira. Pega em Fignan e entrega-lho através da porta da
cabina. Fignan acende um foco estreito que bruxuleia sobre o campo
circundante, as árvores distantes.
Ela desliza da gôndola para o chão.
Bradwell segue-a apressadamente. Pressia olha para ele, com o cabelo
despenteado, todo espetado à volta da cabeça, os ombros musculosos, os
olhos escuros e húmidos. Que pensará dela? Que pensará deles dois? Ele é
uma caixa preta, indecifrável.
Ela ainda sente o beijo de El Capitan nos seus lábios. Talvez o que
mais a tenha surpreendido foi o facto de ser tão terno. El Capitan não é do
tipo de fazer seja o que for com ternura. Ela não ama El Capitan, não como
ele a ama. Mas ela ama-o de alguma forma. Passaram por muita coisa.
Quando ela não tinha ninguém, ele ajudara-a. Salvara-a. E ela está bastante
segura de que o modificou, de algum modo elementar. Há tanta coisa entre
eles agora. Não é uma relação simples ou fácil. Como podia ser? Quando o
conhecera, ela tinha medo de que ele fosse matá-la.
Bradwell fita-a, expectante.
Ela põe-se à escuta, por um momento, do que possa andar lá por fora.
Está tudo em silêncio e, por qualquer razão, isso assusta-a ainda mais.
Diz a Bradwell:
— Estou a senti-lo agora mesmo.
— O quê?
Uma sensação de vertigem no estômago, o coração a rufar no seu peito
como se estivesse a cair, a cair.
— Não compreendo o que significamos um para o outro, nem tudo o
que passámos juntos. Mas... — Esfrega uma lágrima da face. — Sei que um
dia vou ter saudades, mesmo das partes brutais, mesmo do horror. Vou ter
saudades tuas — conclui, fitando-o —, neste momento, agora mesmo.
Ele olha para ela como se estivesse a memorizar o seu rosto.
— Eu vou conseguir lá chegar — diz ela.
— Eu quero que consigas voltar.
Capítulo 66
Partridge
Nebrasca
Pressia
Criação De Animais
Pressia começou por correr, mas era impossível manter um tal ritmo.
Assim, opta por correr apenas nas descidas, quando tem a inércia a seu
favor, como agora. Está escuro. Ela segura Fignan debaixo do braço. Ele
projeta um cone de luz que percorre as árvores — atrofiadas, retorcida e
corcundas —, depois volta a iluminar o caminho à sua frente. O solo está
coberto de hera densa, que reveste pedras, troncos de árvores, o chão da
floresta. Ela apanha uma área coberta de folhas e as suas botas perdem a
aderência. Pressia escorrega, cambaleia, firma-se agarrada a um galho.
Depois recomeça a correr, esquivando-se a ramos, saltando sobre buracos e
raízes salientes. Sabe que está a correr contra o tempo. A lama exerce um
efeito de sucção nos sulcos das solas das suas botas, fazendo-a perder
velocidade.
Fignan mantém-na no bom caminho, acendendo um mapa com
estradas antigas e pontos de referência. E vai contando as horas que faltam
para o solstício. Restam sete horas e quarenta e dois minutos. Há uma
hipótese de chegar a tempo, mas Pressia não pensa no destino — apenas
num passo de cada vez.
Sente a falta de Bradwell, de El Capitan e de Helmud. Ainda está a
pensar no beijo de El Capitan, no seu, Amo-te, Pressia Belze, e em
Bradwell, a vê-la partir. Quanto mais pensa neles, mais segura se sente de
que precisa de estar ali sem eles, sozinha.
Já avistou algumas aves, ou serão morcegos? Parecem atrofiadas e
dardejam mais do que deslizam. Pequenos roedores correm entre a
vegetação rasteira. São criaturas pervertidas, deformadas de maneiras que
ela aprendeu a esperar: fusões, pele queimada, híbridos.
Mas aqui a atmosfera não está tão turva e escurecida pelas cinzas, o
que dá a impressão de que o mundo é maior, simplesmente porque consegue
ver mais daquilo que a rodeia. A vegetação também recuperou com mais
rapidez.
Um galho retorcido engancha-se na perna das calças de Pressia, com
tanta força que a faz cair. Ela ampara a queda com o cotovelo, mas o
impacto atira Fignan contra as suas costelas, cortando-lhe a respiração.
Pressia liberta-se com um puxão, rasgando a perna das calças. A sua
pele foi picada. Toca no ponto dorido e encontra um vergão. Quando tira a
mão, vê os dedos manchados de sangue.
— Estás bem? — pergunta a Fignan.
A caixa negra acende e apaga as luzes.
— Um espinho desagradável — comenta ela.
Levanta-se, com o vergão a pulsar, e segura Fignan com mais força.
Começa a correr de novo, mas o solo está cada vez mais escorregadio. É
obrigada a abrandar e a avançar apoiando-se de árvore em árvore, para não
cair.
A terra parece mover-se por baixo dos seus pés, como se a hera
estivesse viva. Pressia prossegue, o mais depressa que pode, mas então algo
se enrola no seu tornozelo. Cai de novo. Uma gavinha enrosca-se no seu
braço. Ela tenta libertar-se, mas há mais espinhos. Perfuram-lhe
rapidamente a pele. O sangue brota, goteja ao longo do braço. Outra
gavinha entrelaça-lhe a perna.
— Fignan! — Uma gavinha circunda o seu bicípite, serpenteia por
cima do ombro, depois por trás do pescoço e atravessa a bochecha em
direção à sua boca. Pressia sacode a cabeça e debate-se, arrancando
algumas gavinhas. Mas as trepadeiras continuam a brotar da terra, com as
gavinhas soltas a baloiçar, e os galhos das plantas resistem. Pressia e
Fignan estão amarrados ao solo. Está presa. Entra em pânico:
— Fignan! Não consigo mexer-me!
Apenas os seus olhos estão desvairados. Não quer morrer ali.
Decompor-se-ia no chão. Bradwell, El Capitan e Helmud esperariam por
ela, sem nunca saber o que lhe acontecera.
Ouve Fignan a zumbir, depois um odor a pinho enche o ar.
— Tens uma faca? — grita ela.
A caixa negra apita.
Pressia sente-o a serrar trepadeiras. Corta uma, que fica flácida e tomba
em espiral da sua perna.
Fignan desloca-se para a gavinha enrolada no seu braço bom, serra-a.
Pressia consegue então puxar a sua própria faca do cinto, e ambos
trabalham. Ela sente uma nova gavinha envolver o tornozelo da sua bota e
apertar rapidamente o couro. Vira-se e corta-a.
Ergue-se sobre os joelhos, depois está quase de pé. Uma gavinha
rápida estala no ar, como um chicote, e circunda-lhe o pulso, no ponto onde
a cabeça da boneca encontra a sua pele. Pressia imagina a gavinha a
estrangular a boneca e essa imagem paralisa-a por um momento. Mas
depois enfia a faca entre a cabeça da boneca e a gavinha e liberta-se. Fignan
corta a última gavinha que a prende ao chão e Pressia afasta-se, tropeçando.
A hera recua, sibilando.
Pressia agarra em Fignan e começa a correr o mais depressa que pode.
A luz dele ressalta no terreno à sua frente até a jovem avistar o limite da
floresta. Estuga ainda mais o passo. Mesmo depois de emergir das árvores,
continua a correr até dar por si no meio de um campo.
Há uma faixa de terra e as volumosas ruínas de um edifício ao longe,
muros de ambos os lados a desfazer-se em nada. A hera rastejou sobre o
que resta dos muros e do edifício, cobrindo tudo, talvez a devorá-lo.
Com os pulmões ansiosos por ar, Pressia pousa Fignan no chão,
descansa as mãos nos joelhos e tenta recuperar o fôlego.
— Perdemos tempo — diz ela. — Quanto nos resta?
— Cinco horas e doze minutos.
— Ainda podemos conseguir — afirma Pressia, mas sente-se fraca. As
suas roupas estão cobertas de pequenos rasgões e pontilhadas do sangue que
lhe escorre da pele. Cada picada de um espinho parece um vergão doloroso.
— Só preciso de um segundo — diz ela. Começa a tremer, tem a
sensação de que a sua cabeça está cheia de abelhas. A sua vista turva-se e,
ao tentar focá-la, repara num pequeno punhado de trevos com folhas
cerosas. Vira Fignan de modo que a luz incida nas folhas. A cinza que
assentou na vegetação é fina e sedosa, tão leve que ainda se vê o verde das
folhas. Estas estão pontilhadas de insetos minúsculos, semelhantes a
pequenas carraças, mas escudados por cascas vermelhas-vivas e rijas.
Os insetos parecem possuir pinças dianteiras que funcionam como
braços e afastam a cinza, enquanto caminham aos estalidos por cima das
folhas, sobre as patas delicadas.
— Estão a limpar a cinza, abrindo pequenos carreiros? — pergunta ela
a Fignan. Mas não: parece que os bicharocos estão a comer a cinza. Os seus
movimentos são aerodinâmicos e deliberados. Os seus corpos são
simétricos, exatamente iguais uns aos outros. Pressia observa:
— E se foram criados para este fim? — Endireita-se, sentindo-se
gelada e doente.
Fignan apita.
— Se assim é, sobreviveram alguns irlandeses. Estão aqui, algures, e
são inteligentes.
Capítulo 68
El Capitan
Irmãos
Há algo na sua boca, a roçar-lhe nos lábios, cada vez com mais
insistência. Ele sacode o que quer que seja com uma palmada. Gotas de
água fria pulverizam-lhe o rosto. Ouve um tinido de metal a bater em metal.
Abre os olhos. Está deitado de lado, enroscado sobre si mesmo.
A sua cabeça. Levanta a mão e toca num penso de gaze sobre o que
parece uma ferida aberta no seu crânio. A dor é intensa e profunda: a sua
cabeça terá sido rachada à machadada?
Sente a respiração nervosa de Helmud no seu ouvido: fraca e rápida.
Não está sozinho. Nunca está sozinho.
Estão no dirigível.
O dirigível está em terra.
Jazem no nariz cónico do cockpit. A sua visão desfocada pousa em
erva e hera, achatadas do outro lado da grande janela como flores prensadas
dentro de um livro. Lembra-se dos velhos livros da sua avó; pegava-se num
e uma flor roxa deslizava das páginas, achatada e seca, e flutuava até ao
chão como um pequeno presente, um pequeno bilhete de amor secreto.
Ele beijou Pressia.
A recordação impulsiona-o bruscamente para frente. Levanta as mãos,
as palmas ásperas e calejadas, e fica a olhar para elas. Segurou o rosto dela
naquelas mãos. Os seus lábios tocaram-se. Por que foi ele beijá-la? Jesus.
Por que raio fez aquilo?
— Helmud — chama, com a voz rouca e seca. — Onde está ela?
— Onde está ela? — repete Helmud.
— Para com isso! — grita El Capitan. — Isto não é altura para essa
merda, Helmud. — Tenta levantar-se.
— Para com isso! — grita Helmud, passando-lhe os braços sobre os
ombros e puxando-o para trás. — Para com isso!
El Capitan olha em redor, para o cockpit. Helmud estava a tentar dar-
lhe de comer. Um copo de metal, pacotes de carne seca. A faca de Helmud.
Sente-se tonto. A sua mão desliza pelo vidro. No preciso momento em
que ia firmar-se nos pés, as botas derrapam debaixo do seu corpo e ele vai
parar outra vez ao chão. Nem sequer consegue levantar-se. As suas faces
ardem de vergonha. Bradwell estava lá quando ele beijara Pressia. Tem a
certeza. El Capitan pontapeia a parede de vidro com o calcanhar da bota. O
que pensará ela dele agora?
Ela partiu. Não que pudesse ficar. Como poderia? O tempo está a
contar. Ela tinha de ir. Mas Bradwell terá ido também?
— Será que nos abandonaram aqui à morte? — diz El Capitan.
— Raios partam, Helmud. Acharam que tu ias cuidar de mim?
— Cuidar de mim — diz Helmud.
El Capitan sabe que devia perguntar-se se eles já teriam chegado a
Newgrange, se teriam encontrado a fórmula, mas, em vez disso, pensa que
podem dizer o que quiserem um ao outro nas suas costas. Podem fazer troça
dele. Claro que ela não queria que ele a beijasse. Ele é um tipo que anda
com o irmão às costas, uma aberração entre aberrações.
Sabe por que a beijou. Estava orgulhoso de si mesmo por ter
conseguido pilotar aquele dirigível, orgulhoso até da sua aterragem de
emergência. E quando viu o seu rosto, ficou feliz por ela estar viva. Ama-a.
Disse-o em voz alta. Tem a certeza de que disse. E agora não há como
voltar atrás.
— Talvez morramos aqui, Helmud. Talvez seja pelo melhor. Helmud
torce-se para o lado. Está a vasculhar um saco.
— Pelo melhor.
— Ainda bem que o pai desistiu de mim antes de nos ver assim. Sabes,
Helmud? Sabes o que quero dizer? Estou contente por ele ter partido antes
de ver como somos doentes. Somos doentes. Olha para nós.
Sente a mão de Helmud deslizar sob o seu queixo, puxando-o para
cima. El Capitan senta-se, mas não se endireita completamente. Não tem
energia para isso. Encosta-se, apoiado a Helmud, que tem uma colher numa
mão e uma pequena lata de arroz na outra. Helmud passa os braços em
torno de El Capitan e leva a colher à boca do irmão.
— Olha para nós — diz ele.
El Capitan tem vontade de chorar. Helmud, ao fim de tantos anos, vai
cuidar dele. São os dois, ligados.
— Olha para nós — diz Helmud de novo, depois acrescenta uma
palavra: — Cap.
Não está a repetir algo. Não é apenas um eco. Disse alguma coisa. El
Capitan não sabe quando foi a última vez que ouviu Helmud dizer o seu
nome. Antes das Detonações? El Capitan olha por cima do ombro. Olha
para o rosto do irmão. É como se não o tivesse visto de perto há anos.
Helmud já não é apenas um miúdo. O seu rosto está deformado, mas é
robusto. Os seus olhos são fundos e agora enchem-se docemente de
lágrimas.
— Olha para nós — diz El Capitan. — Olha para nós.
— Olha para nós — diz Helmud.
Então El Capitan ouve passos acima deles: passos pesados. Uma
Besta? Vê a sua arma encostada à parede. Estende a mão para ela. A dor na
sua cabeça dispara pela espinha abaixo. Não consegue chegar à arma. Firma
a bota e faz força, empurrando-se, a si e a Helmud, para a frente.
Os passos aterram pesadamente no interior da aeronave, que abana um
pouco. Ouve alguém aproximar-se da porta do cockpit.
Os seus dedos roçam a coronha da espingarda. Faz força mais uma vez,
com uma careta de dor, pega na arma, vira-a, engatilha e aponta à porta,
onde um vulto grande se recorta na sombra.
— Jesus, Cap! Pousa isso. — É Bradwell.
— Estás cá — diz El Capitan.
— Sim, estou cá e a Pressia não. Partiu, sozinha — diz Bradwell,
levantando-se.
— Deixaste-a ir?
Bradwell fita-o, carrancudo, com o queixo dobrado sobre o peito.
— Estás a criticar-me? Não me parece que isso seja do teu interesse
neste momento.
— Isso parece uma ameaça.
— Uma ameaça — sussurra Helmud.
— Toma-o como um aviso amigável.
El Capitan não gosta nem de ameaças, nem de avisos, mas gosta do
facto de Bradwell parecer abalado. Talvez o beijo tenha tido mais efeito do
que ele julgava.
— Há quanto tempo partiu ela? — pergunta, sentando-se o mais direito
que pode.
— Está quase a amanhecer. Talvez ela lá esteja. Talvez não. Eu não
podia ir com ela e deixar-vos aqui sozinhos aos dois, pois não?
— Não foste com ela... por minha causa?
— Por minha causa? — diz Helmud, pousando a lata.
Bradwell faz um sinal afirmativo.
— Ela disse que eu tinha de ficar contigo e com Helmud, e que era ela
que tinha de ir.
— Devias ter ido — afirma El Capitan, zangado. — A última coisa que
quero é a Pressia por aí sozinha! Pode acontecer-lhe seja o que for! Não
conhecemos este terreno, as suas Bestas e Poeiras!
— Querias que te abandonasse aqui à morte? — replica Bradwell.
— Tu não farias o mesmo sacrifício? — diz El Capitan. — Por ela!
E, naquele momento, El Capitan tem a impressão de ter dito o
indizível: que ambos estão apaixonados por ela, que morreriam por ela.
Bradwell cruza os braços sobre o peito. As aves fazem uma restolhada
zangada nas suas costas.
— Suponho que temos isso em comum.
El Capitan não sabe o que dizer. Sente os braços fracos. Descansa a
arma no chão.
— Também sabemos que ela não deixaria qualquer um de nós
sacrificar o outro por ela — acrescenta Bradwell.
— Certo — diz El Capitan.
— Mas além disso — prossegue Bradwell —, eu não podia abandonar-
te aqui à morte... porque és como um irmão para mim. Ambos são.
— Ambos são — diz Helmud.
El Capitan está estupefacto. Sente-se culpado. Beijara Pressia. Mesmo
à frente de Bradwell. Dissera-lhe que a amava. Os irmãos não fazem isso
uns aos outros.
— Desculpa — diz ele.
— Porquê?
Lyda
Chilreios e Grunhidos
Partridge
Avariado
Nada é o que ele julgava que era e, por alguma razão que não consegue
explicar, Partridge sente-se melhor por saber que aquela vida para a qual
acordou, e que era supostamente a sua vida, não passa de uma mentira, tão
falsa como aquela casa rústica do Nebrasca. O pai de Partridge não o ama.
Essa é a pura verdade. Ele sempre o soube. Sabe que devia rejeitar a ideia
de que o seu pai quer matá-lo. Isso, só por si, devia provar que Iralene está a
ter um colapso nervoso qualquer — agora está muito calada e quieta,
sentada com as costas apoiadas à parede —, mas, no fundo ele acredita
nela.
O seu pai diz que só quer que ele aproveite aqueles poucos dias para se
divertir, antes de começar a confiar-lhe um enorme poder. Mas o pai nunca
quis que Partridge se divertisse. E Ellery Willux nunca confiou poder a
ninguém em toda sua vida.
Ellery Willux; o nome completo, só por si, dá a volta ao estômago de
Partridge.
— O meu pai conheceu a tua mãe antes de o teu pai ter sido preso
— diz Partridge a Iralene. — Nunca tiveste qualquer problema com
isso? Nenhuma suspeita?
— Estás a insinuar que o teu pai teve algo a ver com a prisão do meu?
— Ela abana a cabeça. — Não! Não podes pensar assim! O teu pai era
casado, nessa altura, Partridge. Tenho a certeza de que a minha mãe nunca,
nunca se envolveria com um homem casado. O teu pai é o teu pai,
Partridge. Mas a minha mãe é boa, lá no fundo. É boa.
— Está bem, está bem! — Ele sabe que Iralene não é parva. Já deve ter
pensado no assunto milhares de vezes. Ela sabe. Por que outra razão
responderia com tanta raiva? Seja como for, não há tempo para aprofundar
essa linha de raciocínio. Iralene pode ter razão acerca de tudo aquilo. Se a
sua memória foi eliminada, então ele sabe algumas verdades, a um nível
instintivo. E isso dá-lhe uma confiança que não possuía antes. Algo está a
despertar. Não tem muito tempo.
Pergunta a si próprio: como se pode esconder algo para se encontrar
mais tarde, tendo consciência de que não se vai sequer saber que se deve
procurar? Seria preciso escondê-lo num sítio onde se saiba que se vai
encontrá-lo — por acidente.
Percorre rapidamente o quarto, passando os olhos pelas tábuas do
soalho, pela cabeceira da cama, pela cruz na parede. Abre o guarda-fatos de
repelão, na esperança de ter criado um bilhete que possa cair ao chão. Puxa
a pequena gaveta da mesa de cabeceira, depois fecha-a com força. Corre
para a casa de banho, abre a torneira do lavatório e da banheira. Puxa a
corrente do autoclismo antiquado. Ouve um estalido. Não corre água.
Está avariado.
Partridge fecha a tampa da sanita, empoleira-se em cima dela, abre o
depósito ao lado da parede. Um bocado de papel muito bem dobrado cai ao
chão.
— Encontrei uma coisa — anuncia a Iralene. Salta da sanita, pega no
papel. Vê as palavras Para: Partridge. De: Partridge, escritas na sua
própria caligrafia, o que lhe parece uma espécie de piada. Desdobra o papel
e depara com uma lista.
1. Fugiste da Cúpula. Encontraste a tua meia-irmã, Pressia, e a tua mãe.
A tua mãe e Sedge estão mortos. O teu pai matou-os.
2. Estás apaixonado por Lyda Mertz. Ela está fora da Cúpula. Tens de a
salvar, um dia.
3. Prometeste a Iralene fingires ser noivo dela. Cuida dela.
4. Neste prédio, há pessoas vivas, suspensas em cápsulas. Salva-as. O
bebé Jarv pode estar entre elas.
5. Confia em Glassings. Não confies em Foresteed.
6. Não te lembras disto porque o teu pai te obrigou a apagar as
memórias da tua fuga. Foi ele que causou as Detonações. As pessoas na
Cúpula sabem disso. Ele tem de ser derrubado.
7. Toma o poder. Lidera a partir de dentro. Começa de novo.
Sai da casa de banho e entra no quarto da casa rústica no falso
Nebrasca. Levanta o papel no ar. Tem a mão a tremer. Olha para Iralene. Ela
não diz nada. Tira o molde do mindinho e fica a olhar para o coto.
— Isso aconteceu-te fora da Cúpula — explica Iralene. — O Weed
arranjou-o de maneira a voltar a crescer.
Partridge repõe o molde no dedo trémulo.
Glassings. Pode confiar em Glassings. Em quê? História Universal?
É tudo demasiado inconcebível para ser processado.
Iralene levanta-se e dá um passo em direção a ele.
Partridge reflete acerca da ideia de ter uma meia-irmã. Pensa na sua
mãe e em Sedge; vivos, mortos, vivos, mortos.
— Lyda — sussurra, lembrando-se dela a cantar no coro. Fora esse o
rosto que ele vira mentalmente, a olhar para ele das filas de raparigas. Sente
outra vez a mesma dor. Tinha razão: não era amor, era nostalgia. — Lyda
Mertz. — Olha para Iralene.
Ela faz que sim com a cabeça.
O peito parece estar a abrir-se, com uma sensação simultaneamente
dolorosa e libertadora. O seu pai, a assassinar a sua mãe e o seu irmão? A
assassinar o mundo?
— O meu pai não é perfeito, mas não provocou as Detonações. Pelo
menos isso posso dizer-te. É quase tão absurdo como eu ter fugido da
Cúpula.
— Não é absurdo — replica Iralene. — E tu sabes isso.
Partridge sente-se subitamente furioso.
— Não esperas que eu acredite...
— Tu podes detê-lo. Glassings explicou-te como.
— Glassings. Devo confiar nele.
— E eu não devia confiar nele.
— Que queres dizer?
Ela sussurra:
— Trabalhei para ambos os lados.
— O quê? Porquê?
— Não tinha alternativa. Julgas que a sobrevivência é uma coisa em
que só os desgraçados têm de pensar, Partridge? Não sejas tão ingénuo.
— O quê? Iralene, eu pensava...
— Eu sou o que sou a cada dado momento, Partridge. Essa é a única
maneira como podes conhecer-me.
Ele não sabe o que dizer.
— Mas eu confio em ti, Iralene. Confio mesmo. És boa. Sei que és.
Sinto-o.
Ela fecha os olhos, como se estivesse muito cansada. Sorri:
— Talvez sejas a única pessoa que eu conheci verdadeiramente — diz
ela. — Compreendes o que quero dizer?
— Sei muito bem o que queres dizer. — Conhecer alguém, ser
conhecido. Tem mais importância do que ele alguma vez julgara.
— Ouve, Iralene. Diz-me. Como conheceste Glassings?
— Levavam-me lá para ter aulas. Não frequentei a Academia, mas
tinha de ser instruída para poder ser digna de ti. Mas eles levavam-me a ter
aulas com todos os professores em quem não tinham grande confiança. Eu
estava lá para os testar, para ouvir. E assim fiz.
— Deste informações acerca deles?
— Informei que estava entediada. Que a minha instrução era inútil.
Glassings deu-me uma coisa para ti. — Ela entrega-lhe um envelope
branco, pequeno e simples. Ele abre-o. Lá dentro há apenas uma cápsula.
— O que é isto?
— Veneno. Fatal e indetetável. Tens de o dar ao teu pai. A cápsula
dissolve-se em quarenta segundos e o veneno alastra rapidamente ao
organismo. Ele morrerá no espaço de três minutos.
— Não posso matar o meu pai. Se matamos um assassino, tornamo-nos
igualmente maus.
— Isso foi o que disseste da última vez que te pediram.
— Bem, pelo menos sou coerente.
— Podes mudar de opinião. Eu posso provar como o teu pai é
tenebroso — diz ela — se é disso que precisas. Está aqui. Neste edifício.
Os corpos, suspensos.
— Jarv — diz ele.
— Sim — confirma ela — Jarv.
Iralene conduz Partridge rapidamente para fora do quarto e ao longo do
corredor. Descem um lanço de escadas e atravessam uma sala de cimento,
grande e vazia, com rachas nas paredes, tubos expostos, e, curiosamente,
um piano vertical. Tudo lhe parece estranhamente familiar. Já ali esteve
antes. O seu cérebro talvez não se lembre, mas o seu corpo lembra. Um
arrepio percorre-lhe a espinha.
Não quer ver o lado tenebroso do seu pai, mas tem de o fazer. Não
pode acreditar em qualquer outra coisa da lista, a menos que possa provar
pelo menos uma delas, vê-la com os seus próprios olhos.
Iralene pega-lhe na mão e leva-o por um corredor forrado de portas.
Cada porta tem uma placa com um nome gravado.
Passam por porta atrás de porta e, a cada uma, Partridge sente-se mais
doente por dentro.
— O que é este sítio?
— Passei grande parte da minha vida aqui, suspensa. Para permanecer
fresca e envelhecer quase impercetivelmente ao longo do tempo.
— Passaste grande parte da tua vida aqui? Que idade tens?
— Não vou dizer-te.
— As Detonações só foram há nove anos. Que idade podes ter?
— Esta tecnologia é anterior às Detonações, Partridge. A minha mãe e
eu não estamos amarradas aos anos como as outras pessoas. Começámos
cedo.
— Cedo, a que ponto?
— Eu comecei a fazer sessões aos quatro anos de idade.
O rosto dela é liso. Sem vincos, sem rugas. Os seus olhos são límpidos
e brilhantes.
— Jesus, Iralene. Que idade tens? Diz-me só.
— Tenho a tua idade, Partridge. Acontece apenas que a tenho há mais
tempo do que tu, nada mais. E continuarei a ter a tua idade enquanto puder.
— Iralene — sussurra ele. — Que te fizeram eles?
Ela abana a cabeça. Não quer falar no assunto.
Partridge caminha lentamente ao longo da fila de placas: PETRYN
SUR, ETTERIDGE HESS, MORG WILSON.
— Mas não é para efeitos de preservação que estas pessoas todas estão
aqui. Não é por isso que o Jarv está aqui. Os pais dele eu conheço-os. São
boa gente. Não iriam tentar preservá-lo.
— Que havia de errado nele? — pergunta Iralene sem rodeios.
— Nada — responde Partridge, num tom defensivo, mas depois lança
um olhar rápido a Iralene, pois é claro que havia algo de errado em Jarv. —
O que queres dizer com isso?
— Por vezes, os pequenos vêm porque têm algo que não está
completamente certo. Para quê desperdiçar recursos com eles? Mas, por
outro lado, vamos precisar de mais gente quando formos para o Novo Éden.
Nessa altura, teremos o suficiente para todos. Ele pode acabar de crescer
quando lá chegarmos. Não foi eutanasiado, Partridge. Essa é a boa notícia.
— Essa é a boa notícia? Que não o mataram por ser um pouco lento no
seu desenvolvimento?
— Portanto ele era lento.
— Suponho que sim. Os pais estavam preocupados. Houve alguns
problemas. Não me lembro ao certo quais. Foi no inverno passado.
HIGBY NEWSOME, VYRRA TRENT, WRENNA SIMMS.
— A sua pequena coleção de relíquias — diz Iralene. — Algumas são
pessoas que deviam ter sido executadas por crimes, por traição. Mas ele
conservou-as por uma questão de sentimentalismo.
Dobram outra esquina e encontram uma barreira de janelas, em vez de
portas. É como uma versão distorcida de um berçário, como os que se
encontram na ala de maternidade de um hospital. Há camas em forma de
ovo, cobertas por vidro. As crianças estão deitadas lá dentro. Todas têm
tubos na boca, para lhes fornecer oxigénio. Partridge ouve um zunido
elétrico.
Corre ao longo da fila de camas, procurando Jarv e acaba por o
encontrar: é o quarto a contar do fim. O seu nome está claramente marcado
na cápsula. Há uma criança na cápsula ao lado da sua, mas as duas últimas
estão vazias, à espera. As faces de Jarv estão pálidas e os seus lábios
exibem um tom arroxeado à volta do tubo, tal como as pálpebras. Mas os
braços e as pernas ainda são rosados e carnudos, embora a carne esteja
provavelmente intumescida. Há cristais nos seus joelhos; um pé está
coberto por uma película prateada de gelo, como se usasse uma meia de
renda.
— Como se desliga isto? — Partridge caminha ao longo da parede de
vidro. —Jesus! Como vamos tirá-los dali? — Encontra uma porta de metal.
Dá-lhe um puxão. Está trancada. — Temos de o tirar dali.
— Mesmo que conseguisses entrar, seria demasiado perigoso tentares
tirá-lo da suspensão. Isso só pode ser feito por um médico.
— Onde está o médico? Eu posso convencê-lo. Posso levá-lo a reverter
isto!
— Não há necessidade de estarem aqui médicos de serviço
permanente. Eles vêm quando é preciso. Os pacientes em suspensão têm os
sinais vitais monitorizados por computadores. E se um falhar, bem, nunca é
uma tragédia, pois não? A tragédia já se deu.
Partridge encosta a testa à janela.
— Então, os pais dele não sabem? — Começa a chorar. Já devia ter
chorado mais cedo, provavelmente quando lera a nota, mas o impacto só
agora se faz sentir.
— Não sabem ao certo onde ele está, mas provavelmente têm uma
vaga ideia.
— Não podem saber.
— As vezes os mais novos são libertados por um tempo, levados para
o centro médico. Os pais vão visitá-los. E raro. Têm de estar
particularmente bem relacionados para obterem essas autorizações.
— Isto tem de acabar. — Partridge afasta-se bruscamente do vidro. —
Isto não pode continuar.
— Ele também tem planos para ti, Partridge. Piores do que isto.
Partridge encara-a.
— Não faz sentido. Disseste que ele quer matar-me, mas por que se
daria ele ao trabalho de me apresentar como líder, como seu sucessor, se
tenciona simplesmente eliminar-me?
— Não sei. — Iralene vira o rosto.
— Estás a mentir, estás a esconder alguma coisa, não estás?
— Podes pôr fim a isto. Sabes como.
— Ele é que é o assassino. Queres que me transforme também num?
— Quero que tu vivas — diz ela. — Guarda a cápsula contigo.
Quarenta segundos e o revestimento dissolve-se, depois, em três minutos,
tudo estará terminado. Só tu podes chegar suficientemente perto dele para
que isso aconteça.
A cápsula está no envelope, dobrado no seu bolso.
— Vou guardá-la, mas não tenciono usá-la.
— Há uma pessoa que quero que tu vejas — diz ela.
Partridge segue-a até ao fim do corredor. Dobram outra esquina.
— Costumo assombrar este sítio sempre que posso. Não quero que eles
se sintam completamente sozinhos. Não é que se pense lá dentro, na
verdade. Os investigadores acham que não somos capazes de tomar
conhecimento seja do que for quando estamos nesse estado. Mas eu acho
que sabemos quando está alguém connosco, quando nos visitam.
Metem por outro corredor. Mais nomes em placas: FENNERY
WILKES, BARRETT FLYNN, HELINGA PETRY.
— Sei quando chegam pacientes novos e, quando as circunstâncias são
estranhas, presto atenção.
— Quem é? — pergunta Partridge. Ele sabe que a sua mãe e o seu
irmão estão mortos, um facto que deixou claro para si mesmo.
— Aconteceu enquanto estiveste fora. Trouxeram-no do centro
médico. Lembro-me dele, porque é diferente dos outros. Por um lado, é
mais velho do que a maioria dos habitantes da Cúpula. Como muito bem
sabes, os idosos não são dignos de recursos e não é provável que consigam
chegar sequer ao Novo Éden. Mas a outra coisa — Iralene abranda o passo,
olhando atentamente para os nomes — que me chamou a atenção foi que
não lhe puseram o rubo de oxigénio na boca. Taparam-lhe os lábios e, em
vez disso, inseriram o tubo diretamente na sua garganta. — Para diante de
uma porta e aponta para a placa. — Odwald Belze — diz. — Conheces o
nome? Belze?
Partridge sente o nome despertar uma porção mal iluminada do seu
cérebro, uma centelha de reconhecimento. Belze. Belze. Quer lembrar-se de
algo mais. Toca na placa com a mão. O molde no
mindinho produz um estalido. E, por uma fração de segundo, ele pensa
num olho, pequeno e vítreo. É aberto. Um estalido. Está fechado. Um
estalido. Está aberto outra vez.
O pequeno olho de uma boneca.
Iralene vai até ao fundo do corredor. Apoia a mão numa grande porta
de metal, fechada à chave e trancada, com um sistema de alarme montado
na parede.
— E esta, fortemente protegida, sem placa de identificação. Quem sabe
o que estará do outro lado desta porta?
Capítulo 71
Pressia
Luz
Partridge
Lyda Mertz
El Capitan
Trepadeiras
Lyda
Fato-Macaco
Lyda vem a si quando é atingida pela água. A princípio está fria, talvez
de propósito para a acordar. Encontra-se num cubículo branco, tão pequeno
como um armário, com bocais apontados para si; dezenas deles. Há uma
maçaneta prateada à sua frente. Ela tenta agarrá-la, mas a sua mão
escorrega. Está nua. Vê o volume da sua barriga sensível. Não é evidente,
mas talvez lhe tenham feito análises enquanto estava inconsciente. Tem a
parte de dentro do braço dorida. Saberão que ela está grávida?
Os bocais pulverizam espuma, que cheira fortemente à piscina da
Academia, a álcool e a outros produtos químicos. Lyda tosse e engasga-se.
Ardem-lhe os olhos.
Depois a água fica quente. O pequeno compartimento enche-se
rapidamente de vapor.
Quando os bocais finalmente se desligam, ela estende de novo a mão
para a maçaneta da porta. Como suspeitava, está fechada à chave. Uma
gaveta abre-se na parede. Há um fato-macaco branco, do centro da
reabilitação, e um lenço de cabeça. Voltou ao início.
Pega na roupa e começa a vesti-la. Ao puxar o fecho do fato-macaco,
imagina a sua barriga a crescer, redonda e tensa, a enchê-lo. Qual será o
aspeto de uma criança concebida lá fora, no meio dos desgraçados? Talvez
agora ela também seja uma desgraçada. As autoridades da Cúpula não
permitiriam que um filho seu nascesse na Cúpula, pois não?
A maçaneta roda. A porta abre-se. Uma voz diz:
— Sai cá para fora.
Mas não há fora. Ela sai de um pequeno espaço fechado para outro
espaço fechado. O ar não tem qualquer movimento. É estéril e estático. A
Cúpula é o verdadeiro deserto. Ela lembra-se de falar a Partridge sobre o
globo da neve; está presa de novo, só que não existe sequer o torvelinho
aquoso de neve artificial húmida.
Capítulo 75
Pressia
Promete-me
Partridge
Beijo
Lyda
Tremor
Pressia
Asas
Está tudo sossegado. Bradwell está deitado no chão, com o peito nu.
As suas costelas — maiores agora, mais pesadas — sobem e descem
rapidamente. Mas, tirando isso, está imóvel. Pressia tem estado de vigia e
acaba por rastejar para junto dele. O vento despenteia-lhe o cabelo, as asas,
uma das quais está enrolada em torno do seu ombro, qual abóbada
emplumada a proteger o seu corpo. A cicatriz sobe ao longo do centro do
seu peito. Ela toca-lhe e ele estremece, sem abrir os olhos.
El Capitan está sentado com as costas do irmão a descansar contra uma
árvore, a cerrar os punhos sobre a terra. Talvez El Capitan a ame de facto.
Ela pensa em Bradwell, El Capitan e Helmud, presos nas trepadeiras,
moribundos. Tem de acreditar que é melhor assim. Melhor. Tem de ser.
Fignan gira as suas rodas em falso. Não há para onde ir. O cavalo
relincha. Sacode a crina, que desce ao longo do pescoço grosso. Um animal
gigantesco com um coração gigantesco. Pressia não lhes contou de onde o
cavalo veio, nem das pessoas que viu no monte sagrado. Kelly está ali e
está vivo. Eles não estão sozinhos. Contudo, parece que estão
completamente sozinhos naquela terra, isolados.
Ela ouve o seu próprio coração a ressoar-lhe nos ouvidos: o seu
coração esfarrapado, selvagem, pulsante. É o mesmo som que ouviu
debaixo de água, quando estava a afogar-se, as batidas de um baixo
profundo, o resto do mundo quase silencioso. Faltou à palavra dada a uma
pessoa que ama.
Ela ama Bradwell.
Aí está. A verdade das coisas. Não é uma fraqueza e não é preciso
coragem. O seu amor por ele simplesmente é. Não tinham morrido juntos
no chão da floresta, com os corpos cobertos de gelo. Ela não podia deixá-lo
morrer aqui, sem ela. Isso será um amor egoísta? Se for, ela é culpada. Não
consegue pedir desculpa por o ter salvado, por o ter transformado naquela
criatura com três aves de asas gigantes nas costas.
Inclina-se para Bradwell, agarrando com firmeza o último frasco que
ainda resta, com a fórmula ainda guardada no fundo do bolso, e sussurra:
— Ainda és Puro. É só o interior que conta. Ensinaste-me isso.
Ela salvou-o, quer ele quisesse ser salvo, quer não. Já houve demasiada
perda.
Ele está vivo. Sedge, não. O seu avô, não. A sua mãe, não. O que lhe
diria a sua mãe? É impossível conhecê-la. O que diria o seu avô? Nada.
Limitar-se-ia a apertá-la nos braços, como fizera desde o princípio, quando
ela ainda era apenas uma estranha para ele, uma rapariguinha perdida que
nem sequer falava inglês. Itchy knee sun she go.
Pensa em Partridge. Onde estará agora? Alguma vez acreditara que ela
pudesse ir tão longe? Será que ela vai conseguir regressar?
Por alguma razão que não pode explicar, ela sabe que vão voltar. Há
algo que a chama a casa.
Talvez seja Wilda e todos os outros como ela. Pressia talvez ainda
possa salvá-los.
Pressia já não acredita unicamente neste mundo. É um mito. É um
sonho. E Newgrange é um lugar tocado por outro mundo. Talvez aqui ainda
existam pirilampos; talvez existam algures borboletas azuis, verdadeiras.
Talvez um dia ela veja o seu pai e ele a abrace e ela ouça as batidas do
verdadeiro coração dele. Não está sozinha. Faz parte de uma constelação.
Almas dispersas, almas iluminadas a brilhar intensamente.
— Itchy knee — diz ela para Bradwell.
Os lábios dele tremem. Ele sussurra:
— Sun, she go.