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Julianna Baggott

Fusão
Pures

Editorial Presença
FICHA TÉCNICA

Título original: Fuse


Autora: Julianna Baggott

Copyright © Julianna Baggott, 2013


Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015
Tradução: Fátima Andrade
Design da capa: Anne Twomey e Elizabeth Connor
Fotografias da capa © Kevin Twomey
Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas,
Eda. l.a edição, Lisboa, junho, 2015

Depósito legal n.° 393 703/15


Reservados todos os direitos
para a língua portuguesa (exceto Brasil) à
EDITORIAL PRESENÇA
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730-132 BARCARENA
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www.presenca.pt
Para o meu pai, Bill Baggott.
Obrigada por me teres ajudado a construir mundos,
especialmente o mundo original da minha infância.
Prólogo

Wilda

Deitada numa fina camada de neve, ela vê terra cinzenta tocar em céu
cinzento e sabe que regressou. O horizonte parece arranhado, mas as
marcas de garras são apenas três arvores atrofiadas. Estão alinhadas em
fila, como se estivessem a agrafar a terra ao céu.
Arqueja subitamente, uma reação retardada, como se alguém estivesse
a tentar roubar-lhe a respiração e ela tentasse sugá-la de novo para a
garganta.
Senta-se. Ainda é pequena, não passa de uma rapariguinha de nove
anos. Tem a sensação de ter perdido muito tempo, mas isso não é verdade.
Não propriamente. Não perdeu anos. Talvez apenas dias, semanas.
Aconchega o casaco espesso em torno das costelas. O casaco é
impermeável. Ela toca nos botões prateados. Há um cachecol metido para
dentro do casaco depois de dar duas voltas ao pescoço. Quem a vestiu?
Quem deu duas voltas ao cachecol? Olha para as suas botas, azuis escuras
com atacadores grossos, novas, e para as mãos metidas em luvas, cada
dedo envolto num casulo justo.
Uma madeixa do seu cabelo ruivo escuro repousa sobre o casaco. O
cabelo brilha. Cada fio termina numa ponta grossa e perfeita, como se
tivesse acabado de ser cortado.
Puxa a manga do casaco para cima, expondo o braço. Tal como
acontecia sob a luz forte, o osso já não está torcido. Não há delgadas
cristãs de plástico ao longo da pele. Não está pontilhada de estilhaços.
Nem sequer ostenta um sinal ou uma sarda. A sua pele está branca —
branca como a neve devia ser, talvez ainda mais branca. Ela nunca viu
neve verdadeiramente branca com os seus próprios olhos. As veias finas
formam linhas azuis sob o branco. Ela esfrega a pele macia da parte de
dentro do pulso na face, depois nos lábios. Pele lisa contra pele lisa.
Olha em volta e sabe que eles estão perto; consegue sentir a
eletricidade dos seus corpos a encher o ar. Lembra-se de como foi quando
eles a levaram de entre os outros enjeitados; sem mãe, sem pai, viviam em
alpendres feitos à mão perto dos mercados. Não sabe ao certo por que foi
escolhida, levantada ao ar, agarrada. Um deles envolveu-a nos braços e
partiu a correr pelo meio dos destroços, enquanto os outros saltavam à sua
volta. A respiração dele era ritmada, mecânica, as suas pernas bombeavam
como pistões. Os olhos dela tinham ficado lacrimejantes por causa do
vento, pelo que o rosto anguloso dele permanecera pouco nítido. Nessa
altura, ela não tivera medo, mas agora tem. Eles estão ali, os seus corpos
fortes a zumbir como abelhas gigantescas, mas vão deixá-la. Sente-se como
uma criança num conto de fadas. Nas histórias da sua mãe — pois ela
tivera uma mãe, outrora — havia um caçador que fora encarregado de
levar o coração de uma rapariga a uma rainha malvada, mas não
conseguira obrigar-se a fazê-lo. Outro abrira a barriga de um lobo para
salvar as pessoas que ele comera. Os caçadores eram fortes e bons. Mas
por vezes deixavam rapariguinhas nos bosques, rapariguinhas que depois
tinham de se amanhar sozinhas.
Cai uma neve ligeira. Ela levanta-se devagar. O mundo oscila
bruscamente, como se tivesse ficado mais pesado de repente. Ela cai de
joelhos, depois ouve vozes no bosque; são duas pessoas que se aproximam.
Mesmo àquela distancia, ela consegue ver as cicatrizes vermelhas nos
rostos delas. Uma coxeia. Transportam sacos.
Aconchega o cachecol sobre o nariz e a boca. Tem de ser encontrada.
É uma enjeitada; lembra-se de essa palavra ter sido usada no quarto da luz
forte. «Queremos que ela seja uma enjeitada.» Era uma voz de homem, a
vibrar através de um altifalante. Era ele quem mandava, embora ela nunca
o tivesse visto. Willux, Willux, sussurravam as pessoas — pessoas de pele
lisa, que não estavam fundidas a coisa nenhuma. Deslocavam-se com
facilidade em torno da sua cama, rodeada por suportes de metal de onde
pendiam sacos de líquido transparente que pingava para tubos, por entre
fios e pequenas maquinas que apitavam. Era como ter mães e pais,
demasiados para contar. Ela lembra-se da grande luz, da lâmpada
brilhante, tão forte e próxima que a mantinha quente. Lembra-se da
primeira vez que passara a mão pela pele e de como a sua barriga também
estava lisa quando lhe tocara. O seu umbigo, a coisa que a sua mãe
chamava «umbiguinho» e a que as vozes no quarto se referiam como
cicatriz umbilical, tinha desaparecido.
Enfia a mão por baixo do casaco e da saia e passa-a sobre a barriga.
Como da outra vez, há apenas uma superfície lisa de pele e mais pele.
«Curada», tinham dito as vozes por trás de máscaras brancas, mas
havia nelas preocupação. «Um êxito, apesar de tudo», diziam. Alguns
queriam conservá-la lá para observação.
Ela começa a abrir a boca para chamar os vultos distantes que
transportam sacos, mas a sua boca não se abre completamente, É como se
os seus lábios estivessem parcialmente cosidos de ambos os lados — com
os cantos selados.
E que ia ela dizer? Não consegue lembrar-se de qualquer palavra. As
palavras são um turbilhão indistinto na sua cabeça. Não consegue ordená-
las, nem pronuncia-las. Por fim, chama, mas a única palavra que se forma
na sua boca é «Queremos! » Ela não compreende porquê. Tenta pedir
ajuda de novo, mas volta a gritar: «Queremos! »
Elas aproximam-se, duas mulheres jovens. São recoletoras; dá para
perceber pelas verrugas e cicatrizes que lhes marcam os dedos. Já tocaram
numa quantidade de bolbos, bagas e cogumelos venenosos. Uma delas tem
dois espigões prateados, como dentes de um garfo velho, no lugar de dois
dos seus dedos. É ela que coxeia e o seu rosto, embora queimado num tom
vermelho-escuro, é estranhamente bonito, sobretudo devido aos olhos, que
brilham num tom laranja-dourado, como metal líquido —foram marcados
pelo clarão das próprias bombas. E cega. Agarra no braço da outra
recoletora e diz:
— Quem és tu? — Parece o chamamento de um pássaro. A rapariga
ouvia pássaros no quarto da luz forte, o seu canto gravado e reproduzido
através dos altifalantes invisíveis. A arrulhar, pensa ela. Agora ouve outros
pássaros no bosque. Fazem o tipo de sons que acompanharam toda a sua
infância: não são notas límpidas e doces, como no quarto iluminado, mas
sons ásperos e roucos.
As duas jovens têm medo dela. Será que já perceberam que ela é
diferente?
Quer dizer-lhes o seu nome, mas não se lembra dele. As únicas
palavras que encontra na sua mente são Flor de Fogo. Era o que a sua mãe
lhe chamava, por vezes; nascida do fogo e da destruição, lançara raízes e
medrara. Nunca conheceu o pai, mas está convencida de que ele se perdeu
no fogo e na destruição.
Então o seu nome reparasse no seu cérebro: Wilda. Chama-se Wilda.
Pousa a mão no chão frio. Quer dizer-lhes que é nova. Quer dizer-lhes
que o mundo mudou para sempre. Mas o que diz é:
— Queremos o nosso filho.
As palavras surpreendem-na. Porque terá dito aquilo?
As duas jovens viram-se uma para a outra. A cega diz:
— Que significa isso? O filho de quem?
A outra tem uma cicatriz que lhe desce ao longo da bochecha, como se
lá tivesse ficado fundida uma trança, agora coberta por uma camada de
pele.
— Não é boa da cabeça — comenta ela.
— Quem és tu? — pergunta a cega de novo.
A rapariga responde:
— Queremos o nosso filho. São as únicas palavras que consegue dizer.
As jovens olham subitamente em redor, mesmo a cega. Ouvem as
sinapses elétricas que fazem estalar o ar. As criaturas que a trouxeram
estão irrequietas.
— São muitos diz a que tem a cicatriz da trança, com os olhos
arregalados. Estão a protegê-la. Não os sentes? Foram mandados pelos
nossos Vigilantes para olharem por ela.
— Anjos — diz a cega.
Começam a recuar.
Mas então Wilda arregaça a manga e mostra-lhes o braço — tão
branco que parece brilhar.
— Queremos — diz de novo, lentamente — a devolução do nosso filho.
Parte I
Capítulo 1

Pressia
Traças

O átrio do quartel-general da OSR é pontilhado por um punhado de


candeeiros a óleo feitos à mão, suspensos das traves expostas do teto alto.
Os sobreviventes estão deitados em mantas e colchões, enroscados uns nos
outros para se manterem quentes. Os seus corpos conservam um calor
húmido coletivo, apesar de as janelas altas não terem sido entaipadas. As
molduras nuas estão orladas pelos restos de cortinas de gaze, e rajadas sobre
rajadas de flocos de neve flutuantes entram por elas, como se centenas de
traças tivessem sido atraídas pela promessa de lâmpadas acesas contra as
quais podem esmagar-se.
Está escuro lá fora, mas é quase manhã e alguns dos mais
madrugadores começam a acordar. Pressia ficou outra vez acordada a noite
toda. As vezes, fica tão absorvida pelo seu trabalho que perde a noção do
tempo. Empunha um braço mecânico, que acabou de fazer com os pedaços
de sucata que El Capitan lhe traz: pinças prateadas, cotovelo feito de um
rolamento de esferas, velho fio elétrico para segurar tudo e tiras de couro
cortadas à medida do bíceps delgado do amputado. Trata-se de um rapazito
de nove anos, cujos cinco dedos ficaram fundidos, quase como se ligados
por membranas. Ela sussurra o nome dele com a voz rouca.
— Perlo! Estás aqui?
Abre caminho por entre os sobreviventes, que mudam de posição e
resmungam. Ouve um silvo abrupto e lastimoso.
— Xiu! — diz uma mulher. Pressia vê algo contorcer-se por baixo do
casaco dela, depois a cabeça preta e sedosa de um gato surge ao lado do seu
pescoço. Um bebé chora. Alguém pragueja. Uma canção ergue-se da
garganta de um homem, uma canção de embalar. As meninas fantasma, as
meninas sinistras, as meninas fantasma. Quem pode salvá-las deste
mundo? Deste mundo? O rio é largo, a corrente enrola, a corrente chama,
a corrente enrola... O bebé cala-se. A música ainda funciona, a música
acalma as pessoas. Somos desgraçados, mas ainda somos capazes disto —
brotam canções em nós. Pressia gostaria que os habitantes da Cúpula
soubessem isso. Somos ferozes, sim, mas também capazes de uma ternura
espantosa, de bondade, de beleza. Somos humanos, temos defeitos mas
continuamos a ser bons, certo?
— Perlo? — tenta de novo, aconchegando o braço protético contra o
peito. Por vezes, em multidões como esta, põe-se a procurar o seu pai,
embora não se lembre das feições dele. Antes de morrer, a sua mãe
mostrara-lhe as tatuagens pulsantes que tinha no peito — uma das quais
pertencia ao pai de Pressia, prova de que ele sobrevivera às detonações.
Claro que ele não está ali. Provavelmente não está sequer naquele
continente, ou no que sobrou dele. Mas ela não consegue evitar escrutinar
os rostos dos sobreviventes em busca de alguém que se pareça um pouco
com ela — olhos amendoados, cabelo preto brilhante. Não consegue deixar
de procurar, por muito irracional que seja acreditar que poderá encontrá-lo
um dia.
Acaba de atravessar o átrio e chega a uma parede forrada de cartazes.
Em vez da garra negra, que outrora infundia terror nos sobreviventes,
ostentam o rosto de El Capitam severo, com o queixo duro. Percorre a fila
de cartazes com o olhar, os olhos das fotografias cuidadosamente alinhadas,
o irmão, Helmud, apenas uma pequena intumescência atrás das costas de El
Capitan. Por cima da sua cabeça lê-se: «És capaz e forte? Alista-te. A
solidariedade vai salvar-nos». Foi El Capitan que concebeu os cartazes e
tem orgulho neles. Em baixo, letras pequenas prometem o fim dos Festivais
de Morte — as equipas de soldados da OSR encarregadas de mondar os
fracos, de recolher os mortos no campo inimigo — e do recrutamento
obrigatório aos dezasseis anos. Aos voluntários, El Capitan promete
Comida sem Medo. Medo de que? A OSR tem uma história tenebrosa. As
pessoas eram capturadas e levadas à força, obrigadas a desaprender a ler,
utilizadas como alvos vivos...
Tudo isso acabou. Os cartazes deram resultado. Agora há mais recrutas
do que nunca. Vêm da cidade, esfarrapados e famintos, queimados e
fundidos. Às vezes vêm famílias inteiras. El Capitan disse a Pressia que vai
ter de começar a mandar alguns embora. «Isto não é um estado-providência.
Estou a tentar formar um exército.» Mas por enquanto ela tem conseguido
persuadi-lo a deixá-los ficar.
— Perlo! — sussurra mais uma vez, caminhando ao longo da parede,
fazendo deslizar a mão sobre as bordas onduladas dos cartazes. Onde estará
ele? As cortinas flutuam para dentro da sala. A neve é sugada como se a
grande sala estivesse a respirar fundo.
Uma família suspendeu uma manta de um pau, criando uma pequena
tenda para bloquear o vento. Em pequena, Pressia costumava fazer
pequenas tendas nas traseiras da barbearia incendiada, usando uma cadeira
e a bengala do avô para pendurar um lençol e brincar às casinhas com a sua
boa amiga Fandra. O avô chamava-lhes tendas de cachorrinhos, e ela e
Fandra punham-se a ladrar como cãezinhos. Ele ria tanto que a ventoinha na
sua garganta girava loucamente. Pressia sente uma pontada de perda — pelo
seu avô e por Fandra, ambos mortos, e pela sua infância, que está morta
também.
Fora das janelas há guardas de vigia, postados a intervalos de quinze
metros a toda a volta do quartel-general da OSR, porque as Forças
Especiais, enviadas pela Cúpula, estão a multiplicar-se. Há poucas semanas,
foram avistadas a correr pelo bosque, os seus vultos gigantescos
avolumados por músculos animalescos, a sua pele coberta de algo sintético
e camuflado. São ágeis, quase silenciosos, incrivelmente rápidos e fortes, e
bem armados; as suas armas estão incorporadas nos próprios corpos.
Lançam-se pelos Campos de Destroços, esgueiram-se entre as árvores,
precipitam-se por becos: silenciosos e furtivos, varrem rotineiramente a
cidade. Acima de tudo, querem Partridge, o meio-irmão de Pressia.
Partridge está sob a proteção das mães, juntamente com Lyda, que é Pura
como ele e foi enviada como peão pela Cúpula, e com Illia, que era casada
com o líder máximo da OSR e matou o seu perverso marido. De vez em
quando recebem notícias deles através de relatórios esquemáticos de
soldados da OSR, que temem profundamente as Mães. Um desses relatórios
informava que as Mães estavam a ensinar Lyda a lutar. Esta não passa de
uma rapariga da Cúpula, sem qualquer preparação para sobreviver nos
ermos cinzentos e ainda menos para viver com as Mães, que tanto podem
ser amorosas e leais, como verdadeiramente bárbaras. Como estará ela?
Outro relatório referia que Illia não estava a aguentar-se. Ela levara uma
vida protegida na casa da quinta, ao longo de todos aqueles anos, e agora os
seus pulmões debatiam-se sob o ataque constante da cinza que revoluteava
no ar.
Todos os que estavam presentes nos momentos finais da vida de mãe
de Pressia têm de ter cuidado. São os que sabem a verdade acerca de Willux
e da Cúpula, e talvez tenham algo que Willux ainda
procura: os frascos. Bradwell e El Capitan aproveitaram tudo o que
puderam do bunker da mãe de Pressia, após a morte dela. Agora é Partridge
que tem os frascos e Pressia espera que ele consiga mantê-los em
segurança. Significam muito para Willux — com aqueles frascos, mais um
ingrediente e a fórmula para combinar tudo, o velho poderia salvar a própria
vida. Os frascos da mãe de Pressia são potentes, sim, mas são também
demasiado perigosos e imprevisíveis para terem qualquer utilidade. São
recordações.
Por quanto tempo conseguirão as Mães esconder Partridge? O
suficiente para que o pai dele morra? É essa a grande esperança: que Ellery
Willux morra em breve e Partridge possa tomar o controlo da Cúpula a
partir de dentro. As vezes Pressia tem a sensação de que estão todos
imobilizados à espera, sabendo que algo terá de ceder e só então o futuro
tomará forma.
Freedle bate as asas no bolso da camisola dela. Pressia mete a mão lá
dentro e passa um dedo pelas costas da cigarra robótica.
— Shhh — sussurra. — Está tudo bem. — Não tinha querido deixar a
cigarra sozinha no seu pequeno quarto. Ou seria ela própria que não queria
estar sozinha? — Perlo! — chama. — Perlo!
E, finalmente, ouve-o:
— Aqui! Estou aqui! — O rapazito corre para ela, serpenteando entre
sobreviventes. — Acabaste-o?
Pressia ajoelha-se.
— Vamos ver se serve. — Ajusta a braçadeira de couro em torno do
braço do pequeno, aperta-o com os atilhos feitos de fios elétricos. A mão
fundida dele é capaz de fazer movimentos tamborilantes. Pressia diz-lhe
para para aplicar pressão sobre uma pequena alavanca.
Perlo experimenta. A pinça abre e fecha.
— Funciona. — O rapaz abre e fecha rapidamente a pinça uma e outra
vez.
— Não é perfeito — diz ela —, mas creio que vai ajudar.
— Obrigado! — exclama ele, tão alto que uma das pessoas deitadas no
chão, ali perto, o manda calar. — Talvez possas fazer alguma coisa para ti
própria — sussurra ele, olhando para a cabeça da boneca. — Quero dizer,
talvez haja alguma coisa...
Ela inclina a boneca de modo que os olhos pisquem; um está
ligeiramente colado com cinza, pelo que pisca mais devagar do que o outro.
— Não creio que se possa fazer seja o que for por mim — responde
ela. — Mas eu safo-me.
A mãe do rapaz chama-o num sussurro. Ele vira-se bruscamente,
erguendo o braço no ar em sinal de triunfo, e corre a mostrar-lho.
Então ouve-se um tiro distante, reverberando num eco ondulante.
Pressia agacha-se instintivamente e mete a mão no bolso para proteger
Freedle. Pega-lhe e encosta-o ao peito. A mãe de Perlo puxa o filho para
junto de si. Pressia sabe que deve ter sido um soldado da OSR a disparar
contra sombras mutáveis. Tiros desnecessários não são invulgares. Mas isso
não impede que o peito dela se aperte sobre o coração. É Perlo e a mãe e o
tiro — a mistura de tudo — e ela lembra-se do peso da arma nos seus
braços, de a levantar, apontar, disparar. Os seus ouvidos ainda zumbem e os
seus olhos ainda se turvam com a névoa sanguinolenta. Esta enche-lhe a
visão. O vermelho brota diante de si, como as flores que irrompem nos
Campos de Destroços. Foi ela que puxou o gatilho, mas agora não consegue
recordar se isso foi a decisão certa. Não consegue compreender. A sua mãe
está morta. Morta.
Caminha rapidamente, ao longo das paredes do átrio, os cartazes
sucedendo-se até ao infinito. Pega carinhosamente em Freedle. Quando
chega a uma janela, espreita para fora com cuidado.
Vento. Neve. As nuvens como coágulos de cinza a esgueirar-se pelo
céu. Vê-se uma estrela brilhante (uma raridade) e, mais abaixo, a orla do
bosque, as árvores quebradiças amontoadas e curvadas. Pressia distingue os
uniformes dos soldados e o cintilar ocasional de uma arma, o véu delgado
da respiração deles a subir no ar frio da encosta. Vê o rosto da sua mãe,
deitada no chão da floresta, depois as feições são obliteradas. Foi-se.
Para lá dos soldados, o seu olhar tropeça por entre as árvores. Haverá
algo ali fora, algo que quer entrar? Pressia imagina as Forças Especiais
acocoradas na neve. Ainda precisarão sequer de dormir? Serão parcialmente
criaturas de sangue frio, com a pele coberta por uma fina rede de gelo? Está
tudo tranquilo, estranhamente tranquilo, mas apesar disso sente-se uma
certa energia contida, como a de uma mola. Nevou há três dias, a princípio
apenas uma neve fina e leve, que depois se transformou num verdadeiro
nevão, e agora o relvado está coberto por uma camada de gelo escura e
vidrada, com seis centímetros ou mais de espessura, e ainda há flocos a
pairar no ar.
Pressia sente alguém agarrar-lhe no cotovelo. Vira-se. É Bradwell, as
cicatrizes duplas a subir-lhe pela bochecha, as pestanas escuras, os lábios
cheios gretados pelo frio. Ela olha para a mão dele, vermelha e áspera. Os
nós dos dedos são marcados por cicatrizes e belos. Como podem nós dos
dedos ser belos? É como se Bradwell os tivesse inventado.
Mas as coisas já não são assim entre eles.
— Não me ouviste chamar? — pergunta ele.
Ela tem a sensação de que a voz dele vem de baixo de água. Uma vez,
enquanto a casa da quinta ardia, arranjara coragem para o fazer prometer
que encontraria um lar para eles, mas isso fora apenas porque ela não
acreditava verdadeiramente que aquele momento fosse durar.
— Que se passa?
— Estás bem? Pareces aturdida.
— Tive de levar um braço a um rapaz e houve um tiro. Mas não foi
nada. — Pressia não admitiria que vira uma explosão de vermelho intenso
diante dos seus olhos, tal como não confessaria o seu medo de se apaixonar
por ele. Isso é algo que ela sabe ser verdade: todos aqueles a quem jamais
amou morreram. À luz desse facto, como poderia permitir-se amar
Bradwell? Neste preciso momento está a olhar para ele e as palavras
ressoam como tambores na sua cabeça: Não o ames. Não o ames,
— Estiveste toda a noite a pé? — pergunta ele.
— Sim. — Ela apercebe-se de que o cabelo dele está todo revolto e
eriçado. Ambos têm a capacidade de desaparecer durante dias. Bradwell
deixa-se devorar pela sua obsessão com as seis caixas negras, que
emergiram dos escombros da casa da quinta, e encafua-se dias a fio na
antiga morgue, onde agora vive, na cave do quartel-general. Pressia deixa-
se absorver pela feitura das próteses. Bradwell continua apostado em
compreender o passado, ao passo que ela se dedicou a ajudar as pessoas
aqui e agora.
— Também passaste a noite em branco?
— Hum, sim. Acho que sim. Já é manhã?
— Quase.
— Então, estive, sim. Fiz progressos com uma das caixas negras. Uma
delas mordeu-me.
— Mordeu-te? — Freedle remexe-se nervosamente na sua mão.
Ele mostra-lhe a marca de uma pequena picada no polegar.
— Não foi com força. Talvez tenha sido apenas um aviso. Agora gosta
de mim, acho eu. Começou a seguir-me por toda a parte na morgue, como
um cãozinho.
Ela começa a caminhar pelo corredor, passando por mais cartazes de
recrutamento de El Capitan, e Bradwell segue-a.
— Desmontei-as e voltei a montá-las. E contêm informações acerca do
passado, tanto quanto posso avaliar, mas não estão preparadas para
transmitir. Não são espiões da Cúpula, nem nada do género, coisa que eu
tinha de tirar a limpo. Se alguma vez tiveram esse tipo de aptidões,
entretanto perderam-nas. — A tirada de Bradwell é entusiástica, mas
Pressia não está interessada nas caixas negras. Está cansada do desejo de
Bradwell em provar as teorias da conspiração dos seus pais acerca da
Cúpula, da versão dele sobre a verdade, a História-Sombra e tudo o mais.
— E esta, não sei explicar... esta é diferente. É como se me conhecesse.
— O que fizeste para ela te morder?
— Estava a falar.
— Acerca de quê?
— Não me parece que queiras saber.
Ela detém-se e fita-o. Ele enterra as mãos nos bolsos. Os pássaros nas
suas costas batem as asas, agitados.
— Claro que quero saber. Foi assim que conseguiste abrir a caixa, não
foi? É importante.
Ele inspira fundo e retém a respiração por um momento. Baixa o olhar
para o chão e encolhe os ombros.
— Pronto, está bem — diz. — Estava a falar de ti.
Ela e Bradwell nunca falaram sobre o que tinha acontecido na casa da
quinta. Ela lembra-se da maneira como ele a abraçou, da sensação dos
lábios dele nos seus. Mas esse tipo de amor não pode sobreviver. O amor é
um luxo. Ele está a olhar para ela, com a cabeça inclinada, os olhos fixos
nos seus. Ela sente o calor alastrar pelas profundezas do seu corpo. Não o
ames. Não consegue levantar sequer o olhar para ele.
— Oh! — faz ela. — Estou a ver.
— Não, não estás. Ainda não. Vem comigo. — Bradwell leva-a por
outro corredor, depois vira-se. Parada junto à porta, esperando
pacientemente, está uma caixa negra. De facto, é mais ou menos do
tamanho de um cão pequeno, do tipo que o avô dela chamava um terrier, do
tipo que gosta de matar ratazanas.
— Disse-lhe para ficar e ela ficou — diz Bradwell. — Chama-se
Fignan.
Freedle soergue-se da palma da mão de Pressia para ver por si mesmo.
— Será que sabe sentar-se e dar apertos de mão? — pergunta Pressia.
— Acho que sabe muito mais do que isso.
Capítulo 2

Partridge
Besouro

A cave cheira a água da chuva e mofo. Esporos vermelho-vivo


pontilham as paredes e o chão de terra batida. As paredes estão forradas
com os frascos de legumes estranhos das Mães, conservados em vinagre. A
Mãe Hestra, fortemente armada, patrulha lá em cima. Cada passo dela
recorda a Partridge que está fechado num subterrâneo. Às vezes tem a
sensação de que os passos dela são batidas cardíacas e que ele está preso
entre as costelas de uma Besta gigantesca.
Não vê Lyda há seis dias. E difícil calcular o tempo, estando sozinho e
sempre debruçado sobre os mapas da Cúpula que está a desenhar, apenas
com uma fresta da porta da adega para medir a luz do dia, interrompido
ocasionalmente para as magras refeições fornecidas pelas Mães: caldos
pálidos, nódulos de tubérculos brancos e, de vez em quando, um cubo de
carne que se come numa só dentada.
Diz a si próprio que a superfície não é melhor — não é mais do que os
destroços abandonados dos subúrbios. Mas, por Deus, sente-se preso numa
armadilha, e ainda pior do que esse sentimento é o tédio. As Mães deram-
lhe um velho candeeiro, pelo que ele tem luz suficiente para trabalhar, e
forneceram-lhe várias folhas de papel grandes, lápis e uma placa de
contraplacado, que ele pousou no chão e utiliza como estirador. Está a
desenhar mapas, tentando recordar todos os detalhes das plantas que
memorizou para sair da Cúpula, tentando reproduzir tudo o mais depressa
possível. Mas hora após hora, minuto após minuto, passo após passo... o
tédio torna-se insuportável.
A verdade é que é obrigado a apoiar-se na proteção das Mães, pelo
menos até se decidir por um plano. Parte de si quer esperar que o pai morra.
O velho tem vindo a enfraquecer. Décadas de melhorias cerebrais
provocaram-lhe paralisia e deterioração da pele. A mãe de Partridge disse-
lhe que isso eram sintomas de Degeneração Celular Rápida. Não tardará
que o organismo do pai entre em falência e isso pode ser o momento ideal
para Partridge regressar. E provável que a Cúpula o respeite como um
legado do seu pai. Afinal de contas, este governou como um monarca.
Mas a outra parte gostaria de derrubar o pai ainda em vida, derrotá-lo
pelos motivos certos. As pessoas da Cúpula não merecerão saber a verdade
sobre o que o seu pai fez? Se Partridge conseguir transmitir-lhes essa
verdade e explicar que há outra forma de viver — uma na qual não se
limitam a seguir as ordens do seu pai como carneiros, uma na qual não
veem os sobreviventes como desgraçados maldosos, que merecem o seu
destino — escolhê-la-iam de preferência ao reinado do seu pai. Partridge
está seguro disso.
Tem de arranjar tempo para traçar um plano com Lyda. Parece
inevitável que regressem ambos, juntos.
Entretanto, concentra-se em terminar os mapas, suportando a sua
prisão solitária, o impacto brutal do tédio, o bolor e os esporos, a comida
racionada, e, despojado de todas as armas, a terrível sensação de precisar
das Mães, que o tratam como uma criança e, simultaneamente, como um
perigoso criminoso. Ainda o consideram como inimigo, especialmente por
ele ser oriundo da Cúpula; é um Morte, ou seja, um homem, mas, pior
ainda, é um homem da Cúpula — indigno de confiança.
As Mães estão interessadas nos mapas, motivo pelo qual lhe deram os
materiais de desenho, mas Partridge quer levá-los a El Capitan. É o único
dom que tem para dar. Talvez nunca venham a servir para nada: quais são as
probabilidades de El Capitan vir jamais a formar um exército viável, capaz
de derrubar a Cúpula? Ainda assim, é algo com que Partridge pode
contribuir. Enquanto trabalha nos mapas, deixa que a sua mente percorra
tudo o que a sua mãe lhe disse antes de morrer. Anotou todas as palavras
que conseguia recordar e tudo lhe parece carregado de informação,
codificado.
Pousa o lápis, abre e fecha o punho. Está com cãibras na mão, até
mesmo no dedo mindinho parcialmente amputado, que cicatrizou num coto
vermelho e lustroso. Esfrega os dedos, sentindo a suavidade do soro ceroso
em que as Mães o tinham feito banhar-se, a título de preparação para uma
viagem próxima. O soro, extraído de uma árvore de cânfora e cera de
abelha, destina-se a reter e disfarçar o seu odor. A sua pele está rígida e
lustrosa. Há relatos de que forças especiais
possuem um olfato excelente, tal como acontece com algumas das
outras Bestas e Poeiras. As Mães nunca deixam Partridge e Lyda
permanecer no mesmo sítio por muito tempo. São protetoras, sim, mas além
disso a Mãe Hestra disse a Partridge que não podem correr o risco de que as
Forças Especiais se aproximem demasiado dele, pondo-os a todos em
perigo. Uma vida nómada é a melhor solução.
Lyda também terá sido banhada no soro? Partridge vive no medo de
que, um dia, ela não o acompanhe na viagem para o lugar seguinte. Até
agora, tem vindo sempre. Ele tenta imaginar a sensação da pele dela coberta
por aquela cera.
A caixa de música da sua mãe repousa no chão de terra ao seu lado. A
pequena caixa de metal que se encontrava na gaveta dela nos Arquivos de
Perda Pessoal; Bradwell carbonizara-a na cave do talho, mas certificara-se
de que ela lhe era devolvida. Bradwell é mais sentimental do que Partridge
julgava e tem um ponto fraco no que se refere a coisas deixadas pelos pais.
Partridge limpou a fuligem da caixa, mas as engrenagens permanecem
enegrecidas. Visto todas as peças serem metálicas, ainda funciona, embora
agora esteja desafinada e tenha o som um pouco abafado. É a única coisa
que as Mães lhe permitiram guardar, talvez por elas próprias serem mães.
Pega nela, dá-lhe corda e deixa-a tocar, as notas a vibrar no ar húmido e
parado. Tem saudades da mãe. Sentiu a falta dela ao longo de uma parte tão
grande da sua infância que se tornou verdadeiramente bom nisso. Talvez
seja essa a razão pela qual é tão bom a sentir a falta de Lyda. Anos de
prática.
Quando as notas se extinguem, olha para o mapa mais recente, uma
secção transversal dos três níveis superiores da Cúpula (Superior Um,
Superior Dois e Superior Três) e dos três pisos subterrâneos chamados Sub
Um, Sub Dois e Sub Três, que incluem uma área para os gigantescos
geradores de energia. O piso térreo é designado por Zero; alberga a
academia, onde ele passava a maior parte do tempo.
As saudades da academia perseguem-no implacavelmente. Não devia
desejar estar de novo no seu quarto da residência de estudantes, a sair com
Hastings, a suplicar apontamentos a Arvin Weed, a procurar evitar o
rebanho — um grupo de rapazes que essencialmente o detestavam —, mas
a verdade é que deseja. Até tem saudades das aulas. Pensa em Glassings, o
seu professor de História, no momento em que ele o puxou de lado no
corredor, à porta da sala de baile. Partridge preparava-se para ir roubar a
faca, portanto, em retrospetiva, aquele fora o momento em que podia ter
voltado atrás, prosseguindo com a vida que lhe era familiar.
Mas as coisas não se haviam passado assim. De algum modo, fora
parar onde estava agora, impotente.
A ironia é que tem os frascos, o fruto do trabalho de toda a vida da sua
mãe. O seu pai matara por eles: o avô adotivo de Pressia, bem como o seu
próprio filho mais velho e a mulher que alegadamente amava, a mãe de
Partridge.
Os frascos recordam-lhe o que a mãe queria que ele se tornasse: um
revolucionário, um líder.
Partridge dirige-se para os frascos de conserva das Mães e pega num, o
terceiro a contar do canto. Por baixo há um buraco estreito e profundo, de
onde fogem alguns escaravelhos. O jovem mete as mãos no buraco e retira
de lá um pequeno fardo, muito bem atado e ligeiramente coberto de terra
húmida. Leva-o para a sua esteira e desembrulha os frascos da sua mãe,
quatro ao todo. Estão ligados a seringas com tampas de plástico rijo sobre
as agulhas. Depois de a quinta arder, Bradwell e El Capitan tinham ido
buscá-los ao bunker da sua mãe, juntamente com tudo o mais que pudesse
ter utilidade; computadores, rádios, medicamentos, provisões, armas,
munições. Feito isso, pareceu-lhes inteligente dividir o grupo em dois: El
Capitan, Helmud, Bradwell e Pressia tinham ido para o quartel-general;
Lyda, Partridge e Illia haviam partido com as Mães, pois estas eram as mais
capazes de manter Partridge escondido e fortemente guardado. Se um dos
grupos fosse encontrado pelas Forças Especiais, pelo menos os outros
poderiam continuar. Bradwell e El Capitan tinham ficado com a maior parte
do material da mãe de Partridge, mas este ocultara os frascos por baixo do
blusão.
Observa cada frasco. São frios ao toque. A sua mãe tinha-o levado ao
Japão quando ele era bebé, a pedido do seu pai, pois os japoneses estavam
mais avançados do que quaisquer outros a nível da criação de
nanotecnologia biomédica para reparar lesões provocadas por detonações,
sobretudo no que se referia a células autorregeneradoras, que entrariam no
corpo para o reparar.
Desde muito jovem que o pai de Partridge se submetia a
melhoramentos cerebrais, a ponto de o seu cérebro se iluminar com o
disparo das sinapses, e agora apresenta os sintomas característicos da
Degeneração Celular Rápida: paralisia e deterioração da pele, à qual se
seguiria falência dos órgãos e, por fim, morte. Não é o único. Partridge
lembra-se como, na Cúpula, qualquer pessoa que esteja doente, velha ou
cansada, é rapidamente levada para uma ala isolada do centro médico. Nas
últimas semanas, ele compreendera uma verdade muito
tenebrosa: a Degeneração Celular Rápida acabará por afetar também as
Forças Especiais e todos os rapazes da academia que foram sujeitos a
melhoramentos, incluindo, um dia, o próprio Partridge.
Antes de morrer, a sua mãe dissera-lhe que, se o conteúdo daqueles
frascos fosse emparelhado com outra substância, em conformidade com
uma fórmula (que entretanto desaparecera), o produto resultante seria capaz
de reverter a Degeneração Celular Rápida. Nessa altura, ele estava
demasiado assoberbado por emoções — não via a mãe desde pequeno —
para compreender inteiramente o que ela estava a dizer. Mas agora desejaria
ter estado com as ideias mais claras, mais racional. Desejaria ter feito mais
perguntas.
A sua mãe mostrara-lhe uma lista de habitantes da Cúpula que estavam
do lado dela, incluindo os pais de Arvin Weed, o pai de Algrin Firth, e
mesmo Durand Glassings. Essas pessoas integram uma rede no interior da
Cúpula. Quando Lyda fora enviado para o exterior, como isca para atrair
Partridge, um dos membros dessa rede segredara-lhe uma mensagem: Diz
ao cisne que estamos à espera. Quando Partridge contara isso à mãe, ela
sussurrara: «O Cygnus», coisa que ele continua sem compreender.
Ela dissera-lhe que o líquido daqueles frascos continha um potente
material gerador de células. Mas dissera também que o soro era difícil de
controlar, imperfeito, perigoso.
Partridge levanta um dos frascos contra a luz. Desejaria saber
exatamente em que sentido é aquele líquido difícil de controlar, imperfeito,
e perigoso. O que aconteceria, por exemplo, se tocasse a pele de uma
criatura viva? Partridge quer testá-lo. A partir do momento em que essa
ideia lhe entra na cabeça, não consegue livrar-se dela.
Antes de mais, precisa de algo vivo para testar o soro.
Um escaravelho.
Dirige-se de novo para os frascos de pickles e pega rapidamente num
deles. Mais uma vez, alguns escaravelhos fogem a correr, mas ele consegue
apanhar um com a mão em concha. O inseto tem as costas verdes e
lustrosas, e a cabeça de um tom vermelho-vivo, com pinças que parecem
chifres espinhosos. As suas patas abrem-se em leque, nodosas e cheias de
espinhos. Partridge segura-o até o sentir a fazer-lhe cócegas nos dedos.
— Lamento — sussurra para a criaturinha. — Lamento mesmo.
Leva-o para a placa de contraplacado, abre a caixa de música da mãe,
mete o inseto suavemente lá dentro e fecha a tampa. Ouve o escaravelho a
raspar dentro da caixa. Gostaria que Arvin Weed, o jovem génio da
academia, ali estivesse. Deus, como Partridge lamenta não ter prestado
atenção nos laboratórios.
Pega numa das seringas, destapa-a e enche-a com líquido de um dos
frascos. A agulha brilha. Partridge sabe que isso significa que vai
desperdiçar uma gota. Só uma, diz a si próprio. Nada mais.
Vira a caixa de música ao contrário. O escaravelho começa a correr
pelo contraplacado, mas Partridge prende-o entre os dedos e segura-o com
delicadeza.
Enquanto as patas se agitam sem ir a lado nenhum, uma cauda aguçada
desenrola-se de baixo das asas, mostrando um ferrão oscilante. Os olhinhos
pretos e redondos da criatura parecem molhados. Partridge olha para a
agulha e começa a premir o êmbolo quando sente a picada. O indicador e o
polegar, que prendem as costas blindadas do escaravelho, ficam
rapidamente cobertos de um formigueiro escaldante. A sensação de
queimadura sobe-lhe pela mão e o choque fá-lo gritar, mas não larga o
escaravelho.
Aproxima a agulha do inseto o mais depressa que pode, mas a sua mão
está tão rígida devido à dor que acaba por o soltar. A criatura corre pela
superfície do contraplacado, mas não antes de uma gota de líquido deslizar
da agulha, aterrando, espessa e húmida, numa das suas patas traseiras. A
pata fica flácida, sob o peso do líquido, e o escaravelho começa a rastejar.
O grito de Partridge alertou a Mãe Hestra, cujos nós dos dedos batem
na porta da cave:
— Que foi esse barulho?
— Nada! — Partridge embrulha rapidamente as seringas, a mão
queimada, agora cheia de manchas, arrasta-se para o frasco de pickles,
levanta-o e enfia as seringas embrulhadas no buraco. O escaravelho
desaparece na escuridão por baixo da placa de contraplacado.
A porta da cave abre-se com estrondo, de par em par. A Mãe Hestra
recorta-se contra uma luz fraca.
— Que barulho foi esse aqui? — indaga.
— É apenas um cântico da academia. Isto aqui em baixo às vezes é
demasiado silencioso. — Partridge começa a massajar a mão dorida, mas
depois detém-se. Não quer enfrentar mais perguntas.
A Mãe Hestra tem um corpo espesso. O seu filho, Syden, de cinco
anos, está permanentemente fundido à sua perna. Veste peles cosidas umas
às outras e ajustadas à forma do seu corpo, com uma abertura para a cabeça
inchada do rapaz imediatamente acima da anca. A maior parte das Mães são
Agrupadas, fundidas aos filhos, e Partridge nunca
conseguiu habituar-se a isso. Durante as Detonações, as Mães estavam
a segurar os filhos no colo, ou a protegê-los dos clarões intensos, curvadas
sobre eles, a cuidar deles. Partridge não consegue imaginar estar atrofiado
naquela forma, sem nunca crescer, para sempre preso dentro dos limites do
corpo da mãe. O rosto de Syden começou a modificar-se. Irá envelhecer
assim?
A Mãe Hestra franze o sobrolho a Partridge. Uma das suas bochechas
está cauterizada com palavras — algo escrito de trás para a frente, que ficou
queimado na sua pele durante as Detonações — a impressão de uma
tatuagem enegrecida. Partridge não se permite olhar para ela tempo
suficiente para tentar lê-la. Não quer ser rude.
— Bem, para com isso — ordena ela.
— Já ia preparar-me para dormir.
— Ótimo. Partimos de manhã. Venho chamar-te cedo.
— A Lyda e a Illia também vêm? — Ele preferia que Illia não os
acompanhasse. É louca. Não que ele a censure por isso. Ela vivia fechada
na casa da quinta, maltratada pelo marido, forçada a esconder as suas
cicatrizes sob uma meia concebida para parecer uma segunda pele.
Ultimamente recomeçou a envolver-se em faixas de pano: por ter vergonha
da sua pele? Ou simplesmente por hábito? Assassinara o marido, cravando-
lhe um bisturi nas costas, e isso afetara-lhe a cabeça. Lyda é a única que ele
quer ver. Lyda.
— A Lyda, sim. A Illia? Não sei — responde Mãe Hestra.
— Para onde vamos? — pergunta Partridge.
— Não posso dizer. — E, com isso, a Mãe Hestra desaparece da vista
dele. A porta da cave bate. A notícia deixa Partridge ofuscado por um
segundo. Acabou-se a prisão. Vai ver Lyda no dia seguinte. Tudo será
diferente em breve; está quase. Ele sente-o. Deus, como tem saudades dela!
É então que ouve um raspar, baixo e pesado. Depois um barulho que
lembra uma pá na terra. Mas também não é isso. Um arranhar intenso.
Tem a sensação de que não está sozinho.
A caixa de música da sua mãe está tombada no chão. Partridge estende
a mão para a apanhar e vê um comprido espigão preto numa haste delgada:
é a perna de um inseto, de um inseto gigantesco, que emerge de baixo do
contraplacado. É demasiado grande para ser a pata do escaravelho. E
continua a ouvir-se o raspar.
Partridge pega na placa de contraplacado e começa a levantá-la. A pata
encolhe-se, desaparece.
O jovem respira fundo e dá um tal puxão ao contraplacado que este se
vira. Por vezes, ele esquece-se de que foi codificado com força suplementar.
Lá está o escaravelho. A cauda bate na própria carapaça, as asas
contorcem-se violenta e inutilmente, raspando uma na outra enquanto a
criatura se esforça por respirar.
Tem uma pata espinhosa, grossa, enorme.
O líquido no frasco resultou. As células da pata do inseto não estavam
feridas, pelo que, com uma velocidade incrível, em vez de repararem uma
lesão, as células tinham construído sobre tecido saudável: até os espigões
esculpidos daquela pata traseira se haviam ordenado perfeitamente. E, por
qualquer razão, aquilo parece familiar a Partridge: a delicadeza de
reconstruir um pequeno membro. Já teria ouvido falar de algo semelhante?
Não quer tocar no escaravelho. A sua mão ainda formiga de calor.
Difícil de controlar, imperfeito, perigoso. Era o que a sua mãe dizia do soro.
A pata do animal estremece incontrolavelmente, cavando um sulco no chão
de terra.
E Partridge é invadido por uma estranha sensação de poder. Fez com
que aquilo acontecesse apenas com uma minúscula gota de líquido. Tem a
cabeça a latejar e um zumbido nos ouvidos, e pensa no poder do seu pai.
Que terá o velho sentido quando as Detonações rebentaram: explosão após
explosão de luz ofuscante a pulsar em torno da Terra?
Meu Deus, pensa Partridge. E se o seu pai tiver gostado do poder de
tudo aquilo? Se esse poder o tivesse feito sentir como se estivesse
iluminado? Se tivesse sido como aquele momento infinitesimal, ampliado
exponencialmente, infinitamente, dentro dele?
As asas do escaravelho apertam-se contra o seu corpo. A perna contrai-
se em mais alguns espasmos, depois o inseto enterra a sua poderosa pata no
chão, como uma faca, e empurra o corpo para cima. As patas mais pequenas
agitam-se por baixo dele e a perna gigantesca contrai-se e estica-se. O
escaravelho eleva-se no ar, de um salto, e bate as asas. Mas a perna é
demasiado pesada para que as asas a suportem. A criatura cai ao chão, mas
a pata gigantesca amortece a queda. Contrai-se de novo, salta para a frente,
bate as asas, aterra, contrai-se, salta para a frente...
O escaravelho já não é o que era há instantes.
É uma nova espécie.
Capítulo 3

El Capitan
Novo

Tem estado a nevar intermitentemente, e agora começou de novo. A


neve cai tremulante do céu, pairando com leveza entre as árvores escuras e
o mato, pousando nos galhos retorcidos. Muitos ramos ostentam espessas
camadas de pelo naquele outono frio. El Capitan passa os dedos pelo galho
fino de um rebento e lá está: não é um revestimento piloso de algo vegetal.
Não, é o tipo de pelo felpudo que se encontra na barriga de um gato jovem.
— Um dia vão crescer-lhes patas e põem-se a andar — comenta para o
irmão, Helmund, o peso para sempre enraizado nas suas costas.
— Põem-se a andar — sussurra Helmud. Espreita por cima de um dos
ombros de El Capitan, depois oscila bruscamente para o outro. Hoje parece
ansioso.
— Para de te remexeres — ordena El Capitan.
— Remexer — diz Helmud.
El Capitan deu a Helmud coisas para ocupar as mãos. Helmud sempre
teve mãos nervosas. Veio a revelar-se que o irmão estava a entrançar em
segredo um laço para matar El Capitan, mas no fim acabara por lhe salvar a
vida. Depois disso, El Capitan concluíra que tinha de confiar em Helmud.
Não tinha alternativa. Para manter as mãos do irmão ocupadas, El Capitan
dera-lhe um pequeno canivete e objetos para talhar.
— Tens a certeza de que queres fazer isso? — perguntara-lhe Bradwell
certo dia.
El Capitan replicara:
— Claro que tenho a certeza. Ele é meu irmão!
Mas o canivete talvez seja apenas um teste, como se dissesse a
Helmud, Vai em frente. Queres matar-me? Tens a certeza? Eu facilito-te as
coisas. Por vezes, quando El Capitan se inclina para frente, uma pequena
revoada de lascas de madeira flutua para o chão. Hoje Helmud está a talhar
loucamente.
El Capitan senta-se na raiz larga de uma árvore e pousa a espingarda
encostada às suas botas. Saíram sem tomar o pequeno-almoço e agora ele
está com fome. Abre um pacote de papel encerado e desembrulha uma
sanduíche feita com cantos de pão. Prefere os cantos, gosta de sentir a rijeza
adicional nos dentes. Diz a Helmud:
— São horas de comer, irmão.
El Capitan está habituado às constantes repetições de Helmud;
geralmente não passam de um eco sem sentido. Às vezes, porém, as
palavras têm significado. E desta vez, Helmud repete a frase de forma
ligeiramente diferente:
— São horas de comer irmão.
Como se tencionasse devorar El Capitan. É uma piada, destinada a
mantê-lo atento.
— Então, então — diz El Capitan —, achas isso simpático, Helmud?
Achas?
— Achas? — ecoa Helmud.
— Eu nem sequer devia partilhar esta sanduíche contigo. Tens noção
disso? — Antes de começarem a dar-se com Pressia, El Capitan não teria
partilhado, mas entretanto modificou-se um pouco. Sente isso em todo o seu
corpo, como se a mudança alastrasse célula a célula. Pergunta-se se Helmud
também dará por isso, visto partilharem tantas células. Não é que El
Capitan tenha ficado meigo de repente. Não, continua a sentir uma fúria
ardente, quase constante, no peito. É mais como ter um propósito, a
sensação de que há algo que vale a pena proteger. Será a própria Pressia?
Talvez tenha começado com ela, mas não, é algo maior do que isso.
El Capitan arranca um pedaço do pão e da pequena fatia de carne
entalada entre as duas metades do canto. Estende-o a Helmud. Tem de
partilhar com Helmud. Os seus corações batem com o mesmo sangue e, se
El Capitan vai ajudar a derrubar a Cúpula — e gostaria muito de viver para
ver esse dia —, então precisa de ter Helmud do seu lado e de boa saúde. Ser
cruel para Helmud é o mesmo que ser cruel para si próprio. E talvez seja
precisamente essa a questão. El Capitan odiava-se a si mesmo antes de
conhecer Pressia, mas agora esse sentimento abrandou um pouco. Dantes
pensava em si próprio como uma criança abandonada. Primeiro pelo pai,
um piloto que fora expulso da força aérea por ter enlouquecido. El Capitan
tentara ser como ele, aprendera tudo o que podia acerca de pilotar aviões,
como se isso o tornasse digno de ter um pai. Depois a sua mãe morrera. Ao
que parecia, ele não era digno de ter pais de todo. Enlouquecera ele próprio
um pouco, mas não é obrigado a ficar assim para sempre. Certo? Pressia vê
nele algo de valor e é possível que ela tenha razão.
— Estás a ver como eu sou simpático? — pergunta a Helmud.
— Como eu sou simpático — repete Helmud.
El Capitan partira de manhã com a intenção de seguir os impulsos
elétricos. Não lhe agrada a forma como parecem estar a rondar cada vez
mais perto do quartel-general. Têm conseguido escapar-lhe. Mas agora tem
a certeza de sentir alguma coisa. Embora não seja capaz de ler os impulsos,
sabe quando se deslocam a uma frequência mais elevada, o que significa
que um deles emitiu um apelo qualquer e os outros estão a responder.
Embrulha o resto da sanduíche num pano, enfia-a no seu saco e
encaminha-se na direção dos impulsos. Vê rastos na neve, cada pegada com
um padrão de linhas cruzadas. Alguns vultos fugazes em corrida, mais à
frente. Segue-os a uma distância respeitosa.
Chega a uma clareira e para. Alguns elementos das Forças Especiais
estão agrupados no centro. São belos e fortes, quase majestosos. Uns são
corpulentos, outros musculosos. Não parecem afetados pelo frio, como se as
suas finas segundas peles estivessem reguladas para servir de isolamento.
Possuem um excelente olfato. Um levanta a cabeça e dilata as narinas,
cheirando El Capitan e Helmud, depois fixa os olhos nos de El Capitan, que
não se mexe mas também não fica rígido. Não quer mostrar medo.
Ao longo das últimas semanas tem notado que aquele novo grupo não
é tão robusto como o que ele e Helmud combateram no bosque, com
Bradwell e Lyda. Não parecem completamente formados, como se as
alterações nos seus corpos tivessem sido feitas à pressa. Não são tão ágeis.
Por vezes cambaleiam. Não aparentam tanto à-vontade com as armas
incorporadas nos braços. Quando se agrupam assim, é como se precisassem
uns dos outros, de proximidade — como seres humanos.
As outras três criaturas também olham para Helmud e El Capitan,
alertadas de algum modo impercetível pelo primeiro. Nunca lhe dizem uma
palavra, embora ele saiba que são capazes de falar. É como se aceitassem a
sua presença como fazendo parte do meio ambiente, tal como o guincho
agudo de um ocasional pássaro de asas deformadas e bico de metal, ou o
grito semelhante ao de uma criança humana emitido por um animal
apanhado numa das armadilhas de El Capitan. Não é ele quem procuram.
Não é por isso que ali estão. Querem Partridge. El Capitan tem a certeza
disso e receia que possam estar também ligados a Pressia; afinal, ela tem o
sangue do irmão e pode ser útil à Cúpula, sobretudo como isco para atrair
Partridge.
El Capitan gostaria de falar com eles. Sabe que a lealdade deles à
Cúpula está programada no seu organismo, mas já houve um que se
rebelou, durante a luta junto ao bunker. o irmão de Partridge, Sedge. São
humanos, ao nível mais profundo. Ele sente que estabelecer uma ligação,
por pequena que fosse, ajudaria. Tem estado à espera do momento certo.
Sai das árvores e ajoelha-se na neve, o frio e a humidade a penetrar
através das calças. Abre os braços, num gesto de súplica. Baixa a cabeça,
numa espécie de vénia.
Ouve o restolhar de passos, o estalar dos galhos. Levanta os olhos, mas
as criaturas desapareceram.
Senta-se nos calcanhares.
— Merda.
— Merda — ecoa Helmud.
— Não fales assim — diz El Capitan ao irmão. — É um mau hábito.
Põe-se em pé, mas depois ouve um som atrás de si. Ergue lentamente a
espingarda ao peito. Vira-se.
Uma criatura solitária das Forças Especiais está no meio do caminho, a
não mais de seis metros de distância. El Capitan nunca o tinha visto. Não
está a emitir impulsos baixos, que reverberam noutros elementos das Forças
Especiais presentes na área. Interessante. Talvez não queira que saibam
onde está.
É alto e o soldado das Forças Especiais mais magro que El Capitan
jamais viu. De facto, o seu rosto ainda retém a sua humanidade, em vez de
esta ser visível apenas nos seus olhos, que têm sempre uma aparência
humana nas Forças Especiais. Este possui delicadeza no queixo e tem o
nariz e as narinas pequenos. Os seus ombros e coxas são robustos. mas não
demasiado volumosos. Tem duas armas embutidas nos antebraços, com o
verniz ainda lustroso: nunca foram utilizadas.
É mesmo muito novo.
Observa El Capitan com desconfiança.
El Capitan levanta as mãos lentamente.
— Ouve, vamos fazer isto devagar e com calma.
— Com calma — diz Helmud, remexendo-se nervosamente nas costas
do irmão.
— O que queres? — pergunta El Capitan.
A criatura espeta a cabeça, fareja o ar.
— Queres algo para comer? Se soubesse que vinhas, teria embrulhado
mais comida.
A criatura abana a cabeça. Baixa-se, limpando neve do caminho e
expondo a terra nua e lívida. Endireita-se e levanta o pé. Um punhal largo
salta da ponta da bota. El Capitan recua, perguntando-se se irá ser
esventrado, mas então a criatura crava o punhal no solo, levanta o queixo,
alongando o olhar através das árvores, e começa a gravar uma palavra. El
Capitan tem quase a certeza de que a criatura tem escutas nos olhos e nos
ouvidos, como acontecera com Pressia outrora. Já jogou este jogo. A
criatura quer dizer-lhe algo sem que fique registado.
Por baixo da palavra, a criatura parece estar a desenhar um símbolo
qualquer.
Mas está tudo demasiado longe para El Capitan ler. Além disso, está de
pernas para o ar.
A criatura recua, dá algumas passadas em direção à floresta, depois
salta, agarrando-se a um tronco de árvore, cuja metade superior desapareceu
e cujo interior foi completamente consumido por insetos.
El Capitan dá um passo hesitante em frente. Olha para a criatura, que
continua com o olhar fixo nas árvores. Contorna a palavra e lê-a para si
próprio: Hastings. Será que é um nome? Um lugar? Pensa na palavra
batalha. Hastings não tem algo a ver com uma guerra? El Capitan sabe que
não deve dizer a palavra em voz alta. Observa o símbolo. Trata-se de uma
cruz, a forma como a Cúpula terminou a sua Mensagem, enviada logo a
seguir às Detonações em pequenas tiras de papel caídas do céu. Uma cruz
com um círculo no meio.
— Não sei o que ele quer de mim — diz El Capitan a Helmud.
O soldado salta da árvore e começa a correr. Mas depois para.
— Quer que o sigamos — diz el Capitan.
— Sigamos — repete Helmud.
El Capitan acena com a cabeça e segue o soldado pelo bosque durante
quase quilómetro e meio, sempre num passo rápido. Por fim, chega a uma
clareira que se abre sobre a cidade, ou sobre o que era dantes a cidade.
Daquela altura, é fácil ver como foi reduzida aos Campos de Destroços,
mercados negros, carcaças de velhos edifícios, uma grelha de becos e ruas
sem nome.
El Capitan olha em volta, em busca do soldado. Este desapareceu. El
Capitan está sem fôlego. O coração de Helmud também bate depressa, mas
talvez apenas porque o do irmão bombeou o sangue com tanta força.
— Raios — resmunga El Capitan. — Por que me terá ele trazido aqui?
— Trazido aqui? — ecoa Helmud.
Dali também se avista a Cúpula, uma curva branca na colina distante, a
cruz a cintilar no céu lívido.
— Julgaria que não sei de onde ele vem? — Esfrega os olhos com os
nós dos dedos.
— De onde ele vem — diz Helmud e aponta, sobre o terreno estéril e
quase desértico que rodeia a Cúpula, para um grupo de pessoas ocupadas a
arrastar madeira e a dispô-la no solo gelado.
— Uns doidos a tentar construir qualquer coisa à frente da Cúpula?
— À frente da Cúpula? — repete Helmud.
Porquê à frente da Cúpula? Seria isso que o soldado queria que ele
visse? E se assim fosse, porquê? El Capitan observa a forma como as
pessoas se mexem. Mostram-se organizadas, transportando objetos em
fileiras ordenadas, como formigas.
— Isto não me agrada — diz ele. — Quase parece que estão a tentar
atear um fogo.
— Fogo — diz Helmud. El Capitan levanta o olhar para a Cúpula.
— Por que raio fariam uma coisa dessas?
Capítulo 4

Pressia
Sete

A morgue é fria e nua, com uma mesa de aço comprida. Desde a última
vez que ela ali esteve, há um par de semanas, Bradwell espalhou ainda mais
papéis e livros. Partes do manuscrito inacabado dos seus pais estão
dispostas em pilhas. Na parede, Bradwell colou a Mensagem, um original
que o avô dela guardou durante anos. Ela dera-a a Bradwell, quando este
regressara à barbearia para ir buscar o que restava. Afinal, é ele o
arquivista.
Sabemos que estais aqui, nossos irmãos e irmãs. Um dia sairemos da
Cúpula para nos reunirmos a vós em paz. Por agora, assistiremos de longe,
com benevolência.

Quando a Mensagem flutuara para o chão, caída do bojo de uma


aeronave, nos dias a seguir às Detonações, devia ter parecido uma
promessa. Mas agora parece uma ameaça.
Bradwell faz deslizar uma barra pesada diante da porta, uma tranca
artesanal aparafusada à parede.
— Bela casa que aqui tens — diz ela.
Ele dirige-se para o seu catre e endireita os cobertores.
— Não me queixo.
Pressia aproxima-se da mesa onde vê o sino que lhe deu na quinta.
Encontrara-o na barbearia queimada pouco antes de sair de casa. Não tem
badalo. Repousa sobre um recorte de jornal que deve ter sobrevivido às
Detonações, provavelmente no cacifo dos pais de Bradwell. Não está tão
queimado e embebido de cinzas como alguns dos outros documentos.
Bradwell cuidou bem dele. Aliás, ele sempre cuidou bem das coisas do
passado. Quando os seus pais foram assassinados, antes das Detonações —
mortos a tiro nas suas camas —, Bradwell encontrara o cacifo, que estava
escondido num quarto secreto e reforçado. Continha a obra inacabada dos
seus pais, que tentavam derrubar Willux, bem como as coisas que Bradwell
preservara: revistas e jornais antigos, velhas embalagens. O cacifo está
enfiado por baixo de um lavatório de aço inoxidável enferrujado. O sino
esconde parte da manchete. Por baixo lê-se: afogamento considerado como
acidental. Há uma fotografia de um jovem de uniforme, com as feições
impassíveis, olhando para a câmara. Bradwell usa o sino como pisa-papéis.
Não significará mais do que isso para ele?
Pressia pega em Freedle. Abre a mão e pousa-o na mesa. A criatura
pisca os olhos, abre-os e olha em redor.
A caixa negra passa pelos pés dela, com o motor a zumbir.
— É um bocado como um cãozinho — diz Pressia. — Tens razão.
— Tive um cão, noutros tempos — recorda Bradwell.
— Nunca me tinhas contado.
— Contei ao Partridge quando andávamos à tua procura nas Terras
Derretidas. Um amigo da família, Art Walrond, convenceu os meus pais a
dar-me um cão. Disse-lhes que um filho único precisava de um cão. Chamei
Art Walrond ao animal.
— Isso é um nome esquisito para um cão.
— Eu era um miúdo esquisito.
— Mas quando o Art Walrond, amigo da família, e o Art Walrond, cão
da família, estavam ambos na sala, ao mesmo tempo e tu dizias, «Senta-te,
Art Walrond», qual deles se sentava?
— Isso é uma pergunta filosófica?
— Talvez. — E quase parece estar tudo novamente bem entre eles.
Talvez possam ser amigos, do tipo de amigos que trocam conversa ligeira e
gracejos.
Bradwell inclina-se e faz uma festa na caixa negra, como se se tratasse
de um cão.
— Não é bem como me lembro. — Ela gostaria de o imaginar como
um rapaz com um cão, mesmo esquisito e tudo. Gostaria de saber coisas
acerca de si própria em criança também. Passara a maior parte da sua
infância a tentar recordar coisas que nunca tinham acontecido, a vida que o
avô inventara para ela. Mas ele nem sequer era mesmo seu avô: era um
desconhecido que a salvara e adotara como sua. Aquela mentira teria sido
difícil para ele? Talvez tivesse tido mulher e filhos, mortos nas Detonações,
e ela colmatasse um pouco a falta desses entes queridos perdidos. Mas ele
já não existe, portanto ela nunca saberá ao certo.
Se as Detonações não tivessem ocorrido, ela gostaria de ter conhecido
Bradwell numa realidade na qual não existissem punhos com cabeças de
boneca, cicatrizes ou pássaros incorporados no corpo, uma realidade
anterior a todas as perdas. Talvez tivessem trocado o seu primeiro beijo sob
um ramo de azevinho, uma tradição que o avô lhe contara.
Do outro lado da mesa, a sala alonga-se com três filas do que parecem
ser pequenas portas quadradas, três portas por fila, num total de nove.
Pressia aproxima-se com curiosidade, toca numa das maçanetas.
— Isso é onde guardavam os corpos — explica Bradwell. — E a mesa
de metal era usada para autópsias.
Os mortos. Pressia imagina o rosto da mãe: presente e logo
desaparecida. Afasta a mão dos gavetões e olha para a parede do fundo,
cujos blocos de cimento estão estalados, deixando ver a terra que os
comprime do lado de fora.
— É uma morgue. Claro que guardavam aqui cadáveres — diz ela,
mais para si própria do que para Bradwell.
— E ainda o fazem, de vez em quando.
Ela tenta aligeirar o ambiente:
— Suponho que será como ter um companheiro de quarto.
— Mais ou menos — replica Bradwell. — Até agora, só tive um.
— Quem?
— Um miúdo que morreu na floresta — diz Bradwell. — Queres
conhecê-lo?
É como se um intruso tivesse aparecido de repente.
— Está aqui agora?
— Foi encontrado por soldados em patrulha. O Cap trouxe o corpo
para aqui. Quer saber o que o matou. E estão a tentar encontrar a família
para vir identificar o corpo.
— E se ele não tiver família?
— Suponho que um dos novos recrutas terá a tarefa de o enterrar. —
Bradwell puxa uma das maçanetas. Pressia espera ver o corpo do rapaz. —
Uma morgue também é o sítio perfeito para fechar caixas negras. —
Quando o comprido gavetão desliza da parede, ela constata que contém as
outras cinco caixas negras. Estão imóveis, com as luzes apagadas. Diante de
cada uma delas há um papel coberto de anotações colado ao gavetão. Cada
papel tem um cabeçalho; Bradwell deu nomes às caixas: Alfe, Barb,
Champ, Dickens, Elderberry. A ordem é alfabética. Fignan está no chão,
zumbindo junto aos calcanhares de Bradwell. Freedle esvoaça da mesa e
põe-se a bater as asas em torno de Fignan. Do topo da caixa emerge a lente
de uma câmara, montada num pequeno braço. Parece estar a filmar Freedle
em voo.
— Tinhas de lhes dar nomes?
— É mais fácil falar com elas se tiverem nomes. Cresci sozinho. Sou
capaz de meter conversa seja com o que for — diz ele. Aquelas palavras
dão a Pressia um vislumbre sobre a infância dele. Aos dez anos, vivia
sozinho na cave de um talho e cuidava de si próprio. Era uma vida solitária.
Como podia não o ser?
— Mas o que lhes chamo não tem verdadeira importância. Estas cinco
são idênticas por dentro, concebidas para resistir a calor, pressão e radiações
extremas — prossegue Bradwell. — Têm uma série de fichas. — Pega
numa das caixas e mostra a Pressia os pequenos orifícios revelados pelas
fichas. — Tirei as fichas com o auxílio de um dos maçaricos do Cap, e
depois... — Pega em três fios elétricos e enfia-os simultaneamente nos
orifícios, uma operação delicada. — Pronto.
A tampa da caixa negra é puxada para trás com um zumbido e lá
dentro encontra-se algo vermelho, oval e feito de um metal pesado.
— O que é isso?
— É onde está guardada a informação. É o cérebro. Responde a ordens
simples — diz Bradwell. — Abrir ovo.
O ovo vermelho zumbe. Pequenas escotilhas metálicas deslizam para
trás, revelando chips, fios, uma vasta rede de ligações que lembram
sinapses.
— É o cérebro da caixa. Uma coisa muito bela. — Bradwell levanta o
ovo vermelho, fá-lo rodar na mão. — Contém toda uma biblioteca de dados.
— Bibliotecas — diz Pressia, maravilhada. — Eram edifícios que
albergavam livros, salas e salas cheias de livros, e tinham pessoas que
tratavam dos livros.
— Bibliotecários.
— Ouvi falar nisso. — É um conceito difícil de apreender. — E podia-
se levar os livros para casa, desde que se prometesse devolvê-los.
— Exatamente — diz Bradwell. — Eu tive um cartão de biblioteca, em
criança. O meu nome datilografado ao lado da minha fotografia. — Parece
melancólico por um momento. Pressia tem ciúmes daquela recordação.
Construiu uma infância com base nas coisa que o avô lhe contava e agora
tem de desmantelar esse mundo, tirá-lo da memória. Desejaria recordar algo
tão simples como um cartão de biblioteca com o seu nome e a sua
fotografia. Pensa no seu verdadeiro
nome: Emi, dois sons que trauteiam por um segundo nos seus lábios.
Brigid, como uma ponte sobre um grande lago frio. Imanaka, o som de paus
a bater uns nos outros. Que tipo de pessoa devia ter-se tornado Emi Brigid
Imanaka?
Talvez essa versão de si própria — Emi — pudesse apaixonar-se
perdidamente por Bradwell. Ela não pode, não quando isso parece ser a
garantia de vir a perdê-lo.
Bradwell concentra-se de novo nas caixas.
— Tive de abrir a caixa para ativar o ovo, mas agora ele pode ficar lá
dentro e responder a qualquer pergunta que queiras fazer-lhe. — Repõe o
ovo na caixa negra. — Fechar. — O ovo sela-se lá dentro e a caixa fecha-se
à sua volta.
— Que lhe perguntaste?
— Primeiro, perguntei-lhe o que era.
— E?
Bradwell inclina-se para a caixa:
— O que és?
Uma série de diques ressoa no centro do dispositivo e um globo ocular
mecânico, semelhante a uma câmara, aparece no topo do objeto. Um feixe
de luz dispara acima do globo ocular e uma imagem do próprio ovo surge e
roda no ar. Uma voz masculina e jovem recita um breve historial dos
dispositivos de gravação, incluindo as caixas negras, que geralmente eram
pintadas de vermelho ou laranja para facilitar o reconhecimento no local de
um acidente.
«Esta caixa pertence a uma série de caixas negras idênticas, um projeto
sancionado pelo governo e financiado a nível federal, para registar a
história cultural e todos os dados disponíveis no caso de um holocausto,
nuclear ou outro.» Indica as medidas específicas do revestimento de
alumínio, os dados do isolamento contra altas temperaturas, da caixa de aço
inoxidável e da tubagem com nanotecnologia resistente à radiação.
— Ena — exclama Pressia.
— Contêm imagens de arte e filmes, ciência, história, cultura popular
— explica Bradwell. — Tudo.
A ideia de tudo fá-la sentir-se quase tonta.
— O Antes — diz ela, maravilhada.
— Contêm uma versão do Antes. Uma versão digitalizada, depurada.
Informação não é necessariamente o mesmo que verdade.
— O meu avô explicou-me como o universo funcionava, com pedras
em círculos no chão: o sol, planetas, estrelas. Ele fingia saber as coisas,
porque percebia que eu ficava nervosa quando ele não as sabia.
— O que é o universo? — pergunta Bradwell à caixa negra. Outro
feixe de luz, mais largo, mostra planetas e luas em órbita à volta do Sol,
constelações que pontilham o ar. Pressia estende a mão para uma lua, na
expetativa de a tocar, mas os seus dedos passam através dela. Freedle
também esvoaça através da imagem, depois aterra nas suas patas bifurcadas
e fica a olhar para ela, confuso.
— Era isto que o meu avô estava a tentar explicar. O universo.
— Bastante difícil de captar com pedras no chão.
Pressia sente-se perdida. Há tanta coisa que ela não sabe, nem sequer
consegue imaginar.
— E espantoso! A quantidade de informação a que podemos ter
acesso. Pode realmente modificar a vida das pessoas. Teremos acesso a
informações médicas, tecnologia, ciência. Poderemos fazer a diferença a
sério.
— É mais do que isso, Pressia.
— Como assim? Como pode ser mais do que tudo?
— Estas caixas sabem apenas o que lhes foi ensinado e todas
aprenderam a mesma lição. Exceto Fignan. Ele é diferente. — Bradwell
pega na caixa negra aos seus pés. — Cada caixa dessas tem um número de
série na parte inferior. Mas o Fignan tem apenas um símbolo de copyright.
— Vira a caixa e mostra a Pressia um círculo em torno de um C tosco, feito
de três linhas.
Pressa passa os dedos sobre o símbolo.
— O que é copyright?
— É um símbolo que indica propriedade. Era muito utilizado no Antes,
mas geralmente era seguido pela indicação do ano. Este não o é.
Pressia dá um quarto de volta à caixa.
— Também podia ser um U dentro de um círculo. — Roda a caixa de
novo, desta vez meia volta. — Ou um quadrado inacabado, ou uma mesa.
— Uma caixa negra não é uma mera caixa que, por acaso, é preta. É o
nome que se dá a qualquer dispositivo ou processo concebido em termos de
entrada e saída, no qual não se consegue ver o que está a ser processado, o
que se passa lá dentro. Uma caixa branca, ou caixa de vidro, são coisas nas
quais se pode guardar informação e ver o que acontece com essa
informação.
— A Cúpula é uma caixa preta — observa Pressia.
— Do nosso ponto de vista, é — replica Bradwell. — Tal como o
cérebro humano.
E como tu, pensa ela. E como eu. Pergunta-se se dois seres humanos
podem alguma vez ser caixas brancas um para o outro.
Ele pousa Fignan na mesa:
— Fignan é um impostor. Aparenta integrar-se, mas foi feito a pensar
num público diferente. Só que não vai entregar simplesmente as
informações que contém ao primeiro que lhe apareça. Alguma palavra fê-lo
acender e só então falou comigo. — Mete as mãos nos bolsos e baixa a
cabeça. — Devo recitar o que estava a dizer? Acerca de ti? Quer dizer, isto
somos apenas nós a tentar resolver o mistério. Nada mais do que isso,
certo?
— Certo. — Pressia quer adiar o momento de revelação. — Mas
primeiro, vejamos: ele iluminou-se e falou contigo. O que te disse?
— Disse sete.
— O número sete?
— Repetiu sete várias vezes, depois parou e pôs-se a apitar, como se
estivesse à espera de uma resposta enquanto ia contando segundos num
relógio, e, por fim, parou. Acabou o tempo, como num concurso da
televisão.
— Um concurso? — pergunta ela. Sabe que se trata de uma referência
ao Antes, mas não consegue identificá-la.
— Sabes, programas de televisão em que as pessoas respondiam a
perguntas feitas por um apresentador que tinha um microfone e prémios,
tipo conjuntos de malas e motas de água, enquanto o público lhes gritava
sugestões e aplaudia freneticamente. Havia um em que davam choques
elétricos quando os concorrentes davam respostas erradas. As pessoas
adoravam.
— Sim, concursos — diz ela, como se se lembrasse. O que é uma mota
de água? — Mas por que nos interessa se esta caixa se abre ou não? Temos
tudo o que podemos desejar nas outras cinco!
— Fignan guarda segredos — responde Bradwell. — Foi programado
para os guardar com cuidado.
Pressia abana a cabeça.
— Isto é sobre descobrir a verdade, o passado, mais aulas de História-
Sombra? Não sabes já o suficiente?
— Claro que não sei o suficiente! Quantas vezes tenho de te dizer que
temos de compreender inteiramente o passado ou estamos condenados a
repeti-lo? E se pudermos compreender Willux, o inimigo, então...
Pressia está furiosa:
— Podemos melhorar a vida das pessoas com o que está nessas caixas,
mas tu tens de ir atrás do mistério, do que está escondido? Muito bem.
Então fá-lo de novo. Faz com que ele repita essa coisa do concurso de
televisão.
Bradwell abana a cabeça e passa as mãos pelos cabelos.
— É aí que bate o ponto. Não me lembro do que disse ao certo. Talvez
deva refazer os meus passos verbais. Tens a certeza que não te importas?
— Claro. — Ele estará a espicaçá-la?
— Bem, eu estava a... divagar... a teu respeito. Foi a meio da noite, e
estava, bem, a descrever-te... Falei do teu aspeto: os teus olhos escuros, a
forma que têm e como, por vezes, parecem líquidos, e falei do brilho do teu
cabelo, e da queimadura em torno de um dos teus olhos. Referi a tua mão, a
perdida, mas que não desapareceu verdadeiramente, que existe dentro da
boneca e que a boneca faz parte de ti tanto como qualquer outra coisa no teu
corpo.
As bochechas de Pressia ficam vermelhas. Por que havia ele de falar
das suas cicatrizes, da sua deformidade? Se estivesse apaixonado, os seus
olhos não apagariam os defeitos dela? Não a veria apenas na sua melhor
versão? Vira-lhe as costas e olha para as filas de caixas. As luzes dos
objetos piscam vagamente, em pequenas repetições cintilantes.
Bradwell diz:
— Talvez tenha mencionado os teus lábios.
Agora a sala está muito silenciosa.
O rubor no rosto dela alastra para o peito. Pressia aperta o pendente do
cisne e torce-o nervosamente.
— Muito bem, então ele disse sete. Que nos interessa isso? Vamos
concentrar-nos nas caixas boas. Deixa essa manter os seus segredos.
Bradwell aproxima-se dela e envolve-lhe o pulso nos dedos. Olha para
o colar. A mão dele é áspera, mas quente.
— Espera — diz ele. — Também referi o colar, como o pendente
assenta mesmo na cova entre as tuas clavículas. O pendente do cisne.
A caixa negra acende. Emite um alarme curto, sincopado, e diz:
«Sete, sete, sete, sete, sete, sete, sete».
Ambos olham para ela, assustados. Os apitos continuam, enquanto o
relógio conta os segundos, depois a caixa fica em silêncio.
— Isto tem a ver com a minha mãe — declara Pressia. A mãe disse-lhe
várias coisas que ela não compreendeu. Falava rapidamente, quase numa
espécie de estenografia. Pressia não lhe pediu esclarecimentos porque
presumiu que haveria tempo mais tarde para ouvir tudo o que precisava de
saber. Mas lembra-se de a mãe falar sobre a importância do cisne como
símbolo e sobre os Sete. — Os Melhores e Mais Inteligentes — recorda. —
Era um programa vasto e importante, que recrutava as crianças mais
inteligentes. A partir desse grupo, formaram outro, um ainda mais de elite,
composto por vinte e dois jovens, e, a partir desse, Willux selecionou sete.
Isso aconteceu quando tinham a nossa idade. Logo no início.
— Os Sete — diz ele.
— O cisne era o símbolo deles.
Fignan arranca de novo.
— Lembra-te, eu contei-te que eles fizeram tatuagens, enquanto ainda
estavam juntos e eram jovens e idealistas, uma fila de seis tatuagens
pulsantes sobre os seus próprios corações, que era a sétima pulsação. —
Três das pulsações tinham parado, mas não a do seu pai. Pressia sabe que
devia contentar-se com o facto de ele ter sobrevivido. Não devia desejar
tanto vê-lo, mas não consegue evitá-lo. Por vezes, tudo que quer é partir
para o procurar. Naquele preciso momento, essa simples ideia multiplica as
batidas do seu coração, como as próprias tatuagens pulsantes.
Bradwell, El Capitan, e Partridge agarraram-se à ideia de corações
ainda pulsantes. Isso significava que outros sobreviventes, talvez outras
civilizações, existiam para lá das Terras Mortas. Mas a que distância? Para
Pressia, é pessoal.
Dirige-se de novo para a caixa, inclina-se e fita-a.
— Cisne — diz e a caixa arranca mais uma vez, repetindo a palavra
sete, sete vezes, depois apita. — Está a pedir-nos uma senha, ou melhor,
sete senhas.
— Sabes os nomes deles? — pergunta Bradwell. Ela abana a cabeça.
— Todos, não.
— Cisne — entoa Bradwell. A caixa negra diz sete novamente e,
quando a termina e o apito sincopado se faz ouvir, Bradwell diz: — Ellery
Willux. — Uma luz verde pisca numa fileira de lâmpadas perto do olho da
câmara. — Aribelle Cording. — Acende-se outra luz verde.
— Hideki Imanaka — diz Pressia e a caixa aceita esse nome também.
Pressia disse o nome do pai em voz alta tão poucas vezes que aquela
pequena luz verde lhe parece uma confirmação. Ele realmente existe. É o
seu pai. A jovem é invadida por um sentimento de esperança que não
conhecia há muito tempo.
— E os outros? — pergunta Bradwell. Ela abana a cabeça.
— Caruso teria ajudado. Ele saberia.
Caruso vivia no bunker com a mãe dela. Quando Bradwell e El Capitan
haviam regressado, após o incêndio da quinta, pensavam convencê-lo a
acompanhá-los. Mas ele tinha-se matado. Bradwell nunca dissera a Pressia
como ele o fizera e ela não perguntara.
— Gostava que ele soubesse quanto podia ter-nos ajudado. Se
soubesse, talvez não tivesse...
— Caruso era um deles? — indaga Bradwell.
— Não.
— Tenta lembrar-te — insiste ele.
— Não me lembro! — Pressia franze a testa. — Nem sequer sei se ela
disse todos os nomes. — A sua mente está em branco, tirando a imagem da
morte da sua mãe: o crânio dela, a névoa de sangue.
— Se conseguirmos essas senhas, quem sabe a que conseguiremos ter
acesso.
— Não! — Agora ela está zangada. — Temos de nos concentrar no que
podemos fazer aqui, agora, hoje, por estas pessoas. Estão a sofrer. Precisam
de ajuda. Se nos deixarmos arrastar para o passado, estaremos a virar as
costas aos sobreviventes.
— O passado? — Bradwell está furioso. — O passado não é apenas o
passado. É a verdade! A Cúpula tem de ser responsabilizada pelo que fez ao
mundo. A verdade tem de ser conhecida.
— Porquê? Por que temos que continuar a lutar contra a Cúpula?
— Pressia desistiu da verdade. — Que importância pode ter a verdade,
quando há tanto sofrimento e perda?
— Pressia — diz Bradwell, numa voz mais suave —, os meus pais
morreram a tentar descobrir a verdade!
— A minha mãe também morreu. E eu tenho de deixá-la ir.
— Aproxima-se de Bradwell. — Deixa ir os teus pais.
Ele percorre as filas de gavetões e para diante do último.
— Devias ver o rapaz morto.
— Não, Bradwell ...
Ele agarra uma maçaneta que lhe fica à altura do peito.
— Quero que o vejas.
Ela respira fundo. Ele puxa a maçaneta e a laje desliza para fora.
Pressia coloca-se ao seu lado.
O rapaz tem cerca de 15 anos, o peito nu, a metade inferior do corpo
envolta num lençol. A sua pele assumiu a cor de um hematoma escuro, os
lábios estão roxos, como se tivesse comido amoras. Tem as mãos apertadas
em volta do pescoço, como garras retorcidas, e um pé espreita sob o lençol.
Tem cabelo curto e escuro. O mais impressionante é que, embutida no seu
peito nu, há uma barra cromada, que se estende de um lado ao outro das
suas costelas. Era criança aquando das Detonações, uma criança montada
num triciclo. O guiador está manchado de ferrugem. Curva-se em torno do
seu tronco como um par de costelas adicionais. A pele ligada ao metal é
fina, quase como rede.
Pressia fecha os olhos. Aperta os braços à volta das próprias costelas.
— O que lhe aconteceu?
— Ninguém sabe. — Bradwell puxa a parte de baixo do lençol para
cima quando Pressia abre os olhos. O rapaz tem apenas uma perna. A outra
desapareceu recentemente. A rutura é tão irregular, com osso à vista, que
Pressia arqueja.
— A perna explodiu — diz Bradwell —, e ele esvaiu-se em sangue.
Dirige-se para uma bancada perto do lavatório, pega numa pequena
caixa de cartão e trá-la a Pressia. Esta só consegue imaginar um coração
humano, ainda a bater.
Ele levanta a tampa. A caixa está cheia de pedaços de metal e plástico.
Uma peça tem uma junta metálica que liga dois pequenos pedaços de metal
partidos, cada um com cerca de um centímetro de comprimento. Bradwell
explica:
— Isto foi encontrado perto do corpo. Alguns fragmentos ainda
estavam embebidos no que restava da carne da perna.
— O que era?
— Não sei. — Ele fecha a tampa da caixa e olha para o rapaz morto.
— Foi a Cúpula que fez isto. Não vai afastar-se. As Forças Especiais estão
cada vez mais agressivas, mais famintas. Não estou a virar as costas a
ninguém, Pressia. Temos de encontrar uma maneira de resistir.
Capítulo 5

Lyda
Banheiras De Metal

O quarto é arejado, sem nada lá dentro para além de duas grandes


banheiras industriais metálicas e duas cadeiras, iluminadas pela luz fraca
que passa pelas janelas maltratadas. Têm tomado banho à noite, mas
tiveram de fechar tudo durante as últimas horas de escuridão. Havia Forças
Especiais a zumbir nas proximidades, pelo que os banhos se atrasaram.
Illia foi levada para a sala primeiro, pois não consegue estar nua diante
de ninguém. Nem sequer gosta de descobrir o rosto, que está agora envolto
em pano cinzento, enquanto ela se reclina numa das banheiras. Quando
Lyda é conduzida para dentro da sala, Illia diz:
— Estás aqui.
— E a Illia também — responde Lyda. Não se refere apenas à presença
física, mas também à emocional. Os banhos começaram por ser uma
recomendação para Illia. As Mães receiam que a cinza das Terras Derretidas
se tenha acumulado nos seus pulmões, que albergam agora bactérias. Illia
precisa de repouso e de cuidados especiais.
Mas de súbito, há cinco noites, naquelas mesmas banheiras, algo
milagroso acontecera. Illia, que estava tão distante e silenciosa, voltara a si,
como se uma febre tivesse baixado. E começara a contar histórias a Lyda,
histórias estranhas, sem nomes e sem lugares, sobre a mulher e o homem,
mitos ou memórias, talvez tirados da sua própria infância.
Lyda falara à Mãe Hestra acerca dos progressos de Illia, e a Mãe
Hestra dissera que se tratava de uma cura. Lyda adora isso. No centro de
reabilitação nunca usavam a palavra cura. Ao contrário da sua própria mãe,
as Mães aqui são ferozes, mas também capazes de amar ferozmente.
Ironicamente, pela primeira vez na sua vida ela sente-se protegida, de uma
forma que nunca sentira na bolha protetora da Cúpula.
Desde a cura, tomam banho todos os dias, na esperança de que as
melhoras continuem. E continuaram. Durante o dia, Illia é uma luz
desvanecida, a tossir num quarto privado, mas o banho modifica-a.
— Esta noite o teu banho não é de água — diz Illia. A sua voz é mansa
e suave, um pouco rouca devido à falta de uso. — É outra coisa.
Uma das Mães disse a Lyda que tinha de se meter completamente
dentro do líquido.
— O soro tem de cobrir cada centímetro da tua pele, cada cabelo na tua
cabeça. — Um cheiro xaroposo, a remédio, paira no ar. Lyda tira a capa e
pendura-a nas costas de uma cadeira. Mergulha os dedos no banho quente,
de onde se eleva uma nuvem de vapor. Os dedos ficam escorregadios e
secam rapidamente, deixando uma película estranha sobre a pele.
— Dizem que disfarça o odor humano — comenta Illia. É mais seguro
para viajar amanhã.
— Qual é a sensação?
— O meu é de água. Eu não posso e não quero ir.
— Eu também não! — Lyda quer ver Partridge, desesperadamente,
mas gosta de estar ali. Começaram a dar-lhe formação em combate e caça.
Os seus músculos estão mais fortes. Tem boa pontaria. Aprendeu a esperar
em silêncio, de emboscada. E perigoso, mas estranhamente pacífico.
Mesmo agora, ao despir-se, já não é tímida como dantes, no vestiário das
raparigas na academia. Sente-se bem na sua pele, o que é bom. Pousa as
roupas dobradas na cadeira e passa sobre a borda da banheira, deslizando
para o líquido desconhecido.
— Prefiro morrer aqui — diz Illia.
— Está doente, não a morrer. — Lyda não quer falar sobre a morte. Na
Cúpula, a morte raramente era mencionada. A palavra em si não era
apropriada. O pai de Lyda fora escoltado para o centro médico, a ala de
quarentena, ao primeiro sinal de doença, e ela nunca mais o vira. Doença e
morte são consideradas vergonhosas e agora ela pergunta-se se o seu pai, tal
como Willux, se teria submetido a melhoramentos que o tinham desgastado.
O teu pai faleceu, dissera-lhe a mãe. Faleceu.
— Conte-me uma história! Passo o dia inteiro à espera de as ouvir. —
É apenas meia verdade. As histórias também assustam Lyda. Há algo de
condenado naquela narrativa: não é história que vá acabar bem.
— Esta noite, não.
— Da última vez, contou-me que a mulher trabalhava como guardiã do
conhecimento no lugar silencioso, e que o homem veio ter com ela e lhe
pediu para proteger a semente da verdade, uma semente que iria crescer no
mundo que estava para vir. O que aconteceu a seguir?
— Eu contei que a mulher se apaixonou pelo homem?
— Sim. Disse que era como se coração dela estivesse a rodopiar.
— Lyda compreende. É o que ela própria sente quando pensa em
Partridge, sobretudo quando o imagina a beijá-la.
— Contei que o homem a amava?
— Sim. Foi aí que ficámos. Ele queria casar com ela.
Illia abana a cabeça.
— Ele não pode casar com ela.
— Porquê?
— Porque vai morrer.
— Morrer?
— E ela não pode morrer com ele. Tem de sobreviver, porque é a
guardiã do conhecimento; tem a semente da verdade. Alberga segredos.
— Que tipo de segredos?
— Segredos que podiam salvá-los a todos.
A história será verdadeira? Terá lugar no Antes?
— Como é que ele morreu?
— Ele morre. E ela morre por dentro.
— O que acontece com a semente da verdade? — Lyda sente-se
ansiosa. Diz a si mesma que é apenas uma história, mas não tem a certeza
de acreditar nisso.
— Ela casa com uma pessoa que foi selecionada para sobreviver, para
que a semente da verdade possa viver. Casa com um homem bem
relacionado. O Fim está próximo.
Um arrepio percorre Lyda. Illia está a falar de si própria. O homem
bem relacionado deve ser Ingership, o marido de Illia, aquele que ela
matou. Mas Lyda receia que, se referir o nome de Ingership, Illia se retraia
de novo. Ela não terá contado a história daquela forma por não ser capaz de
enfrentar a verdade, motivo pelo qual funciona como uma cura?
— Fale-me do Fim — sussurra Lyda.
— Uma explosão do Sol. Tudo se tornou iridescente. Tudo se abriu,
como se todos os objetos e seres humanos contivessem luz. Foi a mais
luminosa das entradas na escuridão.
— E a guardiã sobreviveu?
Illia puxa o pano cinzento parcialmente para baixo e fita Lyda com os
olhos semicerrados.
— Estou aqui, não estou? Estou aqui.
Lyda acena com a cabeça. Claro. Mas se Illia tem consciência de ser
ela a guardiã, porquê contar a história daquela maneira?
— Illia — pergunta-lhe —, porque não dizer simplesmente:
«Apaixonei-me por um homem»? Por que não me conta tudo? Não confia
em mim?
— E se eu não for o que julgas que sou? Uma simples dona de casa,
metida numa meia da cabeça aos pés. Uma simples dona de casa espancada,
que nunca sabia de nada, que não tinha passado, que nunca tinha conhecido
o amor, que não tinha poder. — Levanta os braços, lustrosos e húmidos,
com as mãos crispadas. — Não percebes a diferença entre estas cicatrizes e
estas aqui? Percebes? Não percebes nada de cicatrizes. — Os braços dela
estão todos marcados e queimados: uma fila de queimaduras num braço e
um rasto irregular de estilhaços no outro.
Lyda abana a cabeça:
— Pois não.
— Eu sou a guardiã! Então, onde está a semente? Hein? É o que te
pergunto: onde está o raio da semente agora? — Illia está furiosa. Os seus
punhos agitam-se no ar.
— Não sei — responde Lyda. — Lamento. Não sei a que se refere.
Não sei o que quer dizer. — Agarra-se à borda da banheira. — Explique-
me. Explique-me o que quer dizer.
— Eu não podia entregar a verdade a pessoas mortas. Tinha de a
guardar. — A sua voz tem um tom distante e assombrado.
— Que pessoas mortas? Quem?
— Eram tantas...
— Illia! Quero que me explique o que isto significa. Quero que me
conte a história verdadeira. Conte-ma. Para seu bem e meu. Desabafe.
Conte-me tudo.
— E agora não posso morrer até ter cumprido o meu dever, até ter
entregado a verdade. Não posso morrer até lá, Lyda. — Illia olha para a
jovem como se talvez gostasse de morrer. Lyda não consegue compreender.
— Não posso morrer — repete a mulher, como se confessasse uma
profunda tristeza. — Ainda não.
— A Illia não está a morrer. Conte-me o que lhe aconteceu. Conte-me,
por favor. Não fale em morte.
— Não falo em morte? Queres que fale de amor. Mas os dois são uma
e a mesma coisa, criança. Uma e a mesma coisa.
Faz-se um silêncio. Lyda encolhe-se na banheira e fecha os olhos.
Quando o faz, não vê senão os braços molhados de Illia: o rasto irregular de
estilhaços num e a estranha fileira ordenada de vergões salientes no outro.
São as cicatrizes ordenadas que a perturbam. As Detonações causaram
fusões e cicatrizes irregulares, não fileiras direitas. Pensa em Ingership.
Afinal sempre percebe a diferença entre os dois tipos de cicatrizes. Umas
são das Detonações. As outras são de tortura: nove anos de tortura. Ouve
Illia inspirar bruscamente e depois murmurar para si mesma. A princípio
diz: Tenho saudades da verdade. Tenho saudades da arte. Tenho saudades
da arte. A vida valeria a pena viver se eu tivesse arte. Illia seria artista?
Lyda adora arte. Uma vez fez uma escultura de um pássaro de arame. Mas
depois Illia começa a falar de morte. Quero morrer! Quero a morte. Mas a
guardiã não pode morrer. A guardiã não pode morrer até ter desempenhado
o seu papel. A guardiã tem de encontrar a semente. Já não é um mito, ou
mesmo uma história; é mais como um mantra ou uma oração.
Mas uma oração sombria, uma oração aterrorizadora. Lyda mantém os
olhos fechados: o soro tem de cobrir cada centímetro do seu corpo, cada fio
de cabelo na sua cabeça, explicou a Mãe. Desliza mais para baixo, batendo
com as costas no fundo de metal. Submersa, tudo é silencioso. Lyda sente
que está a ser abraçada pelo soro, pela banheira. O esforço de reter a
respiração começa a fazer-lhe arder os pulmões. Só mais um segundo de
paz, pensa para consigo. Só mais um.
Capítulo 6

Partridge
Frio

Partridge tem as malas feitas e está pronto a partir. Os mapas estão


enrolados na sua mochila, a caixa de música, guardada no bolso do casaco,
e os frascos estão amarrados com uma tira de pano, cortada do lençol e
atada à volta da barriga. Apesar disso, quando a porta da cave se abre de par
em par, de manhã, o jorro de luz poeirenta e a rajada de ar frio provocam-
lhe uma sensação de choque.
— Está na hora! — grita a Mãe Hestra. Ele quase não dormiu. O
escaravelho arrastou-se para o canto e debateu-se espasmodicamente até
encontrar enfim um buraco de rato por onde desapareceu. A imagem ficou-
lhe na cabeça: a perna gigantesca. Mas, mesmo sem isso a pulsar-lhe atrás
das pálpebras, Partridge não gosta de dormir, porque sonha que encontra a
sua mãe na academia, uma e outra vez: o corpo ensanguentado e amputado
por baixo das bancadas dos campos de jogos, ou na biblioteca silenciosa ou,
o pior de tudo, no laboratório de ciências, como se fosse algo que os
professores esperassem vê-lo dissecar. Tem a certeza de que ela está morta,
mas então um dos olhos dela pisca. É preferível não dormir muito.
Encaminha-se para o pequeno lanço de escadas de madeira. O vento
sopra em rajadas. O céu está coberto de faixas escuras, ondulantes. Aquilo
foi outrora um bairro agradável: filas de casas creme, que agora parecem
ossos branqueados.
Vê Lyda de pé junto à esquina de uma casa arruinada. A sua capa
esvoaça-lhe em torno das ancas e ela empunha uma lança feita em casa:
uma lâmina afiada presa à extremidade de um cabo de vassoura. Ela
começa por olhar para ele como se tivesse medo, mas depois abre-se num
sorriso que lhe ilumina o rosto. A sua pele também está lustrosa do soro
ceroso. Os olhos azuis lacrimejam: porque ela está contente por o ver, ou
será do vento? O seu cabelo cresce numa penugem macia que lhe cobre a
cabeça. Com o cabelo assim curto, ele vê mais do seu belo rosto. Sente um
impulso de correr para ela, levantá-la ao ar, beijá-la. Mas a Mãe Hestra
interpretaria uma tal atitude erradamente como agressividade e poderia
atacá-lo. Partridge e Lyda não têm permissão para estar sozinhos. Essa foi
outra das condições impostas pelas Mães: proteção total da rapariga.
Ele sorri e pisca-lhe o olho. Ela responde com outra piscadela. Lyda
dirige-se para a Mãe Hestra e afaga o cabelo de Syden. A Mãe Hestra diz:
— Vamos deslocar-nos em fila indiana.
— A Illia não vem? — pergunta Partridge.
— A cinza acumulada nos seus pulmões provocou-lhe uma doença.
Ela fica aqui, na esperança de que recupere.
— Já foi vista por um médico? — indaga Partridge.
— Que médico vão elas chamar? — replica Lyda bruscamente.
— Ela é mais uma vítima dos Mortes — declara a Mãe Hestra
friamente, fitando Partridge. — Eles criaram esta cinza e os pulmões dela
estão doentes por causa disso. O mais provável é vir a morrer por isso. Mais
um assassinato.
— Eu não sou um Morte — afirma Partridge em tom defensivo.
— Era um miúdo quando rebentaram as Detonações. Sabe muito bem
que sim.
— Um Morte é um Morte — retruca a Mãe Hestra. — Põe-te na fila.
Lyda caminha atrás da Mãe Hestra e Partridge fecha o cortejo, a menos
de um metro de Lyda. Sente o estômago leve, o coração a bater mais
depressa.
— Olá — sussurra.
Lyda põe a mão atrás das costas e acena.
— Tive saudades tuas — sussurra ele.
Ela olha por cima do ombro e sorri.
— Nada de conversa! — brada a Mãe Hestra. Como o terá ela ouvido?
Partridge quer contar a Lyda acerca dos frascos, da perna do
escaravelho, da estranha sensação que lhe é dalgum modo familiar.
Precisamos de um plano, quer ele dizer-lhe. Afinal, foi assim que se
encontraram pela primeira vez: o plano dele para roubar a faca da
Exposição de Domesticidade, as chaves dela para a vitrina das facas.
Ele não pode ficar ali, guardado pelas Mães, para o resto da vida. Mas não
há lugar para onde ele e Lyda possam fugir. Estão encalhados. Ela sentirá
isso também? Tem de sentir.
Estão a deixar as Terras Derretidas, a dirigir-se para as Terras Mortas,
que são estéreis, ventosas e perigosas. Partridge imagina o aspeto que terão,
ele e as suas duas companheiras de viagem: a Mãe Hestra vestida de peles,
a coxear devido ao peso do filho, Lyda com a sua capa esvoaçante e ele a
olhar nervosamente em redor.
Desarmado, ele é vulnerável e inútil. A Mãe Hestra tem um saco de
couro cheio de dardos de jardim preso às costas. Ele gostaria de ter alguma
coisa, qualquer coisa, na verdade. Tinha-se habituado às várias facas e
ganchos de talho de Bradwell. De facto, sente-se estranhamente aliviado
por, enquanto ainda vivia na Cúpula, ter recebido alguma codificação
especial a nível muscular: força, velocidade, agilidade. O estranho
sentimento de gratidão para com o seu pai, por o ter submetido ao
tratamento, dá-lhe a volta ao estômago.
As Terras Mortas, que se estendem à sua frente, foram incineradas
durante as Detonações. Ficaram esterilizadas e assim continuam: sem
árvores, sem vegetação nova, apenas os restos de uma estrada arruinada,
carros apodrecidos pela ferrugem, borracha derretida, cabinas de portagem
tombadas.
Partridge abranda o passo e esfrega as faces, rígidas devido ao frio.
Cerra os punhos. O que foi picado pelo escaravelho ainda está tenso de dor.
O frio alastra pelos seus ossos mesmo até à ponta perdida do seu dedo
mindinho, o que parece impossível, mas Partridge é capaz de jurar ser
verdade.
Têm de ter cuidado. Espinhas curvas arqueiam-se na areia, que é
chicoteada em espirais. As Poeiras são criaturas que, durante as
Detonações, se fundiram com a terra e os destroços, e agora deslocam-se
rastejando. Incrustadas de pó, pedra, areia, existem em todos os tamanhos e
formas. Espreitam de dentro do solo e são capazes de cercar e atacar as suas
vítimas. Mas as Poeiras conhecem as Mães. Temem-nas.
Lyda abrandou também, permitindo que o espaço entre ela e a Mãe
Hestra aumente, e ela própria fique mais perto de Partridge. De propósito?
Ele acelera o passo.
— O frio era assim tão intenso quando éramos pequenos? — pergunta.
— Eu tinha uma parka azul e luvas ligadas por fios de lã presos às
mangas do meu casaco, para não as perder. Devíamos atar-nos uns aos
outros — prossegue ela, — para que nenhum de nós se perca. — Detém-se
e Partridge continua a andar até chegar junto dela. Ela lança um olhar à Mãe
Hestra e vira-se para ele. Ele beija-a. Não consegue evitá-lo. Ela toca-lhe
rapidamente na bochecha; a pele revestida pelo unguento ceroso provoca
uma sensação estranha.
— Aconteceu alguma coisa com Illia — diz ela.
— O quê? — pergunta Partridge.
— Ela sabe coisas. Diz que não pode morrer até ter desempenhado o
seu papel. Fartou-se de falar da semente da verdade.
— Estará com alucinações ou coisa do género? O que significa isso?
— Não sei — diz Lyda. Antes que a Mãe Hestra tenha oportunidade de
gritar com eles, a jovem vira-se e avança rapidamente de modo a retomar o
seu lugar na fila.
A Mãe Hestra para na borda de uma elevação. Mais abaixo há uma
bomba de gasolina destruída e um placard publicitário meio devorado pela
areia.
— Fiquem aqui. Eu chamo-vos quando for seguro.
Partridge olha para a cabeça do filho dela, a balouçar ao seu lado
enquanto ela desce o barranco em direção à estrada delapidada.
— Ainda não consegui habituar-me.
— Habituares-te a quê?
— Às crianças fundidas com os corpos das mães. É, não sei,
perturbador.
— Eu acho que é agradável ver crianças, para variar — replica Lyda.
Devido às limitações de recursos na Cúpula, apenas são concedidos direitos
de procriação a alguns casais. Contudo, aquela troca de palavras tem um
sabor de divergência entre Lyda e ele.
— Havia muitas crianças no Antes — acrescenta ela. — Foram-se.
O Antes. É uma expressão utilizada pelos desgraçados. Ela já está a
apanhar os hábitos e linguagem das Mães? A mudança faz com que ele se
sinta pouco à vontade. Ela é a única pessoa que realmente o compreende
naquele sítio. E se ela se tornar um deles? Partridge detesta-se por pensar
daquele modo — nós, eles —, mas é uma coisa que está enraizada nele.
— És feliz aqui? — pergunta.
Ela lança-lhe novo olhar rápido:
— Talvez.
— Talvez não seja uma questão de seres feliz aqui, mas apenas de
seres uma pessoa feliz em geral. Sabes, das que começam a assobiar mal
acordam. — Não é possível que ela seja realmente feliz por estar ali, pois
não?
— Não sei assobiar.
— Lyda — diz Partridge, num tom tão veemente que ele próprio fica
surpreendido —, eu não quero regressar. Mas é inevitável. Lar deixou de ser
um lugar. — Ouve a voz do seu pai a ressoar-lhe na cabeça: Partridge,
acabou-se. És um de nós. Volta para casa. Não há casa. — Se lar não é um
lugar, o que é?
Ele tenta imaginar como aquele sítio seria antes de ter sido destruído e
coberto de areia resvalante.
— Um sentimento — responde.
— De quê?
— Como algo perfeito mas inalcançável. Foi roubado. Dantes, lar era
uma coisa simples. — Vê a Mãe Hestra e Syden a abrir caminho para a
elevação seguinte. Ela pode acenar para os chamar a qualquer momento.
Diz a Lyda: — Sei o que está nos frascos. Experimentei um pouco.
— Experimentaste?
— Vi aquilo fazer crescer células, construí-las. Salpiquei a pata de um
escaravelho e ela cresceu imenso. O meu pai quer o que está nesses frascos,
e agora sei quão potente aquilo é.
— Como o rapaz que ganhou o primeiro prémio na feira de ciências do
ano passado.
— O quê? Quem?
— Não sei o nome dele. Era o rapaz que ganhava sempre, todos os
anos.
— O Arvin Weed?
— Sim! É esse o nome.
— O que raio valeu a vitória ao Weed?
— Não foste lá?
— Sim, acho que sim. Lembro-me vagamente de vaguear à volta dos
expositores com o Hastings.
— Eu estava num grupo que fez um novo tipo de detergente para peles
sensíveis.
— Boa!
— Não sejas condescendente.
— Desculpa. Não era essa a minha intenção. Pois eu não fiz nada para
a feira, nem sequer um vulcão com bicarbonato de sódio.
— Bem, o Arvin Weed estava a documentar como tinha feito crescer a
perna de um rato que tinha perdido uma das patas numa armadilha.
— Estás a brincar comigo? — Mas então lembra-se de como Hastings
dissera algo sarcástico, tipo «Excelente trabalho, Weed. Descobriste o rato-
de-três-patas-e-meia. Uma espécie incrível.» Weed fizera-lhe uma carranca
e, enquanto Hastings se afastava, agarrara no braço de Partridge e dissera-
lhe que ele devia interessar-se pela sua experiência, que esta poderia salvar
pessoas. «Salvar pessoas de ratos-de-três-patas-e-meia?», retorquira
Partridge.
A recordação abala-o.
— Jesus — sussurra. — Ele já descobriu a solução! Portanto a Cúpula
já tem acesso ao que está nestes frascos. Quando o meu pai fez com que me
seguissem até ao bunker da minha mãe, o que lhe interessava eram as outras
duas coisas: o ingrediente que falta e a fórmula. Ele já estava um passo à
frente. Tem uma das três coisas de que precisa para reverter a sua
degeneração celular rápida e salvar a própria vida. — De repente, as coisas
transformam-se numa corrida e o seu pai está a vencer. A sua mãe dissera-
lhe que o pai sabia que os melhoramentos cerebrais acabariam por o afetar,
mas pensava que conseguiria encontrar uma solução e, quando isso tivesse
acontecido, poderia viver para sempre.
— E se o meu pai nunca morrer?
— Todos os pais morrem.
Partridge pensa na perna preta, grossa e musculosa, do escaravelho.
— O meu pai não é como os outros pais. — Estende o braço e agarra
na mão de Lyda. Ela parece surpreendida pelo gesto súbito. Ele diz: —
Precisamos de planear como vamos voltar para a Cúpula e como faremos
para descobrir a verdade quando lá estivermos.
Ela ergue para ele os olhos lacrimejantes de medo.
— Vai correr tudo bem — diz ele. — Havemos de arranjar uma
solução.
— Não correu bem para o Sledge — observa ela.
Durante anos, o pai de Partridge deixara-o acreditar que o irmão mais
velho, Sledge, se tinha suicidado. Mas a verdade foi que o pai de Partridge
matou Sledge, o seu próprio filho mais velho. Quantas vezes Partridge
imaginara Sledge a meter o cano de uma arma na boca? Era mentira. Mas
agora sim, o seu irmão está realmente morto. Partridge, acabou-se. És um
de nós. Volta para casa. Partridge despreza acima de tudo a forma como o
seu pai disse aquilo; suavizando a voz como se o amasse, como se o seu pai
fosse jamais capaz de compreender tal coisa. Aquilo nunca acabará. Ele não
é um deles. Não há casa.
— Ele é capaz de te matar — diz Lyda. — Sabes isso.
Partridge acena com a cabeça:
— Pois sei.
De repente, um Poeira ergue-se do solo, tão perto do pé de Lyda que a
terra abate e ela perde o equilíbrio.
A visão aperfeiçoada de Partridge cristaliza. Enquanto as mandíbulas
do Poeira se abrem, o jovem salta e pontapeia a criatura em cheio na cabeça
rochosa. A sensação da cabeça do Poeira a rachar contra a sua bota é
agradável.
Lyda está de pé, a lança na mão. O Poeira tem agora os olhos fixos em
Partridge.
— Anda lá — desafia Partridge. — Anda! — O seu corpo anseia pelo
combate. O coração bate-lhe no peito, os músculos estão tensos como molas
prontas a saltar.
Mas a Mãe Hestra grita da crista do outro lado da estrada, chamando a
atenção do Poeira. Quando este se vira, ela puxa um dardo de jardim e
arremessa-o com perícia a grande distância, acertando em cheio na testa do
Poeira, que se afunda no solo.
— Por que fez isso? — grita Partridge. — Eu tinha tudo controlado!
Lyda dirige-se para o Poeira, o elemento vivo de cujo corpo se dissolve
na terra, pega no dardo e limpa o sangue escuro à saia.
— Tinhas realmente tudo controlado?
— Claro que tinha.
Ela meneia a cabeça, à laia de repreensão.
— Eu teria tratado dele sozinha.
Partridge solta um suspiro profundo.
— Estás bem?
— Estou ótima. — Lyda sacode o pó da capa. Há nos seus olhos uma
expressão que ele não reconhece.
A Mãe Hestra acena que se despachem e, quando se aproximam o
suficiente, Lyda brada:
— Quanto falta?
— Uns três quilómetros. Mantenham a fila direita. Não falem.
Caminham em silêncio durante o que parecem horas, até chegarem
finalmente a uma fila de prisões em ruínas, das quais apenas duas ainda
estão de pé. As estruturas de aço e partes dos alicerces ainda resistem, mas
o resto ruiu. Do outro lado das prisões encontram-se os restos de uma
fábrica qualquer. Uma das chaminés continua de pé, mas as outras duas
caíram como árvores e foram esmagadas pelo impacto.
A Mãe Hestra detém-se ao chegar a uma longa cicatriz irregular
gravada na terra, diante de uma chapa de metal fixada ao solo por duas
dobradiças caseiras. Esquadrinha os esqueletos de aço distantes com os
olhos. Deve estar uma Mãe de vigia algures lá em cima, porque a Mãe
Hestra levanta o braço e, aparentemente, espera por um sinal. Partridge
estuda a estrutura, mas não vê vivalma.
Por fim, a Mãe Hestra parece receber uma indicação de que o caminho
está livre. Baixa a mão e anuncia:
— Cá estamos. — Levanta a chapa de metal do chão, lutando contra a
maré do vento. A abertura conduz a um túnel escuro.
— O que há lá em baixo? — pergunta Lyda.
— O metro — responde a Mãe Hestra. — Soubemos que era aqui
seguindo a rota da linha que servia os subúrbios. Durante as Detonações, os
túneis encapelaram-se debaixo de terra.
Partridge imagina as carruagens a levantar grandes massas de terra,
criando aquela saliência.
— Percebemos o que o longo rasgão no solo significava assim que o
vimos, depois cavámos para chegar aos túneis.
— Não havia gente presa lá dentro? — indaga Lyda, espreitando para
dentro da abertura oblíqua.
— Todos mortos há muito quando os encontrámos. Fizemos-lhes
funerais dignos. A Nossa Boa Mãe queria honrá-los, pois deram-nos algo de
que precisávamos. Há riquezas nas Terras Mortas. Muitas vezes é preciso
escavar para chegar a elas.
Lyda gatinha pela abertura. Partridge não tem assim tanta pressa. Se as
pessoas não tinham morrido com o impacto, tinham ficado enterradas vivas.
Olha para a Mãe Hestra:
— As senhoras primeiro?
Ela abana a cabeça.
— Vai tu.
Partridge põe-se também de gatas no chão frio e duro. A Mãe Hestra,
agora já dentro do túnel, atrás dele, bate a porta. O túnel fica mergulhado
em escuridão.
De súbito, um clarão ilumina a extremidade do túnel. O rosto de Lyda
aparece, banhado em luz dourada.
— É perfeito — diz ela, e, por um momento, Partridge imagina que
toda a sua infância o espera ao fundo do túnel: ovos de Páscoa pintados,
dentes de leite, o seu pai apenas um arquiteto trabalhador, um burocrata de
meia-idade, a sua mãe a meter roupa húmida na boca aberta do secador. Um
lar, a coisa que foi roubada. Perfeito, como se algo perfeito jamais tivesse
existido.
Capítulo 7

El Capitan
Pira

El Capitan desce penosamente a encosta. Silvas que lembram pequenas


garras arranham-lhe as calças, mas ele não abranda o passo. O vento é
cortante, mas ele está transbordante de energia. Hastings, Talvez não seja
uma batalha ou uma saudação, mas algo tão simples como o nome do
soldado. Isso não lhe ocorrera imediatamente porque El Capitan não pensa
nos membros das Forças Especiais como sendo suficientemente humanos
para terem nomes, mas é claro que foram crianças normais outrora; na
verdade, mais do que normais. Foram as crianças mais privilegiadas do
mundo.
Ou deveria El Capitan reconhecer algum significado na palavra? Haste
ele sabe o que significa: apressar-se. Tidings são notícias ou saudações. O
termo tidings usa-se sempre apenas para boas notícias, nunca notícias
hostis, o que seria mais apropriado dadas as circunstância. Combinando as
palavras haste e tidings obtém-se Hastings, certo? El Capitan nunca foi
muito bom com palavras. Gosta de armas, de motores e de eletricidade.
— Hastings — diz ele em voz alta. Helmud não repete; El Capitan
presumiu que ele tinha adormecido, mas para se proteger do frio Helmud
enfia o queixo por trás dos ombros do irmão, encolhe os longos braços
magros contra o corpo e dormita. Ao longe, El Capitan pode até parecer um
homem, completamente sozinho. Imagina que Pressia o vê assim. Por vezes
ela olha para Helmud enquanto falam, mas não o faz como todos os outros,
como se estivesse a olhar para uma deformidade. Não, ela olha para
Helmud como se este fosse um participante da conversa. No entanto, El
Capitan gostaria que Pressia o visse apenas a ele, pelo menos uma vez.
Apenas ele.
Pergunta-se se o soldado irá aparecer novamente, se irá oferecer-lhe
alguma informação real. Bolas, pensa El Capitan, e se eu tiver um
informador? Um contacto lá dentro? Pondera contar a Bradwell e Pressia,
mas gosta da ideia de saber algo que os outros não sabem — dá-lhe uma
pequena sensação de poder.
Está a aproximar-se dos sobreviventes ocupados a erigir a pira e
verifica que já recolheram paus, arrastaram troncos rachados e dispuseram
ramos delgados de modo a poderem acender uma grande fogueira, embora a
lenha pareça verde e húmida. Alguns homens empurram carrinhos de mão.
Observam-no pelo canto do olho, mas não se detêm.
Há três raparigas sentadas no chão, a entoar uma canção. As raparigas
são todas Pós (os nascidos no Depois) e, como todos os outros Pós, são
deformadas. O impacto das Detonações nas células atingiu as próprias
hélices de ADN. Ninguém foi poupado, nem mesmo esta geração. Uma das
raparigas tem a cabeça rapada, como se tivesse sido submetida a uma
desparasitação recente, pondo a nu os ossos nodosos do crânio,
protuberante de um dos lados como se albergasse mais do que um único
cérebro. O ombro de outra rapariga projeta-se para diante por baixo do
casaco. Todas ostentam manchas na pele e olhos fundos.
Quando o veem, as raparigas levantam-se e baixam a cabeça. O
uniforme da OSR foi associado a um sentimento de medo durante muito
tempo e não há muito que ele possa fazer a esse respeito, pelo que usa o
medo em seu favor. O medo pode ser um trunfo.
— À vontade — diz. A rapariga com o ombro saliente ergue o olhar e
estremece, assustada por Helmud, que deve ter acabado de levantar a
cabeça. — E só o meu irmão, nada mais.
Um dos homens aproxima-se. Tem a barriga intumescida, talvez um
tumor que lhe alargou as costelas.
— Não pretendemos fazer mal algum. Somos pelo bem maior.
— Só tenho curiosidade no que poderá estar a passar-se aqui — replica
El Capitan, puxando a espingarda para a frente.
— Recebemos recado — diz o homem.
Uma rapariga alta, mais velha, com uma trança de pele saliente no lado
do rosto, declara:
— Ela é real! Eles podem salvar-nos. Ela é a prova viva. Eu fui uma
das que a encontraram. É isso que se passa. Não foi muito longe daqui.
— Aguenta aí — atalha El Capitan. — Parece que querem atear um
fogo.
— Fogo — ecoa Helmud e todos ficam a olhar para ele, boquiabertos.
— Queremos que eles vejam que a encontrámos e temos estas três para
lhes oferecer — diz a jovem com a trança na face. — Vamos alinhá-las e
esperar.
— A do meio é minha — informa o homem de costelas largas,
apontando para a rapariga de cabeça rapada.
— Quem encontraram aqui? — indaga El Capitan. — Quem é ela?
— Quem é ela? — repete Helmud.
— A Menina com a Nova Mensagem — responde a jovem.
— Prova de que podem salvar-nos a todos!
— Quando encontraram essa menina?
— Este é o terceiro dia santo — diz a jovem.
— E quem pode salvar-nos, ao certo? — pergunta El Capitan, mas já
sabe a resposta. A Cúpula enviou uma mensagem através de uma criança.
Terá sido por isso que o soldado o conduziu até ali? A jovem sorri, a trança
na sua bochecha toda franzida. Ergue as mãos para a Cúpula.
— Os Benevolentes — responde. — Os nossos Vigilantes.
El Capitan já ouviu aquele tipo de conversa; os seguidores da Cúpula,
os que confundiram Willux e o seu povo com deuses, e a Cúpula com o
paraíso. Esfrega o cano da espingarda, apenas para lhes recordar que
existem mais poderes a ter em conta, para além da Cúpula.
— Não me parece que isso seja boa ideia — declara calmamente.
— Vou ter de vos pedir para dispersarem.
— Mas nós estamos a preparar a Menina com a Nova Mensagem para
a pira — objeta a jovem. O seu rosto iluminou-se como se tivesse tido uma
revelação. Os seus olhos estão desfocados.
— Vão queimá-la?
— Queimá-la? — sussurra Helmud. El Capitan ouve o estalido do
canivete a abrir.
— Vamos venerar e adorá-la. E esperar que eles levem as outras.
— A jovem oscila ao falar, a saia a roçar-lhe nas canelas pálidas e
acinzentadas.
El Capitan olha de novo para as três raparigas. Elas franzem os olhos e
inclinam a cabeça. Nem sequer parecem assustadas, o que enerva El
Capitan.
— Os anjos — diz o homem das costelas largas — nunca estão longe.
A jovem diz:
— Não ouve o zumbido dos seus espíritos sagrados?
— As Forças Especiais? Isso não é nenhum zumbido sagrado, garanto-
vos.
— Garanto — ecoa Helmud.
— Você não acredita — declara a jovem. — Mas vai acreditar. El
Capitan aponta a arma ao homem com o carrinho de mão.
— E que tal trazerem-me a menina, imediatamente?
— Imediatamente — sussurra Helmud.
A jovem olha para o homem com o carrinho de mão. Ele faz que sim
com a cabeça.
— Ela está na cidade, protegida — informa a jovem. — Posso mostrar-
lha. — Começa a caminhar para a outra orla da floresta. El Capitan segue-a.
Ela olha por cima do ombro, mostrando a bochecha bolbosa, entrançada, e
insiste: — Ela é real, estou a dizer-lhe. É a prova. Ela mesma lho dirá.
Mas mal termina a frase, os olhos da jovem da face entrançada
dardejam para trás de El Capitan e arregalam-se. Num tom maravilhado,
sussurra:
— Olhe!
El Capitan não quer olhar. Aquilo não pode ser bom. Helmud arqueia-
se nas suas costas, rodando para ver o que está atrás deles. El Capitan
respira fundo e vira-se.
Para lá da pira, a gigantesca Cúpula ergue-se no topo de uma colina, a
sua mole a dominá-los, a cruz a furar as nuvens escuras como carvão. A
princípio, ele não vê nada de anormal, tirando alguns pequenos pontos
pretos. Depois verifica que os pontos estão a deslocar-se. Têm pernas. Não
são pontos, mas criaturas pequenas e pretas, semelhantes a aranhas, que
saem rastejando de uma pequena abertura na base da Cúpula. Brilhantes e
robóticas, deslizam por cima e em torno umas das outras.
— Estão a mandar-nos presentes! — exclama a jovem.
— Não me parece. Não, nada de presentes — replica El Capitan.
Helmud repete:
— Nada de presentes.
Mesmo àquela distância, El Capitan jura que consegue ouvir o clique
dos corpos metálicos das criaturas, o restolhar da areia sob as patas providas
de pinças. Criaturas perversas, criações da Cúpula. Tem de mandar recado a
Bradwell e Pressia.
— Não temos muito tempo — diz ele para a jovem. — Toca a andar.
No caminho para a cidade, El Capitan fica a saber que a jovem da face
entrançada se chama Margit. Ela fala incessantemente: sobre ir colher
cogumelos e ter encontrado a menina com a sua amiga cega, mas El
Capitan mal a ouve. Quando ela abranda o passo, ele dá-lhe um ligeiro
empurrão nas costas com a espingarda. Quanto tempo faltará para que as
aranhas robóticas cheguem à cidade? Tinham as pernas pequenas, mas
rápidas.
El Capitan e Margit avançam rapidamente por becos orlados de
barracas enegrecidas, feitas de pedras empilhadas, contraplacado, oleados.
A cidade está em apodrecimento permanente: o fedor acre a morte, o cheiro
adocicado de corpos em decomposição, de carne assada em espetos.
Contornando os Campos de Destroços, El Capitan vai contando os
penachos de fumo. É um hábito. Cada penacho de fumo que se ergue das
pedras representa uma caverna ocupada por Poeiras ou Bestas, que se
alimentam dos sobreviventes que arrastam lá para baixo. El Capitan perdeu
uma quantidade de soldados nos Campos de Destroços.
Mantém-se atento às Forças Especiais que costumam varrer a cidade.
Mas não há sinais delas, o que o deixa pouco à vontade. Terão evacuado
porque sabem da vinda das aranhas?
Margit condu-lo a uma conduta subterrânea, guardada por um
Agrupado: dois homens ligados pelo tronco e uma mulher que tem metade
do corpo fundida nas costas de um dos homens. Talvez fossem
desconhecidos, projetados uns contra os outros pelas Detonações numa
paragem de autocarro ou numa fila para a caixa de um banco. Pelo menos
El Capitan está fundido com uma pessoa que conhece. Da família.
Um dos Agrupados tem uma corrente, o outro uma pedra, e a mulher
atrás deles franze o sobrolho sob um capuz escuro. Veem a arma, o
uniforme, e recuam um pouco.
Margit anuncia:
— Ele quer vê-la com os seus próprios olhos.
Eles acenam e afastam-se.
A conduta desabou de um lado, mas parece sólida. O teto é demasiado
baixo para El Capitan e Margit permanecerem de pé, pelo que se baixam
para entrar e têm de caminhar curvados. As costas de Helmud roçam no
teto. Ele geme.
— Para de te queixar — diz El Capitan.
— Queixar — diz Helmud.
El Capitan vê um candeeiro a óleo caseiro e algumas pessoas reunidas
em redor da luz. Para e diz a Margit:
— Quero vê-la sozinho. Sem mais ninguém.
— Ela é demasiado preciosa — protesta Margit.
— Azar.
Podemos ficar nós as duas? As que a encontraram? Ficaremos caladas.
El Capitan olha para os rostos salpicados de sombras.
— Está bem, mas mandem os outros todos embora.
— Os outros — diz Helmud, como se fosse melhor do que eles porque
pode ficar. Para onde iria ele, afinal?
Margit dirige-se para o grupo. Discutem brevemente, depois
dispersam, passando por El Capitan enquanto se esgueiram apressadamente
pela conduta. Além de Margit, ficam apenas dois vultos sentados no chão,
um maior do que o outro, a recoletora cega e a criança.
Quando El Capitan se aproxima, Margit diz:
— Este homem quer falar contigo. Quer saber a verdade.
El Capitan passa a espingarda para trás das costas de Helmud e
ajoelha-se. Mais perto da luz, consegue ver os olhos da recoletora cega,
queimados pelas Detonações. Há muitos cegos como ela. As cataratas não
são leitosas como as da avó de El Capitan no Antes. Não, aqueles olhos
parecem cintilar, mais felinos do que humanos.
— Esta menina é santa — diz a cega. — Foi guardada por Anjos até
nós chegarmos e depois deixaram-na para nós. — Estende a mão e toca no
rosto pálido da rapariguinha. A respiração desta prende por um instante,
depois ela começa a chorar.
— A voz dela... — diz a recoletora cega. — Não é como a nossa. Foi
tornada Pura. Não tem qualquer aspereza. E como sinos!
— É porque ela foi feita de novo! — exclama Margit. — É a Menina
com a Nova Mensagem, que vai salvar-nos a todos!
— Eu talvez possa ajudar — diz El Capitan à rapariguinha. — Espero
poder.
A rapariga olha para ele, afasta o cabelo do rosto, que é pálido e
cremoso como leite.
— Dizem que ela foi tornada Pura? — pergunta El Capitan.
— Pura? — diz Helmud, inclinando-se para ver melhor.
— Arregace-lhe as mangas — diz Margit. — Veja com os seus olhos,
se é disso que precisa para acreditar.
— Eu não preciso — declara a recoletora cega orgulhosamente.
El Capitan olha primeiro para a rapariguinha, depois pega-lhe no pulso.
Ela não parece ter medo. De facto, tem uma expressão implorante. Ele puxa
uma manga, revelando carne imaculada. Incrédulo, puxa a outra manga.
Outro braço igualmente impecável.
— Ela não nasceu na Cúpula? Não é uma Pura?
— Era mutilada e vivia com os enjeitados. Alguns dos órfãos
identificaram-na — explica Margit.
— Como te chamas? — pergunta El Capitan à rapariguinha. Ela não se
mexe, não diz uma palavra.
— O nome dela é Wilda — diz Margit. — Os órfãos disseram-no e ela
acena quando o ouve.
— Diz-lhe a Nova Mensagem — diz a recoletora cega, estendendo a
mão e tocando no cabelo brilhante da criança. — Diz-lhe.
A rapariguinha entrelaça os dedos, aperta-os contra o queixo e fecha-se
em si própria.
El Capitan pergunta:
— Há alguma coisa que me queiras dizer?
A mão de Helmud aparece por cima do ombro de El Capitan. Segura
um pequeno barco, talhado em madeira. Raios, pensa El Capitan, o Helmud
fez isto? É tão delicado, tão bonito que El Capitan se sente um pouco
engasgado. Os seus olhos inundam-se de lágrimas e ele fecha-os com força.
O barco é um presente. El Capitan abre os olhos e vê a rapariguinha
aceitá-lo, pegar-lhe nas mãos em concha.
— Diz-me — pede Helmud. — Diz-me.
Capítulo 8

Pressia
Cadete

— Já fizeste perguntas pessoais às caixas? — pergunta Pressia a


Bradwell. — Sabes, acerca dos teus pais?
Estão a comer carne que parece cera de latas, na extremidade limpa
da mesa de metal. Ele faz um sinal afirmativo.
— Fiz, sim.
Fignan está no chão, postado ao lado de um radiador que de vez em
quando emite um jato débil de calor húmido, braços e pernas recolhidos
dentro do corpo. As suas luzes estão fracas. Pressia aproxima-se e ajoelha-
se ao seu lado.
— Ele gosta de se manter quente?
— Creio que está a sugar energia, na verdade. Parece ser atraído para
as tomadas, para o candeeiro que uso para ler e para o radiador quando
começa a zumbir. Não sei como consegue extrair energia deles, mas isso
explica como sobrevive.
— E as outras?
— Sempre que as deixo sair do gavetão, fazem a mesma coisa.
Assim que Bradwell menciona o gavetão, Pressia pensa no rapaz
morto, cheio de pisaduras e com o guiador nas costelas. Não pode sacudir a
imagem do corpo estendido na laje. A sua mente percorre rapidamente as
mortes a que assistiu nos últimos meses. Estremece.
— Então ainda pensas nos teus pais?
— Mais do que nunca.
— Porquê?
— Estou a aproximar-me mais perto deles, não a afastar-me. Ingership
disse que Willux conhecia os meus pais. Eles ainda estão ligados a este
mundo, através do seu trabalho no sentido de tentar deter Willux e através
de mim. Tal como com a tua mãe, certo? Ela ainda aqui está. O cisne, o
Sete. É tudo muito confuso, mas significa alguma coisa.
— Suponho que sim.
— Eu não sou como El Capitan. Ele quer derrubar a Cúpula. E
Partridge, esse, quer vingar-se do pai. Eu só quero que todos saibam a
verdade.
— Peço desculpa pelo que disse há bocado. Eu sei que os teus pais
arriscaram tudo pela verdade. Quero saber a diferença entre o que é real e o
que foi inventado e apresentado como sendo a verdade.
Mas para ela isso não significa o mesmo que para Bradwell. Ele quer
saber a verdade sobre o mundo. Ela quer apenas saber a verdade sobre si
própria nesse mundo. Parece um desejo tão egoísta, tão pequenino e
mesquinho. Emi Brigid Imanaka. São apenas três palavras. E Pressia Belze
é uma invenção.
— Ótimo — diz Bradwell. mas quando ela relanceia os olhos na sua
direção, ele está a olhar para ela com uma expressão que a deixa quase certa
de que não acredita nela. Talvez ele saiba o que ela quer. — Vai em frente.
Pergunta ao Fignan acerca da tua mãe e do teu pai.
Pressia pousa a mão ao de leve na parte superior da caixa.
— Devo perguntar?
— Só se quiseres.
— Tenho a sensação de que é batota. — Retira a mão. — Quero
lembrar-me deles sozinha, mas não me parece que consiga. Por que não me
lembro das Detonações? Ou, para dizer a verdade, de quase nada do Antes?
— Alguma vez quiseste mesmo lembrar-te?
— Preciso de o fazer — replica ela. — Quer dizer, tenho de atravessar
essa parte se quiser chegar ao Antes. Sinto que é como uma porta fechada
para um sótão. Se eu a abrir, vou encontrar as coisas que o meu cérebro
bloqueou das Detonações, e, nas profundezas do sótão, talvez encontre
recordações da minha mãe e do meu pai.
— Sabes, outro dia estive a pensar nisso: tu eras fluente em japonês —
diz Bradwell. — Viveste lá, criada pelo teu pai e pela tua tia. A língua está
dentro de ti, lá no fundo.
— Suponho que sim, fechada como tudo o resto.
— Talvez isso seja parte da razão: a falta de uma língua para aplicar ao
que estava a passar-se. Não conseguiste processar tudo aquilo.
— Eu sabia as palavras da canção sobre a rapariga com o vestido
enfunado na varanda, que a minha mãe me cantava.
— Isso é uma recordação segura — diz Bradwell.
— Queres dizer que não tenho coragem para me lembrar das coisas
difíceis?
— Só queria dizer que...
Alguém bate à porta com força. Fignan acende-se, com o motor a
rosnar.
— Bradwell! — grita um homem. Bradwell dirige-se para a porta.
— Quem é?
— Recebemos notícias de El Capitan. É importante.
Bradwell levanta a tranca e sai para o corredor.
Pelo tom das vozes, Pressia percebe que a mensagem é urgente. Algo
correu mal. O seu estômago revolve-se. Olha para a fileira de luzes,
alinhadas como uma série de olhos nas costas de Fignan. Sete cisnes a
nadar, pensa Pressia, mas não faz ideia de onde vêm aquelas palavras.
Fignan olha para ela, como um cão que sabe apenas um truque. Ela ajoelha-
se, inclina-se para a caixa negra e sussurra:
— Contavas-me acerca dos meus pais, se te pedisse? — Enquanto fala,
Pressia pergunta-se se terá medo de saber a verdade sobre os seus pais. Será
que isso a fará sentir ainda mais a falta deles? Irá deparar com informações
que preferia não saber? Afinal de contas, ela é bastarda, uma criança
secreta.
Fignan eleva-se. Um dos seus braços projeta-se, agarra algumas
mechas de cabelo de Pressia e puxa, arrancando-as da cabeça dela.
— Au! — protesta Pressia, levantando-se e massajando o ponto dorido.
— Para que raio foi isso?
O cabelo desaparece como um fio enrolado rapidamente por um motor
dentro da caixa. Assustada, ela afasta-se de Fignan, esbarrando na mesa de
metal e desequilibrando o sino, que tomba para o lado. Rola da mesa e cai
para o chão.
Ela apanha-o e prepara-se para o repor no sítio, mas primeiro olha para
o recorte de jornal. Toda a manchete é legível agora: AFOGAMENTO DE
CADETE INTERNACIONAL CONSIDERADO ACIDENTE. O nome do
rapaz aparece por baixo da respetiva fotografia: Cadete Ivan Novikov.
Pressia pega no recorte, que explica que a operação de treino foi um esforço
internacional. Os Melhores e Mais Inteligentes de vários países tinham sido
reunidos, num esforço diplomático no sentido de uma troca aberta entre
culturas. Tanto quanto Pressia pode avaliar, tratava-se de um ramo dos
Melhores e Mais Inteligentes que reunira os jovens mais destacados entre a
elite juvenil de todo o mundo, o que explica como o seu pai japonês fora
convidado. Ivan Novikov era oriundo da Ucrânia. O rosto do jovem parece-
lhe assombrado, mas talvez isso seja apenas porque sabe que ele está morto
há muito. É bem-parecido e sério. Por baixo daquele recorte, há outro. A
manchete diz: CADETE CONDECORADO COM ESTRELA DE PRATA
POR HEROÍSMO. Há novamente uma fotografia de um cadete, mas desta
vez é um rosto que ela reconhece: embora seja mais novo e tenha os olhos
mais escuros e mais vivos. Cadete Ellery Willux. Pressia passa os olhos
rapidamente pelo artigo. Willux,. de 19 anos, tentou salvar o Cadete
Novikov num acidente de treino. «É uma pena, porque o rapaz {Novikov}
estivera algum tempo doente», disse o Agente Decker. «Tinha justamente
começado a recuperar. Foi o seu primeiro mergulho da temporada.»
Houvera um funeral e mais tarde, no mesmo dia, uma cerimónia de
atribuição da condecoração. Pressia continua a ler na diagonal, depois os
seus olhos detêm-se numa citação específica: «É um dia triste, mas o
heroísmo está a ser recompensado», disse o Cadete Walrond.
Walrond, como Arthur Walrond, o amigo da família que convenceu os
pais de Bradwell a dar-lhe um cão? Um cão chamado Art Walrond? Ele era
um dos Melhores e Mais Inteligentes? Aquele centro de treino seria o lugar
onde Willux, a sua mãe e o seu pai se tinham conhecido? Aquele episódio
acontecera antes ou depois de formarem os Sete? Por que não lhe falara
Bradwell em nada daquilo?
Pressia arruma os dois artigos tal como os encontrou, com o sino em
cima. Fignan aproxima-se. zumbindo. Ela afasta-se. Ele para e as luzes
piscam de modo brincalhão. Depois ele geme. É quase um lamento. Estará a
pedir desculpa?
Ela inclina a cabeça, levanta os olhos.
— O que queres de nós? — pergunta.
A caixa negra não diz uma palavra. Talvez não esteja programada para
querer. Pressia pergunta-se se compreenderá sequer o conceito de desejo e
medo.
Bradwell reentra na sala e observa:
— A conversar com uma caixa? Não é má companhia, pois não? Ela
fica envergonhada.
— Que dizia a mensagem de El Capitan?
— Vou encontrar-me com ele perto dos Campos de Destroços. Há uma
miúda. Um caso estranhe E aranhas. Algo acerca de aranhas.
— Ele não quer que eu vá também?
— É muito perigoso para aqueles lados.
— Vou contigo. Quero ajudar.
— O Cap mata-me se te deixar vir.
— Estou a ser vigiada para meu próprio bem, ou sou prisioneira aqui?
— Sabes a resposta a isso. O Cap só quer...
— Se me sinto como uma prisioneira, então é porque o sou.
Bradwell enterra as mãos nos bolsos e suspira.
— Não sou frágil. — Mas não tem a certeza de isso ser verdade.
Existirá agora uma fissura dentro dela — ela puxou o gatilho e a sua mãe
morreu — e será uma fissura que nunca vai realmente sarar?
Ele levanta os olhos, encara-a.
— É demasiado cedo.
— Estás a esquecer-te de uma coisa. — Pressia reconhece aquela voz,
baixa mas segura.
— De quê?
— Eu tomo as minhas próprias decisões, e isto não é contigo.
Capítulo 9

Lyda
Carruagem De Metro

Em criança, Lyda nunca andava de metro. Quem o frequentava eram os


indesejáveis: revolucionários, a gentalha carregada de vírus e os pobres, a
quem Deus não ama o suficiente para abençoar com riquezas. Os filmes
Onda Vermelha de Probidade mostravam cenas em que os indesejáveis
eram expulsos do metro. O seu pai gostava desses filmes, e dos jogos de
vídeo que os acompanhavam.
Mas ela nunca esperara que uma carruagem de metro pudesse ficar
assim. O chão está vergado e cheio de cacos de vidro e destroços. As
janelas estão estaladas em padrões que lembram teias de aranha. O resto da
carruagem está intacto: os bancos de plástico cor de laranja, os varões
cromados, os mapas da rede do metro e os cartazes publicitários sob acrílico
estilhaçado. A lanterna mergulha tudo em sombras mutáveis, como se
houvesse fantasmas a esgueirar-se por trás dos bancos.
— Então isto vai ser a nossa casa por uns tempos — comenta Lyda. —
Quanto tempo?
A Mãe Hestra está a tentar consertar as luzes de Natal que as Mães
haviam pendurado e ligado a uma pequena bateria. As luzes piscam.
— Não sei dizer. Dias ou semanas. Até deixar de ser seguro.
Partridge e Lyda passam suficientemente perto um do outro para que os
seus cotovelos rocem. Lyda vê se a Mãe Hestra reparou. Mas não.
— O que vamos comer? — pergunta Lyda.
— Eu trouxe provisões para alguns dias. Depois, alguém virá trazer
mais.
Lyda tem medo de falar com Partridge. Ele quer que regressem juntos à
Cúpula, traçar um plano' Está a ser atraído pelo passado; é assim que ela
pensa na Cúpula, como algo que deixou para trás, o passado, outro mundo.
Como poderia voltar para lá? Mas sente-se atraída por ele. Aproxima-se
dele, erguendo a lanterna para um anúncio a uma linha de produtos de
limpeza ensolarados (ARRANJE A SUA CASA COM TODO O ESMERO
DA MELHOR MANEIRA!) e a um refrigerante de limão com bolhas
sorridentes. O cartaz ao lado mostra simplesmente uma jovem a olhar pela
janela. PRECISA DE AJUDA? Indica um número de telefone. «Acha que
ela está deprimida? Com tendências suicidas?»
— Ou grávida e por casar? — segreda Partridge. Isso faz Lyda corar.
Não é possível estar grávida e por casar. Pois não? — Talvez os
funcionários de serviço não se ralassem. Tinham uma só resposta para tudo.
— Asilos — sussurra Lyda. — O que achas da Illia? Ela contou-me
uma história sobre um homem e uma mulher e uma semente de verdade.
Parece faz de conta, mas não é. Tenho a certeza... — Interrompe-se a meio
da frase. Os olhos de Partridge percorrem-lhe o rosto. — O que é? —
pergunta, num murmúrio.
— Deus. Quanto tempo vamos ficar presos aqui? — sussurra Partridge.
— Não vou conseguir aguentar. Não contigo aqui.
O comentário fere-a.
— O que queres dizer com isso?
— Tão perto — diz ele — sem me ser permitido beijar-te?
O seu estômago contrai-se. Ela cobre o rosto com as mãos, depois
murmura:
— Sinto o mesmo.
Ambos foram monitorizados a vida inteira, contados como ovelhas,
ordenados em filas, ensinados a ler em grupo, virando as páginas em
uníssono, tanto no Antes como na Cúpula. Por isso parece cruel que se
encontrem agora ali, onde tudo é selvagem e desconhecido, e, em vez de
poderem ser selvagens também, sejam novamente monitorizados.
Lyda pousa a mão no acrílico e ele imita-a. O mindinho dela toca o
mindinho ferido dele: prova da selvajaria das Mães. Embora ela tenha pena
da perda do mindinho dele, adora a barbaridade das Mães. Adora o peso da
lança na sua mão, adora arremessá-la com toda a força, adora o som grave
que ela faz quando atinge o alvo. Depois de uma infância de emoções
reprimidas, de contenção constante da raiva, de negação do medo, de
vergonha do amor, a barbaridade parece sincera.
A Mãe Hestra diz:
— Um metro entre vocês dois, por favor. Um metro! — Partridge
levanta as mãos, como se quisesse dizer, Não há contacto. Juro! Lyda e
Partridge afastam-se um do outro.
A Mãe Hestra tinha dito a Lyda que, se ela e Partridge fossem deixados
sozinhos, ele iria «fazer avanços indesejados» e poderia até «fazer-lhe mal.»
Mas Lyda adoraria dizer à Mãe Hestra que estava enganada. Lyda sempre
gostara mais de Partridge do que ele dela. Ela adoraria ficar sozinha com
ele, beijar-lhe os lábios, passar as mãos sobre a sua pele e ter as mãos dele a
percorrer o corpo dela. Ela sabe o que os casais fazem quando estão
sozinhos ou, pelo menos, ouviu rumores. Na escola, mantinham as
raparigas na ignorância da maior parte desse tipo de assuntos. Um coração
feliz é um coração saudável, era o que passava por educação sexual, tudo o
que havia a dizer acerca das questões do corpo.
— Vamos trabalhar nos mapas — sugere Partridge. — Temos de os
concluir antes de...
Antes de quê?
— Mãe Hestra — chama Partridge —, a Lyda pode ajudar-me com os
mapas?
A Mãe Hestra mete um pedacinho de comida na boca aberta de Syden.
Pondera o pedido e acaba por assentir.
Partridge tira os mapas da mochila e espalha-os numa parte do
pavimento que foi varrida de detritos.
— Talvez devesses começar o teu próprio mapa. — Dirige-se para o
anúncio acerca do arranjo esmerado da casa. Tira estilhaços de acrílico até
conseguir agarrar a ponta do cartaz e puxá-lo para fora. Entrega-o a Lyda. A
parte de trás do papel está em branco.
Ela olha para Partridge. Precisamos de planear como vamos voltar
para a Cúpula. Foi o que ele disse. Nós. Os dois juntos. É o que ela tem
estado à espera de ouvir, de algum modo, não é? Ela foi educada para vir a
ser uma esposa, parte de um nós, e quem melhor para isso do que Partridge?
Mas agora ela olha para ele e pensa que não existe algo como nós. Cada um
de nós é um indivíduo. Estranho ter percebido isso ali, entre as Mães, entre
os fundidos. Mas é assim mesmo: toda a gente está sozinha, a vida inteira, e
talvez isso não seja mau.
Sente-se subitamente dormente, como se o frio tivesse penetrado nas
suas costelas. Pega no cartaz e olha em redor, e é como se a própria
carruagem fosse uma caixa torácica e cada um deles uma câmara de um
coração pulsante. Sente que poderia morrer ali. Presa e a bater nos vidros. É
por isso que algumas das janelas ostentam o padrão em teia de aranha: as
pessoas tinham-lhes batido com os punhos na esperança de sair dali.
Não havia saída.
Capítulo 10

Pressia
Boneco De Neve

Bradwell conduz curvado para a frente, de modo a não se apoiar nos


pássaros que se agitam sob a sua camisa. Pressia gosta de olhar para as suas
mãos pousadas no volante vermelho e marcado por mossas. Ele remexe nos
botões que ligam o aquecimento, mas não vem calor nenhum, depois prime
o botão dos limpa-para-brisas, para limpar as cinzas e a neve. Apenas um
deles funciona. Oscila de um lado para o outro sobre o para-brisas como
uma cauda truncada. Fignan, que repousa no banco entre Bradwell e
Pressia, estica um dos braços delgados e abana-o em uníssono com o limpa-
para-brisas, como se este estivesse a acenar e a caixa negra retribuísse o
aceno. Pressia apalpa Freedle, confortavelmente instalado no seu bolso.
Esfrega a mão sobre o punho da cabeça de boneca, depois olha para
Bradwell, para as cicatrizes gémeas e irregulares que lhe percorrem a
bochecha.
— Como arranjaste essas cicatrizes?
Ele levanta a mão para lhes tocar.
— Agrupados — explica. — Apanharam-me de surpresa, quase me
mataram. Mas o teu avô fez um bom trabalho, não fez?
— Sempre desejei que ele pudesse consertar-me — diz ela.
— Consertar-te? — pergunta Bradwell, mas depois olha para a cabeça
da boneca. — Oh!
— E os pássaros? — pergunta ela. — Nunca desejaste que viesse
alguém e conseguisse removê-los, por magia?
— Não.
— Nunca? Nem uma vez? Nunca quiseste tirá-los? Só para te veres
livre deles?
Ele abana a cabeça.
— As pessoas que morreram instantaneamente por esse mundo fora, e
as que morreram lentamente, de queimaduras e doenças e intoxicações,
livraram-se de tudo, não foi? Os pássaros significam que eu sobrevivi. Por
mim, ótimo.
— Não acredito em ti.
— Não tens de acreditar.
— Talvez seja diferente para ti, porque não os vês. — Pensa no assunto
por um momento. — Alguma vez viste os pássaros?
— Não me dispo frequentemente à frente de espelhos de corpo inteiro.
— Sabes sequer que tipos de pássaros são?
Ele abana a cabeça.
— São aves marinhas — responde. — Andorinhas-do-mar, creio eu.
Não tenho a certeza.
Por alguma razão, aquilo faz com que ela se sinta melhor, consolada.
Bradwell também não sabe as coisas mais básicas acerca de si próprio. São
desconhecidos um para o outro, mas para si mesmos também.
— Gosto disso — diz Pressia.
— Gostas de quê?
— De tu não saberes uma coisa. Devias experimentar fazer isso mais
vezes.
— Estás a chamar-me sabichão?
— Na qualidade de sabichão, devias saber que és um sabichão.
— O que prova que não o sou.
Bradwell mete para um beco não muito longe da antiga casa de Pressia.
Dantes ela gostava de ir à procura de sucata, de regatear nos mercados,
fosse o que fosse que lhe permitisse sair do quarto das traseiras da barbearia
onde vivia com o avô, mas agora já não gosta de espaços abertos. Fazem
com que se sinta exposta. Tudo parece manchado de falsidade. Quando
andava por aquelas ruas, era uma pessoa diferente.
Saem de um beco para uma rua. A barbearia fica mais à frente. É a
primeira vez que ali está desde a morte da mãe. O que é surpreendente é
como tão poucas coisas mudaram, enquanto para Pressia tudo mudou. Esse
simples pensamento perturba-a: o avô foi-se e ela ainda ali está. Sente-se
culpada por estar viva.
Passam pelo bojo esventrado da barbearia. Em frente, alguém fez um
boneco de neve, enegrecido e coberto de fuligem. Cada uma das suas três
secções está salpicada de detritos — pequenas farpas de metal, bocados de
vidro, pedras — por ter sido enrolada na rua. A forma do boneco está
ligeiramente derretida. Inclina-se para o lado, como se estivesse cansado.
— Para — pede Pressia. — Só um segundo.
— O que é? — Bradwell para o carro e desengata-o. Ela põe a mão em
concha contra a janela e observa a fachada rebentada da barbearia: o antigo
varão às riscas, derretido e deformado, e a fila de espelhos partidos e
cadeiras demolidas, exceto a última, que ainda está intacta.
Pressia lembra-se de um sonho febril da sua infância, no qual contava
postes de telefone; no sonho, era esse o seu trabalho. Mas, em vez de um,
dois, três, ela sussurrava, Comichão no joelho. Sol, ela vai1. Mas por que
teria ela comichão no joelho? Por que falava do Sol que se ia? Estaria a
sonhar com o Sol encoberto pelas cinzas após as Detonações? Seria para aí
que o Sol tinha ido? Alguns dos postes estavam em chamas, outros
enegrecidas e tombados, os fios elétricos a bater ao vento, mas ela sabia que
não devia tocar-lhes. Outra pessoa tocou-lhes e o corpo caiu no chão com
estrondo, ficando depois flácido. No sonho havia também um corpo sem
cabeça. Um cão sem patas. Uma ovelha, pálida e sem pelo, queimada num
profundo tom escarlate. Já não parecia uma ovelha.
— A última vez que aqui estive, levei aquele sino, o que te ofereci —
diz ela. — Porque o usas como pisa-papéis?
— Está a segurar coisas que são importantes para mim. Queres que ele
seja útil, não queres?
Ela brinca com os botões do rádio extinto.
— Coisas que são tão importantes que não me falaste delas? — replica.
— De que estás a falar?
— Arthur Walrond, Willux, o cadete morto? — Ela fita-o de frente.
— Apenas uma coisa que encontrei, mas que não sei o que significa.
Ainda não. — Bradwell suspira. — Podemos ir? El Capitan está à espera.
Ela olha mais uma vez para o boneco de neve, com o corpo bulboso
feito de gelo, metal, vidro, pedras. Um dos olhos está a escorregar pela face
semiderretida.
— É um de nós — comenta Bradwell.
Ela é capaz de ver beleza nos mais ínfimos detalhes daquele mundo
escuro, mas aquilo?
— Está um pouco perto demais do alvo — responde.
— Não sei grande coisa de arte — diz Bradwell —, mas acho que é
isso que ela deve fazer, por vezes.
Então Pressia vê algo trepar pelo ombro do boneco de neve.
— O que era aquilo?
— Uma aranha? — aventa Bradwell.
Outra aranha, grossa e metálica, dardeja em frente do carro.
— Mais uma — diz ela.
— E mais ali — diz Bradwell, apontando para outras duas que trepam
pelo pavimento rachado e coberto de neve, deslocando-se como
caranguejos, e para uma terceira, empoleirada num tubo de drenagem
exposto.
Engata a mudança e acelera a fundo.
— Era a isto que El Capitan se referia? Aranhas robóticas?
Mais aranhas rastejam ao longo do caixilho de uma montra estilhaçada.
— São todas iguais — observa Pressia. — Recém-construídas. Têm de
ser obra da Cúpula. Não há outra explicação. — Agarra-se ao banco,
enquanto o carro ressalta por cima de buracos.
— Sabes o que elas fazem, não sabes? — diz Bradwell sombriamente.
Pressia sente-se enjoada. Reconhece o metal preto, as articulações
feitas de rolamento de esferas nas pernas das aranhas.
— O rapaz morto que está na morgue.
— Uma dessas coisas arrancou-lhe a perna.
— El Capitan bem podia ter-nos dado um pouco mais de informação
acerca das aranhas — comenta Pressia.
— Talvez não saiba do que elas são capazes. Por enquanto. — Lança-
lhe um olhar de esguelha. — Estás satisfeita por ter vindo?
Mas ela prefere estar ali do que no quartel-general. Precisa de andar
novamente por fora, pelo mundo. Tem de provar que não é frágil — talvez
mais a si mesma do que a qualquer outra pessoa.
Bradwell passa com o carro por cima de um sulco e estaciona. El
Capitan está ao lado de uma parede de tijolos arruinada, com os braços
finos de Helmud agarrados aos seus ombros.
Pressia e Bradwell saem do carro. Ambos esquadrinham o chão em
busca de aranhas.
A rua está vazia, tirando um Agrupado — dois homens corpulentos e,
um pouco atrás deles, uma mulher — de pé ao lado de El Capitan. O
ambiente ali é profundamente familiar: um povoamento denso de alpendres
e cabanas cobertas por oleados, a atmosfera fumarenta, a chuva quase
constante de cinza. Tem o cheiro do lar, algo acre e sulfúrico na parte de
trás da garganta de Pressia. Tem o cheiro da infância, e ela pode permitir-se
essa nostalgia; até mesmo uma infância envenenada e desolada pode deixar
saudades.
— O que raio faz a Pressia aqui? — pergunta El Capitan.
— Pressia — diz Helmud com um sorriso.
— Olá, Helmud — cumprimenta Pressia, depois dirige-se a El Capitan:
— Obrigada pela dica sobre as aranhas. Uma descrição um pouco mais
detalhada para a próxima?
— O que foi? Esperavas uns aranhiços inofensivos? — replica El
Capitan, mas logo percebe que foi mauzinho. Pressia sabe que ele está a
esforçar-se para ser melhor pessoa, mas não é tarefa fácil.
— Desculpa — murmura.
— Aranhiços — ecoa Helmud.
— Elas são letais, Cap — diz Bradwell. — Sabes que sim.
— Letais?
— O rapaz encontrado no bosque — explica Bradwell. — Lembras-te
do aspeto da perna dele? Os ganchos na carne? Talvez tenha sido morto por
um protótipo, sabes, um pequeno conjunto de teste.
Helmud inclina-se para frente, observando a expressão do irmão, talvez
para tentar avaliar o seu medo.
— Bem, temos aqui outros problemas. — El Capitan acende um
fósforo e atira-o para um balde de metal com um fardo de roupa.
— Certifiquem-se de que isto fica reduzido a cinzas — ordena ao
Agrupado. Depois dirige-se para a entrada de uma conduta próxima.
— Nada de movimentos bruscos. Atenção a aranhas. A maioria ainda
não chegou cá, mas vêm aí.
Quando entra na conduta, Pressia recorda-se daquele sítio. O avô
levara-a lá, numa noite chuvosa, e dissera-lhe para se esconder ali depois de
fugir através do painel do fundo dos armários. Devia ter ido para ali na
noite em que fora à procura de Bradwell, quando encontrara Partridge — ou
fora conduzida até ele. Se se tivesse escondido naquela conduta, ainda seria
a mesma rapariga que andava à procura de sucata pela cidade? O seu avô
ainda seria seu avô? Ainda estaria vivo?
— Estás bem? — sussurra Bradwell. Ela deve ter um ar aturdido.
— Tudo bem — responde, sacudindo a sensação de frio.
— A miúda é uma sobrevivente, uma Pós — prossegue El Capitan. —
A Cúpula levou-a, tornou-a Pura e devolveu-a. Traz uma mensagem.
— Tornou-a Pura? — murmura Pressia. — Isso não é possível.
— Agora é — afirma El Capitan.
— É! — diz Helmud. com os olhos a brilhar.
Um formigueiro quente espalha-se pelas costas de Pressia. É possível
tornar alguém Puro?
Chegam junto de duas jovens da idade de Pressia e de uma rapariga
mais nova, todas encolhidas contra a parede. El Capitan apresenta uma das
jovens, que tem um naco de pele torcida numa das faces, como sendo
Margit. A outra é uma amiga cega de Margit. El Capitan não indica o seu
nome.
— Adoradores da Cúpula — diz ele num tom enojado. A cega replica
defensivamente:
— O que querem que adoremos sem ser isso?
Bradwell detesta adoradores da Cúpula. Retruca de imediato:
— A Cúpula é o vosso inimigo, não o vosso deus.
— Quando ouvires a Nova Mensagem, vais morder a língua — declara
Margit.
Bradwell abre a boca, mas Pressia agarra-lhe no braço.
— Não ligues. — Dirige-se para a criança de quem têm estado a falar.
É pálida, de olhos claros e cabelo ruivo escuro.
— Chama-se Wilda — informa El Capitan. — Queimei as roupas dela,
não fosse terem dispositivos de vigilância.
Wilda usa um vestido velho, que lhe fica muito largo no pescoço, com
as mangas arregaçadas acima dos cotovelos. Pressia nunca viu outro Puro
além de Partridge e Lyda. Criança como é, aquela rapariguinha parece
duplamente Pura e vulnerável. Pressia tem vontade de a proteger, talvez por
causa da forma como a pequena olha para ela, com uma expressão tão
desesperada e solitária.
— A miúda que é Pura, mas não uma Pura? — diz Pressia.
— Seja ela o que for, traz uma Nova Mensagem da Cúpula — diz El
Capitan.
— A verdade! — exclama Margit.
Wilda tem um pequem barco de madeira nas mãos.
— O que é isso? — pergunta Pressia. Helmud grita:
— A verdade!
— É um barco. Helmud talhou-o em madeira. Deu-o à miúda.
Pressia olha para o pequeno barco.
— Gosto do teu barco — diz à pequena. — Bom trabalho, Helmud.
Não sabia que talhavas figuras.
Ele baixa a cabeça, subitamente tímido. El Capitan acocora-se,
desequilibrado pelo peso de Helmud nas suas costas.
— Diz-lhes a mensagem. Diz-lhes.
Helmud abana a cabeça. Não quer ouvir.
A rapariga mete o barco no bolso e olha para todos eles.
— Queremos a devolução do nosso filho — diz ela, com os lábios
franzidos como se a sua boca não abrisse completamente.
Pressia acena, encorajando-a a continuar.
— Esta menina prova que podemos salvar-vos a todos — prossegue,
depois comprime os lábios numa linha fina, encosta o queixo ao peito.
Pressia fica alarmada ao ver como um rosto que é tão perfeito pode ter uma
expressão tão angustiada. As bochechas de Wilda ficam afogueadas e hirtas.
Os seus lábios parecem tão rijos como nós dos dedos. Ainda assim, brotam
mais palavras. — Se desprezarem o nosso apelo, mataremos os nossos
reféns... — Wilda fecha os olhos com força, abana a cabeça violentamente
para trás e para a frente. Não quer dizer nem mais uma palavra, mas estas
estão na sua garganta, fazem mexer os seus lábios. — Um a um. — A
pequena começa a levantar a mão direita, mas depois agarra no seu próprio
pulso, detendo-se, e começa a chorar.
— Pronto, pronto — diz Pressia. Olha para El Capitan e Margit. —
Digam-lhe que pode parar.
— Parar! — brada Helmud, esfregando as orelhas.
— Mas ela não consegue — diz El Capitan. — Não está programada
para parar.
Embora olhe para Pressia de olhos arregalados, suplicantes, Wilda
arranca o braço da prisão do próprio punho e faz uma pequena cruz no
centro do peito, rematando-a com um círculo.
— A Nova Mensagem — diz El Capitan num tom cansado.
— O que significa, podem salvar-nos a todos? — Pressia nunca teve
oportunidade de ser como aquela rapariguinha, sem cicatrizes, nem marcas,
nem fusões. Isso foi-lhe negado. Tornaram aquela rapariga Pura. Pressia
poderá recuperar a sua própria Pureza? Poderá voltar um dia a ver a sua
mão, a sua mão autentica, nua? A queimadura em forma de crescente que
lhe marca o rosto poderá ser apagada? E os pássaros de Bradwell? E se El
Capitan e Helmud pudessem voltar a ser donos de si próprios?
— Reféns, Pressia! — exclama Bradwell. — Eles vão matar pessoas.
Pressia fica envergonhada por o seu primeiro pensamento ter sido
acerca de ser tornada Pura, mas também não gosta que Bradwell a corrija.
Ele apoia a mão à parede curva da conduta e abana a cabeça.
— Vão salvar-nos — diz Margit. — Os reféns serão tornados novos!
— Novos — sussurra Helmud para Pressia. — Novos!
— A Cúpula não vai sequestrar pessoas para as tornar novinhas em
folha! — afirma Bradwell.
— As aranhas — diz Pressia. — É assim que as pessoas serão feitas
reféns e mortas. É por isso que aqui estão.
— Se lhes dermos o filho deles, podem tornar-nos Puros a todos!
— proclama a mulher cega.
— Partridge — diz El Capitan em voz baixa. A rapariguinha levanta-
se, vacila por um momento, depois começa a caminhar em direção à
entrada.
— Wilda! — chama Pressia.
Margit corre para Wilda e torce-lhe o braço.
— Não podes ir a parte nenhuma — declara. — Tens de lhes dizer para
nos salvarem!
Pressia grita a Margit:
— Larga-a! Estás a assustá-la!
Margit solta o braço de Wilda. Esta recolhe-o rapidamente contra o
peito, massajando-o, e grita:
— Queremos a devolução do nosso filho! — Mas o seu tom é mais de
repreensão do que de quem transmite uma mensagem.
A cega põe-se em pé, cambaleando, e começa a balouçar como se
estivesse bêbeda.
— Podemos ser tornados Puros! É à maneira da Primeira Bíblia. Deus
deu-nos o seu único filho. Temos de o devolver!
— Parem de adorar os vossos opressores! — clama Bradwell.
— Sabes por que estás cega? Foram eles que te fizeram isso. Foram
eles que fizeram tudo isto!
A mulher cega silva em resposta:
— Que provas tens? Eu tenho a própria Cúpula! Eu tenho esta menina!
Esta menina Pura!
— Esta menina Pura — diz Helmud, com a voz cheia de esperança.
Pensará que a Cúpula pode salvá-lo? Separá-lo do seu irmão e torná-lo
Puro? Pressia adoraria acreditar que podia ser tornada Pura, novinha
em folha, para usar a expressão de Bradwell. — Esta menina Pura!
— Cala a boca, Helmud! — grita El Capitan, e depois todas as vozes
se elevam, tão alto que ecoam nas paredes da conduta. Até Helmud grita
com o irmão:
— Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!
Wilda cerra os olhos com força e brada:
— Esta menina prova que podemos salvar-vos a todos! Podemos
salvar-vos a todos! Se desprezarem o nosso apelo, desprezarem o nosso
apelo! Mataremos os nossos reféns, um a um. — Depois traça uma cruz
sobre o peito e remata-a com um círculo, com tanta força que lhe deve ter
doído.
Faz-se silêncio.
Wilda abre os olhos. Pressia aproxima-se dela e ajoelha-se. A pequena
olha para a cabeça da boneca, toca-lhe com cuidado. Pressia oferece-a à
criança e ela embala-a, juntamente com o braço de Pressia, para frente e
para trás, até acalmar.
— Queremos a devolução do nosso filho. Esta menina prova. — Trepa
para o colo de Pressia. Esta embala-a, tal como ela embala a cabeça da
boneca.
— Pronto. Está tudo bem. — Pressia memorizou a primeira mensagem,
a que fora escrita em pequenas tiras de papel que flutuaram pelo ar,
lançadas de uma aeronave. Recita-a:
«Sabemos que estais aqui, nossos irmãos e irmãs. Um dia sairemos da
Cúpula para nos reunirmos a vós em paz. Por agora, assistiremos de longe,
com benevolência.»
A pequena acena com a cabeça. Estão a falar a mesma língua.
— O que se passa? — pergunta a cega.
— Silêncio — atalha Margit. — Fica calada.
— A cruz — diz Pressia baixinho aos outros. — Aquela com a coroa
em torno do ponto central. É igual à que está impressa no fim da primeira
Mensagem. — Olha para Bradwell. — As duas Mensagens são quase
idênticas, num certo sentido, não são?
— Em que sentido? — indaga Bradwell.
— Não sei. Mas parece-me que têm o mesmo comprimento, a mesma
forma. Percebes?
— Vinte e sete — diz El Capitan.
— Vinte e sete? — pergunta Bradwell.
— Palavras. Cada mensagem tem exatamente vinte e sete palavras —
explica El Capitan.
— Vai correr tudo bem — sussurra Pressia a Wilda, massajando-lhe as
costas estreitas
— Tudo bem, tudo bem — murmura Helmud.
Segurando a cabeça da boneca com força, a pequena sussurra:
— Queremos a devolução do nosso filho.
— Eu sei — diz Pressia. — Vamos cuidar de ti.

1 No original: Itchy knee. Sun, she go. (NT)


Capítulo 11

El Capitan
Aranhas

Bradwell pega na rapariguinha, que continua agarrada à cabeça de


boneca do punho de Pressia, enquanto a cega o amaldiçoa e arranha.
— Ela é nossa! Larga-a!
— Para trás! — berra Pressia, e dá um empurrão à mulher. Ela e
Bradwell levam a pequena rapidamente dali.
Margit grita a El Capitan:
— Deixa-nos ser Puros! Vocês conhecem o filho deles! Eu sei que
conhecem! Entreguem-no! Se não o entregarem, nós próprios iremos atrás
dele!
— Não me ameaces! — retruca El Capitan.
— Não é uma ameaça!
A cega intervém:
— A Mensagem não te abriu o coração?
— Não te metas com o meu coração! — replica El Capitan.
— O meu coração! — diz Helmud.
— Entreguem o filho deles! — berra Margit. A cega grita:
— Puros! Podemos ser Puros!
— Puros! Puros! — brada Helmud, como uma espécie de chamamento
de pássaro.
Margit agarra na camisa de Helmud e puxa com quanta força tem. El
Capitan puxa a espingarda para a frente e aponta-a à mulher.
— Não me dês uma razão. Gosto de puxar o gatilho. Acalma a tua
amiga também.
— Estamos dispostas a morrer pela Nova Mensagem!
— Mata-nos! — grita a cega.
— A sério? — pergunta El Capitan. Engatilha a espingarda. As duas
mulheres ficam caladas. A cega conhece o som de uma arma. Helmud
encolhe-se nas costas de El Capitan, comprimindo a bochecha contra o
pescoço do irmão.
Margit pega na mão da amiga.
— Jazellia, os anjos vigiarão cada passo dela! Tem fé!
A voz de Bradwell ressoa lá adiante:
— Aranhas! Chegaram!
El Capitan e as duas mulheres correm para fora da conduta. Há aranhas
por toda a parte. O Agrupado desapareceu. As roupas claras, queimadas,
fumegam. Pressia e Bradwell, que aperta Wilda contra o peito, correm para
o carro. O barco talhado de Helmud salta do bolso da rapariguinha e cai na
neve. Não dá para o ir buscar. Eles batem as portas do carro, enquanto
aranhas correm aos estalidos por cima do capô.
Uma das aranhas está demasiado perto de El Capitan. Ele dispara
contra ela, falha.
A cega grita. Margit diz:
— A Cúpula enviou estas criaturas. A Cúpula é boa! — Os seus olhos
fixam-se numa aranha que desliza sobre uma pedra, estudam os pequenos
movimentos rápidos da criatura. Estende a mão para ela.
— Não! — brada El Capitan. Mas é demasiado tarde. A aranha
contrai-se e salta para cima dela. Crava as patas providas de espigões
através da manga da jovem e enterra-as na carne do seu braço. Margit
arregala os olhos, enquanto uma fieira de luzes vermelhas se acende no
corpo bolboso da criatura. Sangue brota da sua pele para a manga. O seu
rosto empalidece. A jovem ergue as mãos no ar.
— Escolheu-me! — A sua voz é um misto de alegria e dor. Outra
aranha ronda perto da perna da cega. El Capitan dispara, falha.
— Fujam! — grita. — Ou eu mato-vos! Vão, vão, vão!
— Vão — diz Helmud. A cega puxa pelos braços de Margit. Dão meia
volta e partem a correr. El Capitan precipita-se para o carro. No banco de
trás, Pressia segura a rapariguinha, que mantém os olhos fixos nos da
boneca; talvez esteja em estado de choque.
— Entra! — berra Bradwell do banco do condutor. Carrega no
acelerador.
El Capitan vê o barco na neve. Consegue apanhá-lo, tem quase a
certeza.
— Devia ir buscar o raio do teu barco, Helmud. Tu fizeste o raio
daquele lindo barco!
— Entra! — diz Helmud, atirando o peso do seu corpo em direção à
porta.
Uma aranha corre sobre o dedo do pé da bota de El Capitan. Ele salta.
Dispara. Uma pluma de neve e terra eleva-se do buraco de bala. Ele agarra
a maçaneta da porta do passageiro no momento em que um jovem corre
para ele, aos gritos. Tem uma aranha metálica embebida na coxa; a perna
das calças está escura de sangue. É demasiado tarde para ti, pensa El
Capitan. Talvez seja demasiado tarde para todos eles. O seu exército não
está pronto. Provavelmente nunca estará. A Cúpula enviou pequenas
aranhas para os matar.
El Capitan vai deixá-lo ali. Que mais pode fazer? Mas Pressia salta do
carro e corre para o jovem.
— Deixa-o — insta El Capitan. — Há aranhas por toda a parte!
— Diz a Bradwell para ficar com a rapariguinha e corre para Pressia.
— Não podemos ajudá-lo — diz-lhe. — Temos de ir.
— Podemos ajudar, sim! — Os dedos de Pressia percorrem levemente
as costas da aranha, onde brilha um relógio digital vermelho: 00:00:06 ...
00:00:05. — Está em contagem decrescente!
— Decrescente! — grita Helmud como se fosse uma ordem.
— Decrescente, decrescente!
El Capitan agarra Pressia pelas costelas, levanta-a nos braços e corre.
Helmud agarra-se ao seu pescoço. A aranha emite um sinal sonoro longo e
lento. El Capitan mergulha.
A aranha, enterrada na perna do jovem, explode.
Os ouvidos de El Capitan zumbem. A sua vista escurece. O ombro dói-
lhe como se tivesse embatido numa parede. A sua respiração está presa na
garganta. Helmud geme.
Pressia pousa as mãos sobre o peito dele.
— El Capitan? Estás a ouvir-me? — A voz dela é metálica e distante.
— Sim — diz El Capitan com brusquidão, enquanto o rosto dela — o
seu rosto perfeito — ganha forma. Ela estica-se por cima do ombro dele,
para atender a Helmud.
Tenta levantá-los. El Capitan põe-se em pé tão depressa que fica
novamente com a vista turva por um segundo. Pressia ampara-o, mas ele
afasta-a.
— Estou bem.
Ela corre para o carro, olhando para trás para se certificar de que ele a
segue. Ele assim faz, embora os seus passos sejam pesados como chumbo.
— Não olhes! — grita Bradwell, talvez para a rapariguinha.
— Não olhes!
Helmud repete, enterrando o rosto nas costas de El Capitan:
— Não olhes. Não.
Mas El Capitan olha para trás, para o jovem que explodiu, o corpo já
carbonizado, as roupas em chamas, o fumo a espalhar-se no ar.
El Capitan chega ao carro e apoia as mãos no capô para se equilibrar.
Comprime a testa contra a janela por um segundo. Vidro frio.
— Despacha-te, Cap! — grita Bradwell.
— Despacha — diz Helmud.
Algo corre rapidamente pelo salto da bota de El Capitan. Ele vê um
pequeno movimento de algo volumoso por baixo da perna das calças: tem
uma aranha em cima dele. Puxa a espingarda e bate com a coronha na
canela, mas as pernas da aranha perfuram a sua pele e cravam-se no
músculo. Embora nauseado, ele endireita-se, com o sangue a escorrer para a
sua bota. Não olhes, diz para si mesmo. Não olhes. Os outros chamam-no
de dentro do carro. Não conseguem ver a metade inferior do seu corpo, pelo
que El Capitan levanta a perna das calças e, imediatamente acima da bota,
na parte mais densa do músculo, está uma aranha robótica. As suas costas
pretas e corcovadas ostentam um temporizador em contagem decrescente.
07:13:49 ... 07:13:48 ... 07:13:47. O resto da sua vida, e da vida de Helmud
também, medido em horas, minutos, segundos.
— Valha-me Deus — diz El Capitan.
— Deus — diz Helmud num tom suplicante. — Deus, Deus, Deus!
Capítulo 12

Pressia
Caramanchão

É como se a cidade tivesse desenvolvido uma camada de pele móvel,


uma película preta que dá estalidos e cobre tudo o que está à vista: os
edifícios corcovados, as paredes desmoronadas, os telhados de
contraplacado em alpendres improvisados. Pressia fecha os olhos, mas os
estalidos soam como o piscar de olhos de um milhar de bonecas.
Bradwell engata mudanças e guina o volante, à medida que aranhas
rebentam e são esmagadas sob os pneus. Felizmente, isso não as faz
detonar; devem estar programadas para explodir apenas quando ligadas a
carne, o que fazem com grande perícia. Sobreviventes cambaleiam e
chamam uns pelos outros. Alguns correm e trepam. Outros esmagam
aranhas com tijolos. Mas há os que se vão abaixo e têm meia dúzia de
aranhas, ou mais, presas aos corpos como carraças pretas e grossas.
Wilda está sentada no banco de trás, entre Pressia e El Capitan e
Helmud. Fignan parece estar dar um espetáculo de luzes para ela, como se
quisesse distraí-la da janela. Pressia avisa-a de que, por vezes, Fignan
morde e puxa os cabelos. E, de facto, momentos depois, Fignan arranha o
braço da rapariguinha, mas não com muita força, quase não deixando
marca. A pequena não parece importar-se. Concentra-se de novo no
espetáculo de luzes.
— A Cúpula quer que o Partridge regresse. A devolução do nosso
filho... Que raio vamos fazer? — diz El Capitan.
— O Partridge não pode entregar-se — declara Pressia. — Seria uma
sentença de morte.
— Ele é filho do Willux — observa Bradwell. — Isso implica certos
privilégios.
— Qual é a alternativa? — pergunta El Capitan. — Ele vai deixar toda
a gente morrer, um a um?
— Temos de o encontrar — diz Pressia.
— Antes que os adoradores da Cúpula lhe deitem a mão — acrescenta
El Capitan. — Dizem que querem entregá-lo, mas são completamente
loucos. São capazes de o entregar queimando-o e enviando as suas cinzas à
boleia da primeira rajada de vento forte!
— As mães ouvem tudo. São olhos e ouvidos — diz Bradwell,
acelerando por uma reta. As aranhas por baixo das rodas fazem um barulho
de ossos esmagados. — Vão saber que estamos a caminho muito antes de lá
chegarmos.
— Então está bem — acede El Capitan. Ainda está pálido por causa da
explosão.
— Obrigada por me teres agarrado lá atrás — diz Pressia.
— Não foi nada. Não penses mais nisso.
— Penses nisso — sussurra Helmud.
Wilda levanta o olhar para Pressia.
— Queremos que o nosso filho — entoa. Pressia calcula que a pequena
está cansada. Acaricia-lhe o ombro:
— Descansa a cabeça.
A rapariguinha encosta-se a Pressia, ergue os braços. Pressia deixa-a
apertar a cabeça da boneca contra o peito e Wilda fecha os olhos. Pressia
pensa na canção de embalar que a mãe costumava cantar-lhe e evoca
mentalmente o rosto dela. A névoa ensanguentada. Pensa em El Capitan a
salvá-la da explosão. Não poderia ela ter feito o mesmo pela sua mãe?
Devia haver algo que pudesse ter feito. Inclina-se para o ouvido de Wilda e
canta a primeira canção que lhe vem à cabeça, a que o homem estava a
cantar no quartel-general apinhado e gelado da OSR.
As meninas fantasma, as meninas sinistras, as meninas fantasma.
Quem pode salvá-las deste mundo? Deste mundo?
O rio é largo, a corrente enrola, a corrente chama, a corrente enrola.
Entram na água para ser curadas, para as suas feridas serem seladas,
serem curadas.
Morrem afogadas, a sua pele descascada, a sua pele perlada, a sua pele
descascada.
***
O avô contou-lhe que ela tinha frequentado uma escola feminina no
jardim infantil, vestindo uma saia de xadrez plissada e uma blusa branca
com a gola à Peter Pan. Ela sabe quem era Peter Pan: um rapaz que ficou
jovem para sempre. Aquilo seria a infância dela? O seu avô teria roubado
aquela infância a outra pessoa? A canção refere-se a raparigas de um
colégio interno que tinham sobrevivido às explosões e se dirigiram para o
rio cantando o hino da sua escola. Algumas das raparigas tinham ficado
cegas, porque estavam deitadas na relva, a olhar para o céu, quando as
Detonações o haviam incendiado; pelo menos, é assim que as pessoas
contam a história. Juntaram-se em grupo ao pé do rio. Algumas entraram na
água. A água era boa porque acalmava as queimaduras, embora tivesse sido
aquecida pelas Detonações. A pele delas ficou como papel, soltando-se dos
seus braços, enrolando-se como golas de renda nos seus pescoços. No fim,
tinham sido identificadas através dos uniformes, do que restava deles.
Caminhando às cegas com as vozes cantantes, vozes lastimosas, vozes
cantantes.
Ouvimo-las até os nossos ouvidos zoarem, ouvidos gritarem, ouvidos
zoarem.
Segundo a história, as pessoas queriam salvá-las, mas as raparigas não
queriam ser salvas. Queriam morrer juntas e foi o que fizeram, cantando.
Precisam de um santo e salvador, santo e marinheiro, santo e salvador.
Irão assombrar para sempre esta costa, assombrar e vaguear para
sempre nesta costa.
Nalgumas versões, fundiram-se com árvores que ainda se erguem na
margem do rio. Noutras, tornaram-se Poeiras e vagueiam pelas margens,
devorando quem se aproxima. Noutras ainda, fundiram-se com animais e
transformaram-se em raposas ou aves aquáticas. Mas em todas as versões,
ninguém consegue recuperá-las.
As meninas fantasma, as meninas sinistras, as meninas fantasma.
Quem pode salvá-las deste mundo? Deste mundo?
O rio é largo, a corrente enrola, a corrente chama, a corrente enrola.
Quando tinha a idade de Wilda, Pressia pensava muitas vezes nas
meninas fantasma, assombrando a costa em uniformes esfarrapados e golas
rendadas de pele descascada, um detalhe tão grotescamente específico que
ela tinha certeza de ser verdadeiro. Tenta pensar numa história mais feliz
para contar a Wilda, mas a respiração da rapariguinha é agora profunda e
regular. As suas pálpebras palpitam com sonhos. Pressia pergunta-se como
serão os sonhos dela. Não tinha estado na Cúpula e regressado? O que teria
visto lá? Um sorriso fugaz brinca-lhe nos lábios, mas logo desaparece. As
mãos que apertam a cabeça de boneca afrouxaram. Pressia pousa a mão
sobre a mão da criança e sente uma ligeira vibração. Não é apenas o carro a
sacolejar na estrada, mas um tremor, que vem de dentro da própria Wilda.
E Pressia pensa em Willux, nas suas tremuras, resultado de anos de
melhoramentos cerebrais e que, segundo se esperava, viriam a conduzir a
uma morte próxima. Mas então lembra-se, num lampejo enjoativo, de
perguntar à sua mãe por que motivo não a medicara para ter alguma
resistência a melhoramentos, por que não tinham misturado os
medicamentos que ela desenvolvera na água potável. A mãe dissera que as
doses que resultavam para os adultos podiam matar as crianças. Mesmo a
Partridge, a mãe apenas podia dar resistência a uma única forma de
melhoramentos e tinha escolhido a codificação comportamental. Queria que
ele tivesse vontade própria. E por que não dera ela nada a Pressia? Bem,
Pressia era um bocadinho mais nova do que o irmão. Era demasiado
perigoso.
O que fizeram eles a Wilda para a tornar Pura? A cura será uma nova
doença, tal e qual como a Degeneração Celular Rápida de Willux? Estará a
provocar uma falência do organismo dela? Aquele tremor será o primeiro
sintoma?
***
Uma hora depois, Bradwell estaciona numa colina entre duas casas
arruinadas, na orla das Terras Derretidas. Dali avistam as marcas dos
alicerces de laje, buracos forrados de cimento rachado que tinham sido
piscinas outrora (circulares, ovais, em forma de rim), os crânios metálicos
carbonizados de velhos carros e manchas indistintas de equipamentos de
parques infantis derretidos. As ruas semicirculares divergem em leque em
direção à bacia empoeirada das Terras Mortas.
Bradwell apeia-se e põe-se a andar de um lado para o outro à frente do
carro. El Capitan e Helmud saem também e sentam-se em cima do capô.
Pressia fica com Wilda, que está a dormir, as mãos enroladas junto ao peito
e sempre a tremer ligeiramente. De súbito agita-se, senta-se muito direita e
diz:
— Prova que podemos salvar-vos a todos? — Olha pela janela.
— Estamos à espera de ajuda — explica Pressia. A rapariguinha agarra
no puxador da porta e abana-o. — Queres ver onde estamos?
Ela faz que sim com a cabeça.
Pressia destranca a porta e abre-a. Apeiam-se e olham para as Terras
Derretidas que se estendem aos seus pés, com lençóis escuros e ondulantes
de fuligem e neve arrastados pelo vento sobre a paisagem.
— Algum sinal das Mães? — pergunta Pressia.
— Ainda não — responde Bradwell.
— Não é possível saber ao certo se vão aparecer como auxiliadoras ou
como guerreiras — observa El Capitan. — Uma gente imprevisível.
Wilda começa a caminhar em direção a uma das casas arruinadas.
— Chamem-nos se as virem — pede Pressia, indo atrás da pequena.
Ambos acenam em confirmação, bem como Helmud, o olhar alongado
sobre a paisagem.
Pressia mantém-se perto de Wilda, seguindo-a até às traseiras de uma
casa onde se vê a marca de uma piscina de cimento. A extremidade mais
funda está atulhada de móveis de jardim e tem ainda o que pode ter sido um
caramanchão, torcido, lascado e coberto de cinzas e neve. Está inclinado
para o lado, como uma crinolina deformada. Wilda senta-se na borda da
extremidade menos funda, dá um impulso e aterra na piscina.
— Espera — diz Pressia, saltando atrás da rapariguinha. Wilda dirige-
se para o caramanchão e senta-se lá dentro, com as pernas cruzadas. Pressia
junta-se a ela.
— É como brincar às casinhas — comenta. — Gostas disso?
A pequena acena.
— Gostava de saber — prossegue Pressia, tirando Freedle do bolso e
deixando-o esvoaçar em redor — se as crianças brincam às casinhas na
Cúpula. — Quando não se está sempre à procura de uma casa de verdade,
quando se vive num lugar seguro e feliz, será que ainda se precisa de
brincar às casinhas? Por um segundo fugaz, imagina-se a preparar uma
refeição numa cozinha alegre, e Bradwell está a trabalhar com ela. Ela tem
a cabeça da boneca fundida ao seu punho. Os pássaros continuam
aninhados nas costas dele. Não. Não pode resultar. De facto, a ideia deles
dois numa cozinha alegre assusta-a. Parece um convite a nada mais do que
desgraça e perda.
Wilda olha para Pressia, sobressaltada.
— Se desprezarem o nosso apelo, mataremos os nossos reféns.
— Estás a dizer que eles eram maus? Foi assustador lá dentro? Wilda
olha para o outro lado da piscina e abana lentamente a cabeça.
— Foi agradável?
Wilda abana a cabeça de novo.
— Não foi assustador e não foi agradável. Como foi?
Wilda deita-se, fecha os olhos, depois abre-os, piscando como se
houvesse uma luz forte projetada sobre ela. Aperta os dedos contra o
polegar e põe-se a abri-los e fechá-los: está a mimar alguém a falar sobre a
sua cabeça. Faz o mesmo gesto com a outra mão.
Outra pessoa que fala. As mãos olham para baixo, para ela, depois uma
para a outra. Recomeçam a falar.
— Não eras tanto uma refém, como um espécime? Um objeto de
experiências?
Wilda faz um aceno afirmativo. Senta-se, encolhe as pernas contra o
peito e repousa o queixo nos joelhos.
— Não viste como eles viviam, nem o que havia nas suas casas, nem
praticamente nada de especial?
Wilda abana a cabeça. Não. Dá a impressão de que vai chorar, pelo que
Pressia muda de assunto.
— Sabes nadar?
A pequena fita-a.
Pressia estende-se no chão e finge nadar de costas.
— Não sei se cheguei a aprender a nadar — confessa. — É engraçado.
É uma coisa que se presume que eu devia saber acerca de mim própria, não
é?
Wilda estende-se e finge nadar também.
Então ouvem um baque: as botas de Bradwell a aterrar na extremidade
menos funda. Dirige-se para elas.
— Foram avistadas. Não muito longe. O que estão vocês duas a fazer?
— A nadar. O que havíamos de estar a fazer? Estamos numa piscina —
diz Pressia.
Ele baixa-se para entrar no caramanchão.
— Claro — replica com um sorriso.
— Sabes nadar? — pergunta Pressia.
Ele faz que sim com a cabeça. Ela senta-se:
— Pena o cadete não ter sabido.
Ele fita-a.
— Li os recortes na morgue.
— Estiveste a bisbilhotar?
— Estavas a escondê-los?
— Não.
— Então eu não estava a bisbilhotar — replica ela. — Por que os tens
cá fora?
Wilda levanta-se e começa a perseguir Freedle, que dança em volta da
cabeça da pequena.
— Depois do funeral dos meus pais, encontrei-os num pequeno saco de
plástico com um fecho éclair, no cacifo. Os meus pais estavam a preparar
um caso contra Willux, para o derrubarem. Pensavam que talvez tivessem
uma pista.
— Mas Willux foi condecorado com a Estrela de Prata por tentar salvar
o cadete. Que tipo de lama procuravam eles?
— Nunca soube ao certo.
— No recorte, Walrond chamou heroísmo à tentativa de Willux para
salvar o cadete. Talvez Walrond e Novikov fossem membros dos Sete. A
minha mãe disse que um dos Sete tinha morrido jovem, imediatamente a
seguir a terem feito as tatuagens.
— De Novikov não sei, mas Walrond não era.
— Como podes ter tanta certeza?
— Mas tenho.
— Estás a dizer que resolveste seguir os teus instintos neste ponto,
ignorando a razão e a verdade?
Ele abana a cabeça:
— Investiguei. Depois do assassinato dos meus pais, segui todas as
pistas. No dia das Detonações, a minha tia disse-me para ficar perto de casa.
O meu tio estava a trabalhar no carro. Estavam ambos lá dentro, à espera de
notícias. Mas eu não sabia o que estava em jogo para eles naquele dia.
Disse-lhes que não iria longe, mas fui de bicicleta para os antigos campos
de treino. Era lá que eu estava quando as Detonações rebentaram. Por que
julgas que tenho aves aquáticas nas costas? Estava a fugir do ressalto da luz
no rio. A minha bicicleta fundiu-se com a árvore à qual a tinha encostado.
Levei horas a voltar para casa dos meus tios, onde os encontrei desfeitos e a
morrer. Levou dias. Já sabes tudo isso. Eu estava em mau estado, e houve o
gato morto na caixa, o motor, a maneira como ele lhe pediu para rodar a
chave.
— Sim. — Pressia imagina Bradwell sozinho à beira-rio, ofuscado pela
luz branca incandescente, a dor lancinante das queimaduras e a sensação de
ter adagas espetadas nas costas. — Tenho muita pena.
— De quê? Não quero a tua piedade mais do que tu queres a minha.
— Está bem — diz Pressia. — Então dá-me uma boa razão para que
Walrond não possa ser um dos Sete. Só uma.
— Porque se ele era um dos Sete, isso significa que se tornou amigo
dos meus pais só para lhes sacar informações. Isso significa que era um
agente duplo e que podia estar a jogar com um pau de dois bicos, o que
poderia resultar justamente na morte dos meus pais. E mesmo naquele
recortezinho estúpido, pensaria de facto aquilo que disse ao repórter, ou já
estaria a jogar com toda a gente? Era heroísmo, ou ele sabia a verdade sobre
o cadete?
Pressia olha para Bradwell. Ele está a olhar através da estrutura
inclinada do caramanchão. Tem os olhos vermelhos, o rosto corado e
listrado de cinzas.
— O que é a verdade?
— Foi um assassínio.
— Que tipo de assassínio?
— O primeiro do Willux.
Pressia lembra-se da fotografia granulosa do jornal, com a imagem de
Ivan Novikov: a sua seriedade, a expressão assombrada. Suspira.
— Novikov e Walrond estavam ligados a Willux na altura em que os
Sete foram fundados; intimamente ligados. São dois nomes importantes.
Não há maneira de contornar isso.
— Ele foi bom para mim — diz Bradwell, depois encara Pressia.
— Percebes o que quero dizer?
Ela faz um sinal afirmativo.
— Mas isso não significa que fosse completamente bom, todo o tempo,
para toda a gente.
— Temos de ir andando. As Mães devem estar a chegar.
Wilda segura Freedle nas mãos em concha. Entrega a cigarra a Pressia,
que a mete no bolso e se põe em pé. Dirigem-se de novo para a parte rasa e
içam-se da piscina. Pressia olha para trás e tenta imaginar o aspeto que teria
antes das Detonações — a água azul, o caramanchão, alto e branco, com
cortinas de gaze. Quem teria vivido aquela vida?
— Elas chegaram — diz Bradwell.
— Uma um — entoa Wilda e faz o sinal da cruz com o respetivo
círculo sobre o peito.
El Capitan pousou a arma. Está ajoelhado no chão, curvado aos pés da
recém-chegada. Helmud encolheu-se num nó receoso nas costas do irmão.
E Pressia tem a resposta à sua pergunta. Uma das Mães está diante deles,
coberta de cicatrizes, queimada, com uma criança fundida aos seus ombros,
as pernas enroladas e perdidas em torno da sua cintura. Tem um aspeto
fatigado, resistente e magro. As Mães eram quem tinha vivido aquelas
vidas. Outrora tiveram casas com piscinas e caramanchões. Aquela é a terra
que herdaram.
Wilda envolve com a mão o punho da cabeça de boneca de Pressia e
sussurra:
— Queremos a devolução do nosso filho? Esta menina?
Pressia tem a certeza de que ela quer dizer: Quem é esta e o que vai ser
de nós agora?
Capítulo 13

El Capitan
Rapazes Da Cave

Estão numa parte mais agradável das Terras Derretidas. As marcas das
casas são maiores e há mais que tinham piscinas, reduzidas agora a poços
de cimento em desagregação. As Mães aceitaram levá-los até Partridge,
mas Bradwell e El Capitan tiveram de deixar todas as suas armas. El
Capitan trancou o carro com a sua espingarda lá dentro. As Mães só
consentiram que Bradwell levasse Fignan porque Pressia as convencera de
que não se tratava de uma bomba, mas apenas uma espécie de biblioteca.
O músculo da barriga da perna de El Capitan arde intensamente. As
patas da aranha robótica cravaram-se na sua carne quase até ao osso.
Sempre que flete o pé, um pico de dor dispara pela sua perna acima.
Lembra-lhe a dor insuportável a seguir às Detonações, quando Helmud fora
fundido com ele. A dor sussurra: «Lembras-te de mim? Lembras-te de todo
aquele sofrimento? Ainda o sentes?»
Ele recorda-se da manhã das Detonações. O seu irmão era uma criança
tagarela, inteligente e engraçada. Mais esperto do que El Capitan, isso era
certo. A última coisa que El Capitan tinha dito ao irmão? «Não sejas parvo,
Helmud. Não sejas um raio de um parvo tão grande». Helmud ia atrás na
moto, com El Capitan a conduzir. Iam rebuscar os caixotes do lixo de um
minimercado. Helmud dissera que cantaria para distrair as pessoas. A
verdade é que Helmud tinha uma voz linda. A mãe dizia que Deus estava
naquela voz. Por aquela altura, a mãe já tinha desaparecido e ambos tinham
saudades dela.
E agora? Helmud é um raio de um parvo e aqueles anos todos
dedicados a manter ambos vivos estão a chegar ao fim. Morrerão dali a
cinco horas, vinte e três minutos e quinze segundos — pelo menos, da
última vez que ele foi ver. É estranho saber o segundo exato em que se vai
morrer. Um pouco de mistério arrancado à vida.
Chegará um momento em que ele e Helmud se porão a andar, tal como
os cães, por vezes, fogem para morrer.
A Mãe detém-se e faz-lhes sinal para se aproximarem.
— Há inquietação no ar.
Então uma seta feita à mão veio enterrar-se no chão perto dos seus pés.
Outra deslizou de um bloco de cimento.
— Rapazes da Cave! — grita a Mãe. — Corram!
Rapazes da Cave? Que raio é um Rapaz da Cave? E, por favor, pensa
El Capitan, tudo menos correr A sua perna está a arder. Jesus. Talvez não
aguente. Pressia agarra na rapariguinha e arranca a toda a brida. Bradwell
corre ao lado dela. El Capitan tenta acompanhá-los, mas está coxo por
causa da dor. Sente os restos das coxas de Helmud, que flete os músculos
como se El Capitan fosse um cavalo e ele estivesse a incitá-lo a acelerar o
passo.
— Calma aí, Helmud! Jesus!
— Jesus! — diz Helmud. Mais à frente, a Mãe mergulhou por trás de
um depósito de água corroído, tombado de lado junto de um muro baixo.
Mais algumas setas passam silvando. Ela empunha um segmento de tubo
metálico e uma caixa de dardos finos, provavelmente envenenados. Faz
pontaria a uma tampa levantada perto dos destroços de uma casa do outro
lado da rua.
El Capitan corre para junto dela e encolhe-se contra o depósito de
água.
— Que raio é um Rapaz da Cave? — Aperta a coxa com a mão,
fazendo uma careta.
— Eram adolescentes quando rebentaram as Detonações — explica a
Mãe. — Tinham voltado da escola, os pais estavam a trabalhar, e eles
sobreviveram encapsulados nas caves, a jogar videojogos. Tentámos cuidar
deles, mas eles querem a sua independência. As mãos de muitos deles
ficaram fundidas com comandos de plástico. Eles cortaram os comandos à
machadada, mas os restos ainda lá estão, nas suas palmas. Têm armas feitas
em casa.
— Ah.
— São atiradores furtivos pálidos. Abrigam-se numa área subterrânea.
Há rumores de que um grupo deles matou alguns desses Dadores de Morte,
despojou-os das armas e está agora fortemente armado.
— Dadores de Morte? Refere-se às Forças Especiais. Inteligente. —
Fita-a com uma expressão doce e diz: — É uma pena termos tido de deixar
as nossas armas.
A Mãe olha-o com desconfiança.
— O que posso dizer? Gostava de ajudar — prossegue El Capitan, com
um sorriso.
Ela rebusca as suas pesadas saias, que albergam coldres invisíveis.
— Sabes usar uma zarabatana?
— É uma arte. — Ele praticou um pouco durante uma fase inicial da
sua aprendizagem de caça. — Devo estar um bocado enferrujado.
Ela estende-lhe outro segmento de tubo e um conjunto de dardos.
— Cuidado — avisa. — Têm veneno na ponta. — Os olhos azuis do
filho dela viram-se para El Capitan.
— Terei cuidado.
— Cuidado! — diz Helmud.
El Capitan espreita pela borda do depósito e vê um lampejo sombrio
perto da plataforma de cimento, do outro lado da rua. Leva o tubo aos
lábios e sopra no preciso momento em que uma cabeça pálida aparece. O
dardo rasga a orelha do Rapaz da Cave, que a cobre com a mão em concha
enquanto o sangue lhe corre pelo pescoço. Desaparece.
— Boa — diz a Mãe.
— Boa — diz Helmud em resposta, quase como uma saudação.
Vão avançando de um antigo jacuzzi até um muro que alguém
construiu com pedras de calçada e lajes, e mesmo uma carrinha delapidada
e saqueada. Vão apanhando os Rapazes da Cave, um por um, até
conseguirem sair do seu território. El Capitan tem a sensação de ter a perna
em chamas.
Bradwell, Pressia e a rapariguinha estão escondidos atrás da estrutura
desmoronada de uma garagem para dois carros.
— Estamos safos — anuncia a Mãe. Pressia vira-se para El Capitan:
— Vieste todo o caminho a coxear.
Ela tinha estado a observá-lo?
— Cãibras musculares — responde. — Estou bem.
— Estou bem — diz também Helmud, como se ela lhe tivesse
perguntado.
— Sigam sempre por este caminho. Para oeste — indica a Mãe.
— Não vem connosco? — indaga El Capitan. — Achei que fazíamos
uma boa equipa.
Ela despe o casaco. O seu ombro foi atingido de raspão.
— Não somos os únicos que sabem envenenar. Deixem-nos. Não
conseguiremos chegar.
— Iremos buscar ajuda! — declara Pressia.
El Capitan sabe que não pode oferecer-se para correr em busca de
ajuda. Pode explodir pelo caminho. Não há tempo.
— Não — recusa a Mãe. — Nós seremos encontrados. As Mães virão
por nós.
— Freedle — lembra Bradwell. — Ele pode ter uma perspetiva aérea
da zona e encontrar outras Mães. Atraí-las aqui.
Pressia tira Freedle do bolso:
— Será melhor dar-lhe um bilhete?
— Basta soltá-lo — replica a Mãe, sentando-se e amparando a cabeça
do filho. — Elas saberão.
Pressia segura Freedle nas mãos em concha:
— Arranja ajuda. Procura Mães, trá-las aqui — diz. Depois ergue as
mãos e Freedle levanta voo, batendo as asas e desaparecendo no ar
carregado de cinzas.
— Partam agora. Ficarão bem — diz a Mãe.
— Tem a certeza disso? — pergunta El Capitan.
Ela levanta os olhos semicerrados para ele:
— Não. Não tenho a certeza de nada.
Capítulo 14

Partridge
Dois a Dois

Partridge e Lyda passaram as últimas horas a trabalhar afincadamente


nos mapas. Lyda vai adicionando detalhes da academia feminina, do centro
de reabilitação, da rua onde vivia, com os respetivos parques e lojas.
Partridge sente-se como se fosse outra vez criança, com um projeto de
arte espalhado no chão, deitado de bruços em frente de Lyda. Gostaria de se
agarrar àquele momento: as luzes de Natal a piscar no teto, a Mãe Hestra a
contar a Syden uma história sobre uma raposa e Lyda debruçada sobre o seu
trabalho. A Mãe Hestra está a deixá-los sussurrar.
— Acabei de perceber — observa Lyda — que é quase Natal.
Na Cúpula trocam presentes simples — não há necessidade de criar
uma grande quantidade de produtos com recursos limitados e atulhar um
espaço limitado. As mulheres são incentivadas a fazer aventais e pegas para
tachos (embora já praticamente ninguém cozinhe), écharpes (embora a
Cúpula tenha temperatura controlada) e bijutaria que os homens compram a
uma mulher para oferecer a outra; colares de contas idênticos a trocar de
mãos.
— Estou satisfeito por o irmos perder — replica Partridge. — No
último Natal, o meu pai deu-me pastas de arquivo. Cores sortidas.
— Vou sentir a falta da maneira como as crianças pequenas fazem
flocos de neve de papel e os colam às janelas.
— Eu fiquei com o meu professor de ciências, o Sr. Hollenback, e a
família. Fomos ao jardim zoológico.
— Não foste a casa?
— O meu pai está sempre no meio de qualquer coisa. E, sem Slege, de
que servia?
Ela baixa o olhar para o seu mapa. Terá pena dele? Ele não estava a
tentar inspirar piedade.
— Como é o jardim zoológico no Natal? — pergunta Lyda.
Os rapazes da academia eram arrastados para lá em tantas visitas de
estudo que Partridge acabara por desprezar o zoo. Até os dois filhos de
Hollenback pareciam detestá-lo. Julby queixara-se que o seu balão estava
flácido e a Sra. Hollenback passara o tempo a tentar que Jarv, o pequenito
de dois anos, imitasse sons de animais. «O leão faz “rôôô”!» Mas Jarv
recusara-se, fosse por teimosia ou por não estar preparado. Partridge
detestara o cheiro a lixívia dos produtos de limpeza, as expressões abatidas
dos animais e os guardas com as suas espingardas de tranquilizantes.
— Era pior no Natal. Como se os animais devessem estar felizes. Mas
eles nunca estão e, além disso, que sabem eles sobre o Natal? — Lyda faz
um sinal de assentimento. — Sabes como a maior parte das pessoas lhe
chama dois a dois? — Tratava-se de uma referência à arca de Noé, que
ficara na memória coletiva. — Os meus amigos chamam-lhe Jaula da Jaula,
porque é a sensação que dá: um grupo de animais enjaulados a olhar para
outro grupo de animais enjaulados.
— Um Natal — diz Lyda —, antes de partir, o meu pai deu-me um
globo de neve com crianças a andar de trenó. Disse-me para o abanar e eu
assim fiz. E a neve começou a revolutear. — Interrompe-se.
— Sim?
— Naquele momento percebi que eu era uma rapariga numa cúpula a
abanar uma cúpula com uma rapariga lá dentro.
— Isso é o que eu sempre senti no jardim zoológico. Um rapaz numa
jaula a olhar para animais em jaulas.
Ela inclina a cabeça e sorri tristemente:
— Vamos perder o baile de inverno.
Ele lembra-se de dançar com ela sob as flâmulas e as estrelas falsas.
— Gostava de te dar a comer alguns daqueles queques — sussurra
Partridge.
— Vou fazer um presente para ti — diz ela.
— Que tipo de presente?
— Tratarei de inventar alguma coisa.
Ouve-se uma batida na porta de entrada do túnel que conduz à
carruagem de metro e Partridge sabe que o momento acabou. É o tipo de
batida, brusca e urgente, que prenuncia más notícias.
Não se mexam ordena a Mãe Hestra. Coxeia para o túnel e começa a
subir, com Syden a balouçar no flanco.
Partridge rasteja para diante sobre os cotovelos, como um soldado, até
o seu rosto e o de Lyda estarem a dois escassos centímetros um do outro.
Inclina a cabeça e beija-a. Os lábios dela são doces e macios.
— Flocos de neve de papel — sussurra ele. — É quanto basta para te
fazer feliz? — Beijam-se de novo.
— Sim — responde ela, também num sussurro. — E tu.
— Beija-o. — E isto.
O alçapão abre-se, deixando passar um jorro de luz. Ouve-se um
roçagar. Lyda recua bruscamente e debruça-se sobre o seu mapa, sorrindo.
A Mãe Hestra reaparece.
— Intercetaram uma mensagem — informa, sacudindo terra da roupa.
— A vossa gente está cá.
— A nossa gente? — pergunta Partridge.
— Passa-se qualquer coisa na cidade. Problemas vindos da Cúpula.
Vou deixar-vos; tenho de ir buscar reforços.
— Deixar-nos? — repete Lyda.
— Quem está cá? — indaga Partridge.
Quando a Mãe Hestra parte, ouvem-se novos ruídos no túnel.
Uma voz diz:
— Onde raio vai dar isso?
Depois o eco amortecido:
— Vai dar.
El Capitan chega, anunciado pelas botas.
— Conseguimos — declara. Está todo sujo de terra e muito pálido.
Agarra-se nas costas de um dos bancos do metro e senta-se com um
grunhido.
— Nós, quem? — diz Partridge. É difícil perceber se El Capitan se
refere apenas a Helmud e a si próprio, ou a mais alguém.
Então Bradwell emerge do túnel, seguido por Pressia.
A irmã de Partridge. A sua irmã!
Estão sujos, cobertos de fuligem, sem fôlego.
Pressia vira-se para ajudar alguém. É uma rapariguinha. Está pálida,
tem os olhos muito abertos e cabelo ruivo brilhante; uma criança da
Cúpula? Uma Pura? Por um instante, Partridge pensa de novo no Natal. As
raparigas da Academia, flanqueadas por paus de cabeleira, a entoar cânticos
nos corredores do dormitório dos
rapazes. Mas os recém-chegados não vieram para cantar. Partridge
sente um formigueiro de excitação percorrer-lhe os membros. Não tinha
consciência de que uma parte de si estava à espera que eles chegassem. Para
os libertar, a Lyda e a ele, das Mães? Ele quer sair dali.
Mas logo sente também um aperto doentio no estômago. Algo está
mal.
— Isto não é bom, pois não? — pergunta.
— Não — confirma Bradwell, abanando a cabeça. — E também tenho
muito prazer em ver-te.
***
Em poucos minutos, a carruagem está numa roda-viva. Lyda distribui
comida e água a toda a gente, recorrendo às provisões de que dispunham,
mas tem de ser. O grupo está exausto. Partridge não consegue tirar os olhos
de Pressia. Vê a mãe nas sardas dela, no maneirismo de inclinar a cabeça
quando sorri, na gentileza com que leva a pequenita até um banco,
sussurrando-lhe qualquer coisa que a faz sorrir, muito embora pareça
assustada. Quem será aquela miúda, sem marcas nem fusões?
Lyda murmura para Partridge:
— Ela é Pura?
Ele encolhe os ombros e dirige-se para Pressia. Deveria abraçá-la? Ela
não parece ser esse tipo de rapariga. Está a dar a mão à criança.
— Como estás? — pergunta ele, em voz baixa. Gostava de saber se ela
sonha com a mãe como ele sonha, em pesadelos que o condenam a
encontrar o seu cadáver onde quer que vá. Pressia confessaria alguma vez
sonhos como aqueles? Partridge duvida. Ela guarda as coisas dentro de si.
No entanto, sabe o que é encontrar a mãe ao fim de anos e anos a julgá-la
morta, apenas para a perder de novo. Embora nunca falem sobre isso, é algo
que ambos partilham.
— Tenho estado bem. — É evidente que ela não quer falar no assunto.
— Eu tento não pensar muito nisso. — É uma cobardia referir-se aos
assassinatos da sua mãe e de Sledge como isso. — Desculpa — acrescenta,
sem saber ao certo de que deseja ser desculpado; talvez do próprio passado.
— Não queria...
— Não faz mal. — Ela fala com sinceridade. É um perdão.
— Cap, olha para isto. — Bradwell aponta para os mapas espalhados
no chão.
El Capitan dá-lhes uma vista de olhos, e Helmud também, debruçando-
se por cima do ombro do irmão.
— Foste tu que os fizeste? — pergunta El Capitan a Partridge.
— A Lyda ajudou — responde o interpelado. — Não são perfeitos,
nem nada que se pareça, mas pensei que poderiam ser úteis um dia, se...
— É assim que é por dentro? — El Capitan ajoelha, gemendo. Com o
que terão lutado para chegar ali?
— Ainda não os terminámos — explica Partridge.
— O que vos trouxe cá? — pergunta Lyda.
— Houve uma reviravolta — diz Pressia.
— Reviravolta? — repete Partridge.
Bradwell desamarra uma caixa negra que traz às costas e pousa-a perto
da fonte de energia que alimenta as luzes de Natal. Estas empalidecem
imediatamente.
— Temos coisas para dizer e perguntas para fazer.
— E... — Pressia olha em redor, sem saber como começar — ... esta é
Wilda. — A rapariguinha levanta os olhos. Não é Pura. Há algo de estranho
nela, algo que Partridge não consegue identificar.
Bradwell senta-se, esfrega as mãos uma na outra.
— Foi encontrada perto da floresta por adoradores da Cúpula. Dizem
que as Forças Especiais a deixaram lá.
El Capitan puxa pedacinhos de sangue seco da perna das calças.
— Que diabo se passa? Forças Especiais? — indaga Partridge.
— Fui conduzido até à miúda por um soldado das Forças Especiais. —
El Capitan está pálido. — Escreveu uma espécie de mensagem. Apenas
uma palavra: Hastings.
— Hastings? — exclama Partridge.
— Como em Silas Hastings? — pergunta Lyda a Partridge.
— Conhecem-no? — pergunta El Capitan.
— Era meu companheiro de quarto — explica Partridge. — Céus,
apanharam o Hastings! Estava muito mal?
El Capitan massaja um dos joelhos, como se estivesse a doer-lhe.
— Continua muito humano. Ainda era possível ver a pessoa nos seus
olhos. — Depois pergunta: — Esse Hastings é digno de confiança?
— Ele não era o mais rijo, nem o mais fiável, mas é leal. — Partridge
evoca mentalmente a imagem de Hastings no baile, alto e desajeitado, a
meter conversa com uma rapariga. — Os melhoramentos modificam as
pessoas, mas se puder, ele ajuda.
— Vamos precisar de toda a ajuda que pudermos — diz El Capitan.
— Que aconteceu? — pergunta Partridge. — Ajuda com o quê? Pressia
diz:
— A Wilda tem uma Nova Mensagem da Cúpula. Do teu pai.
— Do meu pai? Como sabem que é dele? — Partridge sabe que o seu
tom é um pouco defensivo.
— Tem a mesma estrutura da primeira Mensagem — responde El
Capitan. — Vinte e sete palavras e a cruz com o círculo.
— A cruz celta — precisa Lyda. — É irlandesa.
— As Forças Especiais levaram-na para a Cúpula — prossegue El
Capitan. — Limparam-na da cabeça aos pés.
Partridge agarra-se a um varão do teto e senta-se.
— Limparam-na da cabeça aos pés?
— Ela era uma desgraçada — explica Pressia.
— Jesus — exclama Partridge —, já têm aquilo de que precisam, não
têm? Se o meu pai consegue reverter os efeitos das fusões, pode reconstruir-
se. Já deve ter regenerado as suas próprias células. Fiz uma experiência com
os frascos. — Puxa a fralda da camisa e mostra-lhes os frascos atados à
cintura. — São perigosos, como a minha mãe disse, mas se meu pai
consegue... — Inclina-se para observar a pele perfeita da rapariguinha. —
Se ele consegue fazer isto, então consegue consertar-se a si próprio, certo?
— Encara os outros. — Pode viver para sempre!
— Não — afirma Pressia. Estende a mão e pousa a mão da
rapariguinha bem aberta sobre a sua. Está a tremer. A pequenita já tem uma
paralisia, tal como o pai de Partridge. — Ela é nova. Lembras-te do motivo
por que a nossa mãe só pôde proteger-te de um único tipo de codificação? E
por que motivo não pôde dar-me nada a mim? Eu era apenas um ano e meio
mais nova do que tu.
Partridge acena. Era demasiado perigoso, mas ele não quer dizer isso
diante da pequena. Ela já está suficientemente assustada.
— Na Cúpula, os melhoramentos nos rapazes só começam aos
dezassete anos — observa Lyda. — E nas raparigas podem começar ainda
mais tarde.
— Degeneração Celular Rápida — diz Partridge. Quanto mais novo se
é quando se recebe os melhoramentos, piores são os efeitos. O seu pai
começou muito jovem, ainda na adolescência, e continuou a submeter-se a
melhoramentos cerebrais intensos ao longo de décadas. Aquela
rapariguinha não terá mais do que... quê? Nove anos? Já tem tremuras.
Quanto tempo irá durar? Meses, semanas, dias?
— Como é que ele foi capaz de uma coisa destas? — A fúria faz arder
o peito de Partridge.
— Ele não sabe como reverter os efeitos secundários — diz El Capitan.
— Se alguma vez chegar a descobrir isso — acrescenta Pressia —
poderá salvar a sua própria vida, e... — Lança um olhar a Bradwell. Não
precisa de concluir a frase. Partridge percebe. Seria possível desfazer todas
as fusões, torná-los a todos Puros, sem qualquer contraindicação.
— Tudo o que sei é que ela é uma mensageira — diz Bradwell.
— Uma que o teu pai sabia que nos chamaria a atenção.
— Que diz a Mensagem? — pergunta Lyda.
A pequenita enterra a cabeça no braço de Pressia.
— Está tudo bem. Não é preciso dizeres.
El Capitan recita:
— Queremos a devolução do nosso filho. Esta menina prova que
podemos salvar-vos a todos. Se desprezarem o nosso apelo, mataremos os
nossos reféns, um a um. — Depois traça uma cruz celta sobre o peito com o
dedo.
— Onde estão eles a fazer reféns? — pergunta Lyda.
Bradwell suspira e explica:
— Mandaram aranhas robóticas para a cidade. As aranhas alojam-se no
corpo das pessoas e assim as fazem reféns. Se não entregarmos o Partridge,
vão continuar a detonar as aranhas e a matar as pessoas.
— Já começaram? — pergunta Partridge a Pressia.
Ela faz um sinal afirmativo.
Portanto aquilo era o que ninguém queria dizer-lhe. Sente-se um pouco
tonto. Lyda emite um som estrangulado. Terá começado a chorar? Partridge
recusa-se a olhar para ela. Se não fosse ele, ela estaria a viver uma vida
tranquila na Cúpula, fazendo pegas para o Natal.
— Há-as a rastejar por toda a cidade. Vimos uma delas a detonar. A
pessoa explodiu. Foi-se... sem mais, nem menos. — El Capitan estremece,
como se a recordação lhe doesse. — E foi encontrada outra, morta na
floresta.
— Foi-se! — diz Helmud.
— Os seguidores da Cúpula ficaram doidos com a rapariga.
Acham que ela é santa — explica Bradwell.
— Ela parece Pura — observa Lyda, olhando para Wilda.
— Por que continuamos a usar essa palavra? — resmunga Bradwell
muito baixo.
Pressia lança-lhe um olhar.
— Estão a oferecer salvação e condenação de uma só penada. — El
Capitan inclina-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. Tanto
ele como Helmud estão muito pálidos e cobertos por uma massa de suor e
cinza.
Partridge curva-se para a pequenita:
— Meteram-te numa espécie de molde de corpo inteiro? Injetaram-te
medicamentos através de tubos?
A rapariguinha acena e faz o sinal da cruz com o círculo sobre o peito.
— O tratamento correu exatamente como eles queria?
Ela abana a cabeça.
— O que correu mal? — indaga Partridge.
Wilda olha para Pressia, pega-lhe na mão e comprime-a sobre a sua
barriga, depois fá-la deslizar para trás e para frente. Pressia toca na barriga
da pequena e tira a mão instintivamente.
— Curaram-na demais. — Olha para Partridge. — Ela não tem
umbigo.
Um arrepio percorre a espinha de Partridge. A carruagem fica em
silêncio por um momento. Wilda abraça Pressia, que a aperta contra o peito.
Por fim, Bradwell vira-se para Partridge e pergunta:
— Vais entregar-te?
Partridge lembra-se do que sentiu quando a mãe lhe disse que havia um
grupo secreto de pessoas na Cúpula à espera de instruções do cisne para se
revoltarem e porem Partridge numa posição de poder. Era ele quem devia
liderar o movimento a partir de dentro. Regressar à Cúpula seria uma
admissão de derrota? Ou seria a sua oportunidade de liderar, como a sua
mãe o achava capaz de fazer? Ele quer derrubar o pai, sim, e, pelo menos,
dar às pessoas a possibilidade de escolher uma vida melhor. Mas terá essa
capacidade de liderança? Por onde começar, sequer?
Lyda começa a chorar.
— Ele não pode entregar-se. Tem de haver uma maneira de contornar
isto. Talvez alguém possa falar com o pai dele.
— Claro, falar com o pai dele. Porque ele é um homem tão razoável —
replica Bradwell sarcasticamente.
— Ela não quer mandar o Partridge numa missão suicida — diz
Pressia. — É justo.
Bradwell passa a mão pelo cabelo, frustrado.
— Se alguém puder sugerir uma alternativa, sou todo ouvidos. Mas é
melhor que se despachem.
Ninguém diz palavra.
— Não é uma missão suicida. Willux não vai matá-lo — assevera El
Capitan. — Se quisesse vê-lo morto, já nos teria mandado pelos ares a
todos. Se há coisa que Willux conhece, é destruição.
Partridge olha para Lyda, que pega na mão dele e a aperta com tanta
força que as palmas de ambos ficam quentes. Com ela ao seu lado, ele seria
capaz, não seria? Aquilo parece-lhe o destino. Não há outra maneira.
— Gostaria de ter terminado os mapas — diz Partridge. — Há mais
alguns detalhes, cruciais. Vão precisar dos pontos de entrada através do
sistema de filtragem de ar. Mais informações sobre como Lyda saiu, sobre o
cais de carga que ela viu. Como entrar. Se tivesse mais tempo, eu podia
marcar tudo isso.
— Mais tempo ... — diz El Capitan, com a voz sumida.
— Tempo — repete Helmud.
— E precisamos que vejas a caixa — acrescenta Bradwell. —
Lembras-te dos nomes dos Sete?
— Teremos tempo para isso? — objeta Pressia. — Temos de o pôr na
superfície e levar às Forças Especiais o mais depressa possível.
— Se chegarmos a derrubar a Cúpula, isto vai salvar vidas —
argumenta Bradwell. — Não percebes?
El Capitan está com péssimo aspeto, as faces chupadas e tristes. Franze
a testa e exala num sopro lento e irregular.
— Às vezes, as pessoas estão dispostas a sacrificar as suas vidas por
um bem maior — diz ele. — Não podemos pedir-lhes que o façam, mas a
verdade é que algumas dirão: Tenhamos pelo menos uma hipótese de lutar.
Marquem os pontos de interesse e vejam a caixa. Tudo é importante.
Capítulo 15

Lyda
Globo De Neve

Lyda passa a caixa negra a Partridge, suavemente, como um bebé —


ou talvez mais como uma bomba. Bradwell explica como as outras cinco
caixas negras são enciclopédias idênticas, bibliotecas compactas carregadas
de informação. Mas esta é diferente.
— Vira-a — diz ele. Partridge assim faz e Lyda passa o dedo sobre um
pequeno símbolo.
— As outras têm números de série, mas esta tem um símbolo de
copyright — prossegue Bradwell — sem data.
— Pode ser imensas coisas — atalha Pressia. — Deixa-os abordar a
questão com o espírito aberto.
— Pode ser o símbolo de pi — diz Partridge. — Três vírgula catorze.
Num círculo.
Lyda pergunta-se o que significará aquilo. Pi? Num círculo? Deve ser
uma das muitas coisas que a Academia ensina aos rapazes, mas não às
raparigas.
— Seja o que for, a caixa está ligada à tua mãe — diz Bradwell a
Partridge. — Tem um significado.
Partridge olha para Pressia.
— À nossa mãe? Como? E quem é o Fignan?
— A caixa é o Fignan, e quando alguém diz cisne — começa Pressia,
mas é interrompida pela caixa, que se acende e inicia o ritual. «Sete, sete,
sete...» Partridge fica tão surpreendido que abana a caixa negra.
Quando a caixa acaba de emitir os sinais sonoros, Pressia esclarece:
— Ele quer os nomes dos Sete. Lembras-te deles?
— Ela não nos disse os nomes todos — responde Partridge.
Lyda vê um braço de metal fino desenrolar-se do corpo da caixa. Tem
uma extremidade afiada e brilhante.
— O que é aquilo?
A ponta aguçada ergue-se e pica rapidamente a pele do pulso de
Partridge. Uma pequena gota de sangue brota à superfície. Partridge agarra
o braço de Fignan e levanta a caixa ao ar, segurando-a como um rato pela
cauda.
— Que raio foi isto?
— É apenas a sua maneira de nos ficar a conhecer — explica Bradwell.
— Como se eu precisasse disso! Toma. — Partridge entrega a caixa de
novo a Bradwell e limpa o sangue com a manga.
— Que nomes têm vocês? — pergunta Lyda. Aproxima-se um pouco,
mas não demasiado. Não quer ser picada.
— Temos Aribelle Cording, Willux, Hideki Imanaka — responde
Pressia. E havia o que morreu jovem. Achamos que o seu nome talvez seja
Novikov.
— E Kelly — acrescenta Partridge. — Bartrand Kelly e Avna Ghosh.
Tomei nota de tudo o que conseguia lembrar-me do que a minha mãe tinha
dito.
— Kelly e Ghosh — diz Pressia.
— Isso faz seis. Quem é o sétimo? — pergunta El Capitan. Parece
abalado, de uma palidez fantasmagórica. Estará doente? Com febre?
Pressia vira-se para Bradwell com uma expressão expectante, as
sobrancelhas arqueadas. É como se estivesse à espera que ele diga um nome
— a desafiá-lo de algum modo. Lyda pergunta-se o que se terá passado
entre eles.
Bradwell baixa o olhar para as mãos. Pressia diz:
— Talvez seja Art Walrond.
— Deus, espero que não seja Walrond. Se ele estava assim tão
envolvido com o teu pai desde o início — diz Bradwell a Partridge num
tom acusador — isso vai matar-me. O Art, não. Ele, não.
— Art — repete Lyda, pensando nas coisas estranhas que Illia dissera
acerca de ter saudades de arte. Será que Lyda a compreendeu mal? —
Tenho saudades de arte ou tenho saudades de Art?
— Do que estás a falar? — indaga Bradwell.
— Da Illia. Ela disse que gostava de morrer, mas que ainda não
cumpriu o seu papel. — Lyda olha para a caixa nos braços de Bradwell. —
Contou-me uma história acerca de um homem e de uma mulher
apaixonados. Ele deu-lhe a semente da verdade para ela proteger. Depois da
morte dele, ela tornou-se a guardiã da verdade. Teve de casar com alguém
que fosse sobreviver às Detonações, para que a semente pudesse sobreviver,
e não pode morrer até a entregar à pessoa certa. Ela disse-me, Tenho
saudades de arte. Julguei que ela se referia a «arte», no sentido da beleza de
coisas feitas. Mas, e se ela se referia a Art Walrond? Era ela a mulher da
história. E se Art fosse o homem? E Ingership o homem com quem ela
casou apenas para sobreviver? E se a verdade estiver nessa caixa negra?
— Talvez ela trabalhasse para o programa financiado pelo governo, no
carregamento das informações nas caixas. Talvez Art a tenha descoberto
lá... — sugere Pressia.
— E usado — diz Bradwell. — Ele era um mulherengo.
— Não — objeta Lyda —, eles amavam-se.
— Isso tem importância? — pergunta Partridge.
— Tem para mim. Lembras-te que na casa da quinta a Illia me disse
que eu lhe recordava um rapaz que ela tinha conhecido? — diz Bradwell.
— Talvez não fosse um rapaz parecido contigo — diz Pressia.
— Talvez fosse eu. — Bradwell senta-se pesadamente. Lyda não sabe
grande coisa acerca dele, mas consegue imaginar como seria se já não
existisse ninguém no mundo que o tivesse conhecido antes das Detonações.
Absolutamente ninguém. É um tipo de solidão à qual se gostaria de pôr fim.
Os pássaros nas costas dele ficam quietos. — Que verdade? — pergunta ele.
— Que raio de verdade estava ela a guardar para Art Walrond, hein?
Pressia vira-se para Fignan:
— Cisne!
Fignan acende-se e repete o número sete sete vezes. Quando começa a
apitar, todos lhe dão nomes: Ellery Willux, Aribelle Cording, Ivan Novikov,
Hideki Imanaka, Bartrand Kelly, Avna Ghosh. Fignan aceita cada nome
com uma luz verde.
— Arthur Walrond — diz Bradwell por fim.
E surge a última luz verde. Wilda pega na mão de Pressia.
Ficam à espera. De quê? Lyda não sabe ao certo, mas nada acontece.
As luzes de Fignan desvanecem-se.
— Mais nada? — admira-se Pressia.
— O quê? — diz El Capitan. Helmud faz eco, tristemente.
— Não! — exclama Bradwell, chocado. — Não é possível.
— Suponho que é apenas uma caixa — diz Partridge. — Talvez parte
do passado deva ficar no passado.
— Suponho que isso faz sentido vindo de alguém que sobreviveu na
bolha protegida de um mundinho agradável — retruca Bradwell —, muito
bem arranjado com pintura novinha em folha nas paredes, uma escolinha
impecável, amigos da escola e uma namorada dedicada.
— Cala a boca — replica Partridge. — Não preciso de um sermão.
— E eu não sou uma namorada dedicada — declara Lyda, cerrando o
queixo. Partridge olha para ela. Tê-lo-á surpreendido? Uma parte dela
espera que sim.
— Não temos tempo para discussões — atalha El Capitan.
— Não — afirma Bradwell, erguendo-se ameaçadoramente acima de
Partridge. — É ele! O Fignan não contaria segredos diante do filho de
Willux. Não se foi programado por alguém de dentro.
— Talvez estejas a dar demasiado crédito ao Fignan — diz Pressia.
— Achas que ele sabe quem somos e quem são os nossos pais? Isso é
uma loucura.
— Não, não é — replica Partridge, olhando para o pulso.
— O Fignan tirou-me uma amostra de sangue.
— E também tem uma amostra minha — corrobora Bradwell.
— Do meu polegar.
— Puxou-me o cabelo — acrescenta Pressia, tocando nalgumas
madeixas soltas.
De súbito, ouvem passos em cima.
— Podemos estar a ficar sem tempo — diz El Capitan.
Alguém abre a porta para o túnel e desce. É a Mãe Hestra.
— Estão a aproximar-se.
— Quem? — pergunta El Capitan. — As Forças Especiais?
Ela e Syden acenam com a cabeça.
— E vêm depressa — diz ela.
Partridge agarra no mapa e pega num dos seus lápis.
— Aqui — diz, fazendo um X no mapa e traçando uma linha que vai
dar às profundezas do centro médico. Rabisca o número de ventoinhas no
sistema, o número de lâminas, as barreiras de filtro, os intervalos de tempo
a que desligam: três minutos e quarenta e dois segundos. — Lyda, diz-lhes
onde achas que fica o cais de carga.
Ela não tem a certeza.
— Aqui, acho eu. Havia uma colina e eu via bosques ao longe. Então,
espera, talvez aqui?
— Não faz mal — diz Pressia.
Bradwell reúne os mapas. Passos pesados ressoam à superfície. Todos
levantam os olhos, como se pudessem ver através do teto do metro, das
camadas de terra.
Lyda tem de dizer a verdade a Partridge: ela não pode regressar.
Prefere viver ali, naqueles ermos, para o resto da vida e sofrer, do que
regressar.
Partridge puxa a camisa para cima.
— Estes frascos não podem vir comigo — declara. Solta-os da cintura
devagar e com cuidado. — Contêm um ingrediente que creio que o meu pai
já tem, mas, seja como for, não quero que ele saiba que o temos. Talvez vos
ajude. Mas tenham cuidado. O conteúdo destes frascos é um tipo de cura. É
capaz de fazer coisas milagrosas; reconstruir células e tudo o mais. Mas não
são controláveis. — Mantém os frascos embrulhados individualmente e
entrega-os a Pressia. — Ela desejaria que ficasses com eles.
Pressia pega-lhes suavemente.
— Se as coisas correrem mal e tu não voltares — promete Pressia —,
iremos buscar-te.
— Obrigado — responde Partridge.
— Ficaremos aqui em baixo com a miúda até a costa estar livre — diz
Bradwell.
— Tem cuidado lá em cima — recomenda El Capitan.
— Cuidado — ecoa Helmud.
Partridge vira-se e olha para Lyda. Fecha a mão em torno da dela e
aperta-a.
— Lyda e eu ficaremos juntos.
E nesse momento, perante aquela breve sequência de palavras, Lyda
tem a sensação de que o seu destino está selado. Poderia dizer-lhe, ali
mesmo, à frente de todos, que não vai com ele? Ele está a sacrificar tudo.
Ela não deveria fazer um sacrifício também? Imagina as Mães a pedir-lhe
para ficar, mas também sabe qual é o seu papel: o papel que lhe foi
martelado na cabeça a vida inteira. Deve ser uma companheira. Aquela que
segue.
— Ficaremos bem — diz Lyda, largando a mão dele e vestindo a capa.
Entra no túnel atrás de Partridge e, quando ele começa a abrir a grossa porta
de metal, há uma vibração rápida da luz e ela lembra-se da sua cela no
centro de reabilitação, do painel de luz do sol falsa na parede, como se a
claridade jorrasse por uma janela, e como às vezes havia um piscar breve,
como se um pássaro tivesse voado por lá, lançando uma sombra rápida
apenas para desaparecer em seguida. Um pássaro falso, uma mera projeção,
a voar diante de um Sol falso do outro lado de uma janela inexistente —
dentro de uma prisão.
A Cúpula é uma jaula, um globo de neve. E ela vai voltar para lá.
Capítulo 16

Partridge
Lança

Partridge agarra na maçaneta e empurra. A luz ofusca-o e, ao içar-se


para fora do túnel, ouve estalidos de armas. Quando os seus olhos se
habituam à claridade, vê que estão todas apontadas para ele. Levanta as
mãos no ar.
— Calma — diz. — Vimos pacificamente.
O vento apanha a neve e fá-la redemoinhar em torno dele. Partridge
esquadrinha o grupo de soldados em busca de Silas Hastings e dos outros
rapazes da Academia que frequentavam o seu ano; o rebanho, como
costumava chamar-lhes: Vic Wellingsly, Algrin Firth, os gémeos Elmsford.
Vão ser difíceis de reconhecer, assim atulhados de melhoramentos,
transformados em criaturas mecânicas. Há restos dos seus antigos eus
algures ali dentro, antigos eus que detestavam Partridge. A última vez que
estivera com eles, Vic oferecera-se para lhe dar uma sova e Partridge
detivera-o com uma simples pergunta. «A sério?» Mas todos sabiam o que
ele queria dizer: provavelmente não seria muito inteligente dar uma tareia
ao filho de Willux. Partridge ficara enojado consigo próprio por ter dito
aquilo, mas Wellingsly tinha recuado, muito embora devesse estar a ferver
de raiva — e agora era bem capaz de ali estar, fortemente armado.
Lyda surge ao seu lado, entrelaçando as mãos sobre a cabeça. As armas
desviam-se. Luzes vermelhas formam alvos sobre o peito e a cabeça dela.
Aquilo deixa-o doente. Lembra-se dos feixes das miras que lhes tinham
apontado na floresta onde a sua mãe e o seu irmão haviam sido
assassinados. A velha raiva irrompe de novo.
— Podem recuar todos? — berra. — Estamos a entregar-nos! Que mais
querem?
— Queremos os outros — diz um dos oficiais. Avança, aproximando-
se o suficiente para que o cano a sua arma pressione as costelas de
Partridge.
— Que outros? Somos só nós. — Onde estará Hastings? Partridge
continua a esquadrinhar os queixos espessos, crânios gigantescos e
têmporas nodosas. Nada.
— Apanhem a rapariga! — grita o oficial, e dois outros soldados
agarram nos braços de Lyda, puxando-a cerca de nove metros.
— Ela vem comigo! É uma condição da minha rendição!
— Vocês não impõem condições — diz o oficial. — Nós é que
impomos. — Inclina-se sobre o alçapão e grita: — Todos cá para fora!
Partridge devia saber que as Forças Especiais não iriam contentar-se
apenas com ele.
— Quais são as vossas ordens? — pergunta. — O que vão fazer com
eles? — Não lhe agrada a maneira como um dos soldados agarra a cintura
de Lyda. O oficial não responde. Um dos soldados adianta-se ligeiramente
da fileira e inclina a cabeça para Partridge. É alto e magro, quase como um
inseto. Silas Hastings? Será ele?
Partridge dá um jeito à cabeça, como Hastings costumava fazer para
afastar o cabelo dos olhos. O soldado repete o gesto, embora tenha a cabeça
rapada. Hastings. Claramente. Estará a oferecer-se para ajudar?
À medida que os outros vão saindo do túnel, um a um, são empurrados
por um soldado e alinhados em fila. Põem as mãos no ar, El Capitan e
Helmud, o punho da cabeça de boneca de Pressia. Bradwell deixou Fignan
e os mapas lá em baixo.
Partridge estuda rapidamente a paisagem. Os outros terão alguma via
de fuga? Para lá das chaminés caídas há uma espiral fina: um Poeira? Um
dorso espinhoso sobe e desce como uma onda de terra. Onde estarão os
reforços prometidos pelas Mães? Os Poeiras terão tido tempo suficiente
para aprender a temer as Forças Especiais tal como temem as Mães? Ele
não quer levar um tiro, mas também não quer ser devorado por Poeiras.
— Tenho o direito de saber quais são as vossas ordens — insiste
Partridge.
O oficial aproxima-se. Apesar das coxas volumosas e dos ombros
largos, os seus passos são estranhamente leves. Dirige-se a Partridge:
— Tens direitos?
Partridge fita os seus olhinhos malévolos.
— Sei que ele quer que eu seja levado vivo. Morto não tenho qualquer
utilidade para o meu pai.
O oficial golpeia as costelas de Partridge com o nó aguçado do
cotovelo, deixando-o sem fôlego. Partridge dobra-se em dois, quase cai de
joelhos, mas resiste. Endireita o corpo de repelão, sorve uma golfada de ar,
retém-no nos pulmões.
— Executem-nos — ordena o oficial. — Devolvam este prisioneiro à
Cúpula.
— O quê? Não! — Partridge atira-se ao oficial. — Sou a porra do filho
de Willux! A minha autoridade sobrepõe-se à sua!
O oficial dá-lhe um soco com uma arma que se prolonga pelos
músculos e ossos da sua mão e braço. Partridge ouve o seu próprio queixo
estalar e sente um sabor a sangue. Roda sobre si mesmo e cai.
Ouve a voz de Pressia:
— Esta rapariga é Pura. Foram vocês que a mandaram para cá. Não
podem matá-la.
Partridge limpa o sangue da boca e vê Pressia empurrar Wilda para a
frente, na direção dos soldados. Bradwell e El Capitan exibem expressões
de aço, indecifráveis. É como se aquela fosse a maneira como sempre
pensaram que iam morrer. Helmud já fechou os olhos, preparando-se para a
morte.
— Ela cumpriu o seu dever — berra o oficial. — Volta para a fila!
Wilda dá um passo atrás em direção a Pressia.
— Agora tenho um exército — diz El Capitan. — Eles vão vingar a
nossa morte.
— Ouçam-no! — grita Partridge. — Parem, por favor! Vamos resolver
isto!
Depois crava os olhos em Lyda. Ela baixou os braços e está a abraçar
as próprias costelas. Ele espera ver terror, mas repara em algo mais: o
queixo contraído, os braços tensos. Ela não está assustada. Está furiosa.
O oficial olha friamente para Partridge.
— Aos três — brada aos soldados.
Lyda chama:
— Mãe Hestra!
Bradwell tenta ganhar tempo.
— Ouçam, nós podemos ser-vos úteis. Temos algumas informações...
O oficial não presta a menor atenção ao barulho.
— Um!
— Jesus! — grita Partridge e atira-se a um dos soldados, derrubando-o.
O soldado vira-o rapidamente de costas e imobiliza-o, batendo-lhe com a
cabeça no chão. Com o metal da arma a comprimir-lhe a traqueia, Partridge
debate-se e contorce-se num esforço para se levantar.
— Dois!
— A rapariga, não! — grita Pressia. — Ela, não!
Então soa um tiro. Um soldado mais entusiástico a puxar o gatilho
antes de o oficial contar sequer até três? Quem terá sido atingido? O
soldado que segurava Partridge cai em cima dele, com uma bala na
têmpora, um peso morto. Partridge começa a empurrar o cadáver, mas há
fogo cruzado. Todos dispersam. Bradwell, Pressia e Wilda fogem para
procurar abrigo do outro lado da corcova de terra formada pelo metro. El
Capitan? Lyda? Partridge não os vê. As balas silvam no ar. Partridge
protege-se debaixo do soldado morto, esperando que ele absorva as balas.
Outros dois soldados são atingidos e tombam no solo.
Os soldados atiram-se de bruços e disparam na direção das chaminés.
A princípio, Partridge julgava que eram as Mães, a chegada dos reforços
com as suas facas, dardos de jardim e lanças, mas os soldados estão a ser
atacados com armas verdadeiras, automáticas.
Vê Lyda. Libertou-se e está em fuga. Um dos soldados avista-a, corre
atrás dela e agarra-lhe na capa, que se rasga e solta, revelando a lança
caseira. Lyda deve ter ido buscá-la quando Partridge já estava a rastejar para
fora do túnel. A jovem empunha a lança, firma a mão no cabo e crava a
ponta na garganta do soldado. A espingarda incorporada num dos braços
dele gagueja uma rajada, espalhando balas sobre a neve.
Partridge está aturdido. Lyda olha em redor — indómita e chicoteada
pelo vento — depois vira-se e continua a correr em direção às prisões
desmoronadas. Porquê? Ele não tem a certeza, mas não vai deixá-la ali
sozinha. É demasiado perigoso.
Olha por cima do ombro, pronto para tentar a sua sorte. Silhuetas
desvanecidas de corpos pálidos e pequenos dardejam entre os escombros
das chaminés, disparando com a precisão de atiradores de elite. Agora o
horizonte está pejado de Poeiras, que se erguem da terra. A morte está a
chegar e eles querem comer.
Bradwell salta sobre a corcova de terra, abre bruscamente o alçapão do
túnel e mergulha, provavelmente para ir buscar Fignan e os mapas.
Partridge sai de baixo do soldado morto e começa a correr. As suas
botas ressoam sobre a terra dura, coberta de neve. Sabe tão bem correr com
velocidade.
De súbito, é atingido por uma pancada na nuca. Cai para a frente,
esfolando as palmas das mãos. Um soldado solitário ergue-se
ameaçadoramente acima dele. Inclina o crânio espesso e o queixo
proeminente sobre o rosto de Partridge e silva:
— Teria muito gosto em dar-te uma sova agora, Partridge. Que te
parece?
Vic Wellingsly. Partridge olha-o nos olhos e replica:
— Não sabia que os fantochezinhos da Cúpula tinham tão boa
memória.
Wellingsly dá um pontapé na barriga de Partridge, cortando-lhe a
respiração. Não vai ser uma luta justa. Wellingsly possui melhoramentos
incríveis e já era robusto de origem. Dá um soco no chão, junto ao rosto de
Partridge.
— Como conseguiste sair?
— O quê? — murmura Partridge.
— Eu queria sair. Todos queríamos. E agora estou reduzido a isto.
— Não fui eu quem te fez isso. Nunca quis...
Mas Wellingsly não está a ouvir. Ergueu novamente o punho cerrado.
Partridge rola para a esquerda. Então Wellingsly é atingido por trás, caindo
ao comprido no chão. É Hastings. Olha para Partridge, mas não diz uma
palavra.
— Obrigado — diz Partridge.
Hastings acena com a cabeça. Quer dizer: Vai, corre.
Partridge levanta-se e começa a correr o mais depressa que pode. Olha
para trás e vê Wellingsly erguer-se sobre os joelhos e atirar-se a Hastings,
derrubando-o. Estão a lutar, numa revoada de punhos, pó e neve, rápidos e
violentos.
Partridge continua a correr. Os Poeiras estão a aproximar-se do campo
de batalha, atraídos pelo sangue. Partridge vê as duas prisões desmoronadas
em frente e um vulto a deslocar-se rapidamente por cima dos escombros:
Lyda.
Lança novo olhar para trás. Os Poeiras emergiram do solo, densos e
monstruosos, atulhando o ar de neve, areia, terra, dentes, garras.
Não pode ver aquilo. Chama por Lyda, mas ela não se vira.
Entre os dois edifícios prisionais caídos, num casulo protegido das
Detonações, encontram-se os restos esqueléticos de uma casa.
Uma casa solitária, inclinada, sem telhado.
Lyda penetra no negrume da porta escancarada.
Capítulo 17

Pressia
Chaminé

Rapazes da cave. Demasiados para contar. E estão equipados com


armas reais. Não estão ali em missão de resgate. Vêm atrás de caça grossa:
as Forças Especiais. Pressia vê-os a eliminar soldados, um após outro,
enquanto Poeiras rondam e arranham. Ela e Wilda têm as costas
comprimidas contra a chaminé desmoronada do meio, cujo topo está
cortado e estilhaçado como uma lâmpada de vidro. El Capitan grita por ela.
— Aqui! Estamos aqui! — brada Pressia.
Ele e Helmud aparecem na extremidade da chaminé. Está a coxear e
cai sobre um joelho.
— Onde está o Bradwell?
— Voltou para ir buscar Fignan e os mapas. Estamos à espera dele.
— Devíamos sair daqui enquanto podemos. Eu levo a Wilda. Ele sabe
para onde vamos. Irá ter connosco.
— Não podemos deixá-lo — objeta Pressia, olhando para o campo de
batalha poeirento, ruidoso e coberto de neve. — Que se passa com a tua
perna?
— É apenas uma lesão antiga que voltou para me incomodar.
— Julgava que tinhas dito que era uma cãibra muscular.
— Foi essa a lesão — diz ele. Tosse para a curva do braço. — O ar
aqui... se não for um Poeira a sufocar-nos, o ar encarrega-se disso.
Está a esconder qualquer coisa. Ela olha para Helmud, que a fita com
os olhos arregalados de medo.
— Sufocar — repete. — Sufocar.
Pressia olha para a perna de El Capitan.
— Há sangue na perna das tuas calças. As cãibras musculares não
fazem sangrar. — Estende a mão para a perna ferida e ele recua
cambaleando.
— Não. Não é nada.
— Nada? — diz Helmud.
— Tens de me mostrar — insiste Pressia.
El Capitan abana a cabeça e olha para o céu, deixando escapar um
suspiro profundo.
E então Pressia sabe o que é. Uma das aranhas.
— Não — sussurra.
Ele faz um sinal afirmativo.
— Tens isso no corpo desde que viemos da cidade?
— Tenho. Apanhou-me ao pé do carro.
— Apanhou-me — diz Helmud. Se o seu irmão explodir, ele explode
também.
Pressia tem um nó na garganta.
— Quando me salvaste?
Ele desvia o olhar e ela sabe que foi nessa altura. Sente-se dilacerada
pela culpa. Estende a mão e toca no peito de El Capitan, imediatamente
acima do coração.
— Quanto tempo vos resta?
— Cerca de duas horas. O suficiente para chegarmos ao posto médico.
Um sentimento de raiva sobrepõe-se bruscamente à culpa.
— Podíamos ter aproveitado este tempo para vos levar a um médico no
quartel-general! Podíamos ter saído da cidade imediatamente e...
— Não — atalha ele. — Isso teria distraído toda a gente, feito perder
tempo...
— Mas... — Ela recorda todas as decisões tomadas na carruagem de
metro. — Foste tu que me convenceste a dar a Partridge e Bradwell tempo
para trabalhar a caixa, terminar os mapas...
— Eu disse que às vezes as pessoas estão dispostas a sacrificar a sua
vida por um bem maior. É verdade.
Ela está furiosa com ele.
— Ainda há tempo, não há? Temos que vos levar... — Há uma enorme
explosão. O troço inferior da chaminé explode em pó e estilhaços. Pressia é
projetada de costas, atingida por uma dúzia de pedaços de cimento e
argamassa do tamanho de um punho. O ar foge-lhe dos pulmões. Todos os
sons são abafados. As Forças Especiais recorreram à artilharia pesada. Ela
passa os dedos sobre os frascos, nervosamente. Estão todos intactos. Rola
sobre si própria de modo a ficar de bruços e olha em redor. O ar está cheio
de fumo e de pó.
— Wilda!
— Aqui! — El Capitan tem a pequena nos braços, protege-a com o seu
corpo.
Outra explosão atinge o solo entre eles.
— Foge! — berra Pressia. — Pega nela e foge!
El Capitan põe-se em pé.
— Voltaremos a ver-nos! — grita Pressia. — Isto não é o fim! — Não
pode ser.
Ele sorri-lhe com tristeza, depois vira e parte a correr, limitado pela
perna ferida. Enquanto se afastam através do fumo, Helmud levanta o braço
delgado no ar. Um aceno de despedida.
O peito de Pressia parece prestes a rebentar a qualquer momento. A
aranha cravou-se em El Capitan enquanto ele a salvava, e agora quanto
tempo tem ele? Apenas duas horas? Ela tem de se concentrar. Pisca os olhos
para conter as lágrimas e vira-se para a cena de batalha.
Bradwell. Tem de encontrar Bradwell.
E onde estarão Partridge e Lyda? Já estarão a ser levados para a
Cúpula?
Pressia corre pelos destroços da chaminé, com as pernas pesadas. Vê
um pequeno grupo compacto a cerca de sessenta metros de distância,
mexendo-se freneticamente. Primeiro pensa que é um Agrupado, mas
depois percebe que se trata de um bando de Rapazes da Cave. Arrastaram o
corpo morto de um soldado das Forças Especiais, compacto e musculoso,
do campo de batalha e estão a esventrá-lo para pilharem as suas armas e
peças. Pressia sente-se enojada. Odeia aquele mundo.
Bradwell. Onde raio estará ele? Será que vai voltar? E se já estiver
morto? Desaparecido?
Ao longe, os Rapazes da Cave começam a lutar pelo que resta do
soldado desmantelado. No centro do grupo, algo pequeno e afiado rodopia
pelo ar e vai cravar-se no chão com um baque.
Um dardo de jardim.
Depois outro.
As Mães estão ali, entrincheiradas do outro lado da corcova.
Arremessam uma nuvem de dardos de jardim, lanças, flechas. Porquê a
súbita intensificação do ataque? Mas então Pressia percebe: as Mães estão a
dar cobertura a Bradwell, que corre na direção dela através do pó e da neve,
com Fignan debaixo de um braço e os mapas enrolados debaixo do outro.
Vivo. Pressia sente o peito subitamente insuflado, apertado de... alívio?
Alegria?
— Bradwell! Aqui! — grita.
Balas silvam e rebentam, atingindo a chaminé tombada. As
sobrancelhas dele estão cobertas de pó, o rosto manchado de terra. Pressia
está inundada de alívio. Depois ele cai. Derrubado por uma bala? Ainda
segura Fignan e os mapas, mas um Poeira agarrou-lhe a perna, arranha-lhe
o tornozelo com a garra. Pressia corre para ele o mais depressa que pode.
Bradwell pontapeia violentamente o Poeira com a bota livre, cravando os
cotovelos no chão para não se deixar arrastar.
Pressia arranca do solo um dardo de jardim perdido e enterra-o
profundamente na onda de costelas que sobem e descem, em cheio no
coração do Poeira. Ouve um grito gutural e um silvo quando arranca o
projétil do corpo da criatura.
Ajuda Bradwell a pôr-se em pé, cambaleante. O que resta da torre
caída rebenta e rui. O estrondo de artilharia é ensurdecedor.
Correm para as árvores distantes, o bosque que vai dar ao rio, e
chegam a um velho edifício exterior, com alicerces de cimento. Param para
recuperar o fôlego.
— El Capitan e Helmud — diz Pressia. — Uma aranha. Alojada na
barriga da perna. Só lhe restam duas horas.
— Porque é que ele não...
— Não quis distrair-nos.
— Onde está ele? Onde está a Wilda?
— Ele vai levá-la para o posto médico, do outro lado do rio.
— O rio. Pressia nunca tinha ido tão longe. — Ele disse que tu sabes o
caminho.
— Sei — diz Bradwell. — Mais ou menos.
— Achas que eles vão safar-se? — Ela estava a mentir quando dissera
a El Capitan Voltaremos a ver-nos. Isto não é o fim. Estava a mentir-lhe, a
ele e a si própria. E ele sabia. Ela lembra-se do seu olhar de resignação
triste. Carregando o irmão às costas todos aqueles anos, ele sempre aceitara
a verdade da sua vida, e agora da sua morte.
— Ele foi-se — diz Pressia, e sente-se como se uma parte de si mesma
tivesse desaparecido. Não tinha noção de quão vazia, vulnerável e
desorientada se sentiria com a simples ideia de o perder. Leva a mão à
garganta e alonga o olhar sobre o terreno poeirento. Está tudo mergulhado
numa nuvem de fumo.
— El Capitan? — diz Bradwell. — Nunca o dês por perdido.
Capítulo 18

Lyda
Latão

A casa é sustentada de um lado por uma chaminé e, do outro, por uma


escada. A maior parte das paredes exteriores desapareceu, fazendo com que
a casa pareça exposta. Um piano despojado de teclas, cordas e pedais
repousa caído de lado, uma carcaça assassinada. Ela ouve alguém atrás de
si, vira-se. É Partridge. Só ele. Estão sozinhos.
— Eles seguiram-nos? — pergunta ela. Tem o coração a galope no
peito, mas, por qualquer razão, sente-se calma.
— Não me parece. — Partridge toca num parapeito rachado. — Isto
talvez fosse a casa do diretor. Alguns deles viviam perto das prisões, em
casas grandes e bonitas.
Ela tenta imaginar aquela casa como sendo bonita. Agora está
devastada.
Sobem as escadas, que sobreviveram a um incêndio. Espirais de
fuligem negra mancham as paredes. O corrimão soltou-se e está caído sobre
os degraus, inútil. Uma camada de cinza sedosa torna a escada
escorregadia.
— Para onde vamos? — pergunta Partridge.
— Para cima.
No terceiro piso só há ar sobre as suas cabeças. Um telhado feito de
céu, pensa Lyda. Vai ter saudades do céu, mesmo sombrio como é. Vai ter
saudades do vento, do ar e do frio. As paredes quase ruíram e o quarto está
nu, tirando uma cama de dossel em latão. É um milagre, aquela armação.
Colchão, lençóis, cobertor, folho, tudo desapareceu há muito, arrancado
juntamente com o telhado ou pilhado. Mas aquela estrutura de latão, coberta
de fuligem, permanece.
Lyda limpa a bola de latão numa das colunas da cama. Vê o seu
próprio reflexo e, atrás de si, Partridge, ambos distorcidos e arredondados.
— É como um presente — comenta.
— Talvez seja o nosso presente de Natal — diz ele.
Ela passa por cima das barras para o centro, onde outrora ficava o
colchão, e concorda:
— Talvez. — Senta-se e, em câmara lenta, finge atirar-se para cima de
cobertores macios.
— Agora como é que vamos voltar para a Cúpula? — pergunta
Partridge.
Mas Lyda não quer falar sobre isso.
— Temos de esperar pelo fim da batalha. Não podemos fazer nada até
os soldados e os Poeiras terem partido, pelo menos. — Sorri. — Temos de
afofar as almofadas.
Partridge passa também por cima das barras, pega numa almofada
imaginária, dá-lhe alguns socos e entrega-lha.
— Partilha-a comigo — diz ela, fingindo pôr a almofada na cama.
Ele deita-se ao lado dela. Ficam a contemplar as nuvens, lado a lado.
Partridge rola para ela.
— Lyda — diz.
Ela beija-o. Não quer ouvir nada do que ele tem a dizer. Estão naquele
mundo ventoso, numa casa sem telhado e numa cama que já não é uma
cama. Estão livres dos paus de cabeleira da Cúpula e das Mães. Estão
sozinhos. Ninguém sabe onde estão. Absolutamente ninguém. Nem sequer
precisam de existir. O que eles estão a fazer é fingir.
A boca de Partridge está na dela, desce para o pescoço. O seu hálito
quente arrepia-lhe a pele.
Ela tira-lhe o casaco. Há os botões pequenos, delicados, das suas
camisas, depois as camisas desaparecem. A pele dele toca na dela — tão
quente que a surpreende. Como pode existir tal calor, com aquele vento tão
frio?
Enroscam-se ambos no casaco dele, como num casulo. O corpo dela
roça no dele. É surpreendente como tudo aquilo sabe bem — os lábios dele
na sua orelha, no seu pescoço, nos seus ombros. Sente-se afogueada, mas
não apenas as bochechas; é todo o seu corpo. De facto, o corpo dele e o
dela... qual é a diferença? Há uma abundância de pele como se tivesse
despertado para a vida pela primeira vez.
A cera lustrosa dos banhos fica escorregadia. É assim que deve ser
entre marido e mulher? Lyda recorda as aulas de saúde na academia
feminina: um coração feliz é um coração saudável. Não diziam nada acerca
de amor e sexo, embora ela saiba um pouco a esse respeito, as migalhas de
ciência que as raparigas são autorizadas a saber, o que algumas Mães
sussurram às filhas e que as raparigas sussurram entre si, em informações
tão diluídas que é impossível saber o que é verdade e o que é mentira.
Ele despe o resto da roupa e ela despe-se também. Tudo se foi. Aquilo
estará mesmo a acontecer? Estão completamente sozinhos, invisíveis, sem
vigilância, e ela sente algo como fome, mas não é exatamente fome. Adora
os lábios dele nos seus. Passa as mãos pelo cabelo dele. Enrola-se em torno
dele, braços e pernas.
Partridge recua. Parece surpreendido, mesmo assustado. Pergunta:
— Tens a certeza?
Ela não sabe do que ele está a falar. Se tem a certeza que vai com ele
para a Cúpula? Não sabia que tinha escolha. Mas é claro que tem. Aquilo
não é a academia feminina. Aquilo é terra e céu reais, e ela está viva neles.
Talvez ela possa ali ficar. Não quer estragar aquele momento dizendo-lhe a
verdade: que, se não tiver de voltar para a Cúpula, não voltará. Por isso diz:
— Tenho a certeza.
Explica-lhe depois. Para quê desperdiçar aquele tempo precioso?
E ele está dentro dela. Ela sente uma dor breve e aguda, seguida de
pressão. Uma expansão de si mesma. Solta um arquejo.
— Queres que pare? — pergunta ele.
Era isso que ele queria dizer? Se ela tinha a certeza de que deviam
fazer aquilo, algo sobre o que apenas ouvira rumores, histórias de animais a
grunhir, de maridos e sangue e bebés?
Devia dizer-lhe para parar, mas não quer que ele pare. A pele e os
lábios dele, os corpos de ambos — onde termina o corpo dele e onde
começa o dela? Estão fundidos; dá-se conta disso agora. São ambos Puros,
mas fundidos. Naquele momento, ama-o. Tudo parece tão quente e húmido
e fascinante e novo, que ela não quer que acabe.
— Não pares — sussurra.
E se aquela for a última vez que se veem antes de serem separados para
sempre? Agora que sabe que não vai com ele, sente-se a um tempo
desesperadamente triste e libertada. Quer ser mulher dele, mesmo que
apenas por aquele momento, talvez o único que jamais venham a ter.
Ele diz:
— Amo-te. Amar-te-ei sempre.
E ela responde:
— Também te amo. — Adora a maneira como aquilo soa.
Tem a certeza de que há sangue. Tem a certeza de que aquilo é errado,
mas, ao mesmo tempo, não quer mudar nada. Ele estremece e solta um som
suave. Depois segura-a nos braços, apertada contra si.
Ela olha para o céu por cima do ombro de Partridge, para as nuvens
fugitivas, a cinza varrida pelo vento, e imagina que está acima delas, no
cimo de uma casa sem telhado, dois corpos unidos no centro de uma cama
de dossel vazia.
Já tem saudades dele. Já se sente a ansiar por ele. Ele vai. Ela fica. O
que será deles um sem o outro?
— Adeus. — Ela sussurra tão baixinho que não tem a certeza se ele
ouviu ou não.
Capítulo 19

El Capitan
Canta, Canta, Canta

Vão serpenteando por entre árvores, subindo a colina. El Capitan ouve


o rio, quase lhe sente o cheiro. Caminha atrás de Wilda, mexendo
constantemente os olhos, mas estes estão turvos de suor. A dor continua a
tentar despertar a dor antiga, mas ele diz-lhe para calar a boca. Alguns
foram vaporizados tão depressa que os seus corpos deixaram apenas uma
mancha fantasmagórica. Outros ficaram carbonizados. Após as Detonações,
ele encontrou uma mulher num quintal, debruçada sobre a sua coelheira
derretida, uma grossa estátua de carvão. Estendeu a mão e tocou-lhe no
ombro, esperando que ela se virasse; em vez disso, um naco do ombro caiu
ao chão, numa nuvem de cinzas. Os dedos dele ficharam manchados de
cinzento. Tivera sorte em não ficar carbonizado. Tivera sorte em não beber
a chuva negra, apesar de estar a morrer de sede. Encontrara um velho
depósito de água, e foi daí que ele e Helmud beberam. Assim não morreu,
passados dias, apodrecido por dentro. Ele e Helmud estavam ambos doentes
e fracos, mas comeram tangerinas enlatadas, uma coisa que a mãe
costumava pôr numa sobremesa com maçãs e flocos de coco.
A dor vai serpenteando através do seu corpo. Agora dói-lhe o peito. O
seu coração bate com força. El Capitan firma-se, apoiando a mão na casca
áspera de uma árvore jovem. A dor recorda-lhe outros tipos de sofrimento:
a perda. A sua mãe. O saco de plástico de flocos de coco — granulosos nos
dentes e doces na língua.
Solta um grunhido.
Helmud solta um grunhido também.
El Capitan toca no ombro da rapariguinha.
— Por aqui. — Avançam entre os rebentos. O rio abre-se à sua frente.
Ali é bastante profundo, mas um pouco mais adiante é suficientemente raso
para se poder atravessar. Seguem pela margem, depois El Capitan para. —
Vou ter de te levar ao colo — diz a Wilda.
Ela olha para ele e levanta os braços.
Ele pega-lhe e a dor é brutal. Estranhamente, porém, com ela agarrada
ao seu peito e Helmud às costas, encontra um novo equilíbrio. A água está
gelada. Penetra rapidamente nas suas botas e sobe-lhe pelas calças. Quando
a frialdade chega às feridas provocadas pela aranha robótica, ele pergunta-
se se a água irá fritar o objeto. Talvez seja tão simples como isso.
A ideia estimula-o a passar rapidamente para o outro lado do rio. Pousa
Wilda e olha para a canela. Enquanto a pequenita está distraída, El Capitan
puxa a perna das calças molhada, escura de sangue. Os seus olhos ardem
tanto que tem de os piscar e franzir. A aranha não ficou frita. O
temporizador indica, 01:12:04... 01:12:03... 01:12:02.
Está quase a anoitecer. A luz do Sol está baixa sobre as árvores.
— Helmud — diz El Capitan. — Vou tentar aguentar-me, mas se não
conseguir, temos de pôr a miúda...
— Não — diz Helmud, e é um daqueles momentos em que não soa
como um eco. Ele parece saber que El Capitan está prestes a ir abaixo e
quer que pare com isso. Aqueles momentos são raros, mas, Deus, El
Capitan vive para eles. É como voltar a ter o seu verdadeiro irmão, o miúdo
que fora enterrar armas com ele, que era inteligente e cantava.
— Está bem — diz El Capitan. O facto é que, se ele morrer, Helmud
morre também. El Capitan tem vontade de explicar a Helmud o que se
passa, só para o dizer em voz alta, só para ter alguém que ajude a suportar o
peso emocional de tudo aquilo. Mas Helmud compreende o que está em
jogo.
A verdade é que, se não fosse Helmud, El Capitan provavelmente não
teria aguentado. Já teria desistido se não tivesse alguém para proteger,
mesmo àquela sua maneira distorcida, feita de amor e ódio.
Continua a caminhar. Pelo menos tem de tentar entregar a rapariguinha
em segurança no posto avançado, antes que a aranha expluda. Gostaria de lá
chegar a tempo de tentar desmantelar a criatura, mas o mais provável era
acabarem por a detonar e morrerem na tentativa.
Wilda levanta os olhos para ele.
Já só falta um bocadinho. Seguimos a orla da floresta à volta do prado,
para a direita. Depois já se vê o telhado do posto.
Wilda vai à sua frente pelo caminho estreito. Ele continua a caminhar
penosamente, cada passo mais excruciante do que o anterior. Está a
abrandar. Talvez devesse dizer simplesmente à pequena para ir andando.
Talvez ele não consiga ir mais longe.
O seu joelho verga-se. Ele cambaleia, estende a mão e agarra-se a uma
árvore. Cai, aterrando a perna magoada esticada para o lado. Helmud
abraça-lhe o pescoço.
Wilda retrocede apressadamente.
— Vais ter de correr para lá sozinha — diz El Capitan. — Não voltes
para trás. — Preocupam-no os soldados da OSR que estão de guarda ao
posto. Se a ouvirem aproximar-se a correr, abrirão fogo.
— Sabes cantar?
Ela encolhe os ombros.
— Vai cantando a mensagem enquanto corres. Canta todo o tempo.
Canta!
Ela vira-se e começa a correr pela floresta, saltando sobre o mato
baixo. O seu vestido surge brevemente por entre as árvores, depois
desaparece. Não está a cantar.
— Canta! — grita El Capitan, gastando todo o seu fôlego.
— Canta ou eles alvejam-te!
— Alvejam-te! — diz Helmud. Talvez a alvejem de qualquer maneira.
Por Deus, ela ainda não está a cantar! Canta, canta, canta!, implora ele
mentalmente.
E justamente quando começa a pensar que talvez ela de facto não
consiga cantar, uma voz ergue-se, límpida, doce, melódica.
«Queremos a devolução do nosso filho!» Wilda canta e lembra-lhe a
voz de Helmud quando era criança, no Antes. Angelical. Por vezes, fazia a
mãe chorar. «Esta menina prova que podemos salvar-vos a todos!» Wilda
prolonga a última nota, que ressoa por entre as árvores.
El Capitan fecha os olhos, deixa que a canção lhe inunde a cabeça.
Queremos a devolução do nosso filho... E El Capitan quer ser devolvido.
Coco e tangerinas. A sua mãe a misturá-los numa tigela. Voltar, voltar.
Sente um puxão na perna das calças. Estou ferido, diria ele à mãe se ela ali
estivesse. Estou ferido.
Abre os olhos devagar. O rosto de Helmud destaca-se por um instante,
depois desaparece. Ele sente o irmão a vasculhar nas suas costas, depois
ouve o estalido do canivete. Helmud mostra a lâmina cintilante a El
Capitan.
— Não, Helmud. Jesus. Não — protesta El Capitan, entre grunhidos de
dor. — Julgas que vais escarafunchar a minha canela para arrancar as
pernas da aranha? Como se estivesses a talhar um pedaço de madeira?
— Como talhar um pedaço de madeira — diz Helmud calmamente.
— É muito perigoso. E se detonares o explosivo? E se...
— E se? — diz Helmud.
Ele tem razão. Não têm nada a perder.
— Oh, Deus. Helmud.
— Deus Helmud!
Pela primeira vez, as suas vidas estão nas mãos de Helmud. Não há
alternativa.
— A miúda não está aqui, pois não? Não quero que ela esteja perto de
nós, nem nada que se pareça.
— A miúda não está aqui.
El Capitan baixa a cabeça.
— Está bem.
Helmud torce-se. Tem os braços suficientemente compridos para
aplicar pressão sobre o tornozelo de El Capitan, para o segurar com
firmeza. Há uma brisa, seguida por uma dor tão intensa que o faz esmurrar
o chão.
— Chiça! — grita El Capitan.
Desta vez, Helmud escolhe apenas um bocadinho da palavra, «Ch-ch-
ch», e continua a escarafunchar.
Capítulo 20

Pressia
Rio

Quando se internam o suficiente na floresta para parar e recuperar o


fôlego, Bradwell diz:
— Vamos tentar de novo.
— Tentar o quê?
— Fignan. — A caixa negra tem conseguido acompanhá-los, utilizando
tanto as rodas como os braços compridos para se deslocar sobre o terreno
irregular. — Não parei de pensar nisso. Quero tentar mais uma vez com
todos os sete nomes e sem Partridge aqui. Só nós.
— Está bem — diz Pressia —, mas desta vez não...
— Não quê?
Ela ia dizer-lhe para não pôr demasiada esperança em Fignan, mas não
consegue. A voz dele é tão apaixonada, o seu olhar tão veemente, como
pode ela dizer-lhe para não ter esperança? Como pode ela dizer seja a quem
for, ali naqueles ermos destruídos, para não ter esperança?
— Nada — replica. — Vamos tentar.
Ambos ajoelham de cada lado de Fignan.
— Cisne — diz Bradwell. Quando Fignan termina a sua ladainha de
setes, Bradwell recita rapidamente os nomes. — Aribelle Cording, Ellery
Willux, Hideki Imanaka, Ivan Novikov, Bartrand Kelly, Avna Ghosh e
Arthur Walrond.
Uma luz verde pisca a cada nome. O olho de uma câmara aparece no
topo da caixa. Volta-se para Bradwell, depois para Pressia.
— Ele conhece-nos — diz Bradwell. — Deve estar a fazer a
correspondência das nossas caras com as amostras de ADN que recolheu.
O motor interno de Fignan faz barulho, como se estivesse a ter
problemas de computação. Por fim, a caixa diz:
«Correspondência com Otten Bradwell e Silva Bernt. Masculino.
Correspondência com Aribelle Cording e Hideki Imanaka. Feminino.
— Somos nós — diz Bradwell. — Estás a ver?
Pressia está aturdida.
— Autorizado — diz Fignan. — A reproduzir mensagem para Otten
Bradwell e Silva Bernt.
Então uma fita de luz bruxuleante ergue-se em espiral de Fignan e
forma um cone que fica a pairar como ar iluminado; partículas de cinza a
cavalgar o vento.
— Resultou! — exclama Pressia, espantada.
— Eu disse-te que resultaria — replica Bradwell.
Um rosto surge por entre a estática. Pressia não o reconhece. Trata-se
de um homem na casa dos trinta, com cabelo loiro desgrenhado e bigode
loiro também. Pisca os olhos erraticamente, como se estivesse demasiado
tenso para dormir e estivesse acordado há dias. Ele diz:
«Se estão a ver esta mensagem, isso significa que são alguém em quem
confio. Um dos Sete em que ainda tenho fé, ou Silva e Otten, a quem confio
a minha própria vida.» Interrompe-se, comprime a mão contra o peito. Os
seus olhos enchem-se de lágrimas. «E estão vivos.»
Bradwell inclina-se para o rosto do homem. Está aturdido, como se
visse um fantasma.
Pressia estende o braço e toca na manga de Bradwell.
— É Walrond?
Ele não tira os olhos do homem, limita-se a acenar com a cabeça e a
murmurar:
— É ele.
«No momento em que veem isto, é provável que eu já esteja morto.
Talvez o mundo inteiro tenha morrido. Talvez nada do que estamos a tentar
fazer agora dê resultado. Mas eu tinha de tentar. E a caixa sabe», prossegue
Walrond. «Desculpem a colheita da amostras de ADN. Foi uma camada
adicional de segurança. Tinha de o fazer.» Olha em redor, com os olhos
turvos. Desaparece da imagem por um momento, talvez à procura de
alguém ou de alguma coisa, mostrando-se vigilante, mas logo regressa.
«Esta caixa contém todas as notas, desde o início, desde a criação dos Sete:
todas as ideias de Ellery que entraram no projeto. Toda a sua loucura.»
Cruza os braços sobre o peito.
«As pessoas não resolvem simplesmente tornar-se assassinas em massa
quando são jovens. Têm de evoluir até ao ato de aniquilação, e Ellery assim
fez. Ainda está a fazê-lo. Mas começou modestamente. Eu estive lá desde o
início. Devia ter feito alguma coisa nessa altura. Vejo isso agora, em
retrospetiva. A questão é que ele matou a única pessoa que poderia tê-lo
salvo. É essa a ironia.»
Os olhos de Bradwell estão cheios de lágrimas, mas ele não chora.
Gostava muito de Walrond. A dor está gravada no seu rosto.
«Está tudo aqui à vossa disposição e conduzir-vos-á à fórmula»,
continua Walrond.
A fórmula. Walrond tinha-a e pode levá-los até ela? Ainda? Passado
tanto tempo?
«Não está tudo explícito e muito bem arrumadinho. Não podia arriscar
algo tão simples. E, ouçam, se chegarem a um ponto na vossa busca em que
não consigam ir mais longe, lembrem-se que eu conhecia a mente de Willux
como ninguém. Estudei longamente estas notas e tive de olhar para o
futuro. Esta caixa não era suficientemente segura para mim. Não podia
simplesmente guardar tudo aqui. Se sabem como Willux pensa — e todos
vocês sabem, isso tornou-se a obra de toda a nossa vida, não foi? Tentar
descobrir o que seria o seu próximo passo e tudo o mais. Bem, se pensarem
na cabeça dele, na sua lógica, conseguirão compreender as decisões que
tomei. E quando chegarem ao fim, a caixa não é uma caixa de todo. É uma
chave. Lembrem-se disso. A caixa é uma chave e o tempo urge.»
Sai de novo do campo de visão da câmara. Haverá uma janela
próxima? Estará a verificar se há alguém a segui-lo? Quando regressa, ele
diz:
«Sinto-os a apertar o cerco. Estamos a correr contra o tempo. Se estão
a ouvir esta mensagem, isso significa que todas as nossas tentativas aqui
falharam.» Quase ri. Ou será um soluço? Pressia não sabe ao certo. O peito
do homem arqueja por um segundo, depois ele prossegue: «Willux, bem
vistas as coisas ele é um romântico, não é? Quer que sua história gloriosa
viva para sempre. Espero que um de vocês ouça isto e espero que consigam
pôr um fim a essa história. Prometam-me.» Olha para o teto. A imagem
tremula por um momento, depois volta ao normal. «Não que eu mereça a
vossa palavra, especialmente a de Silva e Otten. A vossa palavra é boa
demais para mim. Quebrei tantas promessas. Vocês dois são melhores do
que eu. Sempre foram. E o Bradwell é uma combinação do melhor de vocês
dois.» Então olha diretamente para a câmara, diretamente para Bradwell.
«De facto», acrescenta, «e se ele for o único de todos nós a sobreviver?
Talvez vá adicionar mais uma coisa, não vá ser esse o caso.
Todos os vossos filhos», sussurra. «Deus, espero que nos sobrevivam a
todos. Espero que sobrevivam ao que está para vir. Espero que tenham um
mundo onde sobreviver.»
A luz desvanece-se. A pequena câmara que projetou o holograma
desaparece na caixa negra com um estalido.
Faz-se silêncio.
— Estás bem? — pergunta Pressia. Não consegue imaginar o choque
de ver Walrond de novo.
— Estou ótimo. Ótimo — responde ele, olhando para Fignan. —
Afinal é a fórmula. Ele meteu-a lá dentro, de algum modo. A fórmula. E
pronto. — Respira fundo. — Vamos.
Enquanto o motor interno de Fignan continua a zumbir, ele começa a
andar tão depressa que Pressia tem de correr para o alcançar.
— Espera — diz ela. — O que querias de Walrond? A fórmula não é
uma boa notícia? Se a conseguirmos, apenas precisamos de mais um
ingrediente e depois podemos salvar a Wilda e...
— É boa notícia para ti, suponho eu.
— O que quer isso dizer?
— A Cúpula pode purificar as pessoas. Já descobriram como o fazer,
mas o tratamento causa Degeneração Celular Rápida — diz Bradwell. —
Depois há essa esperança, essa hipótese ínfima de que, se conseguires os
frascos da tua mãe e um outro ingrediente, mais a fórmula com a maneira
de os combinar, a Cúpula consiga Purificar as pessoas e ter remédios para
compensar os efeitos secundários. A vida seria perfeita, certo?
— Quando Willux e as pessoas da Cúpula entenderem que a terra já
está suficientemente limpa para regressarem, Willux arranjou as coisas de
modo que haja duas classes evidentes: os Puros e os desgraçados que irão
servi-los — argumenta Pressia. — Isto pode pôr fim ao seu plano.
— Ou eles podem cá vir e enfrentar-nos. Enfrentar o que nos fizeram e
aceitar-nos tal como somos.
— Não podes ignorar o facto de que uma cura é uma possibilidade
interessante.
— Queres dizer uma possibilidade fascinante.
— Não me digas o que quero dizer.
— Eu sei o que tu esperas, Pressia. Queres recuperar a tua mão. Queres
apagar as tuas queimaduras. Queres ser como eles.
— Isso é assim tão errado? A sério? Não querer ser desfigurada e
queimada é um crime?
— E se conseguisses o que querias, Pressia, o que mudaria de facto?
Ela não tem a certeza, mas parece-lhe que recuperaria uma parte de si
mesma.
— Ainda tenho a memória de quem era — explica. — Quero que essa
pessoa exista. Quero ser inteiramente eu.
— Tu és inteiramente tu — afirma Bradwell. — Isto é quem eu sou:
cicatrizes, pássaros nas costas. Sou inteiramente eu agora. Aceito isso. Tu
passas a vida a ver a beleza em todas estas ruínas, mas quando conseguirás
vê-la em ti própria? — Aproxima-se dela e passa o dedo ao longo da curva
da cicatriz em forma de crescente em torno do seu olho. — Neste tu.
Pressia quer afastar a cabeça, mas não o faz. É a maneira como ele olha
para ela — tão intensamente.
— Pelo menos, a fórmula é real. Tu só querias revolver o passado. Só
queria velhas verdades, não é?
— Há uma verdade — diz ele. — Temos de a encontrar e preservar.
— Não sei — diz Pressia. — Às vezes acho que tu acreditas que a
verdade de toda a gente é maleável, mutável, indigna de confiança, mas a
tua não.
Por fim, ela vira a cabeça e olha para outro lado do rio. Uma neblina
leve paira sobre a superfície da água. Algo faz restolhar o mato, não muito
longe. Ambos espreitam por entre as folhas.
— Vai escurecer em breve — observa Pressia.
Bradwell olha para o céu cortados por ramos de árvores.
— Porque será que o tempo urge? — pergunta. — É como se o
Walrond tivesse esquecido que estaríamos a ouvir a mensagem após as
Detonações. O tempo só urgia no Antes, quando ainda podiam ter esperança
de travar Willux. Não faz sentido.
— Como podia ele ter imaginado verdadeiramente tudo isto? Naquela
altura, o tempo tinha de ter um significado diferente — diz Pressia. —
Temos de continuar a andar.
Tempo, neste preciso momento, faz com que pense em El Capitan. Terá
decorrido tempo suficiente para que a aranha cravada na perna tenha
explodido? Ela não tem relógio. E se ele e Helmud estiverem mortos? É
algo de que não falam. Não conseguem.
Capítulo 21

Partridge
Para Baixo

Ainda deitado de costas, Partridge abre os olhos para a tigela pálida do


céu escuro da noite, tanto dele, que se estende como um oceano de nuvens.
A Lua oferece uma luz frágil. Quando Lyda sussurrou adeus, ele estava a
pensar a mesma coisa: adeus a este mundo, à sua cinza, céu, vento. O
mundo no exterior da Cúpula tem uma pulsação selvagem própria, um
coração agressivo e pulsante que faz com que tudo, até o próprio ar, pareça
violentamente vivo. Ele não quer voltar para o ar sediço e fechado da
Cúpula, para a sua pontualidade, a sua limpeza assética, toda a sua
hipocrisia bem-educada. Contudo, adoraria estar quente, numa cama a sério
— com Lyda.
Ela já está vestida e de pé junto à parede exposta, que lhe dá pelas
ancas. É como se estivesse a olhar da proa de um navio alto.
Ele senta-se e veste-se. Diz o nome dela. Ela não se vira.
Partridge pega no casaco e vai ter com ela. Rodeia-lhe a cintura com as
mãos, por trás, e dá-lhe um beijo na face.
— Queres o meu casaco?
— Estou bem.
— Devias pô-lo. — Põe-lhe o casaco sobre os ombros.
— E uma questão de tempo — diz ela. — Vi o Hastings lá fora.
— Onde?
— Estava a percorrer os escombros das prisões, sozinho. Deve ter-se
separado dos outros. Deve andar à tua procura.
— Talvez seja ele a levar-nos. Antes ele do que o Wellingsly. Seria
bom para a sua reputação ser aquele que me entregou.
— Ele não vai levar-nos — diz Lyda.
— Que queres dizer?
— A nós, não. — Afasta-se dele.
— Não compreendo.
Lyda sussurra:
— Eu não vou contigo.
— Mas nós vamos regressar juntos.
— Não posso regressar.
— Estarás comigo. Posso garantir que és protegida.
— É precisamente essa a questão — diz ela, com os olhos cheios de
lágrimas, a voz subitamente desesperada. — Não quero continuar a ser
protegida.
Partridge não acredita nela. Não faz sentido. Olha para a paisagem
devastada.
— Isto aqui fora é bárbaro. Posso garantir... — Está prestes a dizer que
cuidam bem dela, mas sabe que isso também não é o que ela quer ouvir.
— Lá dentro também é bárbaro. A única diferença é que na Cúpula
mentem a esse respeito.
Ela tem razão, claro. Ele vê os Poeiras erguer-se e desaparecer,
vagueando logo abaixo da superfície de terra e neve. Pesca de arrasto, é a
expressão que lhe vem à mente.
— Tu podes não precisar de mim, mas e se eu precisar de ti?
— Não posso. — A voz dela é firme, inabalável. Surpreende-o.
— Mas eras para ir comigo. Disseste adeus a tudo isto. Eu ouvi-te dizê-
lo.
Ela abana a cabeça.
— Não estava a dizer adeus a tudo isto — responde. — Estava a dizer-
te adeus a ti.
Partridge sente-se sufocado, como se tivesse apanhado um soco no
peito. Olha para a prisão arruinada. Um fino raio de luz flutua sobre as
vigas caídas. É Hastings, a avançar com cuidado entre os escombros. Para,
como se sentisse que está a ser observado. Vira-se e olha para Partridge,
iluminando-lhe o rosto e o peito. Hastings está equipado com uma visão
excelente. É capaz de ver Partridge em grande detalhe. Dirige-lhe um aceno
de cabeça, depois retrocede por cima dos destroços, rumando para a casa.
— O Hastings está a chegar — diz Partridge. Vira-se e olha para Lyda.
As faces dela estão rosadas por causa do vento, tornando os seus olhos
azuis ainda mais azuis.
— O que posso dizer para te fazer vir comigo? Diz-me. Prometo-te
seja o que for. — Partridge tem medo de começar a chorar.
— Vais precisar disto. — Ela segura o casaco contra o peito dele. Por
um momento, ele recusa aceitá-lo, como se isso a prendesse a ele: um
casaco que não pode devolver. Por fim, pega no casaco e desvia o olhar. Ela
dá-lhe um beijo na face.
— Não devias ficar aqui sozinha — diz ele.
— As Mães virão à minha procura.
Ele ouve as batidas do seu próprio coração, depois as botas de Hastings
lá em baixo. Mete a mão no bolso do casaco e tira a caixa de música.
— Toma. — A princípio, ela nem sequer levanta as mãos, mas depois
olha-o nos olhos. — Por favor — insiste ele.
Ela aceita a caixa.
Partridge brada para Hastings:
— Já vou!
— Cuidado — recomenda ela. — Tenho medo do que o teu pai possa
fazer contigo.
— Sei melhor do que ninguém que ele não é de fiar — responde
Partridge na defensiva.
— Eu sei — diz Lyda. — Mas continuas a querer que ele te ame.
É verdade. Ele nem sequer pode refutá-la naquele ponto. É isso que
torna Partridge tão vulnerável.
— Tu disseste adeus, mas eu não digo — declara ele — porque
voltaremos a encontrar-nos. Tenho a certeza disso.
Então, porque não consegue suportar a ideia de ela o deixar, Partridge
grita para Hastings de novo e corre pelas escadas abaixo.
Capítulo 22

Pressia
As Meninas Fantasma

Têm vindo a seguir o rio ao longo da margem, onde os juncos são


altos. De vez em quando, uma Besta rosna do meio do canavial. A certa
altura, Pressia viu um focinho escuro, seguido pela cintilação breve de
dentes à mostra. Bradwell devia saber onde a corrente é suficientemente
baixa para lhes permitir atravessar, mas ainda não encontrou o local certo.
O rio é profundo e escuro. Rios. Já terá visto algum? Existirá ali uma
recordação que é mesmo sua? Quase consegue senti-la, mas também a
receia. Se há uma recordação, ela não tem a certeza de se tratar de algo que
deseje trazer à superfície.
O ar é ventoso e frio. Os juncos, cobertos de finas camadas de gelo,
tilintam uns contra os outros. Perto da margem a lama não está tão
endurecida pelo frio e suga as botas de Pressia, como se houvesse algo vivo
no solo mole, algo com tentáculos. Bradwell traz Fignan debaixo do braço
e os dois mapas, agora sujos e amarrotados, dobrados no cinto.
A corrente é forte. Pressia pensa nas meninas fantasma. Canta
baixinho: «O rio é largo, a corrente enrola, a corrente chama, a corrente
enrola.»
— Dizem que o posto avançado para onde vamos era a escola que as
meninas da canção frequentavam — diz Bradwell.
— A sério?

— Ouvi dizer que as coisas foram muito más por aqui. Bem, sabes
como foi onde quer que houvesse água. Piscinas, lagos com patos em
campos de golfe, rios como este. — Os juncos chocalham. Um corpo
pequeno e peludo desliza através da vegetação rasteira.
Pressia sabe o que Bradwell ouviu dizer. Toda a gente se dirigiu para a
água, uma procissão de morte, porque havia tornados de fogo e, por um
bocado, o mundo foi um barril de pólvora. Tudo ficou em chamas. As
pessoas procuravam água, como as meninas fantasma, e os rios ficaram
atulhados de corpos. As pessoas morriam na água, queimadas e
ensanguentadas. Mas ela não tem qualquer recordação disso.
Absolutamente nenhuma. Olha para o rio.
— Sabes o que eu gostava de saber? Se sei nadar. Parece algo que
devíamos saber sobre nós próprios, não é verdade?
— É, sim.
Mais vultos escuros rondam nas proximidades. Agora ouvem-se
rosnidos dispersos.
Bradwell vira-se e olha para Pressia.
— Então, como gostarias de testar isso?
— Nadar? Estás louco? A água está gelada. Onde fica o vau para
atravessarmos?
— Pois, acerca disso — diz ele. — Não tenho a certeza se fica cerca de
quilómetro e meio à nossa frente ou atrás de nós. E estas Bestas estão a
fazer-nos um ultimato.
— Eu não vou entrar nessa água gelada. É irrelevante se sei nadar ou
não. Vamos morrer de frio ali dentro!
A montante, canas estalam. Um animal pequeno e magro dardeja por
entre elas. Os rosnidos são cada vez mais altos.
Bradwell começa a desapertar as botas.
— É mais provável sermos devorados pelo que quer que anda para aí a
rosnar.
— O que é? — indaga Pressia num murmúrio.
— Não sei, mas estão com o pelo eriçado. Estás a ver aquele telhado
de zinco? — pergunta Bradwell.
Pressia franze os olhos para esquadrinhar o outro lado do rio. Mal
consegue distinguir a extremidade distante de um telhado por entre as
árvores.
— E o posto avançado?
— É.
— Ninguém construiu uma ponte, ou coisa do género?
— Como castores?
— Seja como for.
— Estás a ver alguma?
— Talvez se gritarmos, alguém no posto avançado nos ouça.
— Acima do barulho do rio? E que fariam se nos ouvissem? Davam as
mãos e faziam uma ponte para nós atravessarmos?
Uma ponte de corpos. Um rio. Há ali uma recordação. Pressia sente-se
enjoada, a sua boca enche-se de saliva quente. Inclina-se e cospe.
— Que se passa?
— Nada. Estou bem.
— Não pareces bem.
— Mas estou.
Entram na água para ser curadas, para as suas feridas serem seladas,
serem curadas. Morrem afogadas, a sua pele descascada, a sua pele
perlada, a sua pele descascada. Ela vê as meninas fantasma com o olhar da
mente, a conduzir-se umas às outras, cegamente, a cantar a canção da sua
escola. Corpos de água. Corpos. Bradwell tinha dito: Bem, sabes como foi
onde quer que houvesse água. Piscinas, lagos com patos em campos de
golfe, rios como este. Ela saberá mesmo?
— Olha. — Bradwell despe o casaco. — Se conseguires flutuar, eu
levo-te para a outra margem.
Caminhando às cegas com as vozes cantantes, vozes lastimosas, vozes
cantantes. Ouvimo-las até os nossos ouvidos zoarem, ouvidos gritarem,
ouvidos zoarem. Pressia olha em redor. Todos os arbustos assumem a
aparência curva de animais. Ela não quer pensar em flutuar num rio. Não
foi assim que os corpos das meninas vieram à tona, depois de mortos?
— Os mapas vão ficar molhados.
— Pois vão. Mas estão escritos a lápis, não a caneta. Isso ajuda.
— Ele puxa a camisa pela cabeça, talvez para poder deslocar-se na
água com mais facilidade. O seu peito é mais largo e mais forte do que ela
se lembrava. As feridas em cada um dos seus ombros musculosos sararam,
deixando cicatrizes vermelhas rosadas. É belo e rijo — e mais belo
precisamente por ter um aspeto tão rifo. Ela consegue ouvir as asas dos
pássaros, mas não os vê. Ele estará a manter as costas viradas para a floresta
por não querer que ela os veja? Ele nunca o confessaria, mas deve ser
verdade.
— Devias despir algumas das peças mais pesadas — diz ele.
— Não queres que o peso te puxe para baixo. — Desaperta o cinto e
detém-se. Esfrega energicamente os braços.
Fignan rola para a beira da água, com o motor a zumbir. Recolhe os
braços e as rodas. Dos flancos saem raios delgados, ligados por membranas.
Parecem delicados, mas fortes.
— Achas que ele vai ficar bem? — pergunta Pressia.
— Foi construído a pensar no apocalipse. Os delicados somos nós. Os
delicados. Ela pensa de novo nas meninas fantasma: tão delicadas!
— Vamos a isto?
Pressia olha para a água. Vê um remoinho que desaparece
rapidamente. Lembra-se do sonho febril que teve em criança, do horror que
a rodeava por toda a parte e como ela contava os postes das linhas
telefónicas. E quando deixou de haver postes, o avô disse-lhe para fechar os
olhos e imaginar postes de telefone para contar. Comichão no joelho. Sol,
ela vai.
— Só preciso de flutuar?
A vibração baixa dos rosnidos reverbera através dos juncos. Pressia vê
dezenas de olhos brilhantes, focinhos e dentes.
— Sim — responde Bradwell, olhando para os animais. — Só tens de
manter a calma, descontrair e flutuar. Eu trato do resto.
Ela deixa escorregar o casaco e desaperta rapidamente as botas,
arrancando-as pelos saltos frios e empastados de lama.
Bradwell despe as calças. Usa calções soltos por baixo. Tira o cinto das
presilhas, pega nos mapas e aperta o cinto diretamente sobre a barriga, com
os mapas comprimidos contra a pele.
— Estás a falar mesmo a sério acerca dessa história do peso —
comenta ela.
— Pois estou. — Ele entra na água, estremece de dor por causa do frio.
Agora ela vê os pássaros, as penas lustrosas, os pés cor de laranja vivo.
Aves aquáticas.
— Os frascos — diz ela, verificando se continuam intactos.
— Anda daí! — Uma das Bestas emerge do canavial. Ela vê um clarão
de pelo brilhante, quase como uma juba. Rosna com um som baixo e rouco.
A juba sedosa abre-se como uma cortina, dando passagem a um braço
enlameado e escuro. Um braço delgado, humano — uma menina fantasma?
Não, elas são apenas um mito. Um mito. Pressia recua para a água gelada,
que redemoinha em torno das suas pernas. Está tão fria que queima. A
frialdade assusta-a. Ela levanta os braços acima da cabeça quando a água
lhe atinge as ancas. Bradwell agarra-lhe na mão, com força e firmeza. Ela
saltita na ponta dos pés, começando a sentir a flutuabilidade.
— Deixa que a água te segure. Eu estou ao teu lado. — Passa o braço
molhado e nu em volta da cintura dela. Fá-la estender-se de bruços. Ela
passa um braço levemente em torno do pescoço dele e levanta as pernas. A
sua pele começa a ficar dormente.
Pressia olha para trás e vê Fignan entrar na água e começar a bater os
seus raios providos de membranas; depois desaparece nas profundezas.
Ela prende a respiração, mantém o queixo bem erguido. Bradwell
impulsiona-se para o leito do rio e começa a bater os pés.
— Também podes bater os pés — diz ele —, se te sentires inspirada.
Ela assim faz, mas sente-se tonta. Exala, inspira de novo rapidamente.
Desejaria ter tirado mais peças de roupa. Pesam-lhe.
— Estás a ir muito bem — encoraja Bradwell, arquejando.
De repente, Pressia sente algo deslizar-lhe pelas pernas. Puxa-as
rapidamente contra o peito e aperta o pescoço de Bradwell com mais força.
— Há alguma coisa lá em baixo!
— Provavelmente um peixe. Nada mais.
Pela maneira como ele olha para a água, ela percebe que ele também
está com medo.
A água é demasiado escura e turva para que se consiga ver abaixo da
superfície.
— Não — objeta ela. — Não foi nada desse género. — As meninas
fantasma. E se elas ali estiverem, a toda a volta deles, no bosque, agora
transformadas em bestas, a rosnar nos juncos, debaixo de água?
— Bate os pés! — diz Bradwell.
— Não consigo.
— Larga-me o pescoço! — brada ele, mas ela volta a sentir o
movimento em torno das suas pernas. Desta vez, parece uma mão a fechar-
se sobre o seu tornozelo, para logo desaparecer.
Pressia grita e agarra-se a Bradwell com tanta força que a cabeça dele
fica submergida. Ela apoia-se nele para se manter à tona, trepando pelo seu
corpo, empurrando-o para baixo. É instintivo. Estará a afogá-lo? Sente o
pânico invadi-la. Debatendo-se, grita o nome dele sobre o rio. É submergida
também, sentindo-se subitamente cega, surda e sem ar.
Agita os braços, rompe à superfície, engasga-se, cortando a água,
batendo com o punho da cabeça de boneca, mas acaba por ir ao fundo de
novo. Tem os olhos muito abertos, mas vê apenas escuridão. O som baixo
da água a correr enche-lhe os ouvidos. Tenta abrir caminho à força para a
superfície, mas quanto mais mexe os braços e as pernas, mais se afunda na
água gelada. Com o ar preso nos pulmões, o seu peito parece uma cavidade
a congelar de fora para dentro.
O seu coração poderá congelar ainda antes de ela se afogar? A sua pele
transformar-se-á em gelo. O seu cabelo ficará rígido. As suas roupas duras.
O seu corpo, morto e arroxeado, será arrastado para o mar. Comichão no
joelho — as palavras do sonho voltam-lhe à mente. — Sol, ela vai.
Os seus pulmões parecem prestes a rebentar e Pressia vê uma massa de
água após as Detonações; as imagens irrompem no seu cérebro. Uma ponte
perde-se no ar, e por baixo há uma ponte de corpos. O avô disse-lhe que não
podiam atravessar a nado. Agora ela lembra-se de tudo. Tiveram de rastejar
por cima dos corpos e, para isso, não houve contagens. Para isso, não houve
recitação de comichões nos joelhos, e sóis, e idas. E não houve o recurso de
fechar os olhos. Teve de atravessar de gatas, por cima de corpos. Lembra-se
de como os corpos cediam, enquanto as camadas em que se empilhavam
sustentavam o seu pouco peso. Aquilo ajusta-se ao seu sonho de contar
postes tombados e em chamas, à imagem de fios elétricos a bater ao vento,
de um corpo sem cabeça, de um cão sem patas, de ovelhas escaldadas. Isso
não aconteceu num sonho. Os corpos na água não eram um sonho. Aquilo é
uma recordação. Dela. O pânico torna-se avassalador. Ela vai ser engolida
por aquele rio. Ele nunca a largará. Os seus pulmões doem e ardem. Ela
podia abrir a boca, deixar entrar a água, afogar-se.
Pode deixar que isso aconteça agora.
Fecha os olhos à escuridão e encontra apenas mais escuridão. Onde
estará Bradwell? Já estará morto? Os seus corpos serão arrastados para o
mesmo oceano vítreo?
Então sente uma pressão vinda de baixo, como se houvesse um par de
mãos nas suas costas. Outra mão agarra o punho da cabeça de boneca e
puxa. Pressia tenta libertar a cabeça de boneca, mas depois percebe que
talvez esteja a ser salva. Talvez aquelas mãos a conduzam ao ar. As meninas
fantasma; imagina o cabelo espalhado em torno dos seus rostos, as camisas
dos uniformes a ondular lentamente na água.
Por fim, rompe à superfície. Suga ar para os pulmões, que ardem e se
contraem em espasmos. O seu pé toca no fundo do rio. Levanta-se
pesadamente, a água ainda a correr à sua volta. Engasga-se e tosse.
Ouve chamar o seu nome. É a voz de Bradwell. Depois ouve-o a
chapinhar em direção a ela, repetindo o seu nome uma e outra vez. Ele
levanta-a nos braços e carrega-a para terra.
Cai na margem, ainda molhado, os mapas encharcados no chão.
Cintilam gotículas nas penas das asas dos pássaros nas suas costas. O peito
e braços brilham.
Pressia tosse. O seu corpo retém a frialdade e ela sente-se flácida,
pesada, exausta. A sua blusa e calças ensopadas colam-se à sua pele; estão
geladas. Pisca os olhos, erguendo-os para a Lua esmaecida, depois o rosto
de Bradwell surge ao lado da Lua, o belo rosto dele. Ele afasta-lhe o cabelo
molhado da face.
— Respira — diz ele. — Continua a respirar.
Ela estica o braço e pousa a mão na face dele, fria, molhada, marcada
de cicatrizes:
— Não te matei — diz.
— Não, eu julgava que te tinha perdido.
— Eu julgava que estávamos ambos mortos.
— A culpa foi minha. — As pestanas dele estão molhadas e escuras.
Pinga-lhe água do queixo sobre o pescoço dela.
— Elas salvaram-me — diz Pressia.
— Quem te salvou?
— As meninas fantasma. — Ela sabe que parece loucura, mas tudo se
tornou confuso. Pode ser verdade.
Fignan sobe o barranco, zumbindo. Passa as luzes rapidamente sobre
os rostos deles, como se estivesse satisfeito por os ver.
— Ela está bem, Fignan — diz Bradwell. — Está viva. — Massaja os
braços de Pressia. — Tinhas razão. Estava demasiado frio.
Ela está a tremer. A sua respiração é rápida e superficial.
— Estou bem — diz ela, mas as palavras são lentas e rígidas na sua
boca e não consegue senti-lo a massajar-lhe os braços. É como se a sua pele
tivesse adquirido uma consistência de borracha, como a cabeça da boneca,
como se as extremidades dos seus nervos estivessem amortecidas.
— Temos de te tirar do vento. — Bradwell pega-lhe no braço, passa-o
em volta do seu próprio ombro e põe-na em pé. Pressia não tem força nos
joelhos para sustentar o seu próprio peso. Ele curva-se e levanta-a,
aconchegando-a contra o peito.
— Desculpa — diz ela. Por ser um fardo, mas não consegue articular o
resto das palavras. Tem o queixo a tremer. Os dentes a bater. Está a tremer
tanto que se torna difícil para ele levá-la. Terá sido salva pelas meninas
fantasma apenas para acabar por morrer de frio? Ela sabe que a sua
temperatura corporal está muito baixa. Permaneceu demasiado tempo
dentro da água fria. O vento é demasiado forte. A roupa pesada arrastou-a
para baixo e agora é como compressas frias. Na altura em que atravessou o
rio de cadáveres, em criança, tudo o que as pessoas queriam eram
compressas frias na pele, e agora é assim que ela vai morrer.
Estão a deslocar-se entre as árvores. Fignan ilumina o caminho
estreito. Bradwell segue. Ele também está a tremer. Ela sente o tremor dos
seus braços, a forma sacudida como caminha.
— Desculpa — diz ela outra vez.
— Não peças desculpa. — Ele cambaleia, depois cai para a frente.
Aterram no chão com violência. Ele põe-se de joelhos, levanta-a de novo
nos braços, põe-se em pé com esforço, vacilante. Recomeça a caminhar
penosamente, a pele nua vermelha viva.
— Pressia. — Ela olha para ele, para o queixo firme, a cabeça
molhada, os olhos escuros. — Pensa em algo quente — sussurra ele. —
Pensa em calor. Pensa em algo bom.
Pressia percebe que ele está com medo. A sua respiração é irregular.
Ela pensa no momento em que ele lhe deu a borboleta mecânica, que
salvara da casa dela, recorda como ele disse que parecia um milagre que
algo tão bonito pudesse sobreviver. Ele tem um jeito de a fazer sentir
afogueada. É uma memória de calor, de bondade. Dir-lho-ia, se se julgasse
capaz de formular as palavras.
Bradwell cai novamente. Desta vez, pragueja em voz baixa. Tenta
levantá-la, mas não consegue. O solo é duro e frio.
— Fignan — diz ele. — Continua a avançar. Segue por este caminho
até ao posto. Consegues fazê-lo? Estás a ouvir? Procura alguém. Pede
ajuda.
Pressia ouve o motor de Fignan, que vai zumbindo pelo caminho fora.
Mas ela duvida que ele encontre alguém, e mais ainda que consiga trazer
alguém ali para os salvar.
Bradwell desloca-se para um grupo de árvores cercado por um
emaranhado de mato e folhas densas. Cava um buraco nas folhas, deita-a lá
dentro.
— Não podes ficar com a roupa molhada. Tens de viver. Estás a ouvir?
Eu não consigo ir mais longe.
Ela faz um sinal afirmativo. Vê o rosto dele aos pedaços: uma
sobrancelha, depois os lábios, depois as mãos. Ela tem de viver.
Ele desaperta-lhe as calças, com os dedos a tremer violentamente, e
despe-lhas. Puxa-lhe a camisa pela cabeça. Ela tem a sensação de ter os
braços quebradiços. Ele deita-se de lado, para evitar sufocar os pássaros,
absorvendo a frialdade da terra por ela. Aconchega as folhas em torno deles
e envolve-a nos braços. Os pássaros estremecem, mal se mexem.
Com as costelas de frente para as dele, Pressia imagina-os encaixados
um no outro, costelas enganchadas em costelas. Ambos respiram
rapidamente, nuvens brancas a elevarem-se dos seus lábios vermelhos. O
rosto dela está encostado ao peito dele e ele abraça-a, esfregando-lhe as
costas e os braços, mas os seus movimentos são espasmódicos e lentos. Ele
afasta-lhe o cabelo frio e molhado da pele. Diz:
— Fica viva. Diz qualquer coisa. Fala.
Ela quer dizer-lhe que prefere morrer ali do que sem ele, no rio frio.
Ela quer dizer-lhe que, se morrerem agora, podem ficar ligados um ao outro
para sempre; costelas dentro de costelas, congeladas. Depois viria o degelo,
erva e plantas, o chão musgoso da floresta a cobri-los.
— Pressia? Fala comigo. Consegues falar?
Conseguirá falar? Lembra-se de novo de ser uma rapariguinha a
atravessar o rio pejado de cadáveres. Teria falado nessa altura? Dissera
palavras que ninguém compreendia. E, por fim, deixara de haver palavras
para as coisas que estava a ver e a sentir: o ceder de um corpo que oscila
quando se apoia o próprio peso nele, embatendo noutro corpo que está por
baixo.
— Comichão no joelho — sussurra ela, batendo os dentes.
— Comichão no joelho? — repete Bradwell. De súbito, como se
tivesse acabado de descobrir a chave para a parte misteriosa da mente dela,
como se lhe conhecesse os pensamentos, ele diz: — Comichão no joelho.
Sol, ela vai?
Ela não sabe o que aquilo significa, nem como ele pode saber as
palavras. Faz um sinal afirmativo, que é mais um safanão com a cabeça.
— Comichão no joelho. Sol, ela vai.
Dizem-no juntos:
— Comichão no joelho. Sol, ela vai.
Capítulo 23

El Capitan
Javali

El Capitan ouve passos a correr pela floresta na direção deles e sente-


se aliviado. A aranha desativada jaz em pedaços no chão frio. Helmud ligou
as feridas com firmeza, com um bocado de pano rasgado da sua própria
camisa. Enquanto El Capitan permanece deitado de lado, a agonia na sua
perna a abrandar um pouco, Helmud segura-lhe na mão e acaricia-a como
se fosse um gatinho. El Capitan permite-lho porque está em dívida para
com ele. E também porque, sempre que tenta tirar a mão, Helmud
choraminga. O ruído pode atrair Bestas. As mais perigosas vagueiam à
noite, as que sofreram mutações e se cruzaram de tal maneira que é difícil
dizer se se está a olhar para um javali ou para um lobo com as presas
retorcidas, ou para algo parcialmente colite. É pior quando há algo humano
neles; um pedacinho de pele, articulações, um vislumbre de humanidade
nos seus olhos. Há quem diga que os maníacos da sobrevivência que ali
viviam tinham sido devorados pelas árvores e continuam vivos, presos lá
dentro. El Capitan pensa no Velho Zander, que lhe ensinou a enterrar as
armas antes das Detonações. Deve a vida a esse homem. Terá sido devorado
por árvores? Tratar-se-á de um mito?
Agora vem aí ajuda.
— Estou a ouvi-los chegar — diz ele. — Podes devolver-me a minha
mão?
— Devolver-me a minha mão? — diz Helmud, como se a mão de El
Capitan lhe pertencesse também.
— Helmud! — repreende El Capitan e Helmud larga-a. — Obrigado
— diz El Capitan, fletindo os dedos.
Vê Wilda primeiro. Empunha uma lanterna, que oscila loucamente
enquanto ela corre. Seguem-na dois soldados, um homem e uma mulher,
embrulhados em casacos com capuzes, e El Capitan não consegue distinguir
as suas marcas e fusões no escuro. O rapaz tem uma passada irregular. A
rapariga é corcunda. Ambos parecem demasiado jovens para serem
soldados. No entanto, El Capitan pensava em si próprio como um guerreiro
quando tinha a idade deles. Na verdade, já cuidava de si mesmo e de
Helmud quando andava pela idade de Wilda. Agora isso parece-lhe um
pouco trágico.
Wilda corre para ele e detém-se abruptamente, apontando o feixe de
luz ao seu peito como se quisesse dizer: Pronto, estão a ver? Era isto que
eu estava a tentar dizer-vos,
— El Capitan? — exclama a mulher-soldado, assustada.
— Sim, sou eu.
Põem-se ambos em sentido, a rapariga ainda curvada por causa da
corcunda, e fazem continência.
Wilda ajoelha-se ao lado de El Capitan, abraçada ao seu braço. Isso fá-
lo sentir-se pouco à vontade. Não quer que a pequenita comece a apoiar-se
nele. Como se ele precisasse de mais uma boca para alimentar! Dirige-se
aos soldados, sem lhe prestar atenção:
— Quem são vocês?
— Riggs — diz o rapaz.
— Darce — diz a rapariga.
— À vontade — diz-lhes El Capitan. É possível que nunca tenham
estado na sua presença. Parecem nervosos. Provavelmente nunca ouviram
senão rumores: ele será o velho El Capitan, que percorria a floresta a caçar
novos recrutas como alvos vivos? Ou o novo El Capitan, que lhes prometeu
água potável, alimentos, armas? Ou, ainda, será uma estranha mistura de
ambas as versões?
Há um roçagar de asas acima deles. Todos levantam os olhos. Uma
coruja esbranquiçada empoleira-se num galho de árvore próximo, que
baloiça com o peso da ave.
— Agora são como abutres, estas corujas pálidas — diz El Capitan. —
Vi-as atacar um soldado que estava apenas meio morto.
— Meio morto? — pergunta Riggs. — Meio morto, como?
— Que queres dizer com isso de «meio morto, como»? Não totalmente
morto. Era assim que estava.
— Era assim — diz Helmud.
— Sentiu cheiro a sangue. Não tardarão a vir mais — prossegue El
Capitan. — São como tubarões quando há sangue na água.
— Não sei nada sobre os tubarões — diz Riggs.
— Perguntei-te alguma coisa?
Riggs abana a cabeça, a preocupação a enrugar-lhe o queixo.
— Vou precisar de uma mão para chegar ao posto. Apareceu lá mais
alguém esta noite? Seja quem for?
— Seja quem for? — pergunta Helmud.
— Não, senhor. Creio que não — responde Riggs. — Devemos esperar
alguém?
— Eu esperava que Pressia Belze e Bradwell aparecessem.
Comuniquem para lá a perguntar.
Os soldados trocam um olhar.
— Não têm rádios? — El Capitan deixou o seu carro, por ordem das
Mães.
— Não, senhor. Ainda não temos direito a eles — diz Riggs. — Só na
segunda semana.
— Lindo — resmunga El Capitan.
Outra coruja esbranquiçada pousa num galho próximo. O facto de esta
ter o bico ensanguentado não agrada a El Capitan. Já se banqueteou com
qualquer coisa esta noite. Ele espera que não fosse nenhum conhecido seu.
— Pelo menos estão armados — observa. Já sofreu ferimentos
perfurantes suficientes por um dia. — Um de vocês corra para o posto; o
que for mais rápido e tenha melhores pulmões. Perguntem por Pressia e
Bradwell. Se não houver notícias deles, enviem soldados para a floresta em
missão de reconhecimento. Perceberam?
— Eu sou mais rápida — declara Darce.
— A sério? Com essa corcunda? — pergunta El Capitan.
A rapariga abre a boca para dizer qualquer coisa, depois apressa-se a
fechá-la. Iria fazer uma piada sobre o que o próprio El Capitan tem às
costas? E isso o que vai acontecer-lhe, agora que acham que ele amoleceu?
— Que foi? Fala.
— As pernas do Riggs não funcionam tão bem.
— Muito bem — atalha El Capitan. — Do que diabo estás à espera,
então? Vai!
— Vai! — repete Helmud.
Darce faz nova continência e parte a correr. Mais algumas corujas
esbranquiçadas chegam a esvoaçar por entre as árvores.
— E tu, Riggs, vais levantar-me e fazer-me chegar ao posto. Certo?
Vais ser a minha muleta.
— Sim, senhor — diz Riggs.
El Capitan soergue o peso combinado do seu corpo e de Helmud.
Riggs agacha-se. El Capitan põe o braço à volta dos ombros do soldado.
— Aos três — indica. — Um, dois, três.
Riggs levanta El Capitan e Helmud até El Capitan se equilibrar sobre
uma perna. O ferido tenta apoiar um pouco de peso na perna magoada, mas
uma dor lancinante rasga-lhe a canela. Os ferimentos são profundos e
Helmud apertou tanto a ligadura que a perna lateja.
— Muito bem. Toca a andar.
— Andar — diz Helmud.
Wilda apanha rapidamente os bocados de aranha robótica. El Capitan
quase lhe grita que as largue, mas que importância tem aquilo agora, morto
como está? A rapariguinha perdeu o seu barco, portanto que vá em frente e
leve os bocados da aranha.
Riggs é fraquito. Proporciona alguma ajuda, mas não muita. O terreno
é pedregoso. Wilda vai novamente à frente, empunhando a lanterna. A
canela de El Capitan está quente, como se já estivesse infetada — e talvez
esteja. Talvez seja esse o cheiro que atraiu as corujas esbranquiçadas. Agora
são mais, todo um bando, a bater as asas acima deles.
El Capitan ouve rosnidos na vegetação rasteira. Vira-se para Riggs:
— Vamos acelerar o passo.
Pergunta-se se Darce terá encontrado Pressia e Bradwell no posto
avançado; talvez eles estejam sentados junto à lareira na antiga casa do
diretor. Talvez vejam um grupo de busca sair para a floresta a qualquer
momento. Hão de encontrar Bradwell e Pressia, vivos, espera ele, isso
partindo do princípio de que conseguiram sair das Terras Mortas.
Uma das corujas esbranquiçadas torna-se ousada. Mergulha sobre a
cabeça de El Capitan, suficientemente baixo para que o soco com que ele a
afasta quase atinja o alvo. O punho dele roça a extremidade exterior das
asas.
— Dá-me a tua espingarda — ordena El Capitan. — Começaste há
duas semanas? Creio que sou melhor atirador, mesmo um pouco
desequilibrado e com um alvo em movimento.
Riggs para, puxa a espingarda das costas e ajuda El Capitan a afivelar a
correia. Sabe bem ter novamente uma espingarda nas mãos. Armas. Fazem
sempre com que se sinta melhor. Ouve o rosnido de novo e vê uma presa
amarelada e retorcida surgir através de um arbusto, mas logo desaparece
outra vez.
Wilda canta nervosamente, com a voz tão trémula como as mãos: «Se
desprezarem o nosso apelo, mataremos os nossos reféns.»
El Capitan avista a clareira imediatamente para lá das árvores. Conhece
o resto de cor: a estrada delapidada que conduz ao que foi outrora um arco
de tijolo, agora desmoronado e enegrecido. A estrada serpenteia entre
fileiras de árvores caídas e vai dar à estrutura de uma estufa estilhaçada:
traves retorcidas, sebes emaranhadas, caules quase lanosos que dão frutos
contaminados na primavera e hera quebradiça que trepou sobre as pedras e
da qual brotam flores amarelas com pétalas irregulares e cortantes no verão,
cachos de sementes estaladiças que lembram a El Capitan bebés de três
cabeças. O lugar parece assombrado.
De súbito, Wilda para e aponta a lanterna para um determinado ponto
da vegetação rasteira.
El Capitan diz a Riggs para parar. Estão na orla da floresta.
— O que é?
— Não sei — responde Riggs. — Ela está assustada.
— Wilda — diz El Capitan. — O que é?
A rapariguinha baixa-se, virando a cabeça para ver melhor através das
silvas.
— Afasta-te muito devagar, Wilda — diz El Capitan suavemente. Ela
não lhe presta atenção. Levanta a mão para tocar nalguma coisa. El Capitan
grita:
— Não!
O javali grunhe e salta.
A lanterna cai ao chão com um baque surdo. Wilda puxa bruscamente
a mão para o peito e cai para trás. O javali, que tem pelo de coiote, atira-se
ao peito estreito da pequenita.
El Capitan afasta Riggs com um empurrão e puxa a arma para a frente,
mas uma coruja esbranquiçada desce em voo picado, golpeando-o com as
asas e, sem o apoio do soldado, El Capitan desequilibra-se para diante.
Tenta apoiar-se na perna ferida, que cede. O tiro parte, mas a bala perde-se
no chão.
Wilda grita — é como um assobio estridente — atordoando
momentaneamente o javali peludo. Este levanta a cabeça com brusquidão,
fareja o ar com o focinho que parece borracha. Abre as mandíbulas,
exibindo presas afiadas, e solta um guincho aterrador.
El Capitan tenta pôr-se em posição para disparar de novo, mas
enquanto se equilibra apoiado a uma árvore, sabe que provavelmente já é
demasiado tarde. O javali vai matar Wilda. Aquelas criaturas atacam a
jugular. E ela vai morrer ali na floresta, quando devia estar sob a sua
proteção. Ele tinha dito a Pressia que a levaria para o posto avançado. Vai
falhar.
Então o javali oscila para trás e berra; um berro ferido, lastimoso. Jorra
sangue de uma minúscula ferida de bala na carne da parte superior da perna
do animal. Numa questão de segundos, o javali fica flácido. Estará morto?
A ferida não era suficientemente profunda para o matar.
Wilda está paralisada de medo. Os seus olhos estão vítreos, como se
ainda estivesse a olhar para a Besta, como se ainda estivesse a ser atacada.
El Capitan aproxima-se dela, segura-lhe no queixo.
— Está tudo bem. Ele foi-se.
As corujas esbranquiçadas voam em círculo e mergulham. Riggs
golpeia-as, derruba uma com uma pancada forte.
El Capitan corre para a lanterna, afastando as corujas esbranquiçadas
de Wilda. Agarra na rapariguinha e aperta-a contra o peito. Faz incidir o
feixe de luz no javali, cujos quartos traseiros estão marmoreados de sangue,
mas cujas costelas continuam a subir e descer. O que quer que o tenha
atingido continha algum tipo de sedativo.
Uma das corujas esbranquiçadas ataca Helmud. El Capitan não aguenta
mais. Larga Wilda, deixa cair a lanterna, estende-se de costas no chão,
deixando que Helmud suporte o seu peso, e dispara contra as aves. Algumas
caem por terra, numa chuva ensanguentada de penas. Outras fogem para as
árvores.
Não tarda que fiquem cercados de corujas mortas. O feixe da lanterna
alonga-se fixamente sobre o solo rijo.
— Que raio atingiu aquele javali? — pergunta El Capitan, ofegante.
— Que raio? — ecoa Helmud.
Então a caixa negra aproxima-se a zumbir do chão iluminado, como se
estivesse a aparecer nas luzes da ribalta.
— Foste tu? — indaga El Capitan.
As luzes de Fignan baloiçam. Sim.
A caixa ter conseguido ali chegar é bom sinal. El Capitan respira
fundo, quase demasiado cheio de esperança para arriscar a pergunta.
— Pressia e Bradwell estão vivos?
Fignan não se mexe. Não sabe.
Capítulo 24

Lyda
Gaiola De Arame

Lyda recolhe de novo aos limites da armação de latão da cama de


dossel e enrola-se o mais que pode, para se proteger do frio. As Mães talvez
venham à sua procura, talvez não. Em qualquer dos casos, agora está
sozinha. Quando esteve ela sozinha em toda a sua vida? Verdadeiramente
sozinha? Livre?
Ela não é como o pássaro de arame que fez outrora, fechado numa
gaiola de arame. Os seus ossos não são igualmente frágeis e maleáveis. Ela
é um nó endurecido todo seu. É exatamente o que começou por ser, um
feixe de células, organizados para a fazer. Não a qualquer pessoa. A ela. E
está espantada por se encontrar ali sozinha: foi nisto que essas células se
tornaram. Nesta pessoa que já não é uma rapariga. Nesta pessoa que não vai
seguir Partridge no regresso a uma vida antiga. Não vai percorrer as Terras
Mortas, arrastando-se atrás dele. E por muito bom que tudo aquilo seja, uma
liberdade incrível, que não se assemelha a nada do que ela sentiu na vida,
choca também com a dor aguda da ausência de Partridge. E, por um
segundo, Lyda também sente a falta da pessoa que era antes de dizer a
Partridge que não podia ir com ele. Essa pessoa também está ausente. Ela é
outra pessoa, tão diferente que mal se reconhece. É nova. Volta o rosto para
o céu, porque pode fazê-lo, porque o céu está ali. Está a nevar novamente.
Uma neve tão leve que rodopia tanto para cima como para baixo.
Neve.
Capítulo 25

Partridge
Traidor

Partridge e Hastings caminham em silêncio há horas. Hastings deve ter


sido programado para ser prático com o seu discurso, para o usar com
sabedoria, com cautela, de forma clara. Mas qual é a desculpa de Partridge?
Não lhe apetece falar. Vê constantemente o rosto de Lyda, a expressão dela
ao dar-lhe um simples beijo na face. Já distante. Já desligada dele. Tinha
feito as suas despedidas.
Partridge vê a Cúpula branca a coroar a paisagem a norte, presa no
corrupio de flocos de neve cinzenta. Está mais sozinho do que nunca; é
percorrido por um arrepio de medo.
— Então, Hastings — diz, procurando distrair-se —, como estão os
teus pais? — Presume que Hastings não vai responder.
Mas Hastings olha para ele bruscamente, como se acabasse de se
lembrar que tem pais, depois os seus olhos esquadrinham calmamente o
horizonte, como se a pergunta nunca tivesse sido feita.
— A tua mãe mandava sempre queques numas latas redondas,
lembras-te? E o teu pai contava sempre piadas quando ela não estava. —
Eram um casal angular, altos e magros como o filho. As piadas do pai eram
obscenas, como se quisesse ser um dos rapazes — tal como o próprio
Hastings. Este queria integrar-se. Agora conseguiu, de certo modo. Isso fá-
lo-á feliz? Os membros das Forças Especiais serão capazes de sentir
emoções, como alegria, por exemplo? Os seus pais saberão que perderam o
filho, embora ainda esteja vivo?
Partridge quer estimular a memória de Hastings, e talvez também
algumas emoções antigas, adormecidas. Que parte do seu amigo ainda está
lá e que parte desapareceu?
— O Weed sempre ficou com a rapariga com quem estava a tentar
falar? Sabes, com a tal caneta laser no relvado? Lembras-te de dizeres que
ele era um idiota, a tentar comunicar com uma miúda idiota?
— Arvin Weed é valioso. — Aquilo parece um começo.
— Valioso?
Hastings acena.
— Conseguiste com a rapariga do baile? Lembras-te, aquela com quem
estavas a falar?
Hastings detém-se. Brinca com os mecanismos do seu armamento,
como se estivesse a verificar o respetivo funcionamento.
— Portanto a Lyda resolveu ficar. Suponho que compreendeste isso.
Mas as coisas não terminaram entre nós.
Hastings faz uma pausa e olha para Partridge, com uma expressão que
parece quase de piedade. A piedade será a emoção a procurar?
— E o meu pai, o que julgas que ele vai fazer comigo na Cúpula,
Hastings? Tens alguma ideia? Pensaste no assunto?
Hastings não responde. Partridge dá-lhe um soco no braço — com um
pouco mais de força do que tencionava.
— Bolas, Hastings. Fala comigo. O que me espera?
Hastings olha para a Cúpula. Os seus olhos estão lacrimosos. Abana a
cabeça.
— Está mau ali dentro? Ainda pior?
Hastings diz:
— Flynn, Aria. Idade: dezassete. Altura aproximada: um metro e
cinquenta e oito. Peso aproximado: cinquenta e um quilos. Cor dos olhos:
avelã. Registo médico: limpo.
— Aria Flynn. E o nome da rapariga do baile! As duas Flynn — ela
tem uma irmã. Suzette.
Hastings continua a andar, estugando o passo. Partridge corre para o
alcançar.
— Se te lembras da Aria Flynn, lembras-te de como era antes de eu
partir. Certo?
— Era um mundo muito pequeno — diz Hastings. — Este mundo é
maior.
— Sim, mas não é apenas mais do mesmo: o mundo todo calcinado?
Hastings não responde.
— Puseram-te escutas, não foi? Olhos, ouvidos, um temporizador na
cabeça?
Hastings continua a andar.
Partridge agarra-lhe no braço — a carne do bicípite, um ponto onde
não existem armas, apenas carne, terminais nervosos, uma pessoa real.
Hastings vira-se e olha para ele.
— Por que vieste buscar-me? — pergunta Partridge, sabendo que
Hastings não pode responder, que cada palavra pode ser gravada, mas não
consegue deixar de pressionar. — Estás do meu lado? Posso confiar em ti?
Hastings não responde. A neve suja rodopia-lhe em torno da cabeça,
como a memória do globo de neve de Lyda, a sacudi-lo e a sentir-se presa lá
dentro ao mesmo tempo.
— Nada disto correu como eu esperava. Tudo se desmoronou aqui
fora, Hastings. O meu pai matou o meu irmão e a minha mãe. O Sedge era
das Forças Especiais, como tu, e tinha um temporizador na cabeça.
Lembras-te de falarmos de temporizadores na noite do baile? E que eu disse
que isso não existia, mas tu achavas que sim? Tinhas razão. E agora eles
foram-se: o Sedge e a minha mãe. Estão mortos. Ele é capaz de nos matar a
nós também.
— Tenho ordens para te levar para a Cúpula. — De súbito, fica rígido e
gira sobre si próprio, as suas narinas a detetar algo no ar. — Vêm aí.
— Quem?
— São eles que te acompanham o resto do caminho. Não sou eu. Vêm
da Cúpula.
Partridge olha para a Cúpula e vê vultos a emergir de uma pequena
porta.
— Havia uma porta? Desde sempre? Era tão simples como uma porta?
— Vão atar-te as mãos como a um prisioneiro.
— É isso que eu sou?
— Todos somos prisioneiros agora — diz Hastings, estoico.
— Ouve, tens de ir ter com El Capitan. Procura-o.
— Sou um soldado. Sou leal. Tu és o traidor. — Endireita-se e aponta a
arma a Partridge. Agora é evidente que Hastings o capturou; a sério ou só
para inglês ver? Partridge não sabe.
Os outros soldados aproximam-se rapidamente.
— Que devo fazer?
— Levanta as mãos. Fica muito quieto.
Os soldados são grotescos, desfigurados por músculos demasiado
desenvolvidos, ossos e crânios deformados, salientes. As suas armas estão
tão profundamente enterradas nos seus corpos que devem estar fundidas
com os ossos. Um soldado rasteira os pés de Partridge, fazendo-o cair com
força no chão.
— Eu sei que ainda és tu, Hastings. Sei isso. Procura El Capitan.
Promete-me!
Hastings não responde.
Um soldado puxa o braço de Partridge bruscamente para trás das
costas, prende-lhe os pulsos com algemas de plástico.
— Ainda estás aí, Hastings? — grita Partridge do chão, com terra e
neve na boca. — O verdadeiro? Tu? Vais defender aquilo em que acreditas?
Hastings baixa-se e põe-no em pé com brusquidão. É muito mais alto
do que Partridge, pelo que inclina a cabeça até o seu rosto ficar colado ao
do prisioneiro e, numa voz baixa e zangada, que quase parece de aço, como
se as suas cordas vocais fossem parcialmente feitas de fios elétricos,
replica:
— Podia perguntar-te a mesma coisa a ti.
Capítulo 26

El Capitan
Andorinhas

El Capitan está sentado numa velha cadeira desdobrável, reforçada


com cordas para que não se desfaça. A sua perna inútil está esticada diante
de si, o pé espalmado. Está à espera que alguém venha aplicar-lhe
antisséptico e novas ligaduras. Entretanto, recusa-se a olhar para as feridas.
Andorinhas de bico curvo chilreiam no beiral. Helmud chilreia em resposta.
Riggs pôs lenha no lume e foi buscar o material necessário. A chaminé
devia servir os três andares da casa, mas os dois pisos de cima já não
existem. O primeiro andar está coberto por um telhado novo, que é uma
verdadeira confusão: retorcido e irregular, completamente desaparecido
num dos cantos. El Capitan vê o fumo a subir pela chaminé meio ruída
antes de flutuar para fora, a cinza a misturar-se com a neve no ar.
Wilda está a dormir numa esteira num canto onde o teto está inteiro.
Está tudo tranquilo. Até os ocupantes das tendas, lá fora, estão silenciosos.
El Capitan não conseguirá dormir enquanto não tiver notícias de Pressia e
Bradwell. Darce enviou uma equipa de busca à procura deles, mas assim
que chegou, El Capitan enviou novo grupo, com Fignan a servir de guia. Os
nervos estão a deixá-lo tão irrequieto que ele deseja poder andar de um lado
para o outro para livrar o corpo da ansiedade.
Riggs reentra na sala com um frasco de álcool e ligaduras lavadas.
— Não posso ter alguém com experiência médica? — indaga El
Capitan.
— Mandaram-me a mim.
El Capitan suspira. Helmud faz o mesmo. Riggs ajoelha e retira as tiras
sangrentas da camisa de Helmud.
— Que tal está? A supurar? — pergunta El Capitan.
— Vermelho escuro, inchado, um pouco de pus. — Riggs abre o
frasco. — Vai doer.
— Já passei por pior.
— Pior — diz Helmud.
— Fá-lo depressa.
O álcool deixa cada ferida em fogo. El Capitan inspira rápida e
abruptamente. Helmud faz o mesmo. Por uma questão de empatia?
Riggs liga de novo a ferida, rapidamente.
El Capitan recosta-se na cadeira, deixando Helmud amparar-lhe as
costas.
— Riggs?
— Sim, senhor?
— O que ouviste dizer a meu respeito? Que sou eu para ti?
— Não sei, senhor.
— Sabes, sim. Que dizem as pessoas?
— Dizem todo o tipo de coisas. Mas o senhor é um líder, portanto acho
que nada disso tem importância.
El Capitan pensa em Pressia, à espera de Bradwell junto da chaminé da
prisão. Seria capaz de esperar também por El Capitan? Ele e Helmud
valeriam a pena?
— Pois eu acho que o que as pessoas pensam de mim talvez tenha
importância — diz El Capitan. — Talvez.
Olha pelo buraco no telhado. O que é neve e o que é cinza? Ambas são
cinzentas e leves, e rodopiam. Dali, ele não consegue distingui-las.
Capítulo 27

Pressia
Gelo

A orelha de Pressia está comprimida contra o peito de Bradwell, a


cabeça pesada, e ela ouve o coração dele a bater debilmente, como um
relógio lento envolto em algodão. A sua respiração está mais fraca, o seu
braço deslizou do corpo dela e agora jaz no chão, flácido. Ela puxa-o para
mais perto dos seus corpos, vê a imbricada pele de gelo que se formou
sobre ele. O braço dela também cintila com uma camada de neve, uma nova
pele fina, feita de cristais cinzentos reluzentes. Ela está sem voz. Tem as
pestanas polvilhadas de flocos de neve, pesadas. Apetece-lhe fechar os
olhos. Quer que a neve tape os dois com um cobertor cinzento. Quer ser
enterrada naquela renda.
A sua própria respiração também está superficial. Está cansada. É
noite. Sussurra: «Boa noite», sabendo que talvez sejam as últimas palavras
que jamais dirá.
Os seus olhos estão pesados, demasiado pesados para os manter
abertos. E, quando os fecha, sabe que não está a adormecer. Está a morrer,
porque vê raios de luz a piscar entre as árvores. As meninas fantasma, que
agora são anjos... Ouve as vozes delas a flutuar para ela como se fossem
transportadas pela neve.
Parte II
Capítulo 28

Partridge
Limpo

Ele nunca voltará a ser Puro. Não é possível, mas é assim que vão
torná-lo limpo.
Transfusões de sangue novo, medula nova, uma quantidade de células
novas. O seu molde de múmia ainda existe, leve, resistente. Fica-lhe mais
justo do que antes, porque ele está mais forte. O seu corpo desaparece no
molde horas a fio. Ainda não há nada a fazer no que diz respeito à sua
codificação comportamental. Mas eles tentam abordagens diferentes,
aplicam as técnicas mais recentes. Nada resulta. Houve a aplicação de um
lençol frio, o seu corpo gelado e imobilizado. «Punção lombar», diz alguém
a certa altura, e injetam uma agulha na sua coluna vertebral.
É drogado para dormir, para estar acordado e para falar: uma sala
forrada de azulejos brancos com um dispositivo de gravação sobre a mesa.
As palavras revoluteiam do seu cérebro, do seu peito. Mal lhe chegam à
mente, saltam-lhe para a língua.
Por vezes ouve a voz do seu pai através de um intercomunicador.
Ainda não o viu, embora tenha perguntado repetidas vezes, «Onde está o
meu pai? Quando verei o meu pai? Digam ao meu pai que quero vê-lo.»
Pensa em Lyda. Às vezes grita por ela, o nome a ressoar no quarto
antes que ele perceba que é ele que está a chamar. Uma vez agarrou-se a
uma bata branca. Crispou a mão num punhado de tecido e disse:
— Lyda! Onde está ela?
A técnica afastou-se e a mão de Partridge bateu numa bandeja de
instrumentos afiados, de aço, que chocalharam.
— Bolas! — gritou alguém. — Esterilizem aquilo!
De vez em quando, uma mulher que usa uma bata de laboratório diz-
lhe que dia é, não com base no calendário, mas na data da sua chegada ali.
Estás no décimo segundo dia. Estás no décimo quinto dia. Estás no
décimo sétimo dia.
Quando acabara isto? Ela recusa-se a dizer.
O seu dedo mindinho é outra forma de calcular o tempo. Lyda tinha
razão. Arvin Weed tinha descoberto a solução com o seu rato-de-três-patas-
e-meia. Meu Deus. E se já descobriu aquilo, estará perto de descobrir a cura
para o seu pai? A colaboração complexa dos ossos, tecidos, músculos,
ligamentos e células da pele de Partridge está a ser recriada através de
injeções repetidas. O coto permanece tapado por um molde de fibra de
vidro, que o seu dedo vai enchendo à medida que cresce. Os técnicos,
cirurgiões e enfermeiros observam o seu mindinho através de instrumentos.
Às vezes aplicam pontas de calor que parecem agulhas, como se estivessem
a soldá-lo.
Está a regenerar bem. Estamos satisfeitos. A coloração da pele é
quase perfeita.
As estrelas-do-mar fazem aquilo. Será que ainda existem estrelas-do-
mar algures?
A questão é que ele não quer recuperar o dedo. Fez um sacrifício, e
agora esse sacrifício está a ser apagado. O passado, o mundo lá fora, o que
lhe aconteceu, a ele e aos outros, a morte da sua mãe e do seu irmão, tudo
isso parece existir menos, desvanecer-se, com o crescimento infinitesimal
das células.
Arvin Weed aparece por duas vezes. Os seus olhos pairam sobre a
cabeça de Partridge, o resto do rosto escondido por uma máscara. Partridge
gostaria de falar com ele, mas tem um tubo na garganta. Está amarrado a
uma mesa de exame.
Arvin não lhe dirige a palavra, mas, uma vez, piscou-lhe o olho. Foi
tão rápido que quase parecia um tique. Mas Partridge acredita que foi mais
do que isso. Arvin está aqui; vai assegurar-se de que Partridge é bem
tratado, não vai? Partridge quer contar a Weed o que se passa com Hastings
e o que aconteceu lá fora. Quer dizer o nome, Lyda.
Acorda sem memória de adormecer. A sua cabeça está pesada, os olhos
inchados, o tubo tirado. Está a ser levado numa maca, cujas rodas rangem
sobre os mosaicos. Passa por um conjunto de janelas. Do outro lado há filas
de bebés em incubadoras. Bebés minúsculos, quase do tamanho de
cachorrinhos, mas humanos. Cabem na palma da mão de uma enfermeira.
Será possível nascerem tantos bebés prematuros na Cúpula ao mesmo
tempo? Mas os bebés não são perfeitos, não são Puros. Têm cicatrizes e
queimaduras, e estão salpicados de detritos. Estará ele a sonhar com bebés
desgraçados? O que é real? As filas de incubadoras estendem-se
indefinidamente.
Está noutro quarto. A voz do pai ressoa através de um
intercomunicador.
— Ele é uma criança. Tem de haver castigo. O castigo vai Purificá-lo.
A Purificação será pela água. Um batismo.
A mulher diz-lhe que está no vigésimo primeiro dia.
A sua cabeça está firmemente presa a uma placa branca pesada,
inclinada de modo que a cabeça fique baixa. Tem os ombros presos. Não
consegue mexer-se. Fizeram tal progresso com o mindinho, que vem
crescendo gradualmente e cujos nervos formigam, que têm de ser
cuidadosos. O dedo não pode molhar-se.
A placa branca possui um motor que lhe permite baixá-lo lentamente
para dentro de água. Os técnicos estão a postos, seguindo ordens com
temporizadores e pequenos dispositivos portáteis. A cabeça de Partridge
sente a água primeiro. Está fresca, mas não fria, e encharca-lhe o cabelo,
inunda-lhe os ouvidos, sobe pelos lados do seu rosto. Partridge expele a
respiração e inspira rapidamente. Contém o fôlego, tenta soltar-se. Tem os
olhos muito abertos. A água é transparente e brilhante. A sala é iluminada
por lâmpadas fluorescentes. Dá para ver os rostos deformados dos técnicos.
Partridge deixa sair um pouco de ar pelo nariz. Só um pouco. Quanto
tempo o manterão ali? O seu pai não quer que ele morra, mas talvez queira
que ele fique a conhecer a morte. Deixa escapar um pouco mais de ar. Sente
os pulmões comprimidos.
Precisamente quando não aguenta mais, sente o pequeno puxão da
placa branca. O seu queixo emerge, depois a boca. Sorve ar ansiosamente
para os pulmões. O batismo terá terminado? Ele terá sido salvo? Sente outra
vez o motor, a baixá-lo de novo para a água. Implora aos técnicos:
— Não, não, não!
É possível que os ouvidos deles estejam tapados de alguma forma, para
os proteger das súplicas de Partridge.
Não consegue abanar a cabeça, não consegue arquear as costas em
busca de ar.
Submergem-no uma e outra vez: um batismo que não pega? Partridge
deixa de suplicar. Esforça-se para sincronizar a respiração. Tenta
aperfeiçoar um método. O seu cérebro perde a noção do tempo. Concentra-
se apenas em chegar à superfície, estar no ar.
Tenta agarrar-se à imagem do rosto de Lyda, à cor exata dos seus
olhos. Vem à tona para respirar e a sua laringe contrai-se num espasmo,
fecha-se completamente. Desta vez, não há ar. Não há som. Não há
respiração. Partridge tenta sinalizar o seu pânico aos técnicos com os olhos.
Eles tomam notas.
O motor zumbe de novo. Vai voltar para baixo de água sem ter
conseguido respirar.
Um dos técnicos parece compreender que algo correu mal. Estende a
mão para um intercomunicador.
Mas Partridge está já submerso. Não consegue ouvir o que está a ser
dito. Não consegue respirar, mesmo que quisesse sugar água para os
pulmões. É então que a luz forte do quarto se desvanece num borrão de
escuridão. Cinzas. Ele pensa em cinzas e neve e Lyda, o seu rosto a
desfazer-se pedaço a pedaço e a flutuar para o céu.
Capítulo 29

Pressia
Musgo

Pressia e Bradwell estão a viver numa antiga casinha de campo, para


onde o grupo de busca os levou na noite em que quase tinham morrido.
Pequena, com paredes de pedra cobertas de musgo, tanto por dentro como
por fora, foi escolhida porque era fácil de aquecer com a salamandra.
Pressia recuperou rapidamente da hipotermia, mas Bradwell tinha água nos
pulmões. Se há coisa que os sobreviventes conhecem bem são respirações
difíceis e tosses; sabem como determinar quais são graves. A pneumonia
provoca grunhidos breves no fim de cada exalação.
Há três semanas que Pressia se dedica a duas coisas: estudar Fignan e
todas as notas que Walrond deixou, e cuidar de Bradwell, que passa quase
todo o tempo a dormir.
Começou por escrever em papel, que é precioso, mas este depressa se
esgotou e ela passou a escrever sobre a superfície de uma mesa estreita.
Quando ficou sem espaço aí também, começou a escrever num pequeno
cepo, depois em pedras que traz do pomar. Tem o cuidado de manter a letra
muito apertada. Em cones de luz que bruxuleiam no ar acima dele, Fignan
projeta vídeos, imagens de documentos digitalizados — certidões de
nascimento, casamento e óbito, diplomas, transcrições — e notas
manuscritas de Willux acerca de livros que estava a ler, dando números de
páginas sem títulos ou autores, e lançando-se em arengas complicadas.
Pressia escrevinha tudo.
Entretanto, Bradwell desperta apenas o suficiente para beber um gole
de água ou de caldo de carne de porco. El Capitan deu instruções para que
fossem lá soldados levar comida e enfermeiros para ver o doente. Fignan
fornece informações médicas e dados sobre pneumonia, discriminando
riscos e listando tratamentos e medicamentos a que não têm acesso. Pressia
não pode censurá-lo. Ele está a tentar ser útil.
El Capitan implorou a Pressia que não ficasse com Bradwell, cuja
doença pode ser contagiosa. Ela respondeu-lhe que não podia deixá-lo.
«Sou uma amiga leal.»
Amigos — ainda é isso que são? Pressia recorda o corpo dele, despido
de roupas, molhado. Por vezes, pensa em como ele a viu sem roupa, quase
completamente nua. Sabe que é uma parvoíce ficar envergonhada por isso.
Estavam a morrer. Que importância tinha ele vê-la sem roupa? Ele salvara a
vida dela. Mas agora, só de pensar nisso, ela sente uma timidez súbita, fica
corada, nervosa, como se as coisas estivessem a passar-se naquele preciso
momento. A sua mente deixa-se levar para a sensação da pele dele contra a
dela, a tremer por causa do frio, e ela tem a sensação de estar a cair de
novo, de cabeça, a mergulhar numa espécie de escuridão incognoscível,
numa vertigem terrível. A cair, a cair, a cair... a apaixonar-se?
Nas presentes circunstâncias, é egoísta e estúpido pensar sequer nessas
coisas. Senta-se na borda do catre dele, esperando o momento em que
Bradwell irá voltar a si, piscando os olhos ofuscados pela luz, sabendo
quem ela é. A alternativa é ele não melhorar, os seus pulmões encherem-se
de líquido e ele afogar-se nos seus próprios fluidos. Pressia não pode
permitir-se pensar nisso. Tem de trabalhar. Tem de ter algo para lhe mostrar
quando ele emergir. Ela já emergiu de um afogamento iminente. Ele fará o
mesmo.
Levanta-se e encosta-se a uma das paredes cobertas de líquen. De
todos os vídeos armazenados em Fignan, há um ao qual ela regressa
incessantemente: o que mostra os seus pais em jovens. Pressia fez
anotações detalhadas acerca desse vídeo. Parece-lhe uma complacência
sempre que pede à caixa negra que o reproduza, mas agora, a título de
recompensa pelo seu árduo trabalho com as notas de Willux, diz:
— Mostra-me outra vez, Fignan, as imagens dos meus pais.
Fignan acende-se, criando um cone de luz bruxuleante. Lá está a mãe
de Pressia, a rir ao Sol e a sacudir os cabelos encaracolados dos olhos,
depois um jovem que deve ser o pai de Pressia. Tem olhos escuros e
amendoados, como o dela, e um sorriso rápido, imprevisível. Estão num
campo, com os seus uniformes de cadetes, as camisas com o colarinho
aberto e a fralda de fora. Acenam para a câmara.
Pressia quer entrar naquela cena ensolarada, pegar nas mãos da mãe e
do pai, dizer-lhes: Sou eu. Sou a vossa filha. Estou aqui. Aqui mesmo. A
imagem de seus pais — tão belos, tão reais — é simultaneamente penosa e
maravilhosa. Permite-lhe sentir a falta deles especificamente, com incrível
detalhe.
Em segundo plano vê Willux — reconhecê-lo-ia em qualquer lado —
com o seu bloco de apontamentos. Está a falar com o jovem cujo rosto
Pressia recorda do recorte pousado por baixo do sino, na morgue: o cadete
cuja morte foi considerada acidental. Ivan Novikov. As cabeças deles estão
inclinadas numa conversa rápida. A sua mãe aproxima-se deles, mostrando-
lhes que a câmara está ligada. Diz-lhes para acenarem. Estende o braço para
pegar numa mão, pega na do cadete morto, na de Ivan Novikov, não na de
Willux, não na do pai de Pressia. Ivan puxa-a para si e beija-a. Willux
entala o bloco de apontamentos debaixo do braço, acena, mete a mão no
bolso e vai embora.
Pressia vira as costas à luz bruxuleante, que faz cintilar as paredes
cobertas de musgo. Será que aquele beijo significa que a sua mãe namorava
Ivan? Todos amariam a sua mãe? Quem era Aribelle Cording, afinal?
Pressia não consegue imaginar como alguém pode dar e receber amor com
tanta facilidade. A sua mãe teria uma constituição fraca? Seguia o coração,
não a cabeça. Pressia devia estar grata por isso; afinal, foi por essa razão
que nasceu. Apesar disso, deseja que a mãe tivesse sido... o quê? Mais
forte? Menos sensível ao amor? O amor é um luxo. Algo que as pessoas
podem permitir-se quando não estão simplesmente a tentar sobreviver e
manter os outros vivos. Pressia não pode deixar de pensar na mãe como
tendo sido rica em amor, estragada de amor, e que teria ela ganho com isso?
Bradwell geme. Chuta os cobertores com um pé. Ela chama-o pelo
nome, na esperança de que seja aquele o momento em que ele recupera a
consciência, mas o seu corpo fica novamente imóvel. Se ele abrisse mesmo
os olhos e a reconhecesse, o que lhe diria ela?
Pressia sabe que é o medo que barra o caminho ao seu amor. Porém, e
se apaixonar-se não for um sinal de fraqueza, mas sim de coragem? E se
não for uma queda, mas sim um salto?
O vídeo engasga-se, termina. A sala fica mais escura. Ela passa as
mãos por cima das pedras cobertas com as suas notas manuscritas. A
enfermeira disse-lhe para falar com Bradwell.
— É bom para ele. É realmente possível que ele consiga ouvir-te,
mesmo nos seus sonhos.
E Pressia tem-no mantido informado. Contou-lhe que, embora não
saibam ao certo se Partridge está na Cúpula, supõem que assim é, pois as
aranhas robóticas foram desativadas. No dia seguinte à sua chegada ao
posto avançado, tinham recebido um recado da cidade, informando que as
aranhas robóticas tinham despertado por um momento e que, após uma
breve convulsão das pernas, os seus visores tinham ficado em branco.
Contou-lhe que El Capitan está numa instalação médica que foi montada na
cidade, a remover as aranhas robóticas que ficaram alojadas no corpo das
pessoas.
Não lhe contou a má notícia: desapareceram mais crianças. Algumas
foram devolvidas. Há poucos dias, foi encontrada uma a dormir no bosque.
Duas outras apareceram a vaguear pelo mercado. Outra ainda estava na
respetiva cama, como se nunca tivesse de lá saído, tirando o facto de que,
tal como Wilda e os outros, o seu corpo fora aperfeiçoado. Em todas essas
crianças, cada cicatriz ou queimadura foi curada, cada membro amputado
foi regenerado, e o umbigo está coberto de pele nova. El Capitan manda-as
todas para ali e o dormitório é guardado, para que não caiam nas mãos do
culto de adoradores da Cúpula, que está a crescer. Wilda também lá vive.
Pressia tem saudades dela, mas não pode ir visitá-la: é possível que a
doença de Bradwell seja contagiosa e o sistema imunológico de Wilda pode
estar fragilizado devido à degeneração das suas células.
Tal como Wilda, cada uma das crianças está programada para dizer
muito pouco. «Propaganda», é o que El Capitan lhe chama. «Pequenos
porta-vozes da Cúpula.» E, tal como no caso de Wilda, as mensagens de
todos eles terminam com o sinal da cruz celta.
Chamam-lhes Purificados, pois não são realmente Puros, mas sim
refeitos. E todos eles desenvolveram tremores nas mãos e na cabeça.
Pressia espera que consigam encontrar a fórmula para combinar com
os frascos da sua mãe e o misterioso terceiro ingrediente. Talvez possam
salvar as crianças antes que seja demasiado tarde. Ela nunca confessaria
Bradwell que, por vezes, olha para o seu punho da cabeça de boneca, franze
as pálpebras até os olhos ficarem turvos de lágrimas, e tenta imaginar a mão
tapada. Não ter a cabeça de boneca? Talvez seja outra das razões que a
levam a trabalhar tão arduamente.
Agora está a dizer-lhe:
— Willux é um estranho para mim, Bradwell. — Como se pode pôr
ordem nos delírios de um louco? Como é que ela pode encontrar um padrão
que faria sentido para um dos Sete, ou para os pais de Bradwell? Afinal, foi
para eles que Walrond deixou pistas. Bradwell conhece Willux melhor do
que ela. — Preciso de ti — diz ela. — Acorda e ajuda-me.
Mas não sabe ao certo se ele a ajudaria, mesmo que estivesse acordado.
Ele quer desesperadamente a verdade, mas não a fórmula.
Ele tosse, a meio de um sono agitado. As suas faces adquirem uma cor
avermelhada escura. Os pássaros nas suas costas contraem-se, como se o
seu ar dependesse da respiração dele.
— Pronto, pronto — diz ela. — Está tudo bem.
Fignan aproxima-se da cama, a zumbir. A tosse acalma.
O lume está a enfraquecer. Pressia calça as suas botas novas, veste o
casaco igualmente novo — tudo da OSR, ofertas de El Capitan. Puxa o
ferrolho de ferro que El Capitan montou e abre a porta. A casa abriga-se nas
profundezas de um pomar. Os ramos negros das árvores estão tão curvados
que começam a lançar novas raízes no solo. Faz um frio cortante. Ela supõe
que Partridge está a dormir num ambiente com a temperatura
completamente estática. E que temperatura será? Vinte e dois ou vinte e três
graus? Pergunta-se se ele ainda pensa nela, ali fora. É possível que nunca
mais se vejam e, por um momento, é como se estivesse tudo acabado. Nada
mudará jamais. Esta será a vida dela. Ali para sempre. E aquela será a dele.
E se Bradwell morrer, Pressia viverá o resto dos seus dias naquela casa
do pomar, rodeada de árvores que parecem ligadas à terra, sozinha.
Como a Lua está cheia — embora, como sempre, parcialmente perdida
numa meada de cinzas — ela consegue ver o muro de cimento, baixo e
semidesmoronado, ao longe e, mais além, as fogueiras dos ocupantes das
tendas, de um dos lados e, do outro, um antigo dormitório, metade do qual
ruiu. É aí que está Wilda.
Há uma luz acesa no dormitório e Pressia pergunta-se se será a de
Wilda. E se a caixa negra de Walrond não der em nada? A pequenita
morrerá.
Pressia pega numa braçada de madeira da pilha muito bem ordenada e
imagina como seria aquele sítio no Antes. Quando as meninas fantasma
estavam vivas e bem de saúde, costumariam colher frutos das árvores?
Observa o pomar, semicerrando os olhos — caules murchos, filas e filas de
ramos enegrecidos e presos — e vê movimento. Um vulto passa tão
depressa que faz redemoinhar o nevoeiro. Depois, nada.
Olha para a pequena casa de campo. Ouve Bradwell tossir novamente
e, em seguida, a sua voz — áspera e rouca.
— Pressia!
Ela deixa cair a lenha, corre para a casa e encontra-o a debater-se.
Ajoelha-se ao lado da cama. Ele tem os olhos abertos, mas continua
ausente.
— Estou aqui — diz ela. — Ainda cá estou.
Ele tosse violentamente. Ela vai buscar um copo de água, levanta-lhe a
cabeça e leva-lhe o copo aos lábios.
— Bebe um bocadinho — diz. — Precisas de beber alguma coisa.
Os olhos dele fecham-se. Ele bebe um pouco e afasta a cabeça. Ela
ajuda-o a deitar-se de lado.
Depois levanta-se e põe-se a andar de um lado para o outro. Por fim,
descansa a testa contra a parede de pedra, espalma a mão no musgo e
esfrega-o.
— Bradwell — diz em voz alta —, por que não voltas a ti? Isto não
pode ser o fim.
Espera que Bradwell responda, embora saiba que ele não o fará.
Quando tira a mão da parede, vê cores: um pouco de azul, uma mancha
vermelha. Olha para o musgo com mais atenção. Aqueles tons de vermelho
e azul serão apenas outro tipo de fungo?
Levanta o braço e esfrega mais um bocado de musgo. Por baixo há
mais cor: é uma pintura. Continua a esfregar, até ver o lado de um rosto, um
olho, uma bochecha, uma orelha.
Quem terá vivido ali a seguir às Detonações? Um artista? Esse artista
terá continuado a pintar naquela casinha e, quando as telas se esgotaram,
começado a pintar nas paredes?
Pressia agarra num pano e afasta o musgo com cuidado, para não
danificar as cores que estão por baixo. Emergem rostos, uma rapariga após
outra, como se tivessem estado fechadas à chave. Meninas fantasma. Quem
pode salvá-las deste mundo? O rio é largo, a corrente enrola, a corrente
chama, a corrente enrola.
O artista estaria a tentar agarrar-se a todos os que se tinham perdido?
Pressia lembra-se da sensação de ser empurrada para a superfície, daquelas
pequenas mãos nas suas costas. Verdade ou não, ela sentiu-as. Entram na
água para ser curadas, para as suas feridas serem seladas, serem curadas.
Morrem afogadas, a sua pele descascada, a sua pele perlada, a sua pele
descascada.
Pressia sabe o que é estar presa debaixo de água, e agora parece que
está a trazê-las todas à superfície, uma a uma. Há outra boca, aberta, como
se estivesse a sustentar a nota de uma canção. Caminhando às cegas com as
vozes cantantes, vozes lastimosas, vozes cantantes. Ouvimo-las até os
nossos ouvidos zoarem, ouvidos gritarem, ouvidos zoarem. Um olho azul,
meio fechado, aflito. Há uma bochecha, arredondada e cheia. Precisam de
um santo e salvador, santo e marinheiro, santo e salvador. Irão assombrar
para sempre esta costa, assombrar e vaguear para sempre nesta costa.
Outro olho, tristemente arqueado por uma sobrancelha preocupada. Lábios,
estes comprimidos como para dizer uma palavra.
Bradwell respira irregularmente, mas é como se as meninas estivessem
a respirar. Inspiram, Will, exalam, ux. Ele é o seu assassino. Foi ele que as
matou. As paredes enchem-se com os seus rostos. A sala enche-se com a
sua respiração.
Will.
Ux.
Will.
Ux.
Pressia vira-se e encontra Fignan aos seus pés. Walrond tinha dito para
se lembrarem de que ele conhecia a mente de Willux. Para conhecer o
segredo, ela tem que conhecer o homem. Para conhecer o homem, o
assassino em massa, o assassino daquelas raparigas, bem como da maior
parte do mundo, ela tem de entrar na sua mente.
Will.
Ux.
Ela tem de pensar os pensamentos dele, percorrer os seus passos,
respirar a sua respiração. Will, sussurram as meninas em uníssono, ux.
Capítulo 30

Lyda
Nove

O seu catre é o número nove, à direita. Este é um sítio novo, um quarto


novo, temporário, já que as Mães tendem a ser nómadas. Mas o seu número
não é temporário. No próximo sítio para onde as Mães se mudarem, ela
continuará a ser o número nove, quer se trate de uma fila de esteiras no
chão, quer se trate de uma fila de corpos num chão de terra. Talvez até
mesmo se for fila de túmulos.
Porquê o número nove? Quando a encontraram, as Mães atribuíram-lhe
aquele catre, que pertencia a uma das mulheres que tinham morrido na
batalha recente. Parece cruel a Lyda tomar o seu lugar. É difícil estar ali,
com o coração a bater contra as molas da cama, sabendo que o coração que
devia lá estar pertencia a outra pessoa. Mas não há maneira de escapar. As
Mães acreditam na ordem.
É noite. O quarto é escuro. Algumas crianças ainda lutam contra o
sono, irrequietas. Ela ouve-as a pedir água, as Mães a cantarolar, os
sussurros de orações da noite. É um encantamento que a ajuda a adormecer.
Mas esta noite não está a dormir. Foi-lhe dito que tem finalmente
autorização para ver Illia. Desde que regressou que deseja vê-la, mas
disseram-lhe que Illia tinha piorado e estava de quarentena.
No entanto, os pedidos de Lyda foram finalmente concedidos, porque o
corpo de Illia mal se aguenta vivo. «O invólucro da alma está gasto», disse
a Mãe Hestra a Lyda. «A sua hora está a chegar.» Lyda repousa a cabeça na
almofada, que partilha com Freedle. Ele foi-lhe entregue quando ela
chegou. Deve guardá-lo para Pressia. As asas dele rangem quando as agita,
mas continua a ser rápido. Ela acaricia-lhe a cabeça.
Quando era pequena, Lyda tinha uma joaninha de peluche com a qual
partilhava a almofada. Lyda tinha a responsabilidade de se deitar sozinha. A
sua mãe seguia o método que aconselhava os pais a não ir quando os filhos
os chamavam à noite. E agora está rodeada por uma quantidade de mães. É
uma sensação agradável, segura. Mereceu o seu lugar ali por meio de
trabalho árduo. Os seus músculos ardem de fadiga. Está a aprender a
apontar dardos: a importância da ação do pulso. Praticou a evisceração de
Poeiras e Bestas e carregou a terra de uma nova cova que está a ser
escavada. Desenterrou raízes e, debruçada sobre um balde, descascou-as
para as refeições.
Passa todo o tempo a tentar não pensar em Partridge. As Mães
ensinaram-lhe que os homens são uma fraqueza. Irão apenas trair o seu
amor. Claro que Partridge não é um Morte. Não é um desses homens que as
Mães odeiam com tanta convicção. Mas ela ainda receia que, quanto mais
sentir a falta dele — do seu rosto, da sua pele, da maneira como olhava para
ela — e quanto mais esperança tiver de voltar a vê-lo, mais tenha a perder.
A porta abre-se, deixando entrar luz no quarto. A Mãe Hestra sussurra
o nome dela.
Lyda faz uma festa rápida a Freedle e corre para a porta.
A Mãe Hestra diz «está na hora» e leva-a ao longo do corredor até um
pequeno quarto. Lyda tem de contar a Illia acerca da caixa negra, da
semente da verdade.
Illia está escanzelada e pálida. O seu rosto está nu, coberto de
queimaduras e cicatrizes, provocadas pelas Detonações e pelos maus tratos
de Ingership. Talvez ela se tenha finalmente reconciliado com as suas
marcas, ou esteja demasiado cansada para escondê-las. Lyda senta-se na
cadeira ao lado da cama. Illia olha para o teto. A jovem pega-lhe na mão e
sussurra o nome dela. Illia não responde.
— A semente da verdade — diz Lyda — está em boas mãos. Está com
pessoas que saberão o que fazer. Boas pessoas.
Illia não se mexe. Estará a ouvi-la?
— Illia — sussurra a jovem. — A verdade está em boas mãos. Já
cumpriu o seu papel. — Estará a dar a Illia permissão para morrer? Lyda foi
ensinada desde sempre a lutar contra a doença e a morte, a temê-las acima
de tudo o resto. Um dia o seu pai estava doente; no dia seguinte partiu —
levado para uma enfermaria distante. Ela nunca teve oportunidade de lhe
dizer adeus. Receberam apenas uma mensagem a dizer que ele tinha
morrido. Mas as Mães ensinaram-lhe que a morte faz parte da vida.
Lyda olha para a Mãe Hestra.
— Ela está assim ausente há muito tempo?
— Está metade aqui e metade no além. Entre a vida e a morte.
— Illia — diz Lyda. — Sei a que se referia quando disse «tenho
saudades de Art». Sei que queria dizer Art Walrond.
Os olhos da doente palpitam. Ela vira a cabeça e olha para Lyda.
— A semente da verdade está viva. Existe. A Illia fez o que era preciso
fazer.
— Art — sussurra Illia. — Vi-o. Está lá; está à espera.
Os olhos de Lyda enchem-se de lágrimas.
— Pode ir ter com ele — murmura. —Já não faz mal.
Illia levanta a mão e toca no rosto da jovem.
— Se eu tivesse uma filha... — Depois pousa a mão no coração e fecha
os olhos.
— Illia — sussurra Lyda. — Illia, ainda está connosco?
Vira-se para a Mãe Hestra:
— Faça alguma coisa! Acho que ela...
— Está a partir — declara a Mãe Hestra calmamente. — Tu sabias. Ela
está a partir e não faz mal.
Lyda olha fixamente para as costelas de Illia, em busca de sinais de
respiração. As costelas não se mexem.
— Ela foi-se.
— Foi. Sim.
A Mãe Hestra envolve Lyda com o braço e diz:
— Vamos embora. Nós cuidaremos do seu corpo.
— Deixe-me ficar com ela um minuto.
— Está bem — diz a Mãe Hestra.
Lyda fecha os olhos e diz uma oração da noite, que costumava
sussurrar para a sua joaninha de peluche acerca da alegria da luz da manhã.
Passado um bocado, caminha, quase às cegas, pelo corredor fora em
direção ao catre número nove. Tem vontade de dizer às outras: Morreu uma
pessoa. Uma pessoa acabou de nos deixar. Mas não há necessidade de as
acordar. Foi natural. A morte faz parte da vida.
Deita-se e tenta dormir, mas não consegue controlar os pensamentos.
Imagina Illia e Art Walrond reunidos em algo como o céu. Será possível? A
sua mente voa para Partridge. Onde estará ele? Estará bem? Estará a pensar
nela?
Lembra-se da última coisa que ele lhe disse. Tu disseste adeus, mas eu
não digo. Porque voltaremos a encontrar-nos. Tenho a certeza disso.
Agora ele voltou para uma versão qualquer da vida que dantes viviam.
Tem regras, ordem social e rigor. Tem toalhas de banho, camisas
engomadas e tinta fresca. As pessoas esperam coisas dele. A Cúpula tem
uma maneira de modificar as pessoas — para além dos melhoramentos e
das drogas — apenas pelo ar abafado que se respira. Na Cúpula, ela
aceitava o que lhe diziam. O seu maior medo era desiludir os que a
rodeavam. No entanto, a verdade estava lá, se ela se tivesse disposto a
procurá-la. Ela tinha aceitado — tão facilmente, tão prontamente, tão
alegremente — a ideia de que os que viviam do lado de fora eram menos do
que humanos. Não despreza o seu antigo eu, tanto quanto o teme. Aquela
vida de prisão era tão confortável que ela ainda lá estaria se lhe tivesse sido
permitido escolher. Se tivessem dito ao seu antigo eu que um dia ela se
encontraria ali, a viver entre os desgraçados, a antiga Lyda teria tido
piedade da nova. Mas foi uma sorte ter saído de lá.
Quando tem a certeza de que todos adormeceram, incluindo Freedle,
tira a caixa de música que Partridge lhe deu, a que pertencia à mãe dele. Dá-
lhe corda e levanta a tampa, mas apenas permite que algumas notas pairem
no ar. Illia e Art... conseguirão ouvir aquela música? Para onde vai a alma
depois da morte?
Faz deslizar a caixa de música de novo para baixo da almofada.
Como pode Partridge recordar o mundo exterior, agarrar-se à estranha
ideia desse mundo, estando dentro na Cúpula?
Ela vai ser apagada. Tem consciência disso. A Cúpula não vai permitir
que ela exista.
Deixou-o ir uma vez. Cada dia exige que o deixe ir outra e outra ainda.
Cerra os punhos e pensa: Ele irá encontrar-me de novo?
E diz para si própria: Não. Não queiras isso. Deixa-o ir.
Abre as mãos, afasta muito os dedos.
Capítulo 31

Pressia
Pedras

Pressia está debruçada sobre as suas notas escritas em madeira e


pedras. O problema é claro. Willux era louco. Era louco quando detonou o
planeta e era louco em jovem. Num canto de uma página tinha rabiscado
Bom Velho Buck, noutro canto, a palavra Collins — seriam amigos seus? —
e o resto da folha estava preenchido com serpentes entrelaçadas. Outra
página tem apenas os números 20.62, 42.03, NQ4, e as palavras Fui forjado
pelo fogo. Renovado pelas chamas. O que significa aquilo? Ele parecia
gostar de poesia e, aparentemente, estava a trabalhar num poema que
aparece nos apontamentos algumas vezes, com várias alterações.
Ela desperta todos os dias para o topo do céu,
A roçar sobre o monte sagrado com a ponta da asa.
Dir-te-ia isto, mas a minha voz é tímida
Porque a tua beleza é, também, uma coisa sagrada.
Ele tinha traçado uma seta do verso «Dir-te-ia isto, mas minha voz é
tímida» para um verso alternativo: «A verdade está escrita lá nas alturas».
Seguia-se uma lista de palavras para rimar com asa — brasa, casa, vasa,
arrasa — e, a seguir, com céu — véu, breu, pitéu. Um romântico — é o que
Walrond lhe chamou. Aqueles poemas teriam sido escritos para a mãe de
Pressia? Essa ideia deixa-a enojada.
O que desejaria era deparar com fórmulas, discussões acerca de
células, degeneração, renovação, nanobiologia... Em vez disso, só
encontrava páginas cheias do que parecem ser constelações e aves e
arabescos, espirais cada vez mais apertadas. Páginas e páginas disso.
Levanta o olhar para as partículas iluminadas que rodopiam na imagem
de uma página projetada por Fignan. Sente-se muito só. Olha para o ombro
de Bradwell, que sobe e desce a cada inspiração, para o seu queixo, a sua
face. Desde que chamou o nome dela, começou a sentar-se para comer e já
consegue andar um pouco, com uma mão apoiada à parede; aos rostos das
meninas fantasma, nas quais não parece reparar. Olha para Pressia como se
estivesse a tentar vê-la do outro lado de um desfiladeiro. Por vezes, sussurra
o nome dela ou diz «Obrigado.» E Pressia tem a sensação de que o chão lhe
foge de baixo dos pés. A cair, a cair, é o que sente quando ouve o seu nome
nos lábios dele. Contudo, ele continua a dormir a maior parte do tempo e
ela regressa sempre à mesma pergunta: como tinha Walrond conseguido
penetrar na mente de Willux? A sala parece girar com os rostos de todas as
meninas fantasma a olhar para ela, urgentes, provocadoras. E se nada fizer
jamais sentido?
Pressia sabe a resposta: as meninas fantasma irão assombrá-la. Nunca a
deixarão partir. Irão assombrar para sempre esta costa, assombrar e
vaguear para sempre nesta costa. Ordena a Fignan «Vira a página», e uma
nova folha do bloco de apontamentos de Willux surge no ar. Mais uma vez,
aves.
Mas, desta vez há uma palavra na margem: Brigid. O seu nome do
meio. Emi Brigid Imanaka. Não foi Willux que lhe deu o nome. Ele nem
sabia que ela existia até passados anos sobre o seu nascimento. Então
porque terá escrito uma nota com o seu nome do meio — mais de uma
década antes de ela ter nascido? É percorrida por uma vaga ardente de
raiva.
É uma sensação pessoal, como se ele estivesse a provocá-la. O que é
que ele quer dela? Levanta-se e diz a Bradwell, que ainda está a dormir
profundamente:
— Muito bem, vamos falar outra vez sobre isto. Aponta para o canto
superior direito da mesa. — Isto aqui é tudo referente aos Sete: como tudo
começou, o que significava para Willux. Cada um dos membros dos Sete
tem a sua própria área. — As notas relativas ao seu pai e à sua mãe são as
mais completas a seguir às de Willux. Talvez devesse ter vergonha de gastar
tanto tempo com eles, mas não consegue evitá-lo. Adora a maneira como o
seu pai sorri. Vê o seu rosto no dele, um pouco aqui e ali. Sente-se
fascinada por ele. Até mesmo o gesto mais simples, como pegar em algo
que alguém deixou cair e entregá-lo ao dono. Afinal, tinha de começar por
qualquer lado: porque não pelo seu pai, a parte perdida de si própria?
— Esta pedra grande é onde escrevo todas as referências a cisne; esta
porção do cepo é dedicada a números; Willux tinha certos números de
que gostava particularmente. Esta pedra é onde eu anoto as referências
a cúpulas de qualquer tipo. — O jovem Ellery Willux era obcecado por
cúpulas.
Volta para junto da mesa e apoia-se no tampo, uma mão espalmada e o
punho da cabeça de boneca premido contra a área reservada a Ivan
Novikov. Talvez não consiga entrar na cabeça de Ellery Willux, mas o que
sabe acerca de Ivan Novikov, a primeira vítima de Willux? Lembra-se do
vídeo que o mostrava a dar a mão à sua mãe.
Caminha em torno da sala, junto às paredes, olhando para os olhos de
todas as meninas fantasma. Há uma que a faz sempre parar: há algo no rosto
da rapariga, um clarão de luz nos olhos, que lembra a Pressia a sua amiga
Fandra, a sua amiga mais chegada desde a infância. Fandra e o irmão,
Gorse, tinham fugido antes de serem apanhados pela OSR. Fandra tinha
cabelos dourados que lhe roçavam nos ombros, olhos azuis e o braço
esquerdo atrofiado. Roncava, por vezes, quando se ria, o que fazia rir
Pressia. Esta encontrara Gorse há relativamente pouco tempo, numa das
antigas reuniões subterrâneas de Bradwell acerca de História-Sombra, e
ficara pasmada por o ver vivo. Começara a perguntar-lhe que era feito de
Fandra, e ele dissera apenas «Não». Fandra já não existia.
E embora a rapariga da pintura não tenha cabelos dourados, Pressia
tem a sensação de que Fandra existe na imagem, algures.
— Fandra — sussurra. — Que estou a fazer?
Ela sabe o que Fandra faria. Perseveraria.
Pressia precisa de uma nova pedra, uma reservada para a palavra
Brigid. Vira-se para Bradwell:
— Já volto. — Fecha bem a porta ao sair.
Não consegue deixar de pensar nas palavras de Willux, Fui forjado
pelo fogo. Renovado pelas chamas, e da imagem das serpentes entrelaçadas,
sempre duas serpentes enlaçadas uma na outra, formando uma espiral solta.
— Ivan Novikov — diz para si mesma, curvando-se para passar sob os
ramos. O que dizia o recorte acerca da morte dele? Willux tentara salvá-lo
durante o treino. O jovem cadete Walrond tinha dito que era um dia triste.
Um oficial dissera que tinha sido o primeiro banho de Ivan naquela
temporada, que estivera doente mas acabara de recuperar a saúde.
Pressia baixa-se e encontra uma grande pedra oval. Segura-a contra o
peito. Recorda a expressão de Willux quando a sua mãe pegou na mão de
Ivan. Willux teria um fraquinho por ela? Estaria com ciúmes?
Lembra-se de estar quase a afogar-se no rio escuro e frio, das mãos
— tinha tanta certeza de que eram mãos! — a empurrá-la para cima, e
imagina Ivan Novikov, mas as mãos de Willux estão a empurrá-lo para
baixo. Quem estivesse a ver de cima não conseguiria distinguir se a luta se
destinava a salvar alguém ou a afogá-lo. E se Walrond pensava maravilhas
de Willux, partiria do princípio que se tratava de um salvamento. Ivan
estava adoentado, o que tornava mais fácil acreditar que estava a afogar-se,
acreditar que a tentativa de salvamento estava condenada ao fracasso.
Willux não tinha qualquer móbil visível. Ivan era seu amigo.
Regressa rapidamente a casa, fechando a porta atrás de si. Bradwell
está inquieto. As aves palpitam nas suas costas. Pressia pousa a pedra sobre
a mesa.
— Fignan. mostra-me a mensagem de Walrond, a que se destinava aos
Sete.
O motor de Fignan arranca e lá está Art Walrond de novo, grande e
loiro.
— Avança — diz Pressia. A imagem acelera. — Para.
Art cruza os braços e diz: «As pessoas não resolvem simplesmente
tornar-se assassinas em massa quando são jovens. Têm de evoluir até ao ato
de aniquilação, e Ellery assim fez. Ainda está a fazê-lo. Mas começou
modestamente. Eu estive lá desde o início. Devia ter feito alguma coisa
nessa altura. Vejo isso agora, em retrospetiva. A questão é que ele matou a
única pessoa que poderia tê-lo salvo. É essa a ironia.
Ele matou a única pessoa que poderia tê-lo salvo. Ivan Novikov. Era
ele que tinha a fórmula?
— Quero ver novamente os registros médicos — indica a Fignan.
— Ivan Novikov. — Fignan mostra a pasta de Ivan. Pressia lê os
gatafunhos do médico.
... Tremuras das extremidades. Ligeira paralisia da cabeça. Audição
reduzida. Visão reduzida de 20/20 para 20/100...
Pressia reconhece os sintomas. Degeneração Celular Rápida. Willux
começou os melhoramentos cerebrais em jovem, um pouco de cada vez,
dissera a sua mãe. Talvez tenha sido um dos objetivos do ramo
internacional dos Melhores e Mais Inteligentes: um esforço global para
garantir que as melhores mentes se tornavam ainda melhores. Se tanto
Novikov como Willux tinham acabado de iniciar os melhoramentos
cerebrais, nenhum deles teria começado a sofrer efeitos adversos ainda por
muito tempo. Wilda treme porque o seu corpo era demasiado jovem para
suportar doses intensivas de uma só
vez. Willux treme agora por causa da acumulação de melhoramentos
durante décadas. Talvez Novikov tivesse algum problema médico
subjacente, que levasse os melhoramentos a ter um impacto mais forte nele,
ou talvez se tivesse submetido a mais melhoramentos do que Willux, mais
do que qualquer outro...
Willux matou a única pessoa que poderia tê-lo salvo.
Pressia volta ao princípio. A avaliar pelos relatórios médicos, Novikov
sofria de Degeneração Celular Rápida e depois deixara de sofrer. Estava
melhor. Talvez Novikov soubesse que os melhoramentos teriam
contraindicações. Talvez tivesse induzido deliberadamente a Degeneração
Celular Rápida em si próprio, porque ele encontrara uma maneira de a
reverter e queria testá-la.
— As notas de Novikov — pede a Fignan. — Quero qualquer coisa
dele que Walrond tenha coligido e que seja pessoal, escrito pelo seu próprio
punho.
O cone de luz por cima de Fignan apresenta apenas um resultado: uma
pasta intitulada Notas de Novikov. Pressia diz:
— Abrir pasta.
A pasta está vazia.
Por que teria Walrond criado uma pasta para notas de Novikov se não
possuía nenhuma?
A menos que Walrond pretendesse transmitir a mensagem de que tivera
as notas, mas estas tinham desaparecido.
— A mensagem de Walrond de novo — diz Pressia a Fignan.
A caixa negra mostra o rosto de Walrond. Ele faz o seu discurso
introdutório e, enquanto a mensagem vai sendo reproduzida, os seus olhos
ficam marejados. «Está tudo aqui à vossa disposição e conduzir-vos-á à
fórmula», diz Walrond. «Não está tudo explícito e muito bem arrumadinho.
Não podia arriscar algo tão simples. E, ouçam, se chegarem a um ponto na
vossa busca em que não consigam ir mais longe, lembrem-se que eu
conhecia a mente de Willux como ninguém. Estudei longamente estas notas
e tive de olhar para o futuro.»
Pressia murmura «Tive de olhar para o futuro. Porquê?» Olha para as
pilhas que a rodeiam.
«Esta caixa não era suficientemente segura para mim», diz a imagem
de Walrond. «Não podia simplesmente guardar tudo aqui. Se sabem como
Willux pensa — e todos vocês sabem, isso tornou-se a obra de toda a nossa
vida, não foi? Tentar descobrir o que seria o seu próximo passo e tudo o
mais. Bem, se pensarem na cabeça dele, na sua lógica, conseguirão
compreender as decisões que tomei. E quando chegarem ao fim, a caixa não
é uma caixa de todo. É uma chave. Lembrem-se disso. A caixa é uma chave
e o tempo urge.»
— Para — diz Pressia.
Fignan imobiliza a imagem no ar. Ela lembra-se de Bradwell a
questionar Walrond. O tempo urgia quando tinham esperança de deter
Willux. Agora não. Não faz sentido. E Walrond não podia confiar na caixa
para guardar a fórmula. A pasta era apenas um marcador de espaço. Diz a
Pressia que a fórmula existe, mas que talvez Walrond a tenha escondido.
— Onde? — Ela senta-se na beira da cama de Bradwell. De repente,
fica zangada com Bradwell, embora isso não seja justo, nem lógico. Precisa
da ajuda dele. Respira fundo.
— Continua — diz a Fignan. Walrond desaparece da imagem, mas
depois regressa e diz: «Sinto-os a apertar o cerco. Estamos a correr contra o
tempo. Se estão a ouvir esta mensagem, isso significa que todas as nossas
tentativas aqui falharam.» Ri e chora ao mesmo tempo, por um momento,
depois prossegue: «Willux, bem vistas as coisas ele é um romântico, não é?
Quer que a sua história gloriosa viva para sempre. Espero que um de vocês
ouça isto e espero que consigam pôr um fim a essa história. Prometam-me.»
— Para — diz Pressia. A imagem para. A pequena casa de campo fica
em silêncio. Lá fora, o vento sopra com força. Um pequeno ramo de hera
bate na janela. Ela devia dizer a Fignan para se desligar, mas gosta daquela
luz adicional. Está a escurecer. O seu cérebro está às voltas.
Os pássaros de Bradwell restolham por baixo da camisa. Ela puxa a
peça de roupa para cima, para ver se eles estão bem, revelando as costas
largas e musculosas de Bradwell. A pele dele ostenta um tom rosado
profundo. Os pássaros parecem estar melhor. Os seus olhos brilham. Ela
acaricia-lhes as penas. São lindíssimos, quase majestosos. Como será estar
unido a algo vivo, ter sempre consigo aqueles três pequenos corações
pulsantes?, interroga-se Pressia.
Baixa de novo a camisa, esperando que as aves adormeçam. Ela
também está cansada.
Bradwell volta-se na cama. Ela quer estar perto dele e sentir-se quente.
Tem dormido numa esteira, no chão, mas faz muito frio. Há gelo a
cristalizar nos vidros das janelas. Ela não quer dormir sozinha no chão frio.
Quer sentir-se segura. Não quer pensar no que pode andar a rondar pelo
pomar, ou em Willux a afogar Ivan Novikov. Não quer perguntar-se por que
motivo o seu nome do meio está nas margens de uma folha do bloco de
Willux.
Deita-se ao lado de Bradwell, desliza para baixo do cobertor, levanta o
braço inerte dele e coloca-o por cima do seu próprio ombro.
Sente o hálito quente dele no seu ouvido.
Amigos leais. É o que eles são — amigos — e é por isso que não faz
mal deitar-se assim. Se fossem algo mais, ela conter-se-ia. Gosta da
sensação da respiração quente dele no seu pescoço.
Então ouve a voz dele:
— Estás a aproveitar-te de mim?
Pressia senta-se abruptamente e salta da cama.
— Bradwell!
Os olhos dele estão límpidos.
— Estou num estado debilitado, sabes. — Ele sorri. — Não devias
aproveitar-te de uma pessoa num momento destes.
— Estava com frio! — replica Pressia, abraçando o próprio corpo. —
Nada mais.
— Palavra? — Os olhos de Bradwell cintilam.
— Estás acordado. Estás mesmo acordado — diz ela.
Ele acena com a cabeça:
— Mais ou menos.
— Estou muito contente por teres voltado. — E está mesmo. Sente-se
tonta de felicidade. — Voltaste mesmo!
— Nunca cheguei a partir.
— Salvaste-me, lá fora — diz ela.
— E tu salvaste-me aqui.
Capítulo 32

Partridge
Quente

Partridge acorda quente e seco. Abre os olhos e vê um dossel branco


esvoaçante. Há uma brisa. Luz do Sol jorra por uma janela e recai sobre o
cobertor. Ele levanta a mão, que parece incrivelmente pesada e ferida até
aos ossos, e descansa-a no quadrado ensolarado.
Está quente. Será possível? Onde estará?
Sente o cheiro de alimentos a serem preparados; algo gorduroso e frito.
Talvez bacon. A última vez que sentiu o cheiro de bacon a fritar ainda era
criança, mas há coisas que ficam connosco para sempre, pensa para
consigo, e bacon é uma dessas coisas.
O dossel está fixado a uma grande cama de carvalho, no meio da qual
ele está deitado. Levanta a cabeça, que começa a latejar, e tem de fazer um
esforço para se soerguer apoiado nos cotovelos, como se o seu corpo
estivesse encharcado de água. A porta do outro lado do quarto dá para uma
casa de banho em mosaico azul pálido.
Há uma almofada fofa ao seu lado. Partridge bate-a suavemente e o seu
punho afunda-se em penas. Uma almofada de penas? É demasiado real para
ser um sonho.
Pergunta-se se aquilo será uma versão do céu. Se assim for, Lyda irá lá
ter com ele? Este poderia ser o seu quarto, com um guarda-roupa alto, uma
mesa de cabeceira, um candeeiro e uma cama verdadeira. Do teto pende
uma ventoinha, que roda lentamente, as suas lâminas largas feitas de vime a
bater o ar.
Partridge olha pela janela; está aberta e não tem vidraça, mas na
Cúpula as janelas são apenas adornos. Nunca abrem e a temperatura
exterior é igual à interior, exceto durante o inverno, em que a temperatura
exterior é reduzida dez graus para dar a impressão de uma mudança de
estação.
Da janela vê-se um oceano azul cristalino. Ondas suaves rolam pela
areia dourada. A praia está vazia, tirando um velho com um detetor de
metais. Partridge lembra-se de ver velhos com detetores de metais nas
praias da sua infância. Usavam meias pretas e sapatos grossos, de borracha,
tal e qual como aquele. Esta praia parece um anúncio a umas férias nas
Caraíbas.
Mas há o molde de fibra de vidro no seu mindinho. Partridge tira-o,
revelando um coto: três quartos do dedo formados, selados na sua própria
pele.
Está na Cúpula.
Algo lhe arranha a pele macia sob o queixo. Ele apalpa uma coleira
estranha, fechada em torno da sua garganta. É feita de metal fino,
ligeiramente maleável. Está ligada a uma caixa de cerca de dois centímetros
quadrados, que vibra com eletricidade. Apalpa a caixa, sentindo um padrão
de ranhuras: um buraco de fechadura?
É um prisioneiro ali.
Batem à porta e, por um segundo, ele pergunta-se se será Lyda. Tudo
pode acontecer.
— Entre — diz ele.
A porta abre-se. Como a cama, é de madeira trabalhada. Uma mulher
de uma saia cor-de-rosa e blusa branca entra no quarto. Usa um colar de
contas. Partridge lembra-se da Mãe cuja pele crescera por cima de um colar
de contas, de tal modo que parecia um tumor carnudo.
A mulher aproxima-se e pousa um tabuleiro de comida na mesa de
cabeceira. Bacon, ovos, um bom copo de sumo de laranja enevoado de
polpa. Uma fatia de torrada está barrada com o que parece manteiga e mel.
Partridge tem fome, mas sente o estômago fraco.
Ela inclina-se para ele com familiaridade e pousa-lhe uma mão fria na
testa.
— Partridge — exclama — parece que estás a sentir-te melhor! —
Sorri, como quem teve saudades dele e o vê finalmente chegar.
Há algo de vagamente familiar no rosto dela. Ele tê-la-á visto em
eventos oficiais para os quais era arrastado em criança, quando o seu pai
discursava mais vezes em público?
— Sim. — Partridge engole e a garganta dói-lhe. — De onde nos
conhecemos afinal?
— Eu sabia que tu ias reconhecer-me. Ele disse que não e eu respondi:
«espera e verás!» — A mulher inclina a cabeça. — Temos uma longa
história, Partridge. Mas nunca fomos apresentados. Pelo menos
formalmente. Sou a Mimi — prossegue. — Tenho estado a cuidar de ti aqui.
— Senta-se na beira da cama. — A minha filha também ajudou. Ela está lá
em baixo, a praticar piano.
Partridge não faz a menor ideia do que Mimi está a falar. Ela disse uma
quantidade de palavras, mas, de algum modo, agora ele ainda compreende
menos do que antes.
— Onde estou?
Ela sorri:
— Onde queres estar?
Ele esfrega os olhos. Está cansado.
— Quero saber onde estou.
Mimi levanta-se e dirige-se para a porta em passinhos miudinhos; as
suas mãos dançam em torno da cabeça, a saia rodopia à volta das canelas.
— Ouve — diz ela. — Uma sonata de Beethoven. Estás a ouvir?
Partridge ouve uma música clássica.
— Ela teve aulas durante anos. Não tem grande ouvido natural, mas é
uma perfeccionista. Isso compensa quase tudo, não é?
Ele não tem a certeza se aquilo é verdade ou não, pelo que não
responde.
— Onde está o meu pai?
— Está no trabalho. Trabalha tanto! Horas e horas.
— De onde é que o conhece?
— Conheço-o há anos, Partridge. Céus, vi-te crescer. De longe, é claro.
A minha filha e eu temos estado sempre na periferia da tua vida, por assim
dizer; sabes como é.
Ele não faz ideia de como é. Precisa de se concentrar. Precisa de
encontrar Arvin Weed e Glassings, as pessoas que estavam na lista de gente
de confiança da sua mãe.
— Não sentiste? — pergunta ela. — Um par de olhos maternais, a
vigiar? Implorei-lhe que te deixasse vir. Implorei e implorei. Mas ele dizia
que era demasiado perturbador. Mas aqui estás! — Mimi volta para junto da
cama com os seus passinhos miudinhos e ajoelha-se. Agarra na colcha e
parece prestes a chorar.
Partridge senta-se com grande esforço, as costas apoiadas na cabeceira
da cama. De início, vê o rosto dela a dobrar. Mas franze os olhos,
concentra-se, e o rosto dela é bonito, de uma forma angulosa, e
estranhamente desprovido de idade. Parece ser dez anos mais nova do que
os pais dele, mas, ao mesmo tempo, parece mais velha. Será por causa dos
seus gestos? Da sua maneira de falar?
Não tem rugas, nem mesmo agora que está a sorrir-lhe com uma
expressão de expetativa. O seu rosto é liso.
Ocorre-lhe de repente que Mimi talvez pressuponha uma certa
intimidade com ele por ter intimidade com o seu pai. Ela e a filha tiveram
de viver na periferia. Ela tem sido um par adicional de olhos maternais
voltados para ele... há anos?
— Você é... — Não sabe como formular a pergunta. — Para o meu
pai... você é sua... — Amante? Será essa a palavra que procura?
— Sou sua esposa — afirma Mimi, radiante.
— O quê?
— Tecnicamente somos recém-casados, mas estamos juntos há muitos
anos. Ele ama-me e eu amo-o. Espero que consigas aceitar isso.
Partridge sente-se doente.
— Ele matou a minha mãe e depois foi direitinho casar consigo?
— Afasta o cobertor e os lençóis com um pontapé, os músculos da
perna a arder. Empurra-se para o outro lado da cama e põe os pés
impulsivamente no chão. — Isso foi um bónus adicional por ter feito
explodir a cabeça dela? Passar a ser um homem livre?
— Ele não é um assassino — diz Mimi em voz baixa. — Estás a
confundir os factos.
— Ele mandou torturar-me! Sabia disso? Tenho sorte em estar vivo. —
Ainda se sente perto da morte, como se esta se tivesse enterrado
profundamente no seu corpo.
— Podias ter um pai que não quisesse saber de ti para nada. Podias ter
um pai que te tivesse abandonado, como aconteceu com a minha filha. O
teu pai recebeu-me quando mais ninguém estava disposto a fazê-lo. Salvou
as nossas vidas. — Mimi continua a sorrir para ele — um sorriso quase
exausto, mas que exprime grande paciência.
— Eu tenho um pai que é um assassino em massa. — Partridge dá um
puxão na coleira que lhe rodeia o pescoço.
Ela abana a cabeça e dá estalinhos com a língua. Estará a repreendê-lo?
Julgará realmente que é sua mãe? Ele tem vontade de lhe dar uma bofetada.
— Passaste demasiado tempo lá fora — diz ela. — Tínhamos
esperança de que tivesses visto a luz. — Levanta-se e alisa a saia. — Não
vou contar ao teu pai que disseste essas coisas. Isso só iria perturbá-lo e
meter-te em mais sarilhos. — Vai até a janela e olha para fora.
Partridge despreza-a, mas sabe que o que quer que haja de quebrado e
distorcido em Mimi é provavelmente culpa do seu pai. Olha para lá dela. O
velho está na praia de novo, a caminhar na mesma direção de há bocado,
balouçando o detetor de metal para a frente e para trás.
— Vê isto — diz Mimi. Inclina-se para fora da janela e chama: — Olá!
Como está esta manhã?
O velho para, tira o seu pequeno boné e faz um grande aceno.
Mimi diz:
— Dantes ele não me ligava nenhuma. Mas eu disse ao teu pai quanto
isso nos perturbava, a mim e à Iralene, a minha filha, e o teu pai resolveu o
problema. Bastou uma pequena menção e, passados poucos dias, aquele
velho estúpido estava a acenar. Eu detesto-o, na verdade. Mas agora ele
para e acena. É melhor assim, não é?
Mimi é aterrorizadora. Fervilha de amor, de mágoa, de fúria, saltando
de emoção em emoção numa questão de segundos. Ela vira-se e olha para
Partridge.
— Sabes, eu fiz esta viagem em pessoa. Não tinha de o fazer, mas pedi
autorização e o teu pai permitiu porque era muito importante para mim
conhecer-te. Espero que não tenha sido uma perda de tempo. Detesto perder
tempo real.
Ele não consegue impedir-se de armar em engraçado:
— Como se sente em relação a perder tempo falso?
— Queres dizer tempo suspenso?
Partridge encolhe os ombros e diz:
— Pois, tempo suspenso.
— Eu tenho todo o tempo suspenso que quero. Não é coisa que se
possa perder, pois não? Quer dizer, isto pode parecer demasiado filosófico
para tu compreenderes...
— Experimente.
— Tempo suspenso é, por definição, tempo que não passa. Existe
paralelamente ao tempo como o conhecemos. Portanto, não pode ser
perdido, não é verdade?
— Suponho que não.
Ela sorri-lhe e dirige-se para a porta. Partridge lembra-se da história de
Pressia ser envenenada na casa da fazenda. Pergunta:
— Esta comida não vai fazer-me mal, pois não?
— És doido?
— Não sei. Você é?
— Não sejas malcriado.
— Sabe o que é má-criação? Pôr uma coleira eletrónica numa pessoa
pela qual se tem alegados sentimentos maternais. Até onde posso ir sem
apanhar um choque?
— Eu não iria muito longe. É para a tua própria proteção.
— Bem, nesse caso, obrigado. Muito, muito obrigado.
— Espero que gostes do teu pequeno-almoço, Partridge. No teu lugar,
eu ficaria grata por tudo. Por cada pequeno detalhe feito à mão. — Aquilo
soa como um aviso. Ela pisca um olho, acena com a cabeça e sai, deixando
a porta suficientemente aberta para Partridge ficar a ouvir a filha dela,
Iralene, a tocar a sonata.
Partridge deixa-se cair de novo na cama, com os braços e as pernas
pesados como chumbo. Fecha os olhos; a música cola-se ao seu cérebro,
mas ele não consegue perceber se está a ser tocada ou se se trata de uma
gravação. Será que Iralene existe? Haverá sequer um piano?
Capítulo 33

El Capitan
Pontos

A maioria das operações é muito mais complexa do que Helmud a


escarafunchar pernas de aranha com um canivete. E1 Capitan teve sorte por
a sua aranha robótica se ter alojado na parte carnuda da barriga da perna,
sem penetrar e lascar osso. Acima de tudo, tem sorte por só ter sido
apanhado por uma aranha; neste momento, o recorde consiste em treze num
corpo só. Passou quase um mês e ainda há centenas de pessoas a precisar de
tratamento.
Entre estudar e copiar as balas sedativas de Fignan, e as informações
que El Capitan reuniu ao longo dos anos sobre as diversas plantas que ia
encontrando na floresta — e que testava nos novos recrutas — conseguiram
criar soluções para anestesiar os pacientes durante a cirurgia, mais ou
menos.
Helmud injeta soro na corrente sanguínea dos pacientes e presta
assistência. El Capitan pede álcool, compressas, pinças, bisturis, agulhas e
bobinas de fio fino e limpo, que é usado para fechar os ferimentos abertos.
Helmud entrega os objetos pedidos. Pela primeira vez nas suas vidas,
trabalham como um homem com quatro braços. Outro soldado esfrega os
instrumentos com álcool e mantém-se alerta para o caso de um paciente
voltar a si a meio da operação. Quando isso acontece, o soldado e El
Capitan seguram-no até ser injetada nova dose.
As cirurgias fascinam Helmud. Este inclina-se de tal maneira por cima
do ombro do irmão, que por vezes El Capitan é obrigado a dizer-lhe para
recuar.
— Para de respirar para cima de mim — diz agora El Capitan, durante
uma operação.
— Para de respirar — diz Helmud.
O cheiro ferroso do sangue atinge El Capitan tão profundamente que
ele fica enjoado. Despacha rapidamente o paciente.
— Tenho de ir ver se desapareceram mais crianças — diz ele ao
soldado. Desde a história de Wilda, doze crianças desapareceram e foram
devolvidas, e consta que foi encontrada outra nas primeiras horas da manhã,
num alpendre abandonado nos limites dos Campos de Destroços.
Quando saem da tenda, Helmud treme no ar frio. El Capitan puxa a
espingarda para o peito e encaminha-se para o mercado. Há a lufa-lufa
habitual, alguns empurrões, vendedores ambulantes a apregoar os seus
produtos, a sua carne, os seus legumes estranhos — comestíveis? Talvez
sim, talvez não. Passa por uma série de bidões de óleo acesos, com gente
reunida à volta, a aquecer as mãos. Todos o olham quando ele passa. Alguns
inclinam a cabeça.
As Forças Especiais não voltaram à cidade. Talvez não vejam
necessidade disso, agora que Partridge regressou à Cúpula. No entanto, El
Capitan tem visto alguns na floresta e tem sempre a esperança de se cruzar
de novo com Hastings. Partridge disse que ele era digno de confiança. El
Capitan chegou a pensar em tentar montar uma armadilha para ele. Mas
como se pode apanhar um soldado das Forças Especiais numa armadilha?
Nem mesmo uma armadilha de urso conseguiria prendê-lo.
El Capitan depara com um rapazinho que está a distribuir folhas de
papel. A tua alma é digna de Purificação? Prepara-te!
— Que história é essa? — indaga El Capitan.
Uma tala de metal sustenta um dos lados do rosto do rapaz, que
responde:
— A Cúpula é toda-bondosa e toda-sabedora.
— Não. A Cúpula fez explodir pessoas. Não reparaste nessa parte? O
rapaz encolhe os ombros e distribui mais panfletos a quem passa.
— O que queres? Uma oportunidade de seres mudo, exceto para
dizeres as palavras que são programadas no teu crânio? Uma oportunidade
de seres bombeado com a Purificação deles, apenas para seres comido vivo
por ela?
— A Pureza tem um preço! Eles são mártires, aos olhos dos nossos
Vigilantes!
— Fizeram-te uma bela lavagem ao cérebro, não fizeram?
O rapaz fita-o, com o rosto a reluzir de esperança.
— Agora já não são apenas as crianças. Até você tem uma hipótese!
— O que queres dizer com isso, não são apenas as crianças?
— Mãe e filha. Pai e filho. Sempre da mesma família. Três pares até
agora. Todos levados à luz do Sol.
— Em pleno dia?
— Acendemos as piras e esperamos e rezamos para sermos escolhidos.
— Estás a brincar comigo? Vocês põem-se em fila e deixam as Forças
Especiais levar-vos? Sem mais nada? — E num resmungo:
— Que inferno...
— Inferno! — brada Helmud. El Capitan arrebata os papéis das mãos
do rapaz.
— Onde arranjaste isto?
— A Cúpula tinha um filho — diz o rapaz. — Veio à terra. Era o nosso
Redentor. A Cúpula queria-o de volta. Fomos feitos reféns e, quando ele foi
devolvido à Cúpula, onde está sentado com o seu justo pai, foi-nos
concedida misericórdia, fomos libertados.
— Compreendo. Compreendo. Muito velho mundo. — El Capitan sabe
o suficiente sobre os textos bíblicos para apanhar as referências.
— As crianças não eram suficientes? Agora querem famílias? Já algum
deles foi devolvido?
— Apenas um par — responde o rapazito. — Os outros estão no
paraíso! — Os seus olhos brilham.
— E esse par? Como estão eles? Foram programados para debitarem
apenas propaganda da Cúpula?
— Estão mortos. Eram indignos. Estamos a escrever um novo
evangelho. Estamos a acrescentar à Palavra. Teremos novos profetas.
— Isso é encantador — comenta El Capitan. — Onde estão os corpos?
— A pira — diz o rapaz. — Sacrificámo-los e eles partiram nos ventos
de cinza.
— Como é que eles foram mortos?
— Foram encontrados junto da pira, uma manhã. Estavam perfeitos,
como Deus queria, tirando um anel de cicatrizes à volta da cabeça. Como
uma coroa de espinhos.
— Cicatrizes? Que tipo de cicatrizes?
— Limpas — responde o rapaz. — Bem cosidas. Sabe que Deus fez
roupas para Adão e Eva no jardim? A Costureira de Deus.
— A Costureira de Deus vive na Cúpula? Sim, isso faz perfeito
sentido!
— Perfeito sentido! — diz Helmud.
— Onde estão a Margit e a sua amiga cega? Ainda estão vivas?
O rapaz acena.
— A Margit ainda tem uma aranha no braço?
— Sim, um dom de Deus.
— Diz-lhe que é um dom de Deus que vai infetar.
El Capitan afasta-se, abrindo caminho através da multidão, e o rapaz
grita:
— Quando vierem por mim, eu estarei pronto. Puro por dentro. E você,
estará? É essa a questão. Estará?
El Capitan regressa rapidamente à tenda. Puxa a aba de repelão, fecha-
a com um esticão atrás de si.
— Chega por hoje. Manda os restantes para casa.
O soldado está a limpar tudo.
El Capitan pega no saco de frascos de sedativos.
— Toca a arrumar. — Repara no monte de aranhas robóticas mortas —
algumas inteiras, a maioria feita em bocados. Pega numa. É pesada e densa
na sua mão, como uma granada. Dirige-se ao soldado: — Recolhe todas
estas peças. Mete-as num saco.
— Porquê, senhor?
— Metal e explosivos — explica El Capitan. — Podem dar um belo
presente.
Capítulo 34

Partridge
Alma

Partridge acorda sobressaltado. Ainda está na grande cama de carvalho,


algures na Cúpula. Há luar a entrar pela janela. Não está sozinho.
Vira a cabeça, a coleira a enterrar-se na sua pele. Um vulto magro está
de pé ao lado da cama. Ele vê o contorno de uma saia, duas pernas pálidas,
e saltos altos.
— Mimi? — sussurra. — Que raio está a fazer aqui? — Ela terá estado
a vê-lo dormir?
— Não é a Mimi. — A voz é suave, quase infantil. O vulto dá um
passo para o luar. É uma rapariga da idade de Partridge, talvez um pouco
mais jovem. É alguns centímetros mais baixa do que ele e tem nas mãos
uma peça de fruta, vermelha como uma maçã, mas do tamanho de um
melão. É bonita e um pouco parecida com Mimi, mas o seu rosto é mais
suave, os lábios mais cheios. A sua pele parece fina, tão frágil que Partridge
vê uma veia azul pálido a cruzar-lhe a têmpora. Ela está nervosa, talvez até
assustada.
— Sou a Iralene.
A filha de Mimi, a pianista.
— Isso é para mim? — Ele aponta para a fruta.
— Mais ou menos.
— Estamos a meio da noite, não estamos? Ou isso é falso também?
— Creio que é noite.
— Por que estás aqui?
Ela endireita-se e responde, de uma forma que parece ensaiada:
— Ouvi dizer que não estás completamente feliz aqui. Posso ajudar a
remediar isso. Pode estar onde quiseres enquanto recuperas, Partridge. Em
qualquer lugar do mundo.
— Bem, isso é ótimo, Iralene. Muitíssimo obrigado — diz ele
sarcasticamente.
— Talvez não estejas a entender — diz Iralene. — Em qualquer lugar
do mundo!
— Já percebi. Vi o velho da praia a acenar à tua mãe. Estou
impressionado, está bem? Podes dizer ao meu pai que este é um truque de
magia verdadeiramente fantástico. Do melhor.
Iralene parece um pouco em pânico:
— Não posso dizer isso ao teu pai.
— Quando eu era pequeno, comprámos um forro para alcatifas de
nível industrial, e a publicidade dizia que se podia fazer saltar um ovo em
cima dele. O meu pai assim fez e o ovo saltou. Portanto diz-lhe que isto
ainda é melhor. Certo? Ainda melhor do que fazer saltar um ovo.
— Não sei nada de fazer saltar ovos — diz Iralene, parecendo chorosa.
— Como vai o meu velho hoje em dia?
Os olhos dela saltitam nervosamente, como se esperasse vê-lo aparecer.
— Não está bem. Teve crises de doença. Mas tenho a certeza de que
vai ficar melhor! — Ela faz uma pausa, como se estivesse a tentar decidir se
devia dizer mais alguma coisa. Partridge deixa que o silêncio se arraste
desconfortavelmente, na esperança de que ela queira preenchê-lo, e ela
assim faz. — Tem a pele seca. A sua voz está...
— Interrompe-se, como se a recordação da voz dele fosse arrepiante.
— Uma mão começou a enrolar para dentro. — Torce levemente a sua
própria mão dela até ficar com um aspeto disforme, puxando-a em direção
às clavículas. — As pontas de alguns dedos estão a ficar arroxeadas.
— Arroxeadas?
— Ele tem médicos maravilhosos! E a pesquisa é de alto nível. Tenho
a certeza de que não tardarão a corrigir todos os seus pequenos problemas
clínicos.
— O que quer ele de mim, hein?
Ela levanta a peça de fruta e estende-a para Partridge ver. Não se trata
de uma maçã ou de um melão. É um computador qualquer, altamente
polido, de cor vermelha e feito de um plástico endurecido de aparência
cerosa.
— Podes estar em qualquer lugar no mundo, enquanto recuperas!
— repete. — Posso reprogramar o quarto. Podemos ir para lá juntos.
— A voz de Iralene está cheia de uma admiração forçada.
— Isto é um jogo?
— Queres jogar um jogo?
— Para com isso.
— Parar com o quê?
Ele acende um candeeiro na mesa de cabeceira.
Iralene alisa o cabelo, nervosamente, e Partridge percebe que ela está
apavorada.
— O que se passa? — pergunta ele. — Por que estás tão assustada?
— Não estou assustada — replica ela, depois faz beicinho e olha
sedutoramente para ele. — Estás assustado, Partridge?
— O meu pai enviou-te porque quer que fique caído por ti?
— Caído por mim? Eu sou real — diz ela. — Sei isso com toda a
certeza.
— É um pouco perturbador estares a dizer-me que és real — observa
Partridge. — Tens noção disso?
— Não quero perturbar-te. Quero que gostes realmente de mim. Não
gostas de mim? Não sou agradável?
— Tu és minha meia-irmã. O meu pai explicou-te isso? A tua mãe e o
meu pai são casados.
— Mas não é um parentesco de sangue, por isso não conta no nosso
caso!
— Não há nós — diz Partridge suavemente. — Nunca haverá nós.
— Não digas isso! Fui guardada para ti. Parada e guardada. Suspensa.
Estou à espera há muito tempo.
— Suspensa? O que significa isso ao certo?
— Tu sabes o que significa. A minha mãe contou-me a vossa conversa
toda. — Ela estende de novo o pequeno computador vermelho e diz mais
uma vez, agora num tom mais insistente: — Podes estar onde quiseres
enquanto recuperas, Partridge! Em qualquer lugar do mundo!
— Está bem — acede Partridge. Precisa de saber como aquele sítio
funciona para tentar fugir. Talvez possa conquistar a confiança de Iralene,
sacar-lhe algumas informações; mais coisas acerca do seu pai, acerca
daquela encantadora prisão. — Escolhe tu.
— Sim! — Ela está muito entusiasmada. — Londres! — Prime um
ecrã embutido no lado do computador, insere informações. Olha para
Partridge e sorri, assegurando-se de que ele está a gostar daquilo. Não está,
mas arqueia as sobrancelhas para a apaziguar. Iralene é frágil. Se ele não se
mostrar suficientemente entusiasmado, quem sabe o que pode acontecer?
Ela pode desmoronar-se.
Ela pousa o globo no chão e o quarto modifica-se à volta deles. É
espectral. Aparece um tabuleiro de chá, com chávenas e pires delicados.
Retratos de reis e rainhas aparecem nas paredes. A janela reveste-se de
cortinados de brocado, abertos de modo a revelar a vista de uma roda
gigante, de uma ponte e de uma catedral. Iralene dirige-se para a janela.
— O London Eye — indica — e a ponte de Westminster. A Abadia de
Westminster também fica perto. Gosto de Londres.
O cobertor transformou-se num brocado amarelo, para combinar com o
tecido dos cortinados. Partridge apalpa-o, mas a mudança de tecido é uma
projeção. Ao tato, o cobertor continua igual ao que era.
— Podias levar-me a passear com uma trela, como um buldogue
britânico.
— O quê?
— É uma piada sobre a minha coleira.
— Oh! Tem graça. Muita graça! — Ela não ri.
— Até onde posso ir com isto posto?
— Até qualquer sítio dentro do apartamento. Tem dois andares e é
enorme. No entanto, creio que eles preferiam manter-te fechado em
segurança para tua própria...
— Proteção. Sim, percebo. — Partridge passa um dedo por baixo da
coleira, apenas para a afastar da pele. — Há uma chave para esta coisa?
— Como hei de saber algo sobre isso?
— Estou só a perguntar.
— Vamos falar de outra coisa.
— Muito bem. Aqui vai uma pergunta. — Partridge precisa de
encontrar Glassings. Ele estava na lista que a mãe lhe mostrara no bunker, a
lista de pessoas que esperavam o regresso do cisne. Cygnus. Foi essa a
palavra que ela sussurrou ao falar do assunto. — Há muita gente a saber que
estou aqui?
— Eu sei que estás aqui.
— Eu sei que tu sabes, e os técnicos que quase me mataram também
sabem, e a tua mãe e o meu pai. Mas o público em geral? Alguém lá fora?
— Eles saberiam sequer que tinhas partido?
Aquilo nunca lhe tinha ocorrido. O seu pai enviou aranhas robóticas —
milhares delas — para manter os sobreviventes reféns até Partridge se
entregar. Mas dentro da Cúpula podia ter querido manter a notícia da fuga
de Partridge em segredo. Podia ser um grande embaraço para ele.
— Há de ter havido quem notasse.
— Há sempre rumores e há sempre segredos. E segredos dentro de
segredos. Os segredos protegem-nos. A verdade pode ser manipulada. Mas
nós vivemos dentro de um segredo dentro de um segredo dentro de um
segredo. É por isso que podemos fazer acontecer seja o que for, Partridge.
Seja o que for.
— Gostas de viver dentro de um segredo dentro de um segredo dentro
de um segredo?
— Pode tornar-se solitário. É por isso que estou contente por estares
aqui. — Iralene olha para ele de esguelha, sorrindo, e, pela primeira vez, ele
tem a impressão de que ela disse a verdade. Ela vira-se e tamborila na
janela. — Vai começar a chover — anuncia. — Os pingos de chuva formam
gotículas na vidraça.
Partridge põe os pés no chão. Iralene aproxima-se da cama e ampara-
lhe o cotovelo.
— Eu consigo — diz ele. Levanta-se e dirige-se para um dos quadros,
sentindo a cabeça pesada e com tonturas. Estende a mão para a tela, mas em
vez de pinceladas de óleo endurecido, encontra apenas parede lisa.
— Não está tão aperfeiçoado como as Caraíbas. A minha mãe adora
esse — diz Iralene. — Mas não é mau, pois não?
— Nada mau.
— Sabes quantas pessoas na Cúpula sabem sequer que este tipo de
quarto existe? Tens noção de quantas pessoas viram uma gota de chuva no
vidro, como estas, desde... — Ela não menciona as Detonações.
— Quantas?
É evidente que ela não esperava aquela pergunta.
— Não muitas. Não muitas, de todo. Talvez apenas um punhado. E tu
fazes parte desse punhado agora, Partridge. Tu e eu.
— Sim, mas qual é o aspeto de Londres agora?
— Quem estaria interessado em ver isso?
— Eu estaria.
— Não estarias, não. — Ela ri.
— Estaria, sim. Na verdade, se podes projetar qualquer lugar do
mundo nestas paredes, eu quero o mundo exterior imediatamente ao lado da
Cúpula. Não o passado. O presente. Poeiras e Bestas e desgraçados. Vamos
ver isso. — Pensa em Lyda, algures lá fora.
— Não o temos. — Ela pega no globo e desliga Londres. O quarto
retoma as imagens da praia. A brisa regressa. A ventoinha de teto gira
lentamente.
— Disseste qualquer lugar do mundo.
— Mas queria dizer a versão preservada dos sítios. — Ela pousa o
globo na mesa de cabeceira.
— Eu quero o presente. Em qualquer lugar do mundo. Mas no
presente.
— Para de dizer isso. — Ela crispa as mãos sobre a carne dos próprios
braços.
— Diz ao meu pai que é o que eu quero.
— Não posso.
— Podes, sim.
— Não. Teria fracassado. Não posso dizer-lhe que falhei.
— Diz-lhe que o filho dele gostaria de se juntar a ele no presente real.
— Odeias-me. Por que me odeias?
— Não te odeio.
— Odeias, sim. E agora eu sou inútil. Esperei todo este tempo. Apenas
para me odiares.
Partridge aproxima-se dela.
— Iralene — sussurra. Ela aperta os braços com tanta força que a carne
beliscada está manchada de vermelho. Ele toca-lhe no pulso.
— Para. Estás a magoar-te.
— Estou velha, Partridge. Demasiado velha para encontrar um
companheiro.
— Demasiado velha? Tu só tens, quê... dezasseis anos?
Ela sorri como se ele tivesse dito a coisa mais doce do mundo.
— É isso. Dezasseis.
— Eu posso ajudar-te e tu podes ajudar-me, Iralene.
— Precisas de mim?
— Preciso.
— Como?
— Preciso de sair daqui.
— Mas aqui é fora daqui. Podes cá ficar e viver em qualquer lugar do
mundo! Não há nada melhor do que aqui. A minha mãe e eu...
Ele afasta-lhe o cabelo para trás do ombro e sussurra-lhe ao ouvido:
— Iralene, ouve-me. Preciso de ir ter com Durand Glassings. Preciso
de sair daqui. Não para algo melhor, apenas para um lugar real. Podes
ajudar-me?
Estão muito perto um do outro. Ela olha em redor da sala.
— Não digas a ninguém que te pedi isto, Iralene — sussurra ele.
— Está bem? É o nosso segredo.
Ela encosta-lhe os lábios ao ouvido:
— Não contarei a ninguém. Absolutamente ninguém. Nada. Não direi
uma palavra, Partridge. Nem uma palavra, nem um sopro, a ninguém. E tu,
vais ajudar-me?
— Seja o que for, Iralene. Diz-me de que precisas.
Ela olha para ele, atordoada, como se nunca tivesse pensado no que
precisava. Abre a boca, mas depois fecha-a, como se não tivesse nada a
dizer.
— Iralene — encoraja ele.
— Eu não toco piano, Partridge — diz ela, as bochechas a arder.
— Não faz mal.
— Mas tu devias seguir a música — sussurra ela. Aquilo é um
presente. Ela deu-lhe algo essencial. — Agora estás em dívida para comigo.
Ele sente-se pouco à vontade. O que lhe irá custar aquele presente?
— Ajudar-nos-emos um ao outro.
— É o nosso segredo — sussurra ela. — É nosso.
Capítulo 35

El Capitan
Livre

A carrinha sobe laboriosamente a encosta. El Capitan reduz a


mudança. Helmud está a assobiar nas suas costas.
O soldado que o ajudou nas cirurgias vai na parte de trás da carrinha.
Vão a caminho do posto avançado. Está a anoitecer. El Capitan mantém-se
atento a eventuais javalis e às malditas corujas esbranquiçadas. Não lamenta
ter abatido o máximo possível daquelas aves; lamenta apenas elas não
serem comestíveis. No entanto, o javali era. Tinha uma bela carne
marmoreada, e fora preparado e comido.
Pela janela do passageiro avista um lampejo perto do chão. Mas logo
desaparece. El Capitan não sabe se há de acelerar ou abrandar. Talvez seja
um javali de chifres retorcidos. Gostaria muito de voltar a comer aquela
carne. Helmud dá um sacão nas suas costas.
— Estás a ver alguma coisa? — pergunta El Capitan.
— Ver alguma coisa! — diz Helmud.
El Capitan para a carrinha.
— O que é? — Debruça-se para ver melhor pela janela do passageiro.
Mas Helmud vira-se para o outro lado e grita.
A cabeça de El Capitan roda bruscamente para a outra janela, e lá está
o rosto alongado e a parte superior do corpo musculado de um soldado das
Forças Especiais. El Capitan arqueja. Hastings! Hastings afasta-se da
carrinha, as suas armas tão polidas que parecem molhadas.
— Está tudo bem, Helmud. Está tudo bem — diz El Capitan. Vira-se
para o soldado no banco de trás. — Não saias, está bem? Não te mexas. Eu
volto.
Agarra o puxador, esperando que Hastings não tenha sido
reprogramado para o matar, depois apeia-se erguendo as mãos no ar.
Não vá Hastings estar equipado com um temporizador que pode fazer-
lhe explodir a cabeça, El Capitan mantém a distância.
— O que posso fazer por ti? — pergunta.
O peito de Hastings sobe e desce, pesado e rápido. Começa a andar de
um lado para o outro à frente de El Capitan. Helmud encolheu-se o mais
que pode, escondendo-se atrás dos ombros do irmão.
— O que queres? — pergunta El Capitan de novo.
Hastings aproxima-se. É muito mais alto do que El Capitan e olha
fixamente para ele. El Capitan ouve um estalido e baixa o olhar. A faca na
bota de Hastings — uma faca como uma garra — saltou da bainha.
— Calma — diz El Capitan, olhando de novo para o soldado.
— Calma — sussurra Helmud.
Hastings recua, cravando a garra na terra. Está a escrever. Liberta-me.
El Capitan fica calado por um momento. Está a tentar processar aquilo.
Que está Hastings a pedir, ao certo? Como pode ele ser libertado? Pertence
à Cúpula. É uma criação sua.
Hastings dirige-se para um pedregulho.
— Espera — diz El Capitan. Será que pode efetivamente libertar
Hastings? Ele e Helmud têm sido cirurgiões ao longo das últimas semanas.
Se conseguissem sedá-lo e tirar-lhe as escutas, ele ficaria livre e seria
extremamente valioso. Hastings fita-o com uma expressão suplicante. El
Capitan conhece aquele olhar: acaba com o meu sofrimento. A última vez
que o viu, estava com Pressia na floresta. Matou um rapaz que tinha ficado
preso numa armadilha. Mas Hastings não está a pedir-lhe que o mate, pois
não?
Hastings empurra o pesado pedregulho em direção a El Capitan e vira
as costas, ajoelhando-se. Baixa a cabeça e abre os braços.
El Capitan abre a porta traseira da carrinha.
— Dá-me o saco. — O soldado entrega-lhe os sedativos. El Capitan
regressa para junto de Hastings, que continua de joelhos.
Toca no ombro maciço do soldado, depois aperta-o com força.
Hastings fica tenso: à espera de uma pancada na cabeça? El Capitan vê a
jugular dele a pulsar, insere a agulha sob a pele, injeta o sedativo na
corrente sanguínea, tira a agulha. Vê Hastings vacilar para a frente, apoiar-
se no braço. Depois vira-se e olha para El Capitan, com os olhos marejados
de lágrimas. A princípio parece confuso, depois, estranhamente aliviado.
Sorri, muito ao de leve. O seu cotovelo falha e ele cai inconsciente no chão.
— Parece que temos outro paciente, Helmud. Um bem grande.
Capítulo 36

Pressia
Cygnus

Pressia explicou a Bradwell tudo que tinha descoberto, incluindo a sua


teoria sobre a morte de Ivan Novikov, mais as estranhas imagens e frases
que se repetem — serpentes entrelaçadas e a conversa de ser forjado pelo
fogo, renovado pelas chamas, as estranhas sequências de números, a poesia
e o aparecimento do seu nome do meio, Brigid. Dividiram o trabalho. Ela
dedicou o dia às obsessões numéricas de Willux e Bradwell concentrou-se
em palavras e padrões. Revezaram-se para utilizar Fignan — que zumbe
alegremente quando está a ser útil — e concordaram em não se interromper
um ao outro, a menos que seja absolutamente necessário.
Ainda assim, ela tem consciência de todos os movimentos de Bradwell.
Por vezes, ele inspira como se estivesse prestes a dizer qualquer coisa. Ela
para e vira-se.
— O que é?
Ele levanta os olhos e fixa-a por um momento. Os seus olhares
encontram-se. Ela pergunta-se se ele terá perdido o fio às ideias. Bradwell
olha de novo para os papéis e diz:
— Nada... Só estou a tentar relacionar coisas.
A noite está a cair e Bradwell começa a tossir como se tivesse crupe:
uma tosse áspera como latidos de foca, que lhe provoca pieira. Ele senta-se
na beira da cama, dobrado sobre si próprio, a tosse a rasgar-lhe os pulmões.
— Vamos apanhar ar — sugere Pressia.
Fignan apita.
— Podes vir — diz Pressia.
Vestem rapidamente os casacos, os pássaros nas costas de Bradwell a
ajeitar as asas. Ao sair, Pressia aponta um dos rostos pintados na parede, o
que a faz lembrar de Fandra.
— Tive uma amiga que era parecida com esta rapariga. Fandra.
Bradwell inclina-se para a imagem.
— A irmã do Gorse? Foi uma das últimas... — recomeça a tossir,
depois respira lenta e profundamente — .. .uma das últimas a utilizar a rede
clandestina antes de a encerrarmos.
— Nós éramos como irmãs, até que, um dia, ela desapareceu.
Saem para o ar livre. Fignan mantém-se perto das suas botas. Pressia
tranca a porta e pergunta para onde iam as pessoas através da rede
clandestina.
— Esperávamos fazê-las sair, mas os territórios aqui à volta são letais.
Queríamos acreditar que havia um lugar do outro lado onde sobrevivia
gente, talvez pacificamente, talvez até a viver bastante bem. O irmão dela,
Gorse, regressou sozinho depois de eles terem tentado a travessia e disse
que tinha perdido a Fandra.
— Por que encerraram a rede?
Dirigem-se para o pomar, passando por baixo dos ramos enraizados no
chão e por cima de raízes bulbosas.
— Mandámos várias pessoas para fora e poucas voltaram. Contaram
histórias brutais. Muitos desapareceram, simplesmente, e outros morreram.
Perdemos a esperança. Ou a coragem, ou ambas as coisas. — Bradwell faz
uma pausa, talvez para recuperar o fôlego. Encosta-se a uma árvore. —
Ainda me agarro à esperança de que alguns tenham sobrevivido, mas e se
todos morreram aí fora? É uma ideia de que não consigo livrar-me.
— Se não tivessem tentado escapar, provavelmente seriam apanhados
pela OSR e, nessa altura, isso significava que teriam de começar a matar
pessoas em Festivais da Morte, ou, pior ainda, seriam utilizados como alvos
vivos. Que alternativa tinham eles? Fizeste o teu melhor.
— Lamento muito — diz Bradwell — o que aconteceu à Fandra.
Pressia abana a cabeça:
— Eu também me agarro à esperança. Não consigo evitá-lo. Sou
assim.
Continuam a caminhar, passando por um conjunto de estábulos caídos,
uma estufa estilhaçada. Fignan vai zumbindo ao seu lado, depois começa a
usar os braços para passar sobre as raízes, pedras e cacos de vidro. Bradwell
respira com inspirações profundas, sorvendo o frio para os pulmões.
Pressia vê o dormitório onde Wilda deve estar a preparar-se para
dormir. Olha para uma das luzes nas janelas. Wilda. Quer dizer-lhe que
estão a tentar descobrir a solução.
Bradwell detém-se em frente de um ponto onde o muro de cimento foi
protegido por um dos edifícios da escola e sobreviveu intacto. Quando
Pressia para também e estuda o muro por um momento, percebe o que ele
está a ver: a marca espectral que uma pessoa deixou na parede, alguém que
estava curvado a apanhar alguma coisa quando fora vaporizada ali mesmo.
— Havia tantas marcas destas em toda a cidade — diz Bradwell.
— Algumas foram transformadas em pequenos altares.
— O meu avô costumava apontar-mas. Quando era pequena tinha
medo delas, como se fossem fantasmas escuros.
— Mas são bonitas — observa Bradwell.
— Tens razão. — Pressia lembra-se do que ele lhe disse acerca de ela
ser capaz de encontrar beleza em toda parte, mas nunca em si mesma. Olha
para seu punho da cabeça de boneca, feio, amolgado, lívido de cinza. Ele
tem razão, pensa para consigo.
O vento intensifica-se, depois acalma. Fignan posiciona-se entre as
botas de Bradwell.
— Acho que o Partridge tinha razão numa coisa — diz Pressia.
Bradwell não fica satisfeito quando se demonstra que Partridge tem
razão.
— Em quê? — pergunta, um pouco carrancudo.
— A marca no Fignan, a que tu julgaste que era um símbolo de
copyright, é pi. — Fignan acende-se ao som do seu nome. — Walrond
estava a dar-nos uma pista. Foram selecionados vinte e dois dos Melhores e
Mais Inteligentes para um cenário de fim do mundo e, desses, Willux
escolheu sete. Pesquisei pi e Fignan diz que as pessoas geralmente
expressavam pi como três vírgula catorze, mas também como vinte e dois
dividido por sete. Lembras-te quando El Capitan contou o número de
palavras nas duas mensagens da Cúpula?
— Vinte e dois mais sete é vinte e nove2 — diz Bradwell. — Mas isso
pode ser apenas uma coincidência.
— Vale sempre a pena olhar mais de perto para qualquer coincidência.
A mente de Willux continua a funcionar de modo obsessivo.
Pi é um número que se prolonga infinitamente. E, o mais importante, é
necessário para círculos. Cúpulas são círculos. Ele tinha uma obsessão por
cúpulas.
— Hum — faz Bradwell, e o som parece uma pequena concessão. —
Cúpulas. Digamos que Walrond criou uma pasta vazia para a fórmula, a
título de pista, e escondeu a fórmula propriamente dita algures. Ele diz no
vídeo que tinha de olhar para o futuro.
— Também pensei nisso — diz Pressia. — Ele teria de olhar para o
futuro para encontrar um local para esconder a fórmula que pudesse
sobreviver às Detonações. E se Willux queria poupar certos locais, os que
considerava sagrados? Foi ele o responsável pelas Detonações, a
aniquilação estratégica, portanto podia ter deixado determinados sítios
intactos.
— Walrond chamou-lhe romântico, não foi? — diz Bradwell.
— Talvez as cúpulas fossem um ponto fraco dele.
— Precisamente — concorda Pressia.
— Mas existiram cúpulas em toda a parte, em todas as culturas. Qual
era a cúpula mais sagrada?
— Suponho que é aí que a coisa corre mal. — Ela estende a mão e toca
na marca espectral.
— Willux tem uma sequência de números misturados com algumas
letras. Estou farto de a dar ao Fignan, mas não aparece qualquer
correspondência.
— Qual é a sequência? — pergunta Pressia.
— Vinte ponto sessenta e dois, quarenta e dois ponto zero três, NQ
quatro.
— Parecem coordenadas.
— Não consigo encontrar um único sítio em todo o planeta a que elas
correspondam.
Bradwell inclina a cabeça e olha para o céu. O seu pescoço é forte, a
gola está suficientemente solta para que ela possa ver as suas clavículas.
Emagreceu enquanto esteve doente, está mais seco, com as maçãs do rosto
mais acentuadas.
— Talvez não se refiram a este planeta — sugere Pressia. — Se a
fórmula está escondida algures no universo, estamos tramados.
— Há coordenadas para estrelas. — Bradwell olha para Fignan. —
Pesquisa a sequência de números que acabei de mencionar e vê se
correspondem a qualquer coisa sem ser na Terra. Lá fora, no universo:
constelações, estrelas, planetas.
Fignan zumbe discretamente, com o ovo vermelho interior a ronronar.
Pressia não sabe grande coisa sobre o céu noturno. As estrelas estão
obscurecidas por cinzas há tanto tempo que é raro vê-las. O avô desenhou-
as para ela: Orion, a Ursa Maior, a Via Láctea. Também lhe disse que havia
mitos acerca das estrelas, mas pouco mais. Por fim, Fignan ilumina-se e
projeta um modelo do céu noturno que gira lentamente. As palavras,
ascensão reta: 20.62h; declinação: + 42,03°; quadrante: NQ4; área: 804°
quad. estão escritas ao lado de uma constelação identificada como Cruz do
Norte (Cygnus).
— Cygnus? — Bradwell abana a cabeça, perplexo. — Todos os
caminhos vão dar a essa palavra.
— O que queres dizer?
— Hoje passei algum tempo a estudar o teu nome do meio — explica
Bradwell. — Brigid significa «flecha de fogo». E Brígida era o nome de
uma santa, e anteriormente deusa pagã. É associada ao fogo e era conhecida
por poesia, cura e ferraria. Inventou o apito, de todas as coisas. Foi a
primeira a carpir, uma forma de fazer luto gritando. O seu filho tinha
morrido. Metade do seu rosto era belo, metade era feio.
Pressia baixa os olhos para o chão. Sente as marcas de queimadura à
volta do olho, um ardor como se a queimadura fosse recente e um calor
escaldante estivesse a alastrar-lhe pelo rosto. Aquela descrição não se aplica
à própria Pressia: metade ela mesma, metade destruída?
— Mas acima de tudo, Pressia, o seu símbolo era o cisne.
O vento faz arder os olhos de Pressia. Leva a mão ao pendente do
cisne, que repousa na cova entre as suas clavículas. A mãe dela é que era o
cisne, não Pressia. Olha para o céu, que está ventoso e escuro, revestido de
uma gaze feita de cinzas. Sente uma intensa pontada de perda, uma
inesperada vaga de tristeza misturada com confusão.
— A tua mãe deve ter querido transmitir-te isso, por qualquer razão —
diz Bradwell calmamente. — É um bom legado. Ter essa parte dela.
— Não o quero. Que adiantou à minha mãe ser a esposa-cisne? Ser
apanhada entre dois homens poderosos? Ter de me esconder como um
segredo vergonhoso? Eu não sou o cisne. Não quero ter nada a ver com o
seu legado.
— Desculpa — diz Bradwell. — Julguei que isso podia fazer-te feliz.
Ela aponta para a luz que imagina pertencer ao quarto de Wilda:
— Se tencionamos salvar a Wilda, a única pergunta importante é por
que motivo Willux estava tão obcecado com o cisne. O que significava para
ele? É nisso que temos de nos concentrar agora. Temos de ser simples e
práticos. — Pousa a mão na marca espectral. — Disseste fogo, não foi?
Brigid é associada ao fogo, uma flecha de fogo. Willux dizia que tinha sido
forjado pelo fogo. O que significa isso?
— Não sei.
— Acho que vamos acabar por ter de aceitar que existem mistérios que
não podemos resolver. — Pressia pensa nos estúpidos poemas de amor de
Willux e naquelas malditas serpentes entrelaçadas que ele desenhara uma e
outra vez. Talvez isso seja exatamente o tipo de coisa que um jovem
perturbado rabiscaria, loucamente, sem qualquer verdadeiro motivo.
— Talvez consigamos obter respostas suficientes. Apenas as
suficientes. Foi o que Walrond disse: a caixa vai desbloquear o próximo
movimento. Não precisamos de mais nada.
— Então não estamos a fazer as perguntas corretas — afirma Pressia.
— O que tens em mente?
— Não sei. Quer dizer, pronto, se o meu nome do meio significa
alguma coisa, então e os nomes do Partridge e do Sedge?
— Sabes os seus nomes completos?
Ela abana a cabeça.
— Ingership chamou o Partridge pelo nome completo uma vez. Sei que
o primeiro nome dele é realmente Ripkard, mas não me lembro do resto.
— E o Sedge?
Ela encolhe os ombros.
Bradwell pede a Fignan que abra a biografia completa de Ellery
Willux.
Um cone de luz cintila sobre as suas cabeças, mostrando um
documento.
— Dois filhos — lê Pressia. — Ripkard Crick Willux e Sedge Watson
Willux.
— Watson e Crick — exclama Bradwell, entusiasmado.
— Que têm eles?
— Foram eles que descobriram a estrutura do ADN.
— Mas como é que isso encaixa no resto? — suspira Pressia.
— As serpentes — diz Bradwell.
— Que têm elas?
— Disseste que havia sempre duas serpentes entrelaçadas, certo? Ela
faz um sinal afirmativo.
— ADN. A dupla hélice. É assim que o ADN é estruturado.
Por qualquer razão, aquilo irrita-a.
— Isso é fantástico — comenta sarcasticamente. — Mas não adianta.
Juro que isto parece pessoal. Willux está a brincar connosco. Não basta ele
ter matado a minha mãe? — É a primeira vez que diz aquilo em voz alta.
Sente a picada de lágrimas, uma pressão a crescer-lhe no peito. Apoia a
mão à parede, tapa os olhos e tenta não chorar.
— Pressia — diz Bradwell — é normal estares zangada e sentires a
falta dela.
— Não quero falar sobre isso.
— Pois eu acho que devias falar.
— Não. — Ela destapa os olhos e pousa-os de novo na marca
espectral. Uma menina fantasma, muito provavelmente. Num momento
estava ali, no seguinte tinha desaparecido.
— Pressia — insiste Bradwell. — Estou a falar a sério. Isso vai
devorar-te viva. Acredita em mim. Eu sei.
— Tu não falas sobre eles.
— Os meus pais?
Pressia faz um sinal afirmativo.
— Senti tanta raiva, durante tanto tempo, e às vezes ainda a sinto. Mas
agora é diferente. Tive tempo.
Ela tira a mão da parede e baixa-se de modo a ficar na mesma posição
da marca espectral.
— O que achas que ela estava a apanhar?
— Talvez algo que tinha perdido e voltado a encontrar.
Pressia tenta imaginar a rapariga que foi vaporizada naquele sítio, tão
depressa que a sua sombra foi tudo o que restou dela.
Volta de novo o olhar para os dormitórios.
— Quero ver a Wilda.
— E o risco de contágio?
— Bem sei que não posso estar perto dela. Só quero ver se ela está
bem. Tu devias regressar com o Fignan e procurar mais informações acerca
de cisnes, de Cygnus e de Brigid. Tudo o que conseguirmos arranjar.
— Tens a certeza de que queres ficar sozinha? — pergunta ele.
— Sim.
— Está bem.
Ela endireita-se e começa a andar em direção ao dormitório, mas
depois detém-se. Há algo que não consegue esquecer.
— Quando estávamos... — Como formular a frase? Quando estávamos
deitados no chão frio, praticamente nus, a morrer nos braços um do outro?
Mas não tem de o dizer. Bradwell sabe do que ela está a falar.
— Sim, no bosque.
No bosque. É um alívio terem uma frase adequada. No bosque. Não
nus, não a morrer, não deitados um com o outro, pele a tocar em pele.
— Isso — diz ela —, no bosque. Eu disse comichão no joelho e tu
disseste Sol, ela vai. Sabias o que eu estava a dizer. Como sabias? De onde
vem a frase?
— O Japão era a área de interesse do meu pai. Foi assim que ele
tropeçou nas histórias de fusões por causa das bombas de Hiroshima e
Nagasaki. Eu sei um pouco de japonês e tu também, ou soubeste em
criança. Eu disse-te que a língua ainda estava dentro de ti.
— Eu estava a falar japonês? Não estava a falar de comichão num
joelho e do Sol a ir embora?
Lembra-se de ser criança logo após as Detonações; todas aquelas novas
memórias que têm vindo a surgir: as ovelhas chamuscadas, o corpo a estalar
de eletricidade, os mortos a balouçar na água. Tinha a sua antiga língua.
Estava a agarrar-se ao que sabia.
— Estavas a contar — diz Bradwell. — Estavas a dizer um, dois, três,
quatro, cinco. Eu contei contigo.

2 No original inglês, as mensagens da Cúpula têm vinte e nove palavras


cada. (NT)
Capítulo 37

Partridge
Piano

Após a saída de Iralene, ele não consegue dormir. O pensamento foge-


lhe para Lyda. A simples ideia de que o seu pai parece querer que Iralene
lhe agrade tem um sabor a traição. Onde estará Lyda agora? Estará em
segurança? As Mães estarão a cuidar dela? Ouve música de piano;
novamente a sonata. Iralene disse-lhe para seguir a música. Foi essa a sua
maneira de o ajudar. Sente uma onda de esperança invadi-lo: talvez Iralene
se revele útil. Mas também sente um medo roê-lo. Não quer ficar em dívida
para com ela.
O luar brilha através da janela. Partridge sai da cama, coxeia até à
porta, com as articulações doridas, e abana a maçaneta. Está fechada à
chave.
Iralene terá percebido que ele estava fechado no quarto? Vasculha as
gavetas de mesa de cabeceira, a casa de banho, até mesmo as dobradiças da
janela, em busca de qualquer coisa que o ajude a forçar a fechadura.
Levanta o folho da cama. Na borda do colchão há um canto de plástico
arredondado, que tem alguns centímetros de arestas direitas e espessas de
cada lado. Ajoelha-se e arranca-o do tecido.
Dirige-se para a porta, insere o plástico na fechadura. Roda a
maçaneta. A porta abre-se. Não soa qualquer alarme. Partridge pergunta-se
se pretenderão que ele saia do quarto, se isso fará parte do plano de alguém.
Receando sofrer um choque, avança lentamente para o limiar, sempre à
espera de uma sensação de formigueiro. Mas não sente nada.
Transpõe a porta. Iralene tinha dito que ele estava autorizado a andar
pela casa. Fará parte do segredo dentro do segredo dentro do segredo em
que agora vive?
Encaixa a peça de plástico na fechadura, para a impedir de trancar de
novo, e encosta a porta atrás de si.
O corredor é largo. O chão é revestido de tijoleira. Partridge dirige-se
para a escada em bicos de pés e olha para a escuridão em baixo. A música
vem do piso inferior. Ao descer a escada, descalço, os degraus perdem o
toque de tijoleira. Tornam-se mais ásperos, como cimento.
Ao fundo das escadas entra numa sala bonita, mobilada com sofás e
poltronas demasiado estofados, pinturas de quadrados coloridos, pontos de
cor. No tapete de lã branca encontra-se um pequeno cão branco, do tamanho
que cabe numa mala de senhora. Está a arquejar e a olhar para o vazio. Não
parece reparar que Partridge está ali. As pessoas tinham sido autorizadas a
levar os seus animais de estimação para a Cúpula, mas a maioria desses
animais já morreu. Os cães de tamanho miniatura são os únicos com
permissão para se reproduzir.
A sala dá para uma cozinha, onde Mimi se debruça para o fogão, de
onde retira um tabuleiro de queques.
— Recomeça do princípio, Iralene, está bem? Houve uma falha: um
bemol que devia ser um sustenido.
A música para. Partridge vira-se e vê Iralene sentada a um piano
vertical, de mogno escuro, do outro lado da sala. Ela endireita os ombros e a
música recomeça. Iralene tinha dito que não sabia tocar piano. Estaria
apenas a ser modesta?
— Bom dia — cumprimenta Partridge, dirigindo-se a Mimi, que ainda
não deu pela sua presença. — Ou será que ainda é noite?
Mimi não responde. Está a aplicar a cobertura nos queques. Partridge
tem quase a certeza de que ela não gosta dele.
Encaminha-se para Iralene. Só então pisa o tapete branco de lã. Está
descalço, mas não sente qualquer diferença entre o tapete e o chão de
cimento.
Aquilo não é real.
Estende a mão e toca no sofá. Mas a mão atravessa simplesmente ar.
No seu quarto, as imagens devem estar projetadas sobre objetos reais. Mas
aqui não há nada.
— Iralene — diz ele e toca-lhe no ombro, mas não há ombro nenhum.
Iralene nenhuma. Ela queria que ele seguisse a música; para ver aquilo com
os seus próprios olhos.
Apoia um dedo numa tecla do piano, que oferece resistência e depois
emite uma nota que se mistura com a música de Iralene. O piano é real.
Partridge martela as teclas com o punho.
— Está alguém? — grita.
Mimi tira outro tabuleiro de queques e diz: «Recomeça do princípio,
Iralene, está bem? Houve uma falha: um bemol que devia ser um
sustenido.»
O tabuleiro não contém uma nova fornada de queques. É a mesma da
primeira vez. Estão presos num circuito fechado curto. O seu pai terá criado
aquele mundo falso? Terá sido feito expressamente para Partridge? O seu
pai acharia que ele ia acreditar naquilo? Sentir-se reconfortado? Enquanto
ele estava fechado na academia, era para aquele mundo que o seu pai se
retirava? O que o irrita mais é a má qualidade do trabalho. Talvez exista
apenas para que o seu pai possa atravessar a sala e fingir por um momento
que pertence a uma família — já que, obviamente, Partridge não era
suficiente — antes de seguir o seu caminho.
— Lar, doce lar — diz Partridge para ninguém. Aproxima-se de uma
das paredes, pousa a mão sobre ela e segue-a em direção à extremidade da
imagem. As paredes são de um amarelo amanteigado, decoradas
ocasionalmente por um aplique ou um quadro, só que nada disso existe. O
que haverá para além da projeção? Talvez uma saída. Por fim, Partridge
chega a um canto que não é um canto. Corre as mãos pela parede e continua
até se encontrar do outro lado da imagem.
Dá por si num corredor mal iluminado, forrado de ambos os lados por
portas muito próximas umas das outras; um zumbido baixo estranho emana
de cada porta.
As portas estão assinaladas com placas, nas quais se lê espécimes um e
dois, espécimes três e quatro, até aos espécimes nove e dez. Daí em diante,
as restantes portas ostentam nomes gravados em pequenas placas prateadas.
Partridge lê nome após nome: são todos de mulher, tanto quanto pode
avaliar.
IRALENE WILLUX. A placa é nova, talvez porque o último nome é
novo também. Agora Iralene é sua meia-irmã, outra Willux. Por que estará
o nome dela ali? O que tem ela em comum com espécimes?
Por baixo o nome dela há outra placa: MIMI WILLUX. Esta placa
também é nova, recém-polida, brilhante, sem manchas de ferrugem ou
desgaste.
Aquilo é o que Iralene queria que ele encontrasse. O segredo dentro do
segredo dentro do segredo; em que camada de segredo está ele agora?
Partridge não quer saber o que há dentro daqueles pequenos quartos.
Bate ao de leve.
Não há resposta.
Bate de novo.
— Iralene? Sou eu, o Partridge.
Mais uma vez, não há resposta.
Ele roda a maçaneta e abre a porta.
Do quarto sai uma rajada de frio; com efeito, é o ar mais frio que ele
jamais sentiu na Cúpula. Toca na parede com a palma da mão, à procura de
um interruptor. A mão encontra um botão. O quarto ilumina-se.
E há duas cápsulas de dois metros de altura num quarto vazio. As
cápsulas estão embaciadas, o vidro acinzentado por padrões cristalinos de
gelo. Partridge aproxima-se de uma delas, esfrega o vidro com a mão. Um
rosto congelado, completamente imóvel.
Mimi Willux.
Suspensa, Foi a palavra que ela usou.
Partridge recua a cambalear, esbarrando na porta. Sem idade. É assim.
Ela poupa tempo através de preservação. Por que estará Mimi suspensa? É
assim que ela conserva um aspeto jovem? Um estado criogénico qualquer,
uma hipotermia autoinduzida?
Iralene. Ele dirige-se para a outra cápsula. Levanta a mão, ganha
coragem e limpa o vidro embaciado. A cápsula está vazia. Partridge prime a
mão sobre o vidro e percebe que não há qualquer motor a ronronar para
manter o frio.
Onde estará ela? Por que lhe terão feito aquilo? Ela é apenas uma
adolescente. Ou não será? Partridge lembra-se da reação dela quando ele
calculou que ela teria apenas dezasseis anos. Iralene e Mimi serão ambas
muito mais velhas do que aparentam?
Foge do pequeno quarto, fechando a porta atrás de si. Aquele corredor
não tem saída. Retrocede a correr pelo caminho por onde veio, com as
pernas ainda fracas. Quando encontra a extremidade iluminada da sala e se
prepara para entrar, o compartimento crepita. Há um lampejo de luz. Um
clarão brilhante. Depois a sala escurece. É uma cave. Nada mais. Ele corre
até ao meio da sala vazia. Não há portas, nem janelas. Mas agora vê um
piano enfiado debaixo da escada. Um piano verdadeiro, com teclas e pedais
autênticos, e tudo o mais. Uma versão de sonho daquele que tinha sido
esventrado na casa do diretor da prisão, onde ele estivera com Lyda pela
última vez.
Lyda. Partridge está contente por ela não estar ali. O que lhe fariam
eles?
Sobe as escadas a dois e dois. A tijoleira desapareceu. A sua porta está
aberta. Ele não a tinha fechado ao sair?
Entra no quarto, que está vazio à exceção de alguns móveis austeros:
uma cama simples, uma mesa de cabeceira, um velho candeeiro, um
guarda-fatos.
Iralene está lá, junto da janela, que está aberta mas para além da qual
não há nada: nem oceano, nem luar.
Em cima da cama vê-se uma chave de metal. A chave da coleira dele.
— Eu vi, Iralene — diz Partridge. — Vi o que eles estão a fazer.
— Não fazes ideia — replica ela. Vira-se e olha para ele. — Não
consegues compreender verdadeiramente tudo isto.
— Quem está lá em baixo? Quantos são?
Ela olha para o caixilho da janela, esfrega-o com uma mão.
— Não sei sequer começar a explicar. Há tantas coisas que eu não
devia compreender.
Partridge aproxima-se dela e pega-lhe na mão. Precisa saber que ela é
real. A mão dela está a tremer.
— Por que o fazes?
Ela fita-o como se ele tivesse obrigação de saber a resposta àquela
pergunta.
— Nós existimos apenas quando somos necessárias. O frio retarda
quaisquer danos às nossas células. A minha mãe e eu podemos permanecer
jovens.
— Para o meu pai?
Ela arranca a mão da dele.
— Para a nossa própria autoestima! Isto é para nós! Não para o teu pai,
não para ti. É para que possamos sentir-nos bem connosco próprias, como
que somos, por dentro e por fora. — A voz sai-lhe estridente e irregular da
garganta.
— Peço desculpa — diz ele. — Não queria perturbar-te.
Ela dirige-se para o guarda-fatos, abre-o e tira um fato pendurado num
cabide, depois dois sapatos pretos reluzentes, que segura pelos saltos.
— Vais precisar de te integrar. — Volta para junto dele e empurra-lhe o
fato e os sapatos contra o peito. Vira as costas e ele começa a despir-se
rapidamente.
— Sobrecarreguei o sistema com pedidos. índia, China, Marrocos,
Paris, o Nilo. Mas ele repara-se automaticamente bastante depressa. Tens de
te despachar.
Partridge veste as calças e aperta-as, enfia a camisa e o casaco sem os
abotoar. Passa a gravata pelo colarinho da camisa.
— Peúgas? — pergunta.
Ela dirige-se de novo ao guarda-fatos e vasculha a única gaveta, na
base do móvel.
— Não há. — Parece prestes a chorar. — Um descuido! Não posso
crer!
— Não faz mal. Não faz mal. — Partridge abotoa a camisa e enfia os
pés nos sapatos. Aproxima-se da cama, pega na chave, apalpa a coleira de
ferro em busca da fechadura, mete a chave e roda-a.
A coleira abre-se com um estalido. Ele atira-a para cima da cama, com
a chave ainda na fechadura, e massaja a pele irritada do pescoço.
— Podes ir pelo parapeito exterior da janela até à escada de incêndio
— diz Iralene, aproximando-se dele. Ergue as pontas da gravata e começa a
entrelaçá-las num nó. — Depois podes fugir.
— Vem comigo — diz Partridge. — Não tens de ficar aqui.
— Não posso ir.
— Claro que podes. Nem sequer tens coleira.
— Não tenho, porque eles sabem que eu nunca partiria. — Ajusta o nó
pescoço dele.
— Iralene, eles vão saber que tu fizeste o sistema ir abaixo. Vão saber
que me ajudaste a sair daqui.
— Eu estava a ser sincera quando premi aqueles botões todos. Quero
realmente ir à índia, à China, a Marrocos... — A sua voz extingue-se.
— Não confio no meu pai. Não sei o que ele irá fazer-te.
— Vai embora, Partridge. Vai.
— Não esquecerei isto, Iralene. — Partridge dirige-se para a janela,
trepa para o parapeito e, ainda agarrado ao caixilho, diz: — Obrigado.
— Foi o nosso segredo — replica ela. — Partilhámo-lo. Era nosso.
— Isso mesmo — diz ele.
— Vai.
Partridge desce pelo parapeito, pondo os pés com cuidado. As brisas
caribenhas desapareceram. O ar é novamente estático. Ele trepa para a
escada de incêndio com os reluzentes sapatos de sola fina e olha para o
cimento lá em baixo.
Levanta o olhar e vê um prédio cheio de janelas. Nenhuma delas está
iluminada.
Capítulo 38

Pressia
Estrelas

Pressia sobe rapidamente em direção às luzes do dormitório. A noite


está tempestuosa, pelo que puxa a gola para cima e cruza os braços,
escondendo o punho da cabeça de boneca, como costumava fazer no
mercado. Sente a queimadura num dos lados do seu rosto como se tivesse
acabado de a sofrer. Brigid: metade bonita, metade feia. E como se Willux o
tivesse ordenado, num certo sentido, ordenou mesmo, queimando e
induzindo mutações em todos eles. Ele foi forjado pelo fogo; o que significa
isso? Ele foi renovado. Os sobreviventes não.
Ela caminha ao longo da fachada lateral do edifício e olha rapidamente
pelas janelas iluminadas, não para espiar, mas pela necessidade de encontrar
Wilda. Numa deles, vê um soldado que está a estudar alguns papéis. Noutra,
uma cozinha, com pessoas a trabalhar num vapor tão denso que algumas
das janelas estão opacas.
Por fim, chega a uma janela apenas fracamente iluminada. Lá dentro só
se vê uma pequena cama e uma cadeira. A porta para o corredor está aberta.
Um guarda caminha para trás e para frente. Uma enfermeira dormita numa
cadeira. E lá está Wilda. Está na cama. A sua pele ainda tem um aspeto
cremoso e claro. Está a dormir, mas apesar disso, Pressia nota um tremor no
lençol.
Afasta-se da janela e escorrega ao longo da parede até ao chão frio.
Pressia sabe o que é o ADN. É a razão pela qual tem as sardas da sua mãe e
os olhos escuros, amendoados, e cabelo brilhante do seu pai. Os
sobreviventes foram alterados, afetados no próprio ADN. É por isso que os
bebés nascidos após as Detonações não nascem Puros. A dupla hélice de
serpentes e de ADN... como se relacionam uma com a outra?
Ergue o olhar para o céu. As estrelas perdem-se atrás da cobertura de
cinzas. A constelação do Cisne, Cygnus, está algures lá em cima. Ela
gostaria de a ver. Imagina como seria ver estrelas, todas as noites, tomá-las
como certas. Sabe que os marinheiros nunca as tomavam como certas.
Usavam-nas para navegar. Estrelas, com as suas constelações fixas no céu.
O avô dissera-lhe que as usavam para formular desejos e que, muitas vezes,
as mais brilhantes não eram estrelas de todo, mas sim planetas.
— Vinte ponto sessenta e dois, quarenta e dois ponto zero três, NQ-
quatro — sussurra para o ar.
Então põe-se em pé, abruptamente. Navegação. As estrelas eram
utilizadas para ajudar as pessoas a orientar-se. As coordenadas 20.62,42.03,
NQ4 não existem apenas no céu. Podem servir para orientar alguém na terra
também. A constelação de Cygnus — existirá uma cúpula na terra que
esteja associada a essas coordenadas? Aquilo são coisas que ela mal
assimila, mas Bradwell talvez as compreenda.
Começa a descer a colina em passo rápido para a casa de pedra. Os
seus pés começam naturalmente a correr. Corre tão depressa que o seu
casaco abre-se, esvoaçando de cada lado do seu tronco como um par de
asas. Brigid, o cisne, à procura de Cygnus, o cisne. Por um momento,
espera levantar voo.
Vê o pomar e luz a jorrar das janelas da casa.
Ao aproximar-se, ouve vozes vindas do outro lado da porta. Primeiro
pensa que se trata de um dos vídeos de Fignan, mas as vozes são demasiado
altas e nítidas. Ouve El Capitan, seguido pelo eco de Helmud.
Abre a porta e entra. Bradwell está de pé junto da cama, segurando
Fignan debaixo do braço. El Capitan e Helmud estão ao lado dele. De
costas para ela, falam num tom urgente.
Em cima da mesa está uma pilha das aranhas robóticas enviadas pela
Cúpula, algumas inteiras, outras em peças.
— O que se passa aqui? — indaga.
— Conseguimos um — diz El Capitan.
— Um quê?
— Olha — diz Bradwell e afasta-se do divã.
Pressia aproxima-se lentamente. El Capitan desvia-se para lhe dar
passagem.
— Considera-o um presente.
Pressia vê um dos soldados das Forças Especiais deitado na cama, com
a cabeça envolta em gaze. Tem os olhos abertos, mas parece atordoado. É
alto e magro, demasiado grande para o divã, com os pés a sair muito para lá
do colchão. Ambos os braços estão carregados de maquinaria e armas. O
seu queixo é tão largo que é como se pertencesse a uma espécie diferente. E
talvez pertença. Ele olha para Pressia e sorri. Ela diz:
— Olá.
Ele senta-se com esforço, deixando uma nova mancha de sangue na
almofada de Bradwell. Mas o esforço é demasiado e ele cai para trás.
— O que aconteceu com ele? — sussurra Pressia.
— É o Hastings, o amigo do Partridge. E está todo bom agora —
responde El Capitan. — Só tivemos de lhe tirar as escutas e o temporizador.
Uma das enfermeiras do dormitório tratou disso. Estava um pouco nervosa,
mas nada explodiu, por isso valeu a pena, certo? Quer dizer, aqui está ele.
Ele queria sair! E agora é nosso!
— Nosso — arrulha Helmud, como se estivesse a falar de um recém-
nascido.
Hastings fecha os olhos e parece adormecer.
— Que raio vamos fazer com ele? — pergunta Pressia num murmúrio.
— Não me importo de ter os seus músculos e as suas armas do nosso
lado — comenta Bradwell —, mas espero que também tenha algumas
informações naquela enorme cabeça.
El Capitan encolhe os ombros.
— Eu só estou a modos que orgulhoso. Ele é como um troféu ou algo
assim, não é? — Cruza os braços sobre o peito.
— Tu chegaste toda esbaforida — diz Bradwell. — Que se passa?
— Tive uma ideia enquanto andava lá por fora — explica Pressia.
— Sobre o quê? — indaga Bradwell.
— A fórmula. Onde pode estar escondida. É um tiro no escuro, mas...
— Ela aproxima-se da mesa, pega numa aranha e segura-a na mão. — As
estrelas são utilizadas para navegação. Vinte ponto sessenta e dois, quarenta
e dois ponto zero três, NQ quatro podem ser orientações destinadas a
alguém na terra. Existe alguma cúpula, e não apenas uma cúpula qualquer,
mas uma que seja antiga, importante, sagrada, que esteja associada às
coordenadas de Cygnus?
Bradwell junta-se a ela ao pé da mesa e pousa Fignan no tampo. Pede-
lhe que mostre a constelação. Fignan ilumina-se. Cintilam estrelas no ar
poeirento.
— Não é suficiente — afirma El Capitan.
— E que sabes tu acerca de coordenadas de estrelas? — diz Bradwell.
— Fui criado entre fanáticos radicais da sobrevivência, lembras-te?
Enquanto as outras crianças andavam a tirar fotografias com bonecos de
tamanho gigante, em férias passadas em parques temáticos, eu e o Helmud
estávamos a aprender a enterrar armas, com a breca! Sei como seguir rastos
e caçar, fazer lume, afastar predadores. Sei como registar o que é comestível
e o que mata. Tudo girava à volta de um regresso ao básico. De nos
prepararmos para o fim do mundo. E os especialistas em sobrevivência
sabem algo sobre estrelas.
— Cygnus é uma constelação importante. É também conhecida como
Cruz do Norte e é enorme. — El Capitan aponta para imagem do cisne
apresentada por Fignan. — Todos os dias a constelação traça uma forma
enorme no céu. Abrange muito terreno. Seria preciso saber as coordenadas
de um dia específico num momento específico. — El Capitan estica a mão
para trás das costas, pega no canivete de Helmud e põe-se a limpar a unha
do polegar. — Ou então seria preciso especificar uma só estrela da
constelação, algo que descreva um percurso menor. Isso ajudaria a reduzir a
área de busca por cúpulas sagradas.
Fignan mostra uma série de cúpulas e constelações em rápida
sequência; passam rapidamente através do cone de luz, como um molho de
papéis soprado pelo vento.
Hastings geme e debate-se um pouco, mas não desperta.
Pressia afunda-se numa cadeira puxada para junto da mesa, que está
coberta de fios de aranhas robóticas, pequenas articulações com rolamentos
de esferas, revestimentos de metal, raios e os visores digitais em branco.
— Por que trouxeste tudo isto para aqui? — pergunta a El Capitan.
— Costumavas construir coisas, não era? Pensei que podias gostar de
tentar algo novo.
Pressia pensa nas próteses e nas criaturas feitas à mão: borboletas,
tartarugas, lagartas.
— O que tens em mente?
— Que tal transformar esses patifes outra vez em armas desenhadas
por nós? — diz El Capitan.
Pressia olha para os rostos das meninas fantasma que forram as
paredes. Willux. Will-ux. Will-ux.
— Está nas notas da Willux — diz ela. — Tenho a certeza. Todas
aquelas aves e espirais rabiscadas, e aqueles estúpidos poemas
choramingas. Está nas partes confusas, que não fazem sentido.
El Capitan ri-se.
— Willux rabiscava aves e escrevia poemas? O maior assassino em
massa da história? Tenho de ver isso. Fignan!
— A sério, Cap — atalha Bradwell. — Agora não temos tempo para
gozar com Willux.
— Não — diz Pressia, levantando-se devagar. Está a tentar lembrar-se
do poema: no topo do céu, a verdade escrita, uma asa, algo sagrado!
— Fignan, quero ver o poema. O poema de amor acerca de a voz dele
ser tímida e do belo rosto dela...
Fignan procura nas suas bases de dados. Passa para a imagem de uma
página do bloco. E lá está.
Pressia lê em voz alta:
«Ela desperta todos os dias para o topo do céu, / A roçar sobre o
monte sagrado com a ponta da asa. / Dir-te-ia isto, mas a minha voz é
tímida / Porque a tua beleza é, também, uma coisa sagrada.»
— Que doçura — comenta El Capitan.
— Doçura — Helmud.
— Ela desperta todos os dias, como as constelações, para o topo do
céu — diz Bradwell.
— O monte sagrado — diz Pressia. — É esse o sítio!
— E que é aquilo escrito por baixo? — indaga Bradwell.
— Outra versão do verso, Dir-te-ia isto, mas a minha voz é tímida, que
passa a ser: A verdade está escrita lá nas alturas — responde Pressia. —
Fignan, mostra-nos Cygnus outra vez.
O bloco desvanece-se e a constelação reaparece. Pressia observa as
pontas das asas do cisne.
— Esta sobressai. Tem a ponta maior do que a outra — diz, apontando
para uma das asas, marcada com um K. — Como se chama esta, Fignan!
Fignan lança-se numa descrição de uma estrela conhecida como Kappa
Cygni, que se desloca ao longo do quinquagésimo terceiro grau de latitude
Norte. O seu percurso descreve uma faixa com cento e dez quilómetros de
largura em redor do mundo, passando sobre Dublin, na Irlanda, Liverpool,
Manchester e Leeds, na Inglaterra, Hamburgo, na Alemanha, Minsk na
Bielorrússia, e diversas cidades russas.
— Fignan, vamos procurar correspondências entre a latitude cinquenta
e três graus Norte e locais classificados como Património da Humanidade
— pede Bradwell. — Vejamos que tipos de montes sagrados aparecem.
Fignan começa a zumbir, pesquisando dados. Surge um mapa, no qual
começam a aparecer locais assinalados com luzes verdes: quatro no Reino
Unido, dois na Alemanha, um na Polónia, um na Irlanda e dois na
Bielorrússia.
— Dez? — comenta Pressia. — Isso são cerca de nove mais do que eu
queria.
— Fignan — diz Bradwell —, filtra os que não forem verdadeiramente
antigos, incluindo mesmo os medievais, e depois procura apenas cúpulas.
Nada de castelos, campos de batalha importantes ou cidades.
As luzes verdes na Alemanha desaparecem, depois a da Polónia,
depois as duas na Bielorrússia. Uma a uma, as luzes no Reino Unido
apagam-se até restar apenas uma: a da Irlanda. Fignan amplia um local
chamado Newgrange. Todos se inclinam para a imagem. Aparece um monte
coberto de relva e forrado de pedra branca.
Uma cúpula.
Então, como fazia quando lhe diziam cada nome correto dos Sete,
Fignan acende uma luz verde brilhante: confirmação.
— Acertámos, Fignan? — pergunta Pressia. — Walrond programou-te
para nos dares essa luz verde? É isso que significa?
Ele acende a luz verde de novo.
— É isso! — exclama Pressia. — Newgrange!
— Mas fica do outro lado do oceano — observa Bradwell. — Que
diabo estava Walrond a pensar?
— Talvez estivesse a pensar que não tinha muitas opções — replica
Pressia.
— Precisamos de um navio ou de um avião para lá chegar — diz El
Capitan.
— Lá chegar — repete Helmud.
Pressia olha para os rostos que forram as paredes. Aquilo não pode ser
um beco sem saída. Os rostos olham fixamente para ela. Estão a dizer-lhe
para continuar, para não desistir.
— O que podemos fazer? — pergunta. — Tem de haver alguma coisa.
— O quê? Construir um avião ou um navio suficientemente resistente
para atravessar o Atlântico? — replica Bradwell.
El Capitan esfrega a parte de trás do pescoço e suspira. Helmud suspira
também.
— Mas já existe um dirigível — diz Pressia.
— Como assim? — pergunta Bradwell.
Pressia olha para a cúpula suspensa no ar:
— Lembram-se de como a primeira Mensagem veio ao nosso
encontro? Poucos dias depois das Detonações, tiras de papel chegaram a
pairar vindas do céu. Ouvimos o ruído distante de um dirigível. O meu avô
disse sempre que tinha visto o bojo da aeronave a baixar do céu escuro,
apenas uma vez. Um casco. Ele viu-o. O dirigível existe.
— Muito bem — diz Bradwell. — Mas onde poderemos encontrá-lo?
Como diabo vamos deitar a mão a esse dirigível?
A sala mergulha em silêncio por um momento, depois ouve-se uma
voz. Uma voz profunda como um bombo.
— A minha cabeça — diz Hastings, e senta-se na pequena cama. Apoia
as botas pesadas no chão, inclina-se com os cotovelos sobre os joelhos. —
Tenho mapas na cabeça.
Capítulo 39

Partridge
Flocos De Neve De Papel

As ruas estão vazias. Partridge corre ao longo dos passeios estreitos


sob as luzes baixas do Teatro Mitchard, passando pelo Café Bom Dia e
pelos complexos habitacionais da elite — o Oakes, o Hawks Rise, o
Wenderly. Encontra-se no segundo nível, chamado Superior Dois, que é
muito melhor do que o Superior Um. Dali vê Betton Oeste, onde ele, o seu
pai e Sedge tinham vivido. Dispunham de uma varanda e de acesso privado
ao terraço no telhado.
Há recolher obrigatório e guardas que fazem rondas de segurança. A
única razão que justifica andar na rua àquela hora é uma emergência,
alguém que vá direito para o centro médico no Nível Zero, que alberga
também a Academia, para onde Partridge tem de ir. Os níveis acima do
Zero não chegam aos limites exteriores da Cúpula. Para efeitos de luz e
circulação de ar, os Superiores Um, Dois e Três são rodeados a toda a volta
por paredes de vidro espesso. Ele avista a orla daquele nível, o vidro curvo
que o delimita, mais à frente. Para chegar ao Zero, tem de chegar ao centro
da Cúpula, a um conjunto de elevadores. Mas há câmaras montadas nos
cantos de cada elevador. Seria preferível esperar pela hora de ponta matinal,
para poder confundir-se com a multidão, ou isso seria ainda pior? Há um
elevador privativo, usado pelo seu pai e outros oficiais superiores. Partridge
andou nele algumas vezes com o pai, uma delas para assistir ao pequeno
memorial em honra de Sedge. Mas esse é fortemente guardado.
Partridge mete rapidamente por um caminho pouco iluminado, apenas
com largura suficiente para permitir a passagem de um carro elétrico.
Mantém-se na sombra de um prédio de apartamentos, atento ao eventual
zumbido do motor elétrico de um carro da segurança.
Mas os únicos sons que se fazem ouvir são a sua respiração, o ranger
dos seus sapatos no cimento e o silvo ocasional do monocarril que percorre
a sua espiral através de cada um dos níveis da Cúpula.
Passa por um restaurante chamado Smokey. Já lá comeu pelo menos
uma centena de vezes. A comida que serve é alegadamente verdadeira, mas
soube-lhe sempre a produto industrial: soja processada para ter uma textura
de carne nos dentes, incluindo até bocadinhos de nervos manufaturados. No
entanto, era melhor do que as pílulas de soytex. As massas que habitam o
nível Um nunca têm oportunidade de comer lá, exceto numa lua de mel, por
exemplo. A sua decoração nunca muda, nem o pessoal ou os menus.
Partridge ouve um barulho estranho atrás de si. Vira-se e olha em
redor, mas não há nada além de um candeeiro de iluminação pública e de
uma traça a esvoaçar à volta da lâmpada. Uma traça? As aves por vezes
fogem do aviário. De vez em quando vê-se um dardejar de asas ou até um
ninho verdadeiro, construído sobre uma árvore falsa. Mas não há
complacência para os insetos. Os pavimentos estão carregados de
pesticidas. Trabalhadores de fatos brancos, com botijas de veneno às costas,
fazem rondas incessantes. Uma traça é uma raridade e isso enerva-o, talvez
simplesmente porque não está tão completamente sozinho como julgava.
Recomeça a correr, passa por uma lavandaria, por uma farmácia, por
um ginásio. Por fim chega a uma fila de janelas que parecem ondular de
branco: uma escola primária com flocos de neve em papel colados aos
vidros. Alguns são complicados e quase rendados. Outros são volumosos e
mal cortados. Mas todos tremulam ao ar condicionado, como se estivessem
vivos, a respirar.
Aquele era o presente que ele ia dar a Lyda. Ele dissera: «Flocos de
neve de papel. É quanto basta para te fazer feliz?» E ela sussurrara: «Sim. E
tu.» E tinha-o beijado. Ele recorda a suavidade dos seus lábios. «E isto.»
Tem saudades dela. A dor é aguda, como quando se sofre um golpe. Ele já
está sem fôlego e agora sente-se pouco firme.
Sai do caminho e atravessa o Parque Bellevue. A sua relva artificial
está impecavelmente bem tratada. Partridge recorda a si próprio que o
terreno não tem olhos, nem dentes, nem garras. É uma relva falsa,
inofensiva. Foi com aquele chão que ele cresceu. As árvores nunca
crescem, as folhas nunca mudam de cor. Estão exatamente iguais ao que
eram quando ele e Sedge brincavam aos jogos de guerra, revezando-se nos
papéis de desgraçado e soldado. Sedge era bom rapaz, fazia o que lhe
diziam, nunca choramingava, nem se recusava a ir deitar-se a horas. Nunca
tinha desembrulhado um presente e dito «Não foi isto que pedi», como
Partridge fizera algumas vezes. Partridge era rabugento. Julgava-se rijo,
mas chorava com facilidade. Fazia demasiadas perguntas, olhava fixamente
para os estranhos. Se alguém lhe oferecia doces, tirava tantos quantos
podia. Tudo apenas pequenos crimes, mas que se iam acumulando. Sedge
dizia a Partridge para ser mais rijo, tentava ajudá-lo a integrar-se, a não se
meter em sarilhos, e simplesmente a crescer, a aguentar a infância. Não faz
sentido que Partridge tenha sobrevivido e Sedge não.
Não se tinha apercebido de quão difícil seria regressar à Cúpula depois
de perder Sedge e a mãe, depois de deixar Pressia e os outros,
especialmente Lyda.
Ouve o zumbido suave de um motor atrás dele. Um carro elétrico
equipado com um holofote. Desliza para trás de um canteiro de choupos,
enquanto o holofote espreita através das árvores e segue viagem. Partridge
consegue ver o motorista. A sua barriga mal cabe no habitáculo, quase toca
no volante. Quem conheceria aquele homem para ter conseguido um lugar
na Cúpula? Ocuparia outrora um cargo importante, que lhe valeu um
pequeno apartamento para a sua família e um emprego a conduzir um
carrinho de golfe?
Partridge afrouxa a gravata. Fazer nós de gravata teria feito parte da
educação de Iralene? Desejaria ter conseguido convencê-la a ir com ele.
Não confia no seu pai, nem em Mimi. As filas de portas... vê-as na sua
mente. Espécimes. De que tipo? E com que finalidade?
Sente algo fazer-lhe cócegas no tornozelo nu. Coça e um grande
escaravelho preto cai de costas no chão, com as pernas a agitar-se no ar.
Outro inseto? Partridge vira-o com a ponta do sapato. O escaravelho emite
um clarão vermelho fraco e foge a correr. Seria parcialmente robótico,
como as aranhas enviadas pela Cúpula? Partridge não sabe ao certo o que a
traça e o escaravelho significam. Talvez façam parte dos mais recentes
dispositivos de espionagem do seu pai, destinados a recolher informações e
manter a obediência.
Agora ouve vozes. Esconde-se atrás de uma sebe que reveste a rede de
aço em torno dos campos de ténis. Dois guardas vêm a subir o caminho.
Um repousa uma mão sobre a sua lanterna. As suas chaves tilintam.
— Ele é capaz de lançar uma espiral perfeita. Cinco anos de idade.
Perfeito. Eu jogava, sabes.
— Todos sabemos. — Os guardas estão tão perto que Partridge pode
ver o brilho dos seus sapatos.
— A sério, o miúdo podia ser bom. E agora? Não há competição, não
há treino. Digo-te que somos todos apenas...
— Cala-te — atalha o outro guarda, estacando subitamente. Partridge
sustém a respiração. O guarda olha em volta. Partridge sente o sangue a
latejar na cabeça. Então o guarda diz:
— Alguém podia ouvir-te aqui fora. Diz o que te apetecer a ti mesmo,
no duche. Mas não aqui fora. Não a mim.
Os guardas seguem caminho em silêncio.
Partridge exala. Como diabo vai chegar à Academia sem ser visto?
Sente algo pousar-lhe no ombro; outro escaravelho? Não: é uma mão,
pálida, com dedos compridos e delicados.
— Partridge. — Um rosto parece quase flutuar para dentro do seu
campo de visão. Um rosto de rapaz, magro e sardento.
— Quem és tu?
— Vinty Firth.
— Vinty Firth? — Algrin Firth era amigo de Vic Wellingsly e sempre
odiara Partridge, mas o nome do pai dele estava na lista da sua mãe de
membros do Cygnus. Partridge lembra-se de Algrin a falar de Vinty. Os pais
estavam angustiados porque receavam que Vinty fosse demasiado débil
para entrar na Academia.
— Sim, sou eu — diz Vinty. — Eu sabia que havíamos de te encontrar!
— Já estás na Academia? — pergunta Partridge, como se esse tipo de
coisa ainda tivesse importância.
— Primeiro ano.
— O que estás a fazer aqui?
Vinty olha rapidamente em redor.
— Tens de vir comigo. Já.
De que lado estará Vinty? Partridge pergunta-se se a traça e o
escaravelho já terão transmitido a sua localização para algum sistema
gerido pelo seu pai. Se assim for, para quê enviar um fracote como Vinty
Firth?
— Olha, eu não vou ser arrastado para o meu pai. Podes dizer-lhe
isso...
— Não é para o teu pai — afirma Vinty. — Isto é o Cygnus. Nós
somos o Cygnus. Temos estado à tua espera.
Capítulo 40

Partridge
Em Baixo

Vinty parece saber que o guarda no carro está a aproximar-se muito


antes de Partridge o ouvir. Empurra Partridge por um beco entre duas lojas,
e o carro passa a zumbir. Vinty mantém a mão levantada, indicando, espera,
espera, espera. O zumbido desvanece-se e os dois jovens retomam o seu
caminho.
Partridge começa a fazer perguntas, mas Vinty limita-se a levar o dedo
aos lábios e a prosseguir em passo rápido. Partridge tenta mais algumas
vezes, formulando perguntas diferentes, curvando-se para sussurrar, mas
Vinty abana sempre a cabeça.
O rapaz leva-o ao centro de elevadores da Cúpula, oculta as feições,
precipita-se para os elevadores e prime o botão de chamada mais próximo.
Os elevadores vêm e vão. Abrem as portas, mas Vinty não se mexe. As
cabinas estão vazias. Vinty prime novamente o botão.
— Quando chegar o elevador certo, agacha-te bem.
Por fim, abrem-se as portas de um dos elevadores do meio. Vinty faz
sinal a Partridge.
Lá dentro encontra-se um homem corpulento, a respirar com
dificuldade, e uma mulher baixa. Os seus cotovelos estão entrelaçados de
tal forma que Partridge os imagina fundidos naquela posição. As bochechas
do homem estão afogueadas e o seu peito é atormentado por ataques de
tosse. É evidente que vai a caminho do centro médico, no nível Zero. Vinty
empurra Partridge para entrar no elevador, mas Partridge não quer: um
potencial contágio é objeto de particular receio na Cúpula e esse velho
medo acaba de despertar de novo. Além disso, para quê apanhar um
elevador ocupado?
Mas depressa percebe que aquilo foi combinado. O homem finge-se
irritado por as portas terem aberto naquele nível, queixa-se à mulher entre
ataques de tosse — tudo enquanto o seu corpo largo e o seu casaco
comprido impedem a câmara de captar Vinty e Partridge, que se agacham e
entram imediatamente antes de as portas fecharem. Estão tão apertados
contra o homem que Partridge consegue cheirar a sua loção de barba e o seu
talco medicinal.
Não param no Superior Um, onde vivem as massas. Grandes prédios
de apartamentos, escolas, alguns pontos de lazer, lojas, bem como o centro
de reabilitação para pacientes psiquiátricos, onde Lyda esteve presa.
Mas quando chegam ao Zero, o homem e a mulher saem devagar,
escondendo Vinty e Partridge habilmente até saírem da fila de elevadores.
Quando viram à direita, em direção ao centro médico, Partridge e Vinty
correm a toda a pressa para a esquerda, em direção à Academia.
Esta fica a poucos quarteirões de distância. Além da Academia e do
centro médico, o nível Zero alberga ainda quintas e pastagens, habitações
para os trabalhadores de nível inferior, equipamento, instalações de
processamento de alimentos, laboratórios de saúde e ciências, fábricas de
medicamentos, o quartel-general da segurança e o Jardim Zoológico. A
Jaula da Jaula. Se fosse permitido seguir os campos agrícolas até ao fim,
chegar-se-ia à parede real da Cúpula — a que está em contacto com o
mundo exterior.
É época de exames, imediatamente antes das férias de Natal, pelo que a
Academia está em silêncio: nada de música a partir das sete da tarde, vozes
abafadas nos corredores, nada de desportos ou jogos. Mesmo assim, o local
permanece cheio de vida, carregado de memória. O mais estranho é que,
quando entram no primeiro corredor, Partridge sente o seu antigo eu
transportado até si através do cheiro: corpos suados e turbulentos, os
pedacinhos de borracha trazidos dos campos de relva artificial, a cera
aplicada nos pavimentos e corrimões, um produto de limpeza adstringente.
Inspira profundamente.
Sentir-se-á em casa?
Não, mas aquilo faz parte de si. É a sua infância, de certa forma. Tinha
entrado na Academia aos doze anos: uma admissão precoce. Era mais ou
menos do tamanho de Vinty Firth, que o conduz de corredor em corredor.
Partridge chegara inocente àqueles corredores: um rapazito que, à noite,
ainda contava a si próprio o conto de fadas da sua mãe acerca da mulher
cisne. E agora?
Os corredores estão debilmente iluminados pelas luzes de segurança.
Eles caminham rapidamente pela passagem forrada com os retratos a óleo
dos diretores. Partridge vê o que ocupava o cargo quando Sedge
supostamente havia morrido. Chamara Partridge ao seu gabinete e dera-lhe
a notícia. «Vai ficar tudo bem, filho. Ele não nos acompanhará na nossa
jornada para o Novo Éden, mas está no paraíso de Deus.» O paraíso de
Deus... ao contrário da reinvenção do seu pai? Isso foi antes de Partridge
saber que o seu pai gostava de se armar em Deus.
Partridge sente um impulso de abrir as portas ao seu antigo dormitório,
precipitar-se pelo corredor, saltar e tocar no sinal de saída preso ao teto —
um velho hábito —, meter a cabeça no quarto de Weed e gritar: Importas-te
que depois veja os teus apontamentos?, seguir para o seu próprio quarto e
encontrar Hastings a pentear o cabelo molhado diante do espelho. Deixar-
se-ia cair no seu beliche, a tentar convencer Hastings a ir jogar à bola no
campo de jogo, embora Hastings tivesse acabado de sair do banho. Não
adianta pensar em nada disso agora. Tudo se foi.
— Para onde vamos, Vinty?
Vinty responde:
— Lá para baixo.
Como se isso ajudasse. Passam pelos gabinetes dos professores, com as
janelas tapadas por persianas corridas. Partridge vê a porra do Sr. Glassings,
a placa de metal com o seu nome, e é inundado por uma sensação de alívio.
Dá-lhe alguma esperança de que Glassings não tenha desaparecido.
Vinty passa também pelos laboratórios de ciências. Por fim, chegam à
sala de teatro. Vinty abre uma porta que dá para os bastidores e sobe um
pequeno lanço de escadas. Partridge nunca tinha estado nos bastidores. Não
participara em qualquer espetáculo, coro ou banda. Nunca ganhara qualquer
prémio. Lyda fazia parte do coro. De facto, fora a sua maneira de cantar no
concerto de primavera que o fizera reparar nela pela primeira vez. Havia
duas dúzias de raparigas ou mais, mas ela era diferente. Inclinava a cabeça
ao cantar e fechava os olhos, como se estivesse a sentir a música de uma
forma de que as outras raparigas não eram capazes.
Com as cortinas fechadas, o espaço parece acanhado e abafado. Um
pouco de luz infiltra-se por baixo do palco, através das frestas entre as
tábuas do soalho. Partridge tenta lembrar-se da canção que o grupo de Lyda
tinha cantado. Era uma velha canção acerca de querer um bocado do sonho
americano. Seria feminista? Seria uma maneira de as raparigas dizerem que
queriam mais? Ele nunca teria pensado nesse género de coisa naquela
altura, mas Lyda pensaria, de algum modo, não? O facto de ela não o ter
seguido ainda o surpreende. Ela modificou-se lá fora.
— Por aqui — sussurra Vinty.
Partridge segue Vinty através de um cenário de cartão, representando
uma casa de campo. Passam por algumas luzes.
Vinty acocora-se e abre um alçapão. Descem uma escada para baixo do
palco, que é o que Vinty entendia por lã para baixo. Partridge receia
subitamente ter sido conduzido a uma armadilha. Tinha mencionado
Glassings a Iralene. Ela tê-lo-ia denunciado?
Bolas. Vinty conhecia a palavra Cygnus e por isso Partridge seguira-o à
confiança.
Há luz num canto da sala, o que explica a claridade que passa entre as
frestas das tábuas do palco. Embora não faça sentido, Partridge tem medo
de ir encontrar o pai ali, no meio de caixas, cadeiras desdobráveis, pequenas
mesas, latas de tinta e pincéis, castiçais, um sortido de chapéus: os restos do
que poderia ter sido uma casa.
Diante dele encontram-se duas poltronas de orelhas. A que está virada
para Partridge está vazia, mas ele tem a certeza de que a outra está ocupada.
Pressente a presença de alguém. Entre as duas cadeiras vê-se um barril de
madeira, apoiado na vertical. Sobre ele repousam um candeeiro e um
pequeno terrário de vidro cheio de escaravelhos. O tipo de escaravelho que
Partridge sacudiu do tornozelo.
Partridge olha interrogativamente para Vinty.
— Está tudo bem — diz este.
Partridge avança, com o coração aos saltos no peito, e senta-se
calmamente, como se não tivesse medo nenhum.
E ali, de frente para ele, está Durand Glassings, o seu antigo professor
de História Universal.
— Professor Glassings — diz Partridge. — Graças a Deus que é o
senhor.
Glassings faz um sorriso rasgado, inclina-se para a frente e pega na
mão de Partridge, mas apenas para o fazer levantar e envolver num abraço.
— Jesus, Partridge, julguei que nunca mais te via. — Aperta-o com
força. — Tenho tanta pena pela tua mãe e por Sedge.
É a coisa mais estranha, mas Partridge sente que tem estado à espera
daquele momento sem o saber. Começa a chorar. Gostaria de conseguir
fingir que não, mas a respiração sai-lhe aos arrancos dos pulmões.
Tem estado à espera que alguém lhe diga que lamenta, alguém como
um pai. E percebe que é isso que Glassings é para ele naquele momento.
Talvez seja isso que ele sempre foi: como um pai para ele.
— Anda, senta-te — diz Glassings em voz baixa, libertando Partridge.
Este senta-se e limpa os olhos. Os de Glassings também cintilam com
lágrimas, embora ele esteja a sorrir.
— Raios, Partridge. Estou feliz por estares aqui. Olha para ti. Como foi
isso lá fora? Conta-me.
Partridge dá-se conta de que é a primeira vez que alguém lhe pergunta.
Isso não devia surpreendê-lo. A gente da Cúpula nunca quer pensar
verdadeiramente nos que vivem lá fora, mas a questão não o apanha de
surpresa.
— É sujo, escuro, coberto de fuligem, perigoso, mas, não sei, os
desgraçados não são desgraçados. São pessoas extraordinárias, que
sobrevivem, dia após dia, em circunstâncias brutais. — Reflete mais um
momento e Glassings espera pacientemente. — É real — diz, por fim. — E
real é bom.
— Bem, conseguiste sair da Cúpula e regressar inteiro — diz
Glassings.
— Não inteiramente — responde Partridge. Tira a cobertura que lhe
tapa o mindinho c mostra a Glassings o ponto onde foi cortado.
— Como é que isso aconteceu?
— Suponho que se pode dizer que foi um pagamento que tive de fazer.
— Partridge repõe a cobertura — O meu pai gostaria que voltasse a crescer.
— O teu pai. — A expressão de Glassings torna-se sombria.
— Bem, é o homem certo para o conseguir. — Vira-se para Vinty:
— Podes ir, Vinty. Obrigado por o teres trazido.
Vinty faz menção de subir a escada, mas depois para e diz a Partridge:
— Sempre me perguntei como serias em pessoa.
— Eu?
— Claro! Quem havia de ser?
— E sou o que esperavas?
Vinty põe a cabeça de lado e diz:
— Não tinha a certeza de que fosses capaz, mas agora tenho.
— Capaz de quê? — pergunta Partridge, olhando para Glassings. Mas
Vinty corre pelas escadas acima, fechando o alçapão atrás de si.
— A minha mãe disse-me algumas coisas antes de morrer, que estavam
a planear eu tomar o poder a partir de dentro. É a isso
que o Vinty se refere? Passaram este tempo todo à espera de um sinal
de que eu estava pronto? Não fazia ideia.
— Estás pronto agora, Partridge?
— Como faço para liderar a partir de dentro?
— Não vai ser fácil. — Glassings baixa os olhos para as mãos e
Partridge tem a impressão de que ele tem algo a dizer-lhe, mas não
consegue suportar fazê-lo.
— Como podemos começar uma revolução na Cúpula? — pergunta, na
esperança de que que Glassings tenha um plano.
— Uma revolução? — Glassings meneia a cabeça e olha para ele. —
Ouviste alguma das minhas aulas, Partridge?
— Sem ofensa, mas o senhor não falava senão de culturas antigas.
Nada disso parecia aplicar-se à minha vida.
— Eu estava a tentar preparar-te, sem fazer disparar qualquer alarme.
Escolhia as minhas palavras com cuidado. Escrevi aulas inteiras
especificamente para ti.
— O que deixei escapar acerca de revoluções? Diga-me.
— As revoluções são geralmente iniciadas por pessoas que têm fome.
Claro que existem revoluções ideológicas, mas, mais uma vez, as pessoas
revoltam-se porque sentem que a alternativa já não é tolerável. Têm de estar
desesperadas.
— Está a dizer que as pessoas aqui não estão desesperadas? Julgo que
está enganado. — Iralene é uma das pessoas mais silenciosamente
desesperadas que ele jamais conheceu. — Acho que estão e só não têm
consciência disso.
— Oh, as pessoas estão desesperadas, sim, mas tanto que se agarram
àquilo que têm.
— Se soubessem a verdade — diz Partridge, pensando em Bradwell.
Desejaria que Bradwell estivesse ali com ele. — Se pudessem ver o que eu
vi lá fora, se soubessem realmente tudo o que o meu pai fez ao mundo,
revoltar-se-iam contra ele. Revoltariam. Sei que sim.
Glassings recosta-se na cadeira. Agora que olha para a peça de
mobiliário, Partridge apercebe-se de que não se trata apenas de uma
poltrona de orelhas. É um adereço que representa um trono.
— Não compreendes, pois não? — pergunta Glassings.
— O quê?
— Todos os adultos da Cúpula sabem a verdade — declara Glassings.
— As coisas que ensinamos na Academia não passam de histórias da
Carochinha. Todos sabemos a verdade, Partridge. Todos a carregamos
connosco.
Capítulo 41

Pressia
Sonho

Bradwell dorme e Fignan repousa junto do pequeno aquecedor,


absorvendo energia, mas Pressia está a trabalhar nas aranhas. Cada uma
delas tinha sido criada com explosivos incríveis. Pressia desmontou-as e
transformou-as em pequenas granadas de mão. Escreveu instruções numa
nova pedra e construiu três protótipos.
De manhã partirão, seguindo os mapas que Hastings tem na cabeça, em
busca do dirigível. Mas ela queria deixar aquelas instruções. O relvado do
antigo colégio interno está repleto de tendas, de pessoas que, com a
formação adequada, podem pegar em todas as aranhas robóticas removidas
dos corpos dos sobreviventes e produzir uma grande quantidade daquelas
munições. Por que não pô-las a trabalhar? Além disso, ela estava com
dificuldade em dormir, pelo que se pôs a trabalhar também.
Bradwell era de opinião que El Capitan e Helmud deviam ficar, e El
Capitan pensava o mesmo relativamente ao próprio Bradwell. Pouco antes
de El Capitan e Helmud partirem com Hastings para irem dormir, os dois
discutiram por causa disso.
— Eles precisam que estejas aqui a comandar as coisas — dissera
Bradwell.
— Tu podes desempenhar esse papel. Ainda não estás com saúde para
fazeres esta viagem.
— Não vou ficar fora disto.
— Nem eu — retorquira El Capitan.
— Nem eu — ecoara Helmud.
— Se encontrarem o tal dirigível, vão precisar de um piloto — dissera
El Capitan a Bradwell.
— Um piloto — repetira Helmud, com uma certa surpresa na voz.
— O meu pai foi afastado da força aérea por motivos psiquiátricos e
desapareceu — contara El Capitan —, mas eu passei a minha infância a
aprender tudo o que podia sobre pilotagem e a jogar em simuladores. Não
tenho uma única recordação do meu pai, mas sei que temos duas coisas em
comum. Voar e ser louco.
— Louco — dissera Helmud.
— Um piloto louco? Isso não é exatamente ideal — resmungara
Bradwell.
— A sério — interviera Pressia —, quais são as probabilidades de que
o dirigível funcione como um dos velhos simuladores de voo com que
jogaste em criança?
Mas El Capitan recusara-se a dar-lhe ouvidos:
— É melhor ter alguém que saiba algo acerca de voar. Seria uma pena
encontrar o dirigível e não saber distinguir o lado de estibordo da popa.
Talvez Fignan também possa ajudar. Como copiloto.
Fignan fizera girar orgulhosamente as suas luzes.
Quando El Capitan dera as boas-noites e saíra para conduzir Hastings
até aos dormitórios, Bradwell gritara-lhe da porta:
— Então partimos todos juntos! Vemo-nos de manhã!
El Capitan limitara-se a acenar em sinal de rendição, sem olhar para
trás, e a discussão ficara por ali.
Pressia põe-se em pé, estica as costas e passa mais uma vez revista às
coisas que tem na mala. Desembrulha os frascos, dispõe-nos sobre a mesa e
ergue cada um deles, um por um, de modo a captarem a luz. O líquido
rodopia, cintilante e ambarino. Ela não pode deixar de pensar na sua mãe:
uma cientista, e brilhante. Mas de que lhe serviu a sua mente lógica? Ivan
Novikov tinha-a beijado. Provavelmente eram namorados quando ele
morreu. De algum modo, talvez aproveitando o desgosto dela, Willux, o
assassino de Ivan, conquistara-a e ela tinha casado com ele. Terá acabado
por descobrir, como aconteceu com Walrond, que Willux matara Ivan?
Talvez fosse isso que a levara para os braços de Imanaka, o pai de Pressia.
Pressia tem a certeza de uma coisa: a sua mãe nem sempre fazia o que era
racional e lógico. Era levada a fazer escolhas dando ouvidos ao coração,
não à cabeça. Por fim, essas decisões tinham-na matado.
Pressia recusa-se a cometer os mesmos erros, independentemente do
que sentiu quando estava deitada com Bradwell na floresta.
Agora tem de proteger o legado da sua mãe. Sem aqueles três frascos,
não haverá qualquer cura — para ninguém.
O pano que Partridge lhe deu para embrulhar os frascos não parece
suficientemente grosso para uma viagem tão perigosa e possivelmente fatal.
Ela corta um retângulo de lã de um cobertor e usa-o como forro adicional,
antes de os envolver no pano.
— Estás a pé — diz Bradwell, com a voz rouca de sono.
— Acordei-te? Desculpa.
— Não, não. — Ele senta-se na cama e esfrega a cabeça.
— O que devemos fazer com os mapas da Cúpula, de Partridge e
Lyda? — pergunta ela.
— Acho que devíamos deixá-los aqui, onde ficam em segurança.
— Também me parece.
Bradwell olha pela janela.
— Alguma vez pensas no Partridge?
— Espero que não esteja a ficar demasiado confortável — responde
Pressia.
— Ele é um Puro. Posso abstrair-me disso, mas não deixa de haver um
abismo entre nós. Não sei se conseguiremos jamais ler-nos um ao outro.
— E quanto a mim? — Pressia pega nos frascos e prende-os
gentilmente ao corpo.
— Confio em ti.
— Mas achas que consegues ler-me?
Ele sorri.
— Não.
— Qual é a graça?
Ele afofa a almofada e repousa a cabeça sobre ela.
— Foi o sonho que acabei de ter. Tu entravas nele.
— Que sonho foi?
— Um sonho em que estava a voar. Tinha imensos sonhos desses
quando era pequeno, no Antes. — Bradwell reflete por um momento. —
Creio que não tive um sonho em que voasse desde que passei a ter pássaros
nas costas, asas verdadeiras.
— Como é que voavas nos sonhos, quando eras pequeno?
— Podia reter a respiração e levitar, pouco a pouco, até ficar
suficientemente alto para poder abrir os braços, para que o vento os
apanhasse e me levasse à vela.
— E no sonho de hoje?
— Não tinha pássaros nas costas, mas também não era um rapazinho.
Era como sou agora, mas...
— Puro?
— Acho que sim. Talvez por isso tenha acordado a pensar no Partridge
na Cúpula...
— Como te sentias? — Pressia nunca sonhou que era capaz de voar.
— Sentia-me... mais jovem. Tinha a idade que tenho, mas não me
sentia como sinto. Era como se pudesse voar porque não estava
sobrecarregado com tanta coisa. Sabia, da maneira como sabemos as coisas
nos sonhos, que os meus pais estavam vivos. E havia campos abaixo de
mim e ribeiros, e era tudo luxuriante. Como se as Detonações nunca
tivessem acontecido.
— E eu apareci no sonho?
— Vi o rio, aquele que atravessámos, e tu estavas lá dentro. Eu via-te a
debateres-te.
— Queres dizer, a afogar-me.
— Foi isso que pensei. E quando desci para te salvar, passou a ser
outra vez aquela noite. Aquela noite fria.
Ela faz um aceno rápido, corando ao pensar nisso.
— E eu sabia que, para chegar até ti, tinha de me lembrar que os meus
pais estavam mortos e que o mundo era um poço de cinzas. Assim que o fiz,
comecei a cair. Aterrei no rio. Mergulhei muito fundo e vi-te debaixo de
água. E era eu de novo: com os pássaros nas costas, as minhas cicatrizes.
E...
— Salvaste-me?
Ele abana a cabeça.
— Comecei a contar-te o sonho porque é um exemplo de como não
consigo ler-te.
— Certo.
— Tu estavas com estas raparigas todas, estas caras que forram as
paredes, e eras capaz de respirar debaixo de água. Na verdade, eras capaz
de cantar. Estavam todas a cantar. A canção espalhava-se através da água.
Eu sentia a música na minha pele; as notas vibravam.
Ela pensa na pele dele contra a sua, a neve a cair como pedacinhos de
renda.
— E?
— Não precisavas para nada de ser salva. Eu julgava que estavas a
afogar-te, mas tu estavas ótima. Olhaste para mim de uma maneira que eu
não consigo descrever.
— Como?
— Um pouco feroz. Eu não conseguia perceber se estavas zangada
comigo ou...
— Ou quê?
— Nada. Não consigo ler-te, nem mesmo em sonhos. É aí que bate o
ponto.
Ela olha para dentro da mala, como se não soubesse o respetivo
conteúdo de cor.
— Há uma intérprete de sonhos no mercado. Já a viste?
— Não acredito nesse tipo de coisas.
— Eu acredito. Às vezes, pelo menos.
— Vais interpretar o meu sonho?
Ele senta-se e pousa os pés no chão.
Pressia já interpretou o sonho. Bradwell vai naquela viagem para a
vigiar, para a proteger. Mas talvez haja uma parte dele, lá no fundo, que
duvida que ela precise da sua proteção. Pega na mala e pousa-a ao pé da
porta.
— Continuas agarrado à promessa que fizeste ao meu avô. Mesmo nos
teus sonhos, és fiel à tua palavra. E estás disposto a sacrificar muito para o
fazeres, até a ideia de que os teus pais poderiam estar vivos.
— Talvez consigas ler-me melhor do que eu a ti. — Assim que ele diz
aquelas palavras, Pressia percebe que gostaria que ele tivesse argumentado
contra a sua interpretação, Ela não quer que ele continue a carregar aquela
antiga dívida. Não quer continuar a sentir-se como um fardo. Faz-se um
silêncio. Pressia não sabe ao certo o que dizer. Olha para os rostos das
raparigas, em especial para aquele que lhe lembra Fandra, a sua antiga
amiga.
Por fim, vira-se e encara Bradwell:
— Por que vens nesta viagem? — pergunta-lhe. — Nenhum
sobrevivente foi jamais tão longe e regressou.
— Por que vais tu?
— Pela Wilda. Se pudermos encontrar a fórmula, há uma hipótese de a
salvarmos. — É verdade, mas é apenas uma parte da resposta. Pressia sente
a verdade a agitar-se dentro de si, a arranhar, a querer sair. — E quero ver se
há outros lá longe. Talvez tenham conseguido sair e não queiram voltar. —
Dirige-se para a mesa e pega na faca de cozinha que utilizou para cortar a
lã. Toca no bordo da lâmina: continua afiada. — O meu pai. A tatuagem
com a sua pulsação ainda estava a bater no peito da minha mãe. Ele ainda
vive. Algures lá fora.
— Mas, Pressia... — Bradwell levanta-se e aproxima-se também da
mesa disposta entre os dois.
Ela leva a faca para o cepo.
— Bem sei, bem sei. As probabilidades de o encontrar são quase nulas.
Mas tu querias uma resposta, e essa é a que eu tenho.
Pressia está admirada por ter dito tudo aquilo em voz alta. Há quanto
tempo andará com aquele pensamento na cabeça? Não era capaz de o
confessar, nem mesmo a si própria, porque lhe parecia demasiado egoísta e
infantil. Pousa a faca.
Ele apoia os nós dos dedos na mesa e inclina-se mais para ela. Os seus
olhos ainda estão cansados, mas ele parece estar a semicerrá-los através da
fadiga, como se estivesse a tentar vê-la claramente, como se estivesse a
tentar lê-la naquele preciso momento.
— Estás enganada acerca do sonho — declara.
— A sério? Como?
— Eu não vou por ainda querer proteger-te. Por causa de uma
promessa antiga.
— Então porquê? — indaga Pressia.
— Eu vou nesta viagem porque... — Inclina-se ainda mais para ela. —
Pressia, porque eu...
— Para — diz ela. — É suicida importarmo-nos com alguém neste
mundo.
— Então talvez eu seja suicida.
O coração de Pressia está a bater com tanta força que ela comprime a
mão sobre ele na esperança de o acalmar. Olha para Bradwell, sem saber o
que dizer.
Então a expressão de Bradwell suaviza-se. Ele levanta o dedo e
sussurra:
— Aí está. Aí mesmo.
— O quê?
— O olhar que me deitaste no sonho. O tal que eu não consigo ler.
Capítulo 42

Partridge
Bela Barbárie

O compartimento está em silêncio, tirando o barulho dos escaravelhos


no terrário de vidro. Partridge não consegue falar, aturdido pela enormidade
da traição. Ao longo de todos aqueles anos, acreditou na história da
Carochinha. Depois, quando saiu da Cúpula, julgou que o seu pai e alguns
outros figurões os tinham enganado a todos. Mas eles sempre souberam —
todas as pessoas que tinham idade suficiente antes das Detonações para
arranjarem lugar na Cúpula: os seus professores, treinadores, o barbeiro, as
mulheres que vinham limpar o apartamento todas as semanas, os técnicos
de laboratório, os monitores dos dormitórios.
— Todos? — pergunta Partridge.
— Todos eles.
Partridge abana a cabeça. O seu plano de revelar a verdade às pessoas e
deixá-las escolher a melhor maneira de viver não vai resultar.
— Não é possível. Como podem viver consigo próprios?
— Muitos não conseguem. É por isso que tivemos de aceitar o suicídio
como algo socialmente aceitável, o que acabou por ser conveniente. Ajuda a
manter as populações controladas e cada suicídio abre espaço para alguém
ter um bebé. Um bebé que nunca terá de saber a verdade, a quem se pode
impingir a nova história.
Partridge fecha os olhos com força.
— Eles sabiam... desde sempre...
— Não haverá nenhuma revolução, Partridge. Os que eram capazes de
liderar uma revolta foram assassinados antes das Detonações ou morreram
nelas. — Partridge pensa nos pais de Bradwell. — Tirando uns poucos.
— Cygnus — diz Partridge, abrindo os olhos.
— Éramos liderados pela tua mãe. Não somos os mais fortes ou mais
corajosos. Somos os que eram capazes de viver vidas duplas, de conhecer a
verdade e ir andando. Somos os que restam. Somos poucos, mas estamos
mais fortes, mais ousados. — Glassings apoia os cotovelos nos joelhos. —
Partridge — diz, com uma voz tão solene que Partridge sabe que aquele é o
momento em que ele vai dizer-lhe algo terrível, algo que vai mudar a sua
vida para sempre. Sente no ar a enormidade do que está por dizer Vê o que
há de tenebroso nisso a ensombrar o rosto de Glassings. — Há algo que
tenho de...
— Espere.
Tudo o que Partridge quer são mais alguns minutos com Glassings,
apenas os dois sentados naquela sala como pai e filho. Quer ganhar tempo.
Diz baixinho: — Primeiro fale-me dos escaravelhos. Só... — Tem as mãos a
tremer. Aperta-as uma na outra. — Os escaravelhos — repete. — Uma
coisa de cada vez.
— Está bem — diz Glassings. — Soltámos milhares deles. Outros
insetos também. Eles são realmente ciborgues. Dão-nos informações e
podemos controlá-los à distância.
— São rastreáveis?
— Não. É essa a beleza da coisa. Claro que a gente de Willux apanhou
alguns. Ele sabe que há pessoas que se opõem a ele. Na verdade, alimenta-
se disso. Mas não sabe de onde vêm, nem o que procuram.
— Você está louco! — deixa escapar Partridge, depois lembra-se que
Glassings já foi seu professor e pede desculpa. — Desculpe, senhor. Mas
não há dúvida de que o meu pai vai encontrar uma maneira de os rastrear.
Nunca permitirá conscientemente que as forças que se opõem a ele tenham
o seu próprio sistema de vigilância.
— Ainda não nos apanhou — diz Glassings. — Somos cuidadosos. As
pessoas como nós têm de o ser, para sobreviver.
— E o homem e a mulher que me ajudaram a entrar e sair do elevador?
— Aí tens a tua prova. A nossa rede é sólida, e podemos ajudar-te a
fazer o que precisas de fazer.
Partridge senta-se para trás na cadeira. É agora.
Os olhos de Glassings adquirem de repente uma expressão suave e
cansada. Está mais velho do que Partridge se lembrava. Diz:
— Tens de assassinar o teu pai.
Partridge abana a cabeça.
— Não.
— Ouve — diz Glassings rapidamente. — Nós arranjaríamos as coisas.
Temos um comprimido. É de efeito rápido. Os venenos são indetetáveis. E
tu tens possibilidade de chegar suficientemente perto. És filho dele.
— Não vou fazer isso. — Partridge sente-se doente.
Glassings não diz uma palavra. A sua expressão é grave, inflexível.
— Não vou matar o meu pai. Se me tornar um assassino, transformo-
me no meu pai. Não vê isso?
— E se for em legítima defesa? — Glassings fita-o, zangado. —
Provocaste alguns estragos lá fora, não foi?
— Lá fora temos de fazer coisas que preferíamos não fazer. Há Bestas,
Poeiras e Agrupados por toda a parte, e agora também Forças Especiais.
Glassings levanta-se e contorna a cadeira. Crispa ambas as mãos nas
costas da poltrona e diz:
— Não se trata de vingança. Queremos deter o teu pai. Ele continua a
ser um homem muito perigoso.
— E acha que eu não sei disso?
— Não matarias uma pessoa se soubesses que ela ia simplesmente
continuar a matar outros?
Partridge quer acabar com aquilo de uma vez por todas. A brutalidade
do seu pai, o legado de morte. Tem possibilidade de chegar suficientemente
perto dele, sim. Quereria que o seu pai soubesse, apenas uma fração de
segundo antes de morrer, que fora Partridge a fazê-lo. Imagina o lampejo
momentâneo de terror nos olhos do pai. Não pode ceder.
— Tenho de tentar liderar a partir de dentro da maneira certa.
Glassings senta-se de novo. Comprime os nós dos dedos uns nos
outros. Não olha para Partridge.
— Ele tem grandes planos para ti.
— Que planos?
— Ouvi dizer que quer que tu assentes, para demonstrar estabilidade.
— Ele voltou a casar. Sabia?
— Foi uma cerimónia discreta.
— A Iralene é minha meia-irmã. Ele quer que eu assente com ela.
Glassings levanta bruscamente a cabeça.
— Isso é um pouco incestuoso, não é?
— Tecnicamente não, mas sim, é uma loucura.
— Ele gosta de manter tudo muito bem ligado. — Glassings fixa
Partridge atentamente. — E quanto a Lyda? Ela ainda está viva... lá fora?
Como sabia ele acerca de Lyda?
— Sabe que ela foi levada da Cúpula?
— Como isco para te atrair. Sim, tínhamos gente nossa no centro de
reabilitação. Mesmo o guarda que a escoltou até lá fora é um dos nossos.
Ela está bem?
— Espero que sim. — Ele pensa nela, a cantar no palco, naquele
mesmo palco que se ergue sobre as suas cabeças, com a música a sair do
fundo de si mesma.
— Talvez possas simplesmente entrar no jogo com a Iralene.
— O quê? Não vou usá-la assim.
— E se também redundasse em benefício dela? Não seria bom se a
desprezasses, pois não? — Ele sabe que Glassings tem razão. — Consta que
o teu pai vai mostrar-te como dirige as coisas e depois entregar-te as rédeas
do poder. Atualmente, o primeiro na linha de sucessão é Foresteed.
— Foresteed, pois. Tinha-me esquecido dele.
— Tornou-se o rosto do órgão governativo da Cúpula desde que o teu
pai ficou mais velho, mais fraco. Mas o teu pai prefere-te a ti.
— Porquê eu?
— Queres a verdade?
Partridge faz um sinal afirmativo.
— Ele acha que pode manipular-te.
— Mas eu não provei que ele não consegue realmente...
Glassings põe a cabeça de lado, arqueia as sobrancelhas:
— Revê os factos — diz. É uma das suas frases características como
professor de História Universal.
Partridge julgara que tinha escapado da Cúpula, apenas para descobrir
que isso era o que o seu pai tinha desejado e planeado. Willux queria que
Partridge o conduzisse à sua mãe, e ele assim fizera. E agora Partridge
regressou porque o seu pai ameaçou matar pessoas até ele voltar.
— Merda — pragueja.
— Tens de refletir seriamente acerca do teu pai, Partridge, e do que é
melhor para o bem maior.
— Assassínio?
— Diz-me só que vais pensar nisso.
Partridge crispa as mãos nos braços da cadeira.
— Como procedo agora?
— Tens de ir ao encontro do teu pai, aproximares-te dele. Não podes
fazer nada se não tiveres a confiança dele para obteres informações.
— O senhor vai entregar-me? — indaga Partridge.
— Se for eu a levar-te ao teu pai, isso vai chamar a atenção para o
nosso relacionamento.
— Mas provaria que o senhor é leal a meu pai.
— Eu não quero qualquer tipo de atenção.
— Que faço, então?
— Talvez um dos outros professores. Tinhas alguma ligação com
algum deles?
— Hollenback. — O professor de Ciências de Partridge. — Passei
algumas férias de Natal com ele e a família.
— Hollenback é perfeito. Anda na linha. Fará a chamada assim que te
puser os olhos em cima. Foi ele que lhes entregou o Arvin Weed, para que
pudessem aproveitar o génio científico dele.
— Eu vi o Arvin — conta Partridge —, quando estavam a Purificar-
me.
— O Arvin é crucial, Partridge. É nele que Willux deposita as suas
esperanças. Acha-o capaz de descobrir uma cura. Está a matar o miúdo com
trabalho.
— O Arvin não está do nosso lado?
— Estava. Mas Willux tem muito poder. Tenho a certeza de que lhe fez
promessas. Quem sabe se o Arvin será suficientemente forte? — Glassings
fita Partridge. — É por isso que tens de ter cuidado.
— Eu não vou ser controlado pelo meu pai e também não vou matá-lo.
Onde é que isso nos deixa?
— Se mudares de ideias...
— Mas nem sequer conseguimos comunicar um com o outro.
— Nós andamos por aí.
— Suponho que é melhor ir andando. — Partridge põe-se em pé e
dirige-se para a escada. Glassings levanta-se também.
— Sabes — diz Glassings —, eu não tenho um filho, Partridge.
Provavelmente nunca terei, com esta regulamentação. Mas se tivesse,
desejaria que fosse como tu.
A garganta de Partridge está demasiado apertada para falar. Baixa os
olhos para os sapatos, depois cruza o olhar com Glassings, que lhe sorri; um
sorriso mesclado de tristeza e orgulho.
Partridge sorri ao professor.
— Bela barbárie. O senhor disse isso uma vez, durante uma aula sobre
culturas antigas. Ainda se aplica a nós agora, não é?
Glassings acena com a cabeça.
— Está a ver, eu sempre prestava atenção às suas aulas. Alguma coisa
ficou.
— Tem cuidado lá fora.
Embora não faça sentido, Partridge faz-lhe a continência.
Glassings faz continência também.
Partridge sobe a escada, abre o alçapão e trepa para o palco, fechando o
alçapão atrás de si. Percorre rapidamente os bastidores, seguindo os sinais
de saída. Encontra uma porta, empurra-a, preparado para respirar ar frio.
E está lá fora.
Mas é precisamente essa a questão. Ali, nunca ninguém está
verdadeiramente lá fora.
Capítulo 43

Pressia
Chávena De Chá

Atravessaram as Terras Mortas atulhadas de Poeiras no sedan preto


que pertencera outrora a Ingership, cortesia da Cúpula. El Capitan conduz,
curvado sobre o volante, com Helmud empoleirado nas costas, ocupado a
talhar um bocado de madeira. Hastings, na qualidade de navegador, está
sentado ao lado de El Capitan, com as pernas compridas encolhidas contra o
porta-luvas. Afinal Willux possui uma frota de aeronaves construídas para
sobreviver às Detonações. Hastings vai levá-los a uma que não está sob um
grande nível de segurança. Não explicou por que motivo esse dirigível não
é muito protegido; talvez não o saiba.
Os Poeiras exibem capelos semelhantes aos das cobras, arqueiam as
costas espinhosas, fazem brotar garras e dentes da própria terra. El Capitan
atropela-os. Dói-lhe matar os Poeiras daquela maneira, mas apenas porque
gosta tanto do carro. Geme sempre que o veículo sofre uma pancada, o que
o torna num condutor emotivo e errático. Pressia e Bradwell, no banco de
trás, agarram-se aos encostos de cabeça, às portas, aos assentos. Por duas
vezes, os seus cotovelos roçam um no outro quando o carro guina para um
lado. Ela não consegue deixar de pensar no que teria acontecido se o tivesse
deixado acabar de lhe dizer o motivo por que ia na viagem. E se ela tivesse
contornado a mesa para ir ao encontro dele do outro lado? Ele tê-la-ia
beijado? Ela deixara passar o momento. Na altura, parecera-lhe um alívio,
mas agora deseja recuperá-lo e, ao mesmo tempo, que aquela ânsia que lhe
rói o estômago pare. O que é essa ânsia? Amor, ou medo, ou ambos?
Pressia pousou Fignan entre as suas botas. Entretanto ele recolheu o
ADN de El Capitan, Helmud e Hastings, com picadelas furtivas. Mas não
revela os resultados; não correspondem a alguém que ele procurasse.
Bradwell e Pressia mantêm as armas voltadas para as janelas fechadas,
prontas a serem usadas. O rebentar dos corpos dos Poeiras e as explosões de
areia, terra e fuligem que provocam e chicoteiam o carro são
ensurdecedores.
A carroçaria está sulcada de cicatrizes longas, amolgadelas profundas,
mossas, alguns antigos buracos de bala. O para-choque dianteiro já estava
torcido depois de abalroar o pórtico de Ingership e aberto caminho através
de Poeiras, e agora está destruído. O para-choque traseiro desapareceu, a
grelha da frente está corroída. Cada Poeira que atropelam risca os cromados
e a pintura. Pressia diz:
— Talvez se não batesses em cada Poeira que vês, o carro tivesse
melhores hipóteses de aguentar.
— Se este carro morrer, cada Poeira morto é um a menos para nos
matar — replica El Capitan defensivamente. — Queres conduzir tu?
— Ali à frente! — grita Hastings. — Estás a vê-los?
— Estou — diz El Capitan. Esmaga um pequeno rebanho de Bestas
com rostos magros, olhos escuros e fauces escancaradas. As criaturas são
cada vez mais fortes e estranhas, quanto mais se afastam da Cúpula.
O carro salta numa lomba e os pneus encontram um resto de estrada. O
cascalho bate no chassis com um som metálico. O que resta da estrada é
suficiente para cortar a passagem aos Poeiras. Alguns batem as mandíbulas
contra o asfalto, depois retrocedem lentamente para baixo de terra.
— Para onde vamos? — pergunta El Capitan a Hastings.
— Noroeste.
— Não podes ser um bocadinho mais específico? — pergunta
Bradwell.
El Capitan abana a cabeça:
— Há um pequeno problema com o nosso navegador...
— Que problema? — indaga Pressia, inclinando-se para a frente.
— O Hastings e eu sentámo-nos ontem à noite para prepararmos a rota
e deparámos com uma dificuldade. Ele recebeu uma programação
completa: conhecimento de mapas, bússola interna, a perceção sensorial
altamente desenvolvida, armamento automático completo —, mas também
recebeu codificação comportamental. A sua linha de codificação de
lealdade limita as informações que lhe é permitido dar-nos.
— Lealdade — diz Helmud.
— Queres dizer que o Hastings não pode dizer-nos a localização exata
da aeronave? — diz Bradwell.
— Não posso dar-vos tudo o que vocês precisam — responde Hastings.
— Só posso lutar contra a minha codificação até um certo ponto, e levar-
vos o mais longe que puder.
— Sem ofensa, Hastings — Bradwell inclina-se sobre o banco da
frente e Pressia sabe que ele está prestes a dizer algo ofensivo —, mas como
é que sabemos que a tua lealdade não continua a ser para com a Cúpula e
que não vais virar-te contra nós?
— Contra nós? — diz Helmud.
— Não sabem — replica Hastings.
— A tua codificação é forte — prossegue Bradwell. — Deve ter sido
inserida ao nível do teu córtex, do tronco cerebral, gravada nas tuas células.
— Calma — atalha El Capitan.
— Cap, se ele decidisse de repente abrir fogo sobre todos nós, aqui
fora, quem poderia censurá-lo? Foi programado para nos odiar, para nos ver
como o inimigo, certo?
— Ele vai levar-nos até lá, um passo de cada vez. Está a lutar por isso.
É precisa força de vontade para superar essa codificação — assevera El
Capitan. — Devíamos agradecer-lhe, aproveitar o que pudermos.
— O que pudermos — ecoa Helmud.
— Eu acho que é inteligente reconhecer que há um risco — insiste
Bradwell. — Não estou a dizer que não confio nele. É só...
— Que não confias nele — conclui Pressia.
— Não confio na Cúpula. Acho que é estupidez subestimá-los.
— Talvez também seja estupidez sobrestimá-los — replica Pressia.
— Talvez seja assim que eles se safam com tanta coisa. O Hastings
pode ser um bom exemplo do motivo por que não devíamos sobrestimá-los.
Hastings lança-lhe um olhar, como se se sentisse insultado.
— Quero dizer, é possível que a parte humana dele seja mais forte do
que a Cúpula julgava. Talvez as emoções sejam uma força real. Talvez haja
algumas coisas que não é possível alterar.
Bradwell parece prestes a dizer alguma coisa, mas Hastings atalha:
— Não confiem em mim. Isso irá mudar alguma coisa?
Hastings tem razão. Já estão cerca de dez quilómetros para o interior
das Terras Mortas. Precisam dele.
— Posso dizer-vos — prossegue Hastings, semicerrando os olhos num
esforço de concentração —, por exemplo, que este dirigível funciona
nalguns aspetos como os dirigíveis do velho mundo.
Bradwell levanta Fignan, pedindo que os informe a esse respeito.
Fignan explica como os dirigíveis do velho mundo funcionavam com
normalmente hidrogénio ou hélio, mais leve que o ar. Efetivamente,
as naves flutuavam.
— Dirigíveis — diz Helmud melancolicamente. El Capitan coça a
cabeça:
— Mas Willux devia saber que após as Detonações ninguém teria
acesso a esses gases para recarregar os balões. Este não pode funcionar
assim.
— E não funciona — explica Hastings. — Eles criaram um material
extremamente fino e leve, que era suficientemente rígido e forte para reter
algo que se aproxima de um vácuo de cem por cento, sem ser esmagado
pela pressão do ar em volta.
Fignan pesquisa os seus dados.
— Fulerenos endohedral.
— O que é isso? — pergunta Bradwell.
Fignan abre um vídeo curto. «Os fulerenos», explica um narrador, «são
moléculas de carbono complexas, de formas variadas, às vezes chamados
bolas de Bucky. Ambas as designações foram atribuídas em homenagem a
Buckminster Fuller, cientista, inventor, futurista».
— O bom velho Buck! — diz Pressia baixinho, lembrando-se de que
era exatamente o que Willux tinha escrito numa das páginas do seu bloco.
— E como é que isso se relaciona connosco? — pergunta El Capitan.
Hastings explica-lhe que, sob a tutela de Willux, as pequenas
moléculas tinham sido aumentadas e combinadas com outras moléculas, de
modo a fazer o revestimento fino, forte e rígido dos tanques de vácuo do
dirigível.
— Para subir, o ar é simplesmente bombeado para fora. Para descer, os
tanques absorvem de novo um pouco de ar, aumentando o peso do dirigível.
— Ena! — exclama Bradwell, claramente impressionado.
Pressia alonga o olhar sobre as Terras Mortas.
— Eram tão inteligentes, e vejam o que fizeram com toda essa
inteligência.
Hastings partilha com El Capitan os seus limitados conhecimentos de
instrumentação e navegação e Bradwell pede a Fignan um mapa daquela
área. O mapa é antigo, com estradas, igrejas, complexos de escritórios.
Fignan indica factos sobre a composição geológica, os padrões climáticos
da região, a população por quilómetro quadrado — tudo relativo ao período
pré-Detonações.
Do outro lado da janela estende-se a paisagem estéril. Esse mundo
desapareceu há muito. Pressia está cansada de factos pré-Detonações.
Parece que servem apenas para ilustrar tudo o que se perdeu.
Bradwell interroga Fignan acerca de Cygnus: a constelação, as várias
espécies de cisne classificadas com essa designação, mitologia. A voz de
Fignan faz-se ouvir longamente, num tom suave e baixo.
Passam por antigas placas de cadeias de comida rápida, suspensas de
postes altos, agora caídos um após outro, como árvores derrubadas numa
tempestade. Algumas das placas estilhaçaram-se. Outras racharam como
ovos. O que quer que continham — lâmpadas fluorescentes? fios elétricos?
— foi destruído ou roubado. O vento foi arrastando o pó em vagas que
parecem estar a engolir os escombros dos hotéis, restaurantes e outlets.
Ainda assim, Pressia vê pequenos sinais de vida humana: uma casa
ocasional, feita com um telhado arrancado de um posto de gasolina,
alpendres primitivos no lado protegido do vento de um Hardee
parcialmente desmoronado.
Enquanto Pressia contempla a paisagem, Fignan conta um mito grego
acerca de dois grandes amigos, Cygnus e Faetonte, que estavam sempre em
competição. Desafiaram-se mutuamente para uma corrida de carros no céu.
Mas ambos voaram demasiado perto do Sol. Os seus carros incendiaram-se
e eles despenharam-se no solo, inconscientes. Quando Cygnus voltou a si,
foi à procura de Faetonte e encontrou o seu corpo no fundo de um rio, preso
pelas raízes de uma árvore.
Bradwell toca no braço de Pressia:
— Ouviste?
Ela sabe o que ele está a pensar: Novikov e Willux, o afogamento
acidental que talvez não tenha sido um acidente de todo. Faz um sinal
afirmativo.
Fignan continua: «Cygnus mergulhou na água para recuperar o corpo
do amigo e proporcionar-lhe um funeral apropriado. Sem isso, o seu espírito
não poderia empreender a travessia para a vida no além. Mas Cygnus não
conseguia alcançá-lo. Sentou-se na margem do rio e chorou, suplicando a
Zeus que o ajudasse. Zeus respondeu, dizendo que podia dar a Cygnus o
corpo de um cisne, permitindo-lhe mergulhar suficientemente fundo para
tirar Faetonte do rio. Mas se Cygnus escolhesse o corpo de cisne, deixaria
de ser imortal. Viveria apenas o tempo de vida de um cisne. Cygnus
transformou-se em cisne, mergulhou na água, puxou o corpo de Faetonte e
fez-lhe um funeral apropriado, para que o espírito de Faetonte pudesse
chegar à vida no além. Zeus ficou tão comovido com essa abnegação que
criou uma constelação à imagem de Cygnus, um cisne, no céu noturno.»
— Willux terá desempenhado o papel de Cygnus, Novikov o de
Faetonte. — Pressia vira-se para Bradwell. — Achas que Willux estava
realmente a tentar salvá-lo?
— O mito é estranhamente profético — observa Bradwell. — Se
Novikov tinha a fórmula, se já estava realmente a fazer experiências com
reversão no seu próprio corpo, experiências bem sucedidas, e se Willux o
matou, então Willux tornou-se mortal. Selou o seu destino. Como Walrond
disse...
— Ele matou a única pessoa que poderia tê-lo salvo — diz Pressia. —
Mesmo que não compreendesse inteiramente este mito, deve tê-lo ouvido.
Quero dizer, ele escolheu o cisne como símbolo para os Sete. Certamente
pesquisou o que o cisne significa; não é loucura imaginar que encontrou
esta história.
— Acho que Walrond tinha razão acerca da mente obsessiva de
Willux, da importância de Cygnus, a constelação, com a ponta da asa a
passar sobre Newgrange — diz Bradwell. — Antes não tinha a certeza,
mas, não sei... sinto que estou a começar a ver os padrões da mente de
Willux.
Pressia olha para os restos de grandes fábricas que se avultam para
oeste. Com os telhados de chapa ondulada arrancados, as fábricas parecem
simultaneamente arejadas e esventradas.
— Gostava de saber quem sobrevive aqui fora.
— Não sei, mas deve ser gente rija.
— A estrada acabou — anuncia El Capitan.
A estrada desfaz-se. Poeiras ondulam no horizonte. Pressia firma a
mão na arma, segura-a contra o peito.
Ao longe ergue-se uma grande estrutura serpenteante e esquelética: um
pescoço alto que termina abruptamente, uma espinha dorsal que mergulha
em direção à terra, depois um laço, como nas letras antiquadas que o avô
lhe ensinou, letra cursiva.
— O que é aquilo?
— É um parque de diversões — responde Hastings. — Temos de o
contornar para leste.
Bradwell inclina-se sobre o banco da frente.
— Jesus. Conheço este sítio. Vim cá em miúdo. Era novinho em folha,
mas muito retro. Sabem como o Retorno à Civilidade adorava tudo o que
tinha um ar de velho mundo. Chamava-se Crazy John-Johns. Havia um
palhaço, um palhaço enorme com a cabeça a abanar, um rola-rola e
montanhas-russas de estilo antigo. Não apenas simuladores, mas atrações
autênticas. Vento a sério nos cabelos, a encher-nos os pulmões. O meu pai
levou-me. Andámos na Rolling Thunder e na Avalanche.
— Crazy John-Johns — diz El Capitan. — Lembro-me dos anúncios.
A minha mãe nunca conseguiu juntar dinheiro suficiente.
— Mãe — diz Helmud, guardando o seu canivete.
Pressia pensa no avô, Odwald Belze, que lhe falara, uma e outra vez,
de uma viagem ao Disney World que ela teria feito no Antes; fora uma
invenção dele, para lhe dar uma vida da qual ele nada sabia.
— Está habitado — diz Hastings. — A montanha-russa é uma torre de
vigia. Estão a vê-los?
— A quem? — pergunta Pressia, mas logo distingue, no cimo da
montanha-russa, alguns pequenos vultos, sentados nos carris verticais, aos
quais provavelmente treparam como uma escada.
— Da última vez que aqui estive — prossegue Hastings —, provaram
ser perigosos. Têm uma fonte de energia e pólvora que restou de fogo de
artifício e...
O carro guina repentinamente para o lado e faz um pião. Os pneus
traseiros levantam uma nuvem de pó. O carro para com um solavanco.
— E armadilhas — remata Hastings.
— Que diabo? — grita El Capitan. Puxa a alça da espingarda por cima
da sua cabeça e da de Helmud, estende a mão para o puxador da porta.
— Não vás lá fora — adverte Hastings.
— Lá fora — sussurra Helmud.
— Tenho de ver os estragos. — El Capitan abre a porta e apeia-se.
Agacha-se junto ao pneu dianteiro, levanta-se e esfrega o quadro.
— Raios! — grita. — Por que havia alguém de fazer isto ao meu bebé?
— Meu bebé! — grita Helmud.
— O que se passa? — brada Bradwell.
Os Poeiras não estão muito longe. O ar está parado.
— Alguém enterrou qualquer coisa no chão — diz El Capitan.
— Um buraco cor-de-rosa com dentes! Uma boca gigante matada!
Pressia desliza pelo banco de trás.
— Tenho de ver isso.
— Eu também — diz Bradwell.
— Sejam cuidadosos e rápidos — recomenda Hastings enquanto
ambos se apeiam.
O pneu furado encontra-se no que é, de facto, um grande buraco
perfeitamente redondo e cor-de-rosa, talvez feito de fibra de vidro. Lá
dentro há um conjunto de grandes espigões afiados, alguns dos quais estão
profundamente enterrados no pneu destruído. Um oleado, agora solto,
esvoaça como um véu louco.
— Inteligente — comenta Pressia. — Taparam-no com uma lona,
deixaram a areia e a cinza acabarem de o cobrir, e esperaram.
Hastings sai também do carro. Para a poucos metros deles, os seus
olhos a esquadrinhar o horizonte.
El Capitan dá um pontapé no chão, praguejando em voz alta. Bradwell
bate na pesada fibra de vidro com os nós dos dedos.
— É uma chávena de chá — observa. — Tirada de um carrossel de
chávenas de chá.
— Um carrossel de chávenas de chá? — diz El Capitan. — O meu
carro foi abatido por uma chávena de chá de um carrossel do Crazy John-
Johns?
Pressia pensa nas histórias da infância do seu avô: festivais italianos,
peixinhos dourados em sacos plásticos dados como prémios, cannoli, jogos
e carrosséis. Olha sobre o terreno que os separa da cerca de arame do
parque de diversões. Os Poeiras vão-se reunindo nas proximidades.
— Achas que há mais armadilhas?
— Sim — responde Hastings. — Voltem lá para dentro. — Fixa a vista
no parque de diversões. — Nesta rota, perdemos três soldados das Forças
Especiais, fortemente armados e preparadas para o combate.
— Três deles? Mortos? — diz El Capitan, aturdido.
— Qual é o plano? — pergunta Bradwell.
— O plano era não deixar o meu carro ser engolido por uma chávena
de chá — retruca El Capitan
— Quantos quilómetros mais, Hastings? Podes dizer-nos ao menos
isso? — indaga Pressia.
— Cinquenta e sete quilómetros vírgula doze.
— Não vamos conseguir fazer tudo isso num dia, agora — observa El
Capitan. — Vamos ter de tentar contornar isto e encontrar um sítio para
passar a noite do outro lado.
— Se conseguirmos chegar ao outro lado — diz Bradwell.
— Se houver outro lado — diz Pressia.
— Se — diz Helmud.
— Estão a ouvir aquilo? — pergunta Hastings.
— O quê? — diz El Capitan. A sua raiva transformou-se em medo.
Mas não há necessidade de resposta. Todos o sentem, através das solas
das botas: a terra a rugir debaixo dos seus pés.
Capítulo 44

Partridge
Árvore De Natal

Partridge acorda para deparar com o rosto da filha de cinco anos de


Hollenback, Julby Hollenback. Estava no quarto onde costumava acordar
durante as férias de inverno que passava com os Hollenback. Ouve a Sra.
Hollenback a cantar na cozinha; sempre gostara de canções de amor com
bonecos de neve e passeios de trenó. Julby está mais velha. Faltam-lhe os
dois incisivos inferiores.
Partridge fora direito para ali na véspera à noite, assim que deixara
Glassings. Dirigira-se ao apartamento de Hollenback e vira a pequena
aldraba em forma de focinho de leão, a mascote da academia, envolto em
canudos de fita, coisa que a Sra. Hollenback ensina as raparigas a fazer nas
aulas de História da Domesticidade como Forma de Arte. Abaixo da fita
estavam dois flocos de neve — feitos de papel, como os que estavam
colados às vidraças da escola. É como se Lyda estivesse constantemente ali
com ele. E, por um momento, imaginou a família adormecida, encasulada
nos seus lençóis. Não queria acordá-los.
Mas levantou a aldraba e bateu com força.
Passados minutos, ouviu passos arrastados e a voz de Hollenback a
perguntar:
— Quem é? Quem está aí? Que raio...? — Seguiu-se o estalido da
fechadura e Hollenback abriu a porta de par em par.
E lá estava ele, agitado, farripas ralas a flutuar na cabeça quase careca,
a apertar o cinto do roupão. Os seus ombros pareciam mais frágeis, ou
talvez fosse apenas por não estar de casaco desportivo. Era evidente que
estava à espera de uma brincadeira ou de uma emergência exagerada.
Ficou a olhar para Partridge, estarrecido. Num momento Hollenback
julgava saber o que o mundo lhe traria, no momento seguinte tudo tinha
mudado. Partridge viu a expressão de choque nos seus olhos, e agradou-lhe
verificar que Hollenback parecia ter perdido o pé. Naquele momento
odiava-o por conhecer a verdade, por a engolir todos os dias e divulgar a
mentira.
Está bem acordado agora, Hollenback?, era o que Partridge queria
dizer-lhe. A vida é assim mesmo. Isto é o que acontece.
Hollenback puxou-o rapidamente para dentro.
— Partridge Willux — repetia para si próprio. — E esta? — Depois foi
fazer uma chamada do telefone de casa. Quando regressou, estava pálido.
— Passa cá a noite — disse ele a Partridge. — Está tudo bem. Alguém virá
buscar-te de manhã.
E agora Julby está a maçar Partridge.
— Não podes dormir o dia todo.
— Como tens estado, Julby? Estás muito crescida.
Ela veste uma camisola com o desenho de uma árvore de Natal.
— Estou no jardim de infância, no grupo três, com a Sra. Verk. A
minha mãe disse-me para te dizer que vamos almoçar.
— Almoçar?
— É a nossa refeição de sábado — diz ela orgulhosamente. Partridge
lembra-se que os Hollenback almoçam aos sábados: sentados à mesa, com
pouca comida, sim, mas autêntica. Não comprimidos de soytex ou bebidas
energéticas em pó. Comida a sério. É um privilégio do corpo docente mais
antigo.
— Estás convidado.
— Tens a certeza? — Ele sabe que as porções são limitadas.
— Hum-hum. E há mais uma pessoa para almoçar connosco.
— Quem? — Não podia ser o seu pai, nem Glassings.
— Uma rapariga!
Lyda. Esse é o seu primeiro pensamento, mas é rapidamente
substituído por uma hipótese mais lógica. Iralene.
— Ela tem o cabelo brilhante e já cá está. E cheira a espuma de banho.
— Isso parece a Iralene.
Julby encolhe os ombros e põe-se a puxar as bolas que decoram a
árvore de Natal da sua camisola.
— Veio para te levar para casa.
— Eu não tenho casa.
Julby olha para ele e ri.
— És engraçado.
— Não era essa a minha intenção.
A expressão dela torna-se solene.
— O Jarv já não tem casa.
A Sra. Hollenback estava sempre a arranjar desculpas para Jarv. Ele só
é pequeno porque bolça muito. Sistema digestivo delicado. Vai superar isto!
As crianças que não se desenvolvem bem são muitas vezes levadas para
tratamento. Jarv terá sido sinalizado?
— Como está ele? — pergunta Partridge, sentando-se e saindo da
cama. Ainda está vestido com as calças de fato e a camisa, agora todas
amarrotadas.
Encontra a sua gravata pendurada nas costas de uma cadeira. Julby
tamborila na janela como se houvesse alguma coisa do outro lado.
— O Jarv é estúpido — diz Julby.
— O Jarv não é estúpido. É apenas pequeno ainda, nada mais. Tem
comido melhor?
— Como hei de saber? Ele foi-se embora para ser desestupidificado.
Jarv foi-se embora. Partridge pensa novamente no Sr. Hollenback,
como lhe tinha parecido mais velho, encolhido. Talvez a perda de Jarv o
tenha envelhecido. Partridge não quer dizer a Julby que lamenta, pois isso
podia levá-la a pensar que há algo para lamentar. E há, claro. Por vezes,
essas crianças nunca mais voltam.
— Mas ele não tarda a estar outra vez em casa.
— Talvez — diz Julby. — Foi-se embora de um dia para o outro, por
isso talvez também volte assim. De surpresa. — Olha para a porta aberta,
depois recomeça a puxar pelas bolas da sua camisola. — Acho que devias
cá passar o Natal. Nós gostamos quando cá estás. — Dito isso, Julby sai a
correr do quarto e vai a gritar pelo corredor: — Ele está acordado! Ele está
acordado! Ele está acordado!
Partridge sai do quarto e entra rapidamente na casa de banho. Enquanto
lava as mãos, tira a cobertura do seu dedo mindinho. A pele parece ter
formado mais camadas, estar mais firme. Ele receia que o crescimento do
mindinho seja um sinal de que está a voltar ao seu antigo eu. O seu pai quer
o mindinho totalmente formado, quer que o passado seja apagado, quer que
ele seja limpo. Quando irá ver o velho? Atira água para o rosto, olha-se no
espelho. Ainda sou eu, diz para si próprio. Ainda sou eu.
Ao sair da casa de banho, ouve risos na cozinha. Passa pela pequena
sala de estar, cujas paredes estão forradas de prateleiras cheias de livros
antigos. No meio da sala há uma árvore de Natal artificial, com o seu
odor medicinal a spray de pinho. Há apenas uma meia suspensa de um
gancho numa das estantes. Ostenta o nome JULBY, em letras cheias de
arabescos. Não há meia para Jarv. Poucos meses depois da suposta morte de
Sedge, já ninguém mencionava o seu nome na presença de Partridge. Era
como se ele nunca tivesse existido.
Partridge entra na cozinha e depara com a Sra. Hollenback, vestindo
um avental branco com um bordado representando o Menino Jesus na
manjedoura sobre o peito. Ela também está com um aspeto escanzelado —
envelhecido, como o Sr. Hollenback —, mas ainda conserva a sua energia
irrequieta. Tem as mãos cheias de farinha e abraça-o sem lhe tocar de facto.
— Partridge! É tão bom ver-te. Não nos disseste que tinhas esta linda
amiga!
Quando a Sra. Hollenback se desvia, Partridge vê Iralene, com um
guarda de pé atrás da sua cadeira. Embora o guarda não tenha armas
fundidas aos braços, como os membros das Forças Especiais, foi submetido
a melhoramentos. Talvez esteja a meio da transformação. Veste um
uniforme militar, com uma arma no coldre. Partridge sente-se novamente
prisioneiro. Não é culpa de Iralene, claro, mas, por alguma razão, aquilo faz
com que fique zangado com ela.
— Olá, Iralene.
— Olá.
— Então o meu pai mandou-te cá?
Iralene sorri.
— Vai haver uma festa.
— Que tipo de festa? — indaga a Sra. Hollenback, distraída por uma
discussão entre o Sr. Hollenback e Julby no átrio. Partridge ouve o Sr.
Hollenback a dizer:
— Já disse que não, Julby. Isto é muito importante. Preciso que te
portes o melhor possível, caso contrário...
Caso contrário, quê? Serás levada como Jarv? Desaparecerás?
— É apenas uma coisa pequena — diz Iralene. — Elegante, mas
casual.
— Parece adorável — diz a Sra. Hollenback. — Para festejar o quê?
— Bem — diz Iralene, relanceando um olhar nervoso em direção a
Partridge, antes de concentrar a sua atenção na Sra. Hollenback. — É uma
festa de noivado!
A Sra. Hollenback bate palmas, com a farinha a criar pequenas rajadas
brancas.
— Oh, Partridge! Estou tão feliz por vocês dois! — Sai da cozinha em
passo de corrida e brada para o fundo do corredor: — Ilvander! Julby! Há
novidades!
Partridge senta-se ao lado de Iralene.
— De que estás a falar?
— O teu pai resolveu antecipar-se. Quer ver até que ponto estás
disposto a ir para te encontrares com ele. — Os seus olhos saltam para a
guarda e de novo para Partridge.
— Então estamos noivos. Sem mais nem menos?
A Sra. Hollenback continua a bradar:
— Um noivado! O nosso Partridge e a Iralene! Venham depressa!
Iralene estende a mão e agarra na manga da camisa dele. Sussurra:
— Se não fizeres isto, não precisarão mais de mim. Eu traí-os. Se não
conseguir convencer-te a voltar...
Ele está furioso com o pai por organizar aquela fantochada perversa.
Iralene parece angustiada.
— Falarei com ele — diz Partridge. — Havemos de resolver o assunto.
O Sr. e a Sra. Hollenback entram na cozinha e, antes que Partridge
tenha tempo para esclarecer a situação, há um corrupio de entusiasmo,
parabéns, apertos de mão, abraços, palmadinhas nas costas.
— Bem, Julby, o que achas? Vai haver um casamento! — exclama a
Sra. Hollenback.
Casamento. A palavra deixa-o doente. Pensa em Lyda e como foi estar
com ela na casa do diretor da prisão, aberta ao céu. Estava pronto a passar o
resto da sua vida com ela. Para sempre. E agora isto?
Julby é a única que permanece calada. As suas faces estão vermelhas,
como se tivesse estado a chorar.
— Isso é bom — diz ela.
— Dá-lhes os parabéns! — incita a Sra. Hollenback.
— Parabéns! — grita Julby, enfurecida. — Sorte a nossa! Sorte a
nossa! Sorte a nossa!
Vira-se e começa a arrancar alguns desenhos colados às paredes; flores,
cavalos e arco-íris.
— Agora não, Julby! — diz o Sr. Hollenback. — Não à frente dos
convidados!
— Sorte a nossa! — grita Julby e foge a correr da cozinha.
A Sra. Hollenback tapa a boca com a mão. Os seus olhos enchem-se de
lágrimas. Depois apela a Partridge e Iralene. Agarra-lhes nas mãos.
— Não digam a ninguém que ela esteve assim. Ficarão com a
impressão errada. Ela está bem. É boa pequena. É normal! Não é como o
Jarv. A Julby vai crescer sem problemas. Não lhes contem isto. Está bem?
Por favor.
O Sr. Hollenback intervém:
— Helenia, para. Não dês mais importância ao assunto do que ele
realmente teve.
— Não diremos a ninguém, Sra. Hollenback — assevera Partridge. —
Não diremos nada. Prometemos.
Iralene sorri:
— Ouvi a pequena dizer: "Sorte a nossa", e ela tem razão. Todos temos
sorte. Temos muito que agradecer.
O Sr. Hollenback toca no ombro da mulher.
— Vês, querida?
— Não falamos do Jarv — diz a Sra. Hollenback.
— É isso mesmo — sussurra o Sr. Hollenback. — Vamos seguir em
frente, sem olhar para trás. Já tomámos essa decisão.
A Sra. Hollenback faz um sinal de assentimento e dirige-se para o lava-
louça.
— Sim, sim, claro. Sorte a nossa. Sorte a nossa. Sorte a nossa.
Capítulo 45

Lyda
Veado-Anão

Lyda aprendeu a floresta. A esta hora da tarde os animais deslocam-se


para a água, fazendo uma pausa num dia passado em esconderijos. A luz
que se coa através das árvores adquire uma inclinação oblíqua e capta as
partículas de pó que giram no ar. Ouvem-se os ruídos constantes e
irregulares da floresta, os pássaros com os seus pios distorcidos vindos da
copa das árvores, a água a escorrer em busca de mais água à qual se juntar,
e o odor a terra e pó.
A Mãe Hestra está à esquerda de Lyda, a poucos metros de distância. O
seu passo é irregular, por causa de Syden, mas também quase silencioso.
Lyda já sabe as palavras gravadas de trás para a frente que escurecem o
rosto da Mãe Hestra: OS CÃES LADRAVAM ALTO. ERA QUASE
NOITE. Nunca perguntou o que aquelas palavras significam, nem o motivo
por que ali estão. Parece descortês levantar o assunto. A Mãe Hestra nunca
falou sobre o que estava a fazer durante as Detonações, e pouco disse
acerca da sua vida no Antes.
A vegetação rasteira da floresta é densa, e é precisamente essa a razão
pela qual elas caçam ali. Tornaram-se excelentes a apanhar pequenos
animais: veados-anões, musaranhos, doninhas de duas pernas que arrastam
o corpo pelo chão, como lagartos. Deixam os predadores perigosos caçar à
noite. Mas nunca estão longe do perigo. As Mães já têm sido caçadas
enquanto caçam, e mortas por Agrupados e Bestas.
Lyda sente o cheiro de um ninho diurno de veado-anão próximo. Esses
animais repousam em grupo e têm um odor intenso e almiscarado, muito
diferente do perfume delicado dos cães pequeninos, regularmente banhados
em champôs perfumados, que existem na Cúpula. Lyda adora o cheiro dos
ninhos. Fá-la sentir-se viva. A pega do arco está polida pela sua palma
suada. Foi ela que fez a seta, à mão, com a ajuda da Mãe Hestra. O arco é
feito de fibra de vidro, retirada de algo que as Mães desmantelaram e
cortaram em tiras. A corda é fina e reluzente. Sempre que Lyda dispara, a
corda vibra uma nota junto ao seu ouvido direito, como se tivesse sido
tirada de um instrumento musical.
Lyda verifica se as penas da seta estão direitas, se a seta encaixa
confortavelmente na corda do arco, pronta a ser puxada.
Sente uma restolhada mais adiante. Para, levanta a mão. A Mãe Hestra
estaca. Lyda ajoelha-se de modo a ter linhas de mira através da vegetação
rasteira. A Mãe Hestra também dobra um joelho, mantendo-se silenciosa e
imóvel.
Lyda encontra o seu alvo: um veado-anão rechonchudo a inclinar-se
para a frente sobre as curtas patas dianteiras para apanhar algo no chão da
floresta. Se Lyda o atingir mesmo atrás das espáduas, cortando-lhe a espinal
medula e penetrando o crânio, o animal distraído nem deve sentir a picada
da seta. Um mau tiro significará terem de seguir o animal ferido por entre a
vegetação rasteira e, muito provavelmente, a perda da seta. Ela raramente
falha.
Lyda puxa a corda e olha ao longo da haste. Aprendeu que o primeiro
movimento dos veados-anões é para trás, levantando-se das patas dianteiras
curtas para se apoiarem nos quartos traseiros robustos. Faz pontaria. Está
pronta a disparar e a sua respiração está retida, mas ao imaginar a flecha a
voar para o corpo do veado, sente um mal-estar no peito e na garganta,
como se os nervos lhe tivessem dado a volta ao estômago e provocado
náuseas. É assim que se sente, por vezes, quando pensa em Partridge: um
calor afogueado ao recordar como era beijá-lo, estar sozinha com ele.
Doente de amor. É o que lhe chamam e é o que é. No entanto, deixa voar a
seta e percebe imediatamente que a sua postura não estava firme, que o
projétil vai desviar-se.
E tem razão. A seta rasga a carne entre as costelas inferiores do veado.
Este guincha, como um porco, e cai, mas logo se levanta e corre em busca
de abrigo.
A Mãe Hestra começa a correr, segurando a cabeça do filho contra o
corpo, e arranca à frente de Lyda antes que ela tenha sequer tempo para se
pôr em pé.
Lyda corre atrás dela por entre as árvores. Quer pedir desculpa, não só
à Mãe Hestra, mas também ao animal. Sabe que ele está a sofrer. Espera
que a ferida sangre, permitindo à Mãe Hestra seguir o rasto com facilidade
e pôr fim ao sofrimento da criatura. Ao mesmo tempo, Lyda não quer que o
cheiro do sangue atraia os híbridos mais cruéis do matagal.
Segue na esteira da Mãe Hestra, que é rápida e leve apesar do peso da
criança. Aprendeu a compensar o desequilíbrio.
Lyda prepara outra seta, para o caso de outros animais começarem a
rondar. A Mãe Hestra tem uma arma roubada de uma reserva pilhada às
Forças Especiais pelos Rapazes da Cave, mas usá-la-á apenas como último
recurso, se forem atacadas.
O que terá feito Lyda falhar? Talvez tenha comido qualquer coisa
estragada, ou esteja simplesmente com fome. Partridge volta-lhe à mente,
brevemente, mas ela afasta-o do pensamento. Tem de estar alerta e bem
presente na floresta. Crispa a mão no arco, dá mais alguns passos e vê a
Mãe Hestra erguendo-se sobre um montículo de pelo. O veado está
ofegante, com a pelagem encharcada em sangue, que forma uma poça junto
ao seu focinho. Sacode a cabeça como se ainda estivesse a tentar levantar-
se.
A Mãe Hestra puxa a sua arma. Esfrega rápida e bruscamente as
palavras queimadas na sua face, OS CÃES LADRAVAM ALTO. ERA
QUASE NOITE. Não tapa os olhos do filho; tudo aquilo faz parte da vida.
Mas Lyda desvia o olhar e depois ouve um baque abafado. Sabe que é o
barulho da coronha da arma a bater no crânio do veado. Porquê desperdiçar
uma bala? Agora o veado está em paz, pensa Lyda, mas quando contorna
uma árvore e vê a Mãe Hestra e o veado, compreende que algo está errado.
A Mãe Hestra vira-se para ela.
— Era uma corça grávida. Às vezes fazem isto. Na morte, o corpo
expele o feto, dando-lhe uma possibilidade de sobrevivência. — Há um
corpo de quatro patas, húmido e escorregadio, sem pelos. Tem os olhos
inchados e colados. Lyda sabe que vai lembrar-se daquela imagem. Vai vê-
la esta noite, quando fechar os olhos. É algo que vai assombrá-la.
Vira as costas, incapaz de assistir. Acocora-se, pousa uma mão na terra
e vomita. É completamente apanhada de surpresa. Já se habituou ao sangue.
Aquilo nunca lhe tinha acontecido. Fica ainda mais admirada quando
vomita de novo.
A Mãe Hestra toca-lhe no ombro. Lyda põe-se em pé, enxuga o suor da
testa; está a transpirar, embora esteja frio ali fora.
A Mãe Hestra fita-a com uma expressão muito estranha. Os cães
ladravam alto. Era quase noite, pensa Lyda com os seus botões. Porquê
aquelas palavras? Porquê? Não gosta da maneira como os olhos da Mãe
Hestra parecem tão intensos, tão ansiosos. Por fim, a Mãe Hestra diz:
— Deixaste de sangrar, não foi?
— De sangrar?
— Os teus períodos.
Lyda cora. Não se fala disso na Cúpula. Há um pequeno armário, com
tudo o que é necessário, em cada casa de banho da Academia feminina. Não
há necessidade de falar no assunto. Mas há algum tempo que ela não tem o
período. Tinha partido do princípio que isso se devia a tantas alterações
físicas: trabalho árduo e refeições estranhas e parcas.
— Tem razão.
— Deitaste-te com aquele rapaz?
— Desculpe? — Lyda afasta-se e sacode a terra dos joelhos das calças.
— Guardámos-vos constantemente. Mantivemos-vos separados.
Estávamos a tentar salvar-te e aconteceu isto? Ele magoou-te?
Lyda abana a cabeça.
— Obrigou-te a fazer essa coisa?
— Que coisa?
— Sabes ao menos do que estou a falar?
Lyda sabe do que ela está a falar. Uma vozinha no fundo da sua cabeça
já sabia a verdade. Sabia-a quando vira o feto do veado-anão, não sabia?
Não terá sido em parte essa a razão pela qual se desviou e vomitou? Tem
consciência disso agora, mas não consegue dizer uma palavra.
— Estás grávida. É o que é. Temos de dizer à Nossa Boa Mãe.
— Não posso estar grávida. — Houve um mal-entendido. Ele
perguntou se ela tinha a certeza, mas ela julgara que ele estava a falar de
outra coisa, A gravidez é apenas um mal-entendido. A floresta parece
perigosa de repente. A luz da tarde está a desaparecer.
— Estás, sim — afirma a Mãe Hestra. — Sei que é verdade.
— Mas nós não somos casados. — Estavam apenas a fingir ser marido
e mulher.
— Não sabes como funciona? Nunca ninguém te disse?
Lyda pensa nas suas aulas de puericultura: como aplicar pomada para
erupções cutâneas, como tirar crostas do couro cabeludo do bebé, como
esfregar soro para dentição nas gengivas. Não ensinavam nada sobre
gravidez. As raparigas segredavam.
— Não, não sei como funciona.
— Bem, então aprendeste por experiência própria.
Lyda pensa na armação de latão da cama, no seu corpo e o corpo de
Partridge no chão, por baixo do casaco. Grávida. Há uma criança a crescer
dentro dela. Quão pequena será? Quer ver a sua mãe. Tem de lhe contar.
Mas é possível que nunca mais volte a vê-la.
— Mãe Hestra! — Estende as mãos. — O que vai acontecer comigo?
A Mãe Hestra abre os braços e abraça-a.
— A Nossa Boa Mãe proferirá uma sentença. Ela saberá o que é
melhor.
— Uma sentença? — Lyda agarra-se à Mãe Hestra com mais força.
— É ela a juíza em todos os assuntos.
Lyda recua e estuda o rosto da Mãe Hestra.
— O que vai ela fazer comigo? Punir-me? Banir-me?
— Vou pensar na melhor maneira de lhe dizer. Vai correr tudo bem —
sussurra ela. A floresta faz os seus ruídos suaves em volta delas. — Calma,
agora. Calma.
Capítulo 46

El Capitan
Olhos

El Capitan grita a Hastings que entre no carro. Todos os outros estão a


correr para lá, mas Hastings mantém-se firme, com as armas prontas a
disparar. Jesus, o que poderá fazer vibrar a terra daquela maneira? Poeiras,
sim. Mas de que tipo? E quantos seriam precisos para abanar El Capitan tão
violentamente que ele sente as vibrações nas profundezas da sua própria
caixa torácica e também nas costelas de Helmud, que lhe reverberam nas
costas?
— Hastings! — grita de novo.
— Deixa-o! — diz Bradwell. — Entra no carro.
— Não consegues argumentar com o Hastings, Cap! — brada Pressia.
Tem razão. Provavelmente Hastings foi programado para ser corajoso;
não tem alternativa senão manter-se firme e lutar. El Capitan adoraria ser
capaz de ultrapassar os seus próprios instintos e emoções, principalmente o
medo. O medo arranha-lhe o peito como um animal encurralado.
Pó, terra e areia revoluteiam violentamente à sua volta. El Capitan olha
para Pressia, as faces vermelhas à força de serem esbofeteadas pela terra e
as cinzas que pairam no ar. Ele deseja que Bradwell deixe de ser tão
protetor em relação a Pressia. Para que terá de agarrar a mão dela daquela
maneira? Ela sabe cuidar de si própria. Não precisa dele.
— Protejam-se! — grita Hastings.
— Está bem! — berra El Capitan.
Pressia e Bradwell atiram-se juntos para o banco de trás. El Capitan e
Helmud sentam-se atrás do volante. Batem as portas, trancam-nas, fecham
as janelas. O carro oscila na armadilha da chávena de chá. Helmud enterrou
a cabeça nas costas de El Capitan.
— Por que não se mostram? — diz Pressia. — Sabemos que eles estão
lá, debaixo de terra. Porque não virão à superfície?
— Estão a brincar connosco — afirma Bradwell. — Temos de aguentar
e ver com o que estamos a lidar.
— Nós não podemos ficar aqui! — exclama Pressia, sobrepondo a voz
ao uivo do vento e ao rugido da terra.
— O Hastings não vai conseguir afastá-los sozinho — observa El
Capitan. Será capaz de sair e postar-se ao lado de Hastings? Terá coragem
para isso? Verifica as munições da espingarda e pensa no seu pai, afastado
por motivos psiquiátricos. Isso terá acontecido por ele não ser
suficientemente rijo, ou fora considerado louco por correr demasiados
riscos? Qual será o legado de El Capitan? Quem lhe dera saber.
— Mesmo que o carro se aguente, eles só têm de esperar. Nós
morreremos de desidratação — diz Bradwell.
— Não permitirei que isso aconteça — declara El Capitan.
— Permitir que isso aconteça? — sussurra Helmud nervosamente atrás
do pescoço do irmão.
Bradwell agarra as costas do banco de El Capitan e puxa-se para a
frente.
— Se sairmos, eles devoram-nos.
— Presos por ter cão e presos por não ter — diz El Capitan. — Por
mim, prefiro morrer a lutar do que esconder-me como um fraco!
— Estás a chamar-me fraco? — interpela-o Bradwell.
— Se tencionas deixar-te ficar aqui sentado e morrer, então sim. Estou
a chamar-te fraco.
— Fraco, fraco — diz Helmud, como se estivesse a confessar-se.
— Escuta aqui, Cap, tu és apenas um...
— Apenas um quê? — corta El Capitan. — Um borra-botas cuja mamã
e papá não eram professores?
— Não foi isso...
— Olhem! — grita Pressia, olhando pela janela.
A terra estremece em pontos pequenos, do tamanho de moedas, cada
tremor independente dos outros, até que, um a um, irrompem olhos do solo.
Centenas deles. Talvez milhares. É como se algo plantado ali tivesse
florescido de repente, mas, em vez de flores, há olhos, todos a piscar
espasmodicamente para sacudir a terra. Olhos molhados, pestanejantes,
incrustados de poeira e cinza nos cantos, franzem-se e cintilam como
estranhas amêijoas ou ostras acabadas de emergir em massa da areia.
Bradwell larga o banco do condutor e diz:
— Raios! Isto não são Poeiras vulgares. O que serão?
El Capitan já viu um olho ou dois, nas Terras Áridas. Geralmente são
apenas o ínfimo vestígio de um ser humano; fundido com a terra, perdido
para sempre. Mas Hastings, ainda a tentar manter-se firme, é surpreendido
por eles, a tal ponto que cambaleia para trás e embate no carro, o seu
armamento a retinir contra o capô.
Pressia estende a mão e agarra no braço de El Capitan por trás do
banco, surpreendendo-o tanto que ele quase o arranca da mão dela. Não está
habituado a que lhe toquem assim. É um oficial. Tenta não se mexer.
— Não são apenas olhos, pois não? — pergunta Pressia.
A voz dele sai-lhe rouca da garganta:
— Não. Creio que não.
Pressia aperta-lhe o braço com mais força e El Capitan sente um rubor
nas faces.
— O que devemos fazer?
— Devemos ficar juntos — diz ele.
— Juntos — diz Helmud, chamando a atenção para o facto de estarem
presos um ao outro para sempre. El Capitan sente ódio pelo irmão, num
súbito lampejo de raiva.
— O que queres dizer com isso de não serem apenas olhos? —
pergunta Bradwell. A mão de Pressia continua onde estava.
— Este rugido — responde ela — E se são os corpos deles lá em
baixo, corpos grandes?
— Devíamos tentar fugir antes que comecem a levantar-se, se, de
facto, é o que vão fazer — diz Bradwell.
A mão de Pressia desliza do braço de El Capitan.
— Não temos alternativa. Isto vai ficar cada vez pior.
Hastings dispara uma rajada de uma das suas armas automáticas.
Aponta aos próprios olhos, que desaparecem no subsolo enquanto as balas
ressaltam na terra, levantando finas espirais de pó que são levadas pelo
vento.
Mas a terra começa a rugir mais alto do que antes, com mais violência.
— Ele não devia ter feito aquilo — diz Pressia.
Como em resposta à ameaça, brotam da terra cabeças bulbosas e
poeirentas, maçãs do rosto, bocas escancaradas, pequenas saliências
arredondadas que servem de orelhas. As criaturas erguem os ombros e
braços esqueléticos. Os seus corpos são tão pesados de terra que parece que
estão a içar-se de alcatrão. Sobem da terra: troncos, coxas, pernas.
Humanos?
São emaciados, as costelas salientes, os ombros e costas ossudos. Mas
alguns também parecem ter sido mais gordos. A parte central dos seus
corpos está coberta com o que se assemelha a uma malha suja que foi
outrora pele. Os seus olhos continuam a piscar furiosamente, mas o resto
dos seus rostos parece quase morto; as feições flácidas e o queixo caído.
Deslocam-se como se os seus braços e pernas estivessem inchados e as suas
articulações hirtas.
Hastings vira-se e dispara, mas ao contrário dos Poeiras que vivem
mais perto da Cúpula, estes não se desfazem nem rasgam. Não. As balas
formam buracos negros. Aparece uma gota de sangue, mas coagula numa
crosta escura quase que imediatamente.
— Por que não morrem? — pergunta Pressia.
El Capitan dá instintivamente a volta à chave, ligando o motor. Pisa o
acelerador.
— O que estás a fazer? — grita Bradwell.
— A tirar-nos daqui. — El Capitan engata a marcha-atrás, mas o pneu
está demasiado atolado. As rodas traseiras limitam-se a levantar terra, pó e
pedras. Ele engata a primeira, tentando incitar o carro a sair do buraco. —
Vá lá! Vá lá!
Helmud arranha as costas do irmão, como se pudesse abrir um buraco e
esconder-se. Hastings continua a disparar.
Pressia grita:
— Não está a resultar, Cap!
Um punho pesado atinge o para-brisa. O rosto surge à vista, com as
pálpebras a piscar furiosamente, o poço escuro e oco de uma boca. Outro
Poeira bate nas janelas laterais com as patas.
Hastings tenta afastá-los. As balas atordoam-nos momentaneamente.
Ele dispara freneticamente, não apenas contra os que estão junto do carro,
mas também contra os que estão a vir à tona à sua volta.
O carro fica rapidamente coberto de mãos, que batem e arranham. El
Capitan ouve Hastings disparar, mas já não consegue vê-lo. São aqueles
olhos que El Capitan não aguenta: vivos e enlouquecidos. Seria melhor se
fossem olhos mortos, lacónicos e vidrados como os dos mortos-vivos. Há
muito tempo que não pensava na palavra morto-vivo. Dantes transferia
filmes pirateados que não estavam na lista autorizada, todos aterrorizadores.
E após as Detonações viu aqueles olhos mortos, rostos carbonizados e
corpos a caminhar em passos pesados como chumbo, lentos e constantes.
Viu um deles apoiar-se à casca de uma árvore e, quando tirou a mão, a pele
do seu braço soltou-se toda inteira, como uma comprida luva preta.
Um dos Poeiras contorce-se e afasta-se da janela, urrando e
rodopiando. Um dos seus olhos transformou-se numa massa sangrenta, nada
mais do que uma órbita. Cai de joelhos. Por que terá aquele caído? Porquê
agora? Os outros Poeiras são atraídos para a criatura que se contorce, talvez
por causa do cheiro a sangue ou do estridente grito humano, e avançam
sobre ele nas suas pernas pesadas. O Poeira ensanguentado é virado de
costas. Com a órbita ferida a sangrar para cima do olho são, que pisca para
afastar o sangue, o Poeira fita os outros e, lentamente, abre os braços em
sinal de rendição.
Hastings grita:
— Mexam-se! Agora!
Enquanto os Poeiras se alimentam do seu companheiro tombado,
Bradwell e El Capitan saem do carro, mas Pressia fica paralisada. Não
consegue tirar os olhos dos Poeiras que se alimentam da sua própria
espécie.
— Pressia! — grita Bradwell, debruçando-se de novo para o interior do
carro, com Fignan debaixo do braço. — Vamos embora! Já! Mexe-te!
Mas é como se ela não o ouvisse. Está presa ao horror daquela
imagem. El Capitan afasta Bradwell e diz:
— Ouve-me, Pressia. Consegues ouvir-me?
Ela faz que sim com a cabeça.
— Fecha os olhos — diz-lhe El Capitan. — Fecha-os, vira a cabeça e
olha para mim.
Ela pestaneja e depois fecha os olhos.
— E vira-te para mim.
Ela vira a cabeça e abre os olhos. Por um segundo, El Capitan não
consegue falar. Há algo na maneira como ela o olha que o deixa sem fôlego.
Está a olhar para ele com uma expressão de esperança. Precisa dele.
— Agora vem e não olhes para trás, está bem? — Ela agarra-lhe no
braço e sai do carro.
O braço magro de Helmud surge por cima do ombro de El Capitan.
Segura algo no punho cerrado. Abre-o. E é um... pássaro?
Pressia pega-lhe.
— Um cisne — diz ela. — Obrigada, Helmud.
— Pois, ele é um grande artista, não é, Helmud? — comenta El
Capitan, furioso por o seu irmão, o seu irmão idiota, lhe ter roubado aquele
momento. Tinha estado a talhar um cisne lá atrás? — Muito amigo de dar
presentes.
Todos começam a correr, com as armas às costas, descendo a colina em
direção ao parque de diversões.
— Ela está bem? — pergunta Bradwell a El Capitan.
— Ótima! — replica ele.
— Obrigado por aquilo lá atrás — acrescenta Bradwell.
El Capitan recusa-se a responder. Se o fizesse, estaria a aceitar que
Pressia é, de algum modo, responsabilidade de Bradwell. E, tanto quanto El
Capitan pode dizer, não é esse o caso.
O chão treme com tanta violência que El Capitan perde o equilíbrio e
cai desamparado, esfolando as palmas das mãos. Mesmo à frente de seu
rosto está um olho. Pisca com tanta força que dá para o ouvir estalar. El
Capitan levanta-se e retoma a corrida.
O parque de diversões avoluma-se diante deles. Está rodeado por uma
cerca de arame rematada por arame farpado. Através dela, El Capitan
consegue ver um pouco do parque: um grande navio deitado de lado, uma
cabeça de palhaço gigantesca — o próprio Crazy John-Johns — com o
crânio rachado, mas ainda em equilíbrio sobre um pescoço feito de uma
mola enorme e enferrujada, e a roda gigante, que deve ter-se soltado da
respetiva estrutura, rolado e ficado presa a um conjunto de cabos de
sustentação. A parte inferior da roda gigante, com as suas cabinas coloridas,
perdeu-se nas dunas de terra varridas pelo vento. Todas as cores estão
desbotadas, mas ainda é uma das coisas mais belas que El Capitan vê há
muito tempo. Pensa em quantas vezes a sua mãe tinha prometido levá-los
lá. «No próximo ano, quando as coisas não estiverem tão apertadas», dizia
ela. Pouco antes de ter sido levada para o hospício, dissera-lhe que o levaria
ao parque de diversões quando voltasse para casa. Ele respondera que não
tinha importância. «Não passa do estúpido Crazy John-Johns. Como se eu
me ralasse com um palhaço estúpido.» Mas agora desejaria que tivessem lá
ido, apenas uma vez. Aterrorizado e sem fôlego, não consegue impedir-se
de dizer a Helmud:
— Olha-me para aquilo!
— Olha-me para aquilo — diz Helmud. Talvez também desperte uma
memória nele.
— Para onde? — grita Pressia.
— Vão para a esquerda! — brada Hastings. — Sigam-me. — Ele é
forte e tem as pernas compridas. Podia ir muito mais depressa, mas
mantém-se ao lado deles, esquadrinhando o terreno aos seus pés e o
horizonte em todas as direções.
— Foram os olhos, não foram? — grita Bradwell. — E a coisa mais
humana neles. A parte vulnerável. Se conseguirmos atingi-los nos olhos...
El Capitan pensa nas Bestas dos Campos de Destroços, e em como é
preciso encontrar um pedacinho exposto de tecido vivo e pulsante sob
aquilo que parece uma concha de pedra blindada, e cravar profundamente a
faca nesse ponto, para as matar. Os olhos, pensa. Claro. Puxa a arma para a
frente e dispara, apontando aos olhos que os espreitam ao longe.
— Não! — grita Pressia. — Isso chama-lhes a atenção!
El Capitan olha para trás por cima do ombro e verifica que Pressia tem
razão. Alguns dos Poeiras levantaram a cabeça do seu companheiro
devorado e olham agora na direção deles.
Pressia puxa da sua faca e, sem deixar de correr, apunhala o centro de
um olho que apareceu subitamente perto dela. O olho rebenta em sangue,
que ensopa a terra. O solo palpita e depois fica imóvel. Aquela morte, mais
silenciosa, não chama a atenção dos outros Poeiras.
— Aqui — diz Bradwell, estendendo a mão. — Dá-me a faca. Eu faço
isso.
— Não, eu faço — diz El Capitan.
Mas Pressia corre à frente deles. Fura um olho e depois outro, abrindo
caminho com punhaladas rápidas.
— Helmud! — chama El Capitan, dando-se conta de que o seu irmão
está armado. — Dá-me o teu canivete.
Helmud abana a cabeça. Não, não, não.
— Dá-mo já!
Não, não, não.
El Capitan estica a mão por cima do ombro e bate na cabeça do irmão,
primeiro de um lado, depois do outro.
— Dá-mo!
Não.
— Talvez queira ser ele a fazê-lo — observa Bradwell.
— Estás doido?
— Doido! — diz Helmud.
Pressia olha para trás. A sua faca está toda ensanguentada.
— Cap! — brada ela. Quererá dizer para ele parar de bater em
Helmud? Quererá que ele deixe Helmud tentar matar alguns Poeiras?
Seja como for, entretanto tornou-se evidente que é uma batalha
perdida. Poeiras içam-se do solo de ambos os lados. Os que devoraram o
Poeira do olho ensanguentado vêm agora lá de trás. São demasiados a
aproximar-se. Então, por que não deixar que Helmud tente a sua sorte?
Além disso, Helmud não está à altura da tarefa. Falta-lhe a musculatura, o
ritmo. El Capitan gostaria realmente de ver Helmud falhar. Depois de ter
feito aquele cisne e de o ter oferecido a Pressia, isto servirá para recordar a
Helmud a sua fraqueza, a sua dependência, e para o pôr no seu lugar.
— Estás pronto, Helmud?
— Pronto Helmud! — diz Helmud.
El Capitan avista um Poeira próximo. Baixa-se até ao chão, inclinando-
se para a direita. Helmud ergue o canivete bem alto no ar. Crava-o na terra,
falhando o alvo por quase um palmo.
— Nem mesmo perto! Dá-me a porra da faca!
Helmud abana violentamente a cabeça.
El Capitan deixa-o tentar de novo. Desta vez, Helmud acerta. O olho
rebenta numa bola de sangue e desaparece. El Capitan diz:
— Este, aqui. — Mais uma vez, Helmud acerta em cheio no olho. El
Capitan continua a correr, deixando Helmud cravar golpe após golpe. Por
mais que odeie Helmud por ter apanhado o jeito àquilo, sente-se
subitamente orgulhoso dele também. El Capitan equilibra-os, Helmud crava
a lâmina. Fazem uma boa equipa, adquirem um ritmo e movem-se
rapidamente. Talvez Pressia veja como El Capitan é bom irmão. Bradwell
mantém-se junto de Pressia e El Capitan corre para o lado dela também.
Hastings está agora atrás deles, o solo saturado por um caminho
pontilhado, vibrando com as mortes de Poeiras em convulsões rápidas.
Pressia levanta o olhar. Compreende agora que há demasiados
atacantes.
— Acabou — diz ela. — Estamos em desvantagem.
Param e rodam em círculos lentos, enquanto os Poeiras se aproximam.
A cerca de arame em torno do parque de diversões está a uns escassos
cinquenta metros de distância, à sua direita. Mas seria um refúgio seguro?
Há gente de vigia no cimo da montanha-russa. É possível que estejam a
trabalhar com os Poeiras, ou a utilizá-los para atrair presas. Foram eles que
montaram a armadilha da chávena de chá. Talvez tudo aquilo faça parte do
seu plano.
— Não há nada que possamos fazer — diz Pressia.
El Capitan sente uma pontada no coração. O olhar dela é tão intenso, é
como se estivesse a tentar memorizar o seu rosto. Ninguém tinha jamais
olhado para ele assim.
Hastings diz:
— Apontem aos olhos e abram fogo.
— Só vai servir para atrair mais — objeta Pressia, mas depois abana a
cabeça. — Suponho que não interessa se somos mortos por cem Poeiras ou
por mil.
— A partir de certa altura, é só matemática — diz Bradwell.
— Façam o que quiserem. Eu vou cair a lutar — diz El Capitan.
— A lutar — diz Helmud.
Capítulo 47

Pressia
Crazy John-Johns

Quando El Capitan, Bradwell, e Hastings abrem fogo, os ouvidos de


Pressia começam a zumbir. A sua vista é turvada por uma nuvem de areia e
cascalho. Ela segura a faca com força e está pronta para continuar a lutar
quando é atingida nas costas com tanta força que cai para a frente, aterrando
com violência. A faca voa-lhe das mãos. As suas palmas deslizam sobre o
terreno, queimando a pele.
Consegue ouvir o Poeira, os seus grunhidos laboriosos.
Quando se vira para o enfrentar, sente a ligadura que mantém os
frascos no lugar torcer-se e desenrolar-se, cortada pelo golpe da garra afiada
do Poeira nas suas costas. Antes que tenha tempo para puxar os frascos de
novo para junto do corpo, eles caem e rolam em três direções diferentes.
— Bradwell! Cap! Hastings! — chama. O Poeira avança pesadamente
para ela. Hastings dispara um tiro, obliterando a cabeça do Poeira, que cai
no chão.
Ao longe, a terra agita-se em convulsões, libertando uma nuvem de pó.
Uma racha delgada rasga o solo, correndo em ziguezague em direção a
Bradwell. Este não dá por nada. Tem a cabeça levantada, os olhos a varrer o
horizonte em todas as direções. El Capitan grita:
— Bradwell! Mexe-te!
O rugido é tão alto que Bradwell não o ouve. Enquanto se afasta
atabalhoadamente do Poeira, Pressia quer correr para ele, puxá-lo para um
lugar seguro. Mas há os frascos; não pode abandoná-los. Estica-se e agarra
um frasco, depois outro. Mas o terceiro está fora do seu alcance. Não pode
perdê-lo. É demasiado precioso. Arrasta-se para a frente, mergulha, mas o
solo começa a rachar perto do frasco. O líquido ambarino treme.
Uma mão incrustada de terra emerge da racha, arrancando-se do chão.
Um Poeira mutilado, curvado e espancado. O frasco oscila perto do seu
corpo espesso e coberto de lama enquanto ele se iça para a superfície. A
mão esquerda do Poeira começa por bater no frasco, depois esmaga-o
debaixo da palma.
— Não! — grita Pressia. O líquido encharca a mão do Poeira. E a terra
e areia comprimidas rompem imediatamente. As articulações tornam-se
volumosas e grossas. A pele fica avermelhada e com aspeto humano: uma
mão humana grande e intumescida. É uma mão surpreendente, humana,
gigantesca e forte.
O Poeira olha para a sua mão, esfrega-a no peito, ergue-a e fica a olhar,
boquiaberto. Depois põe-se a olhar simplesmente para Pressia. Agarrando
os dois frascos remanescentes, ela recua rapidamente, de gatas, levanta-se e
corre.
El Capitan grita-lhe:
— Baixa-te! — Ela cai de joelhos e enrola-se numa bola. El Capitan
derruba o Poeira com um tiro.
Quando Pressia levanta a cabeça, vê que o chão a toda a volta de
Bradwell continua a rachar; fissuras finas e escuras em ziguezague em torno
das suas botas. Agora ele também as vê. Está cercado por rachas cada vez
mais largas.
— Bradwell! — grita ela, mas não pode ajudá-lo. Aperta os frascos nas
mãos. Teria podido ajudar se não tivesse voltado atrás para os ir buscar?
Sente-se doente. — Bradwell! — chama de novo, inutilmente.
Hastings, com seus reflexos hiper-rápidos, corre para ele, atira-o pelo
ar. Bradwell aterra sobre o ombro e olha para Hastings, estupefacto, no
preciso momento em que um buraco se abre sob as botas do antigo soldado.
Este cai na abertura, tenta sair. Mas o buraco não é um buraco. É outra
armadilha, que se fecha com um estalido. Prendeu-o pela perna. Hastings
entra em pânico e dispara contra o solo, perfurando a terra. Os seus olhos
estão desvairados. Pressia reconhece aquele olhar. Já o viu noutros
elementos das Forças Especiais: metade terror e metade determinação.
Hastings tenta freneticamente salvar o que resta de si próprio. Sacode a
parte superior do corpo para trás e para a frente, como um peixe num anzol,
e usa a perna apoiada em terreno firme para se arrancar da armadilha
fechada.
Bradwell põe-se em pé apressadamente, vê o que ele está a fazer e
recua a cambalear.
El Capitan grita:
— Não! — Helmud grita também.
Pressia sabe que é a única coisa que Hastings pode fazer. Vira as costas
para não ver.
Depois olha para o Poeira morto, cuja mão havia absorvido o conteúdo
do frasco da sua mãe. Os músculos dele cresceram e avolumaram-se,
grossos e fortes, subindo ao longo do antebraço. Ela pensa no que a mãe
dissera a Partridge: que o produto de nanotecnologia biomédica contido nos
frascos não desemaranha tecido. Adere e constrói. As células humanas da
mão do Poeira parecem ter-se reconstruído a um ritmo febril. Aquele
medicamento é um tipo de cura em que não se pode confiar para saber
quando parar. Não consegue desfazer fusões. O que fariam frascos às
células humanas perdidas dentro do seu punho da cabeça de boneca? Está
maravilhada com a beleza da transformação, com a humanidade repentina
da mão do Poeira: a elasticidade tensa da pele sobre o osso, o tecido
muscular. Então ouve um estalo nauseante atrás de si. Hastings solta um
grito rouco — alto e aparentemente interminável. Pressia vira-se.
Ele arrancou-se da armadilha. A sua perna desapareceu do joelho para
baixo. Há apenas um emaranhado sangrento de carne, tendões e músculos.
Hastings salta duas vezes a pé-coxinho e cai. O seu sangue jorra para a
terra.
— Precisamos de um torniquete! — grita Bradwell.
Pressia segura os frascos contra o peito com a cabeça da boneca e, com
a outra mão, tira o cinto. Corre para Hastings e Bradwell, ajoelhando-se ao
lado do ferido.
— Vou pôr isto tão perto da ferida quanto possível — explica.
— Há uma artéria, a femoral, que corre ao longo da parte de trás do
joelho. Tem de ser cortada ou ele vai esvair-se em sangue.
Bradwell olha para ela, impressionado.
— Sou neta de um alfaiate de carne. Segurei pacientes que estavam a
ser amputados.
Bradwell comprime a coxa de Hastings enquanto Pressia passa o cinto
em torno da carne da sua perna e aperta, puxando com toda a força. El
Capitan dá uma ajuda. Juntos, abrem à força um furo novo no couro do
cinto, para o segurar no sítio.
— Hastings — diz Bradwell, agarrando o tecido do uniforme.
— Fica connosco. Está bem? Aguenta-te.
El Capitan olha em volta.
— Vamos morrer aqui.
— Morrer aqui — diz Helmud.
Pressia também o sente. Os Poeiras estão a ser atraídos pelo cheiro do
sangue.
— Bradwell — chama.
Ele olha para ela.
— Não o digas. Eu sei. Devia ter tido mais fé em Hastings, talvez mais
fé nas pessoas em geral.
— Não é isso. — Ela quer dizer-lhe algo. Mas o quê? Podem morrer ali
e, da última vez que estiveram numa situação semelhante, ela não conseguia
pensar direito, não conseguia falar. Quererá dizer-lhe que ele a faz sentir
como se estivesse a cair? Que quer que ele sinta o mesmo em relação a ela?
— O que é, Pressia?
Ela tem a impressão de que o seu peito vai explodir. Vento e terra voam
em redor deles. Ela agarra-lhe na manga. E depois ouve-se música algures
lá em cima, as notas tilintantes de uma canção animada a tocar muito alto
através de um antigo sistema de PA, que emite um silvo de retorno
estridente pelos altifalantes. A canção está tão gasta que vacila.
— Como uma carrinha de gelados — diz Bradwell, mas Pressia não
sabe como tal coisa soaria. Os gelados vinham em carrinhas que tocavam
música? Hastings tenta levantar a cabeça.
— Fica quieto — adverte Bradwell.
Os Poeiras conhecem aquela música. A avaliar pelos seus rostos
contorcidos e o seu pestanejar frenético, a canção significa algo de terrível
para eles. Levantam a cabeça para o céu. Batem nos ouvidos com os braços.
Ajoelham-se, baixam a cabeça. Alguns gemem e gritam.
Então algo silva pelo ar. Uma das cabeças dos Poeiras é projetada para
trás. Ele grita e, quando baixa o queixo até ao peito, está a arranhar o
próprio olho. Uma bala. O sangue jorra da ferida, ensopa a pele terrosa do
rosto do Poeira. Outra bala passa ao lado de Bradwell. Ele estende a mão,
puxa Pressia para baixo, contra o peito de Hastings, e tapa-a com o corpo.
El Capitan e Helmud também protegem a cabeça.
Os Poeiras começam a enterrar-se no chão. Apenas são capazes de
efetuar movimentos lentos, mas Pressia percebe que estão em pânico. São
atingidos por mais balas, uma das quais bate no chão e rola diante de
Pressia. É uma bola pequena e dura. Ela pega-lhe. Bradwell vê-a.
— Um bê-bê? — admira-se ele.
— O que é um bê-bê? — Olham para o parque de diversões,
procurando os atacantes.
— De onde vêm? — pergunta Bradwell.
Então um dardo voa pelo ar, perfurando a têmpora de um Poeira. Os
olhos da criatura imobilizam-se, fecham. Ele emite um barulho gorgolejante
da garganta e cai sobre o peito, flácido.
Pressia olha para o pescoço comprido e enovelado da montanha-russa.
— Quem quer que sejam, estão a proteger-nos.
Enquanto a música continua a tocar, os Poeiras vão-se recolhendo ao
solo, até que os últimos olhos restantes piscam, uma, duas vezes, e
desaparecem.
A cerca em torno do parque de diversões está forrada de espigões, que
devem estar profundamente cravados no subsolo, pois os Poeiras podem
deslocar-se debaixo de terra. Pressia vê o topo da cabeça de plástico rijo do
palhaço, a racha a correr ao longo do revestimento exposto, como se ele
estivesse prestes a abrir-se em dois e revelar algo no seu interior. A sua
boca é um semicírculo vermelho-vivo, o nariz uma bola vermelha, e os
olhos são salientes. Ela sente-se observada.
Não muito longe da cabeça de palhaço de Crazy John-Johns há um
poste alto. Embora amolgado e vergado no meio, ainda se aguenta em pé.
Fixados ao cimo do poste encontram-se dois altifalantes tipo megafone, que
alargam como lírios de metal. É daí que vem a música.
Bradwell está de pé, a caminhar na direção da cerca de arame.
El Capitan e Helmud levantam-se também e avançam lentamente para
a cerca, mas Pressia fica ao lado de Hastings.
— Os Poeiras foram-se? — pergunta-lhe Hastings.
— Por enquanto.
Pressia sente-se atordoada. O ressoar lento e exausto de notas paira no
ar. O vento continua forte, o ar, frio. Pressia diz:
— Alguém dali salvou-nos. Precisamos da ajuda deles. Temos de levar
o Hastings para um lugar seguro.
— Podem deixar-me aqui — diz Hastings. — Eu só vou atrasar-vos.
— Isso não é opção — declara Bradwell. — Tu salvaste-me. Nunca
esquecerei isso.
— Vai escurecer num instante — diz Pressia. — E agora que o carro
está morto...
— Não digas que o carro está morto — atalha El Capitan. — Está
apenas a... descansar.
— Descansar — diz Helmud.
— Muito bem, então, com o carro a descansar, nós somos alvos vivos.
— A Pressia tem razão — concorda Bradwell. — Precisamos de saber
quem está naquele parque de diversões. Precisamos da sua ajuda.
Pressia vê um dardo ensanguentado no chão, que um Poeira arrancou
do olho e largou. Levanta-se, dirige-se para ele e toca-lhe com a bota. A
haste está presa com fita adesiva.
— Olhem.
El Capitan aproxima-se.
— Fita adesiva? Jesus. Tenho saudades de fita adesiva.
Pressia corre até à cerca de arame do parque de diversões. Espreita
para os alpendres pequenos e quadrados e imagina que foram outrora
cabinas de jogos, sítios onde as pessoas podiam ganhar um peixinho
dourado num saco de plástico, tal como o seu avô ganhara, em pequeno, no
Festival Italiano. Ele não lhe contara que tinha atirado dardos a balões
presos a um quadro de cortiça?
Uma sombra corre de um pequeno alpendre para outro. Pressia
caminha rapidamente ao longo da cerca, na esperança de outro lampejo. E
tem-no. É uma rapariga, com o cabelo dourado comprido e desgrenhado. O
seu braço esquerdo está mirrado, reduzido a um coto imediatamente abaixo
do cotovelo.
É Fandra.
Passado tanto tempo, a querida amiga de Pressia está viva. É como se
um bocado de si mesma lhe tivesse sido devolvido — e lá está a barbearia
destruída, Freedle a baloiçar na sua gaiola, o seu avô com o coto da perna e
a ventoinha a zumbir na garganta. Ela e Fandra costumavam brincar às
casinhas, usando cobertores pendurados na mesa e na cadeira. Ocorre agora
a Pressia que essa casa, a que fora construída pela sua imaginação infantil
com Fandra, fora a mais segura, a mais verdadeira de todas.
— Fandra! — chama.
Fandra corre para a cerca de arame, agarrando-a com uma mão. Veste
uma saia comprida e uns sapatos de ténis, um velho blusão verde,
parcialmente derretido na gola. Pressia agarra na mão sã de Fandra com a
sua, os dedos de ambas entrelaçados através dos fios de metal.
— És tu! — exclama Pressia. Está quase tonta de felicidade.
— Pressia! Como chegaste aqui?
— Fandra? — É a voz de Bradwell. — Fandra? És tu?
Fandra olha para trás de Pressia. Faz um sorriso rasgado.
— Olá, Bradwell.
Pressia vira a cabeça e vê Bradwell especado, magoado e coberto de
pó, mal conseguindo falar.
— Julguei que... e a culpa era minha... — Dá alguns passos para a
frente, mas timidamente, como se ela fosse uma miragem.
— Não sou a única que conseguiu sair, Bradwell — diz Fandra. — A
rede clandestina... funcionava! Só que não conseguíamos mandar-vos
recado.
As lágrimas correm pelas faces sujas e cobertas de cinzas de Bradwell.
— Tu fazes parte da Nova História — diz-lhe ela.
— Nova História? — repete ele.
Pressia olha de novo através da cerca. Algumas cabeças espreitam de
trás dos alpendres, de um comboio miniatura cauterizado a um conjunto de
carris circulares e do disco virado do que fora outrora um rola-rola.
— Fennelly? — pergunta Bradwell, cambaleando em direção à cerca.
— Stanton? És tu?
— Sim, senhor!
— Não posso acreditar. Verden, conseguiste! — exclama Bradwell.
— Estava convencido que te tinhas ido. Tinha a certeza de que a culpa
era minha.
— Estamos aqui — diz Fandra. — E estamos vivos graças a ti.
Capítulo 48

Partridge
Humanidade

Os rapazes da Academia já estão acordados. Os seus rádios tocam


baixinho atrás das portas fechadas. Partridge conhece todas as canções da
lista autorizada. Aquela é sobre a praia, o que parece um pouco cruel, tendo
em conta que provavelmente nunca mais verão uma praia nas suas vidas.
— Onde vamos? — pergunta Partridge a Iralene.
Ela olha para o guarda, talvez a pedir permissão para lhe dizer. O
guarda acena. Iralene apresentou-o. Chama-se Beckley. Ela diz:
— O teu pai está pronto para te receber.
— A sério? — diz Partridge diz, sentindo um arrepio doentio no
estômago. — Tempo de qualidade com o velho. Onde está ele?
Iralene olha de novo para Beckley.
— No gabinete — responde Beckley.
Fica no centro médico onde Partridge foi torturado. Ele não quer lá
voltar.
A porta ao fundo do corredor abre-se. Alguns rapazes saem de roldão.
São mais novos do que Partridge, que apenas conhece dois pelo nome.
Wilcox Brenner e Foley Banks. Eles reparam primeiro no guarda, depois
olham para Partridge e Iralene. Reconhecem Partridge. Toda a gente sempre
o reconheceu. Mas há algo diferente na reação destes rapazes. Ele não
consegue ler as suas expressões: medo, entusiasmo ou, mais simplesmente,
alarme?
Também parecem conhecer Iralene. Ela faz-lhes um aceno de cabeça,
quase regiamente.
Um dos rapazes grita:
— Partridge! Olá! — Como se fosse seu admirador, ou algo do género.
Beckley adianta-se rapidamente, de modo a ficar à frente de Partridge,
como se o rapaz fosse atacá-lo.
Os outros dão uns safanões ao colega.
— Cala-te — resmungam.
É evidente que foi posta a circular uma história a seu respeito.
Partridge deseja ter-se lembrado de perguntar a Glassings que tipo de
história era.
Os rapazes dobram a esquina e Partridge pergunta:
— O que lhes disseram acerca de mim?
— A tua história chegou aos ouvidos da imprensa — responde
Beckley. Há apenas um jornal, The Update. — Um pouco depurada.
— Não se pode chamar jornal àquele folheto de propaganda. Não tem
mais do que comunicados da Cúpula e artigos de sociedade.
— Isso faz de ti um artigo de sociedade — replica Beckley. O guarda
abre uma das portas pesadas que levam ao pátio. Os olhos de Iralene
dardejam sobre as árvores artificiais e arbustos quadrados, como se não
pudesse beber suficientemente daquilo que a rodeia. Está a olhar para o
mundo como um prisioneiro ao qual foi concedida uma breve licença.
— Que diz esse artigo sobre mim? — sussurra Partridge a Iralene. Ela
finge que não ouviu, levanta o queixo e olha em frente.
— Beckley, não vamos de carro?
— Tenho ordem para vos levar de monocarril.
— As carruagens vão estar apinhadas a esta hora — observa Iralene
nervosamente.
— Sim — confirma Beckley.
— Não gosto de ter toda aquela gente a olhar para mim — diz ela,
muito baixo.
— Por que estarão a olhar para ti, Iralene? Por que não me dizes o que
saiu no jornal?
— Não te lembras? — replica Iralene com um arzinho tímido.
— Como posso lembrar-me do que não aconteceu? — retruca
Partridge. — E se aqui o Beckley me dissesse?
Percorrem o caminho empedrado que conduz aos edifícios escolares
que têm ligação ao monocarril no piso inferior. Beckley abre a porta de par
em par.
— Tu e a Iralene conheceram-se num baile e apaixonaram-se. Depois
tu estavas a exibir-te para ela, houve um acidente e tu ficaste em coma. Ela
passou este tempo todo ao teu lado. Dedicada a ti. Há rumores de que estão
secretamente noivos.
— Hum. Então, eu nunca fugi?
— Não.
— Nunca arrisquei a vida, nem encontrei a minha mãe, nem vi o meu
irmão ser morto, nem...
— Silêncio! — sibila Iralene. O edifício da escola está vazia, pois é
sábado. Os corredores silenciosos ecoam com os seus passos e depois com a
voz baixa de Iralene.
— O teu pai contou-me a verdade acerca daquela rapariga que te
desafiou a fugires para provares o teu amor por ela.
— Lyda? — O seu pai tinha-a escolhido como bode expiatório?
— Sim, essa. — Iralene parece irritada com a menção do nome de
Lyda. Abre a sua malinha, procura um lenço e cobre o nariz com ele.
— Foi essa a história secreta que o meu pai te impingiu?
Ela não responde.
— Pois bem, não foi isso que aconteceu.
— Tu arrependeste-te, claro — prossegue Iralene. — Estavas arrasado
lá fora, destruído, quase morto por causa dela! — Lança um olhar à capa
que lhe cobre o dedo. — O teu pai teve misericórdia de ti. Houve pessoas
que sacrificaram a vida para te salvar!
Partridge não percebe se Iralene acredita ou não no que está a dizer.
— A sério, Iralene. Não podes pensar realmente isso.
— Podias estar um pouco grato — comenta Beckley com um tom que
se destina a causar-lhe vergonha. — O meu primo está agora nas Forças
Especiais por causa das sequelas.
— Sequelas?
— A busca secreta para te salvar e a descoberta daqueles pobres
desgraçados em condições tão terríveis — diz Iralene. — Foram formadas
Forças Especiais, imediatamente, para tentar ajudar essas pobres almas
perdidas.
Descem um lanço de escadas.
— As Forças Especiais estavam lá para me caçar. E também foi
divulgado que o meu pai mandou construir aranhas robóticas para fazer
explodir essas pobres almas perdidas até eu ser devolvido?
Iralene para num patamar.
— Por favor, Partridge. — Estende a mão e aperta-lhe o braço.
— Não digas coisas dessas. — Está a falar a sério. Está a suplicar-lhe.
— Por que estás tão perturbada, Iralene? Porque sabes que estou a
dizer a verdade ou porque achas que eu devia entrar na mentira? Mas qual
das mentiras, Iralene? Há tantas por onde escolher.
Iralene fica calada.
— E nunca mais digas nada desse género acerca da Lyda — avisa
Partridge.
Iralene tira bruscamente a mão do braço dele. As escadas ressoam com
o barulho da aproximação de um monocarril. Apressam-se a descer o resto
dos degraus e chegam ao cais no preciso momento em que o veículo chega.
Ela aperta o lenço sobre o nariz com mais força.
— Detesto o cheiro deste sítio. Você não, Beckley?
— Que cheiro? — pergunta Partridge.
Ela olha para ele, põe a cabeça de lado.
— Não sentes o cheiro?
As portas abrem-se, deslizando para os lados.
— Não, que cheiro?
Entram. A carruagem está apinhada de gente a tagarelar. Então, à
medida que os passageiros se viram e olham, faz-se silêncio. Uma mãe e os
seus dois filhos levantam-se de um salto, oferecendo-lhes os seus lugares.
— Não é preciso — diz Partridge. Mas a mulher insiste: — Por favor!
Não há problema! É uma honra!
Partridge receia que ela entre em pânico se ele recusar outra vez.
Sentam-se, Partridge entre Iralene e Beckley. O comboio arranca aos
solavancos, depois começa a deslizar.
Iralene sussurra a Partridge:
— É o cheiro da humanidade, Partridge. Cheira a mortalidade. A
morte.
Partridge lembra-se do fedor a cinzas e morte transportado pelo vento.
Sangue. O odor ferroso do ar quando o seu irmão e a sua mãe foram mortos.
Isso é morte.
As pessoas sorriem e acenam, mas não apenas para ele; também para
Iralene. O lenço continua a tapar parcialmente o rosto dela, mas Partridge
percebe que ela lhes corresponde sorrindo também.
— Somos um casal — diz ela. — Fui eu que te acompanhei ao longo
do teu coma, o primeiro nome nos teus lábios quando voltaste a ti.
— Iralene...
Ela abana a cabeça. Os seus olhos estão cheios de lágrimas, mas ela
consegue sorrir.
— Tinhas razão. Há muitas verdades. Posso escolher a que mais me
agradar. É assim que isto pode dar resultado, se quiseres, Partridge. — E faz
deslizar os dedos para a mão dele, a que tem o mindinho tapado.
Partridge sente os olhos postos nele. Não pode tirar a mão. Isso seria
visto como uma rejeição. Começariam imediatamente a correr boatos.
Magoaria Iralene profundamente. Podia até pô-la em perigo. Isto é o papel
dela na vida, a sua missão. E visto que ele se recusou a matar o seu pai, esta
é a verdade que terá de prevalecer — por agora. O que dirá ao seu pai
quando o vir?
O monocarril desliza pelos túneis, parando em plataformas iluminadas.
As pessoas acenam ao sair e os novos passageiros são surpreendidos pela
presença de Partridge e Iralene. Partridge olha pela janela. Quando o
comboio entra num túnel, a única coisa que vê é a sua própria expressão
atordoada a piscar no vidro. Pode fingir, por um momento, que Lyda está lá
fora, algures do outro lado do vidro. Ele quer dizer-lhe que não vai traí-la.
Que tudo aquilo passará. Que vai voltar para ela.
O comboio para com um solavanco. Beckley levanta-se primeiro,
como se eles precisassem de um escudo humano para os levar até à porta.
Partridge larga a mão de Iralene. Não quer ser obrigado a dar-lhe a mão
onde quer que vá a partir de agora.
Saem para a plataforma iluminada e para a fluorescência do centro
médico propriamente dito. É este o cheiro que o faz sentir-se doente; não a
humanidade, de modo nenhum, mas o cheiro adstringente e antissético do
encobrimento da doença, e o cheiro intenso, sulfúrico dos melhoramentos.
Lembra-se dos rapazes da Academia, escoltados aos seus quartos, onde se
despiam e entravam nos respetivos moldes-múmia, da sensação de quase
sufocar, dos melhoramentos a circular nas suas células. A seguir Partridge
sentia-se mole de exaustão, mas, simultaneamente, cheio de uma energia
nervosa e inconstante, como se todos os seus órgãos, tecidos e músculos
estivessem extenuados, mas o seu sistema nervoso estivesse carregado
como uma bateria.
No caminho para os elevadores são alvo da mesma reação que tinham
encontrado no comboio. Felizmente, o elevador está vazio. Beckley prime o
botão do quarto andar.
— Porquê o quarto andar? O gabinete do meu pai não é aí.
— Agora ele está numa ala especial — explica Iralene.
O seu pai foi transferido para a parte do hospital reservada aos
gravemente doentes. A última vez Partridge vira o pai fora através de um
ecrã na sala de comunicações da casa da quinta. Ele parecia fraco, afetado
pela paralisia, com o peito afundado, mas o seu pai, Willux, no piso dos
contagiosos? Parecia impossível.
— Ele está assim tão doente?
— Está num estado debilitado. Temporariamente, é claro — diz
Iralene.
Beckley comunica por rádio que estão a chegar.
O elevador está silencioso, tirando uma pequena melodia que sai de um
altifalante invisível. Parece algo gerado por computador para produzir um
efeito calmante, mas o seu artificialismo tem o efeito contrário em
Partridge. A música fabricada deixa-o agitado.
Quando as portas do elevador se abrem, são recebidos por técnicos que
sobraçam batas brancas, chinelos de papel, máscaras, toucas de plástico e
luvas.
Iralene e Beckley esticam os braços para as batas brancas, levantam as
mãos para as luvas e baixam a cabeça para as toucas, obviamente
habituados àquele ritual.
Mas Partridge diz:
— Não me toque. Qual é o seu problema? — Os técnicos ficam
rigidamente à espera enquanto ele se veste. Ele não consegue chegar aos
atilhos nas costas da bata branca, pelo que um dos técnicos adianta-se e ata-
os por ele. Por alguma razão, aquilo é extremamente embaraçoso, como se
ele não conseguisse atar os próprios sapatos. Sente-se estúpido com a touca
de banho de plástico. As luvas enterram-se-lhe nos pulsos. Começa a andar,
mas os chinelos são, de facto, escorregadios. Sente-se emasculado,
infantilizado. O seu pai é tão profundamente manipulador que Partridge se
pergunta se aquilo não fará parte do seu plano.
***
Pastoreados por meia dúzia de técnicos, transpõem uma porta
automática, passando por dois guardas fortemente armados. Viram para
uma ala de quartos vazios. Apenas a sala de enfermeiros vibra de atividade.
Aquela ala, obviamente, tem apenas um paciente: Ellery Willux.
Os técnicos param antes de chegarem à porta no fundo do corredor.
Um deles diz:
— Há um guarda lá dentro, mas, tirando isso, ele pediu para te receber
sozinho.
Agora estão todos a olhar: os técnicos, os médicos, os enfermeiros,
Iralene e Beckley, até os dois guardas fortemente armados do outro lado das
portas de vidro.
Partridge acena. — Por mim, tudo bem. — Prepara-se para entrar no
quarto, mas Iralene toca-lhe no cotovelo. Ele vira-se e ela dá-lhe um beijo
na face. Todos suspiram como se aquilo fosse a coisa mais doce que jamais
haviam visto. Iralene parece não perceber que ele está irritado. Pelo
contrário, levanta a mão e toca-lhe no nariz, muito ao de leve, como se
fosse um sinal secreto brincalhão. Ele olha em volta para os rostos que os
observam.
Iralene sussurra: — Boa sorte!
Partridge põe a mão na porta, mas antes de a abrir é acometido por uma
súbita esperança otimista: vai abrir a porta e em vez de um quarto de
hospital encontrará uma pequena sala de estar. O seu pai estará de boa
saúde e sentado ao lado da mãe, e Sedge estará de pé a uma janela. Dir-lhe-
ão que tudo não passou de um teste, de uma espécie de rito de crescimento,
transmitido de geração em geração. «Somos novamente uma família», dirá
a sua mãe. E Lyda surgirá de uma porta lateral.
Mas ele sabe que isso é pura loucura.
Empurra a porta e entra no quarto.
O guarda está lá, como o técnico anunciara. Está em sentido ao lado da
cama, que está coberta por uma tenda transparente, retangular. O plástico
tremula para dentro, depois insufla ligeiramente, como se a própria tenda
estivesse a respirar. Há várias bombas, que sopram e silvam. Máquinas
gorjeiam e apitam; a única que ele reconhece mostra o ritmo do coração de
seu pai.
As máquinas estão a tentar protelar a morte, mas esta está presente
naquele quarto.
Por um minuto, Partridge pensa no seu pai, o homem que lhe pegou ao
colo em bebé, que lhe aconchegou a roupa algumas noites, que esteve
sempre presente na sua vida. Não importa quão mau possa ser, ainda que
seja um assassino em massa — à maior escala da História —, uma parte de
Partridge nunca esquecerá que ele é seu pai. Um pai pode ser a pessoa que
mais se odeia e mais se teme, sim, mas, no fundo, espera-se que seja ele a
salvar-nos. Partridge sente-se fraco. Lembra-se do que Lyda lhe disse: ele
ainda quer que o seu pai o ame.
Então Partridge ouve a voz do pai.
— Partridge. — E sente as faces a arder, o coração a bater. Aquele é o
homem que matou a sua mãe e o seu irmão. Partridge também nunca
esquecerá isso. Aproxima-se da tenda. Vê a oval vermelha do rosto do pai,
a pele em carne viva. Mas agora o pescoço e uma das mãos estão
enegrecidos, como se a pele estivesse completamente morta. A mão
atrofiou e parece uma garra, enrolada sobre o peito como se estivesse a
guardar o coração.
O seu pai prime um botão ao lado da cama. A tenda de plástico retrai-
se de um lado. Os olhos do doente estão fechados, mas o queixo está tenso,
como se se preparasse para falar. O peito está fechado numa engenhoca de
metal, que emite os sopros e silvos. A caixa deve conter algum instrumento
que lhe bombeia ar para os pulmões. Há tubos de oxigénio atarraxados de
ambos os lados da caixa e ligados às suas narinas. Partridge imagina-se a
apertar os tubos. É uma imagem fugidia. Mas não pode negar tê-la visto
com detalhes súbitos e vívidos: o seu pai a arquejar como um peixe, com a
boca escancarada, esticando as bochechas até estarem prestes a romper.
— Partridge — sussurra o pai, enquanto a caixa no seu peito aspira o
ar. — Sabia que havias de voltar.
— Eu não diria que o meu regresso foi exatamente voluntário —
replica Partridge.
— Voltaste... — Os pulmões dele comprimem-se e expandem-se dentro
da caixa. — Porque não me odeias. Diz que não me odeias.
— Está a ficar brando ao fim de tantos anos?
O pai abre os olhos, pestanejando sob as luzes fluorescentes. A sua
vista está ligeiramente turva. A pele da mão mirrada e do pescoço reluz,
como se estivesse envolta numa segunda camada de pele, transparente e
quase polida.
— Criei um mundo para ti aqui. Um mundo onde podes viajar. Uma
rapariga. Já reparaste nisso?
— Deu-me uma rapariga? — Partridge crispa as mãos nas barras da
cama do seu pai.
O guarda inclina-se para a frente.
— Senhor? — pergunta a Willux.
— Não há problema — diz Willux. — Ele é fogoso. Jovem, apenas.
— A propósito, os meus parabéns — diz Partridge — pelo casamento.
— Não sejas caprichoso.
— O senhor é um homem doentio.
— Estou a morrer.
— Não era a isso que me referia.
— Vais aceitar... — A máquina gorgoleja. — ... o que está a ser-te
oferecido? És um herói, aqui.
— Não quero ser um herói.
— O que queres?
— Quero ser um líder.
O pai prime outro botão nas barras da cama e a cabeceira eleva-se. —
Tenho estado à espera... de te ouvir dizer essas palavras.
— Tem?
— Quem havia eu de querer que me substituísse? Quem além de ti,
meu filho? — Estende a mão sã e encosta-a à face de Partridge. Os seus
olhos estão húmidos e brilhantes. Partridge nunca tinha visto o pai chorar.
Sedge era o favorito dele, o que estava destinado a fazer grandes coisas.
— Isso é possível? — pergunta Partridge.
— Podes ser tu a liderá-los, na saída.
— Na saída da Cúpula? Para o Novo Éden?
— Eu não chegarei lá.
— Acha mesmo que sou capaz?
Afinal talvez não tenha de matar o pai, ou de esperar sequer que ele
morra. Talvez o pai lhe dê tudo.
O pai tira a mão do rosto de Partridge.
— Vais ter de provar a tua vontade de deixar o passado para trás, de
seguir em frente, connosco, aqui na Cúpula. Prová-lo não só perante mim,
mas também perante os do meu círculo íntimo, que sabem a verdade acerca
da tua partida.
Aquilo não agrada a Partridge.
— Como posso provar a minha lealdade?
— Não temos muito tempo.
— O que tem em mente?
A caixa de metal em torno dos pulmões do seu pai engasga-se, depois
liberta um longo silvo de ar.
— A tua mente.
— A minha mente? — Partridge sente-se nauseado. — O que quer
dizer com isso?
— Quero que a parte que se lembra de nos deixar, daquela rapariga de
olhos azuis, desses desgraçados com quem estiveste lá fora, de tudo fora
desta Cúpula, desapareça.
— O quê? — exclama Partridge. — Não.
— Não és assombrado pela visão da morte?
Partridge recua abruptamente para se afastar do corpo em
decomposição do seu pai. Dirige-se para a parede oposta e espalma as mãos
no azulejo fresco; o molde no seu mindinho faz um estalido seco.
— Quer dizer as visões de assassínio.
— Essas também seriam apagadas. Tudo o que é mau, feio, sombrio.
Partridge vê o corpo ensanguentado de Sedge, o rosto da mãe a
estilhaçar-se quando o crânio do irmão explodiu. Sangue. Uma névoa fina
de sangue, como uma nuvem a rebentar. Por um momento, deseja que essa
memória desapareça, mas não pode desistir dela e recusa-se a perder tudo o
que significa algo para ele.
— Não — declara.
— É a única maneira — diz o pai. — É a única maneira de eu te deixar
entrar. Queres entrar, não queres?
— Pense em algo, qualquer outra coisa. — Olha para o pai. Imagina-se
a apertar-lhe a garganta, a comprimi-la com os polegares.
— Este é o único caminho — diz o pai. — Vais casar com a rapariga.
— A Iralene?
— Vais casar com ela e provar a tua lealdade renunciando a essas
memórias, a essa pequena porção do teu passado, e pronto. — O pai fecha
os olhos.
— E se eu disser que não?
O pai sorri, formando rachas num pouco da pele da face.
— Não sou homem de perdoar.
Partridge abana a cabeça.
— Nem sequer é possível. Não se pode eliminar recordações tão
específicas, por muito que se queira. Está a fazer bluff.
— Arvin Weed é um jovem génio — diz o pai em voz baixa, como se
estivesse quase a adormecer. — Pode fazer quase qualquer coisa. Quase
qualquer coisa.
Arvin Weed pode apagar da memória de Partridge a sua fuga, o
encontro com Pressia, a sua irmã, Bradwell e as Mães, El Capitan e os
Poeiras, a sua mãe e o seu irmão, a noite com Lyda na armação da cama de
latão na casa sem telhado.
Mas não pode salvar Ellery Willux de degenerar, célula a célula. Não
pode salvar o seu pai da morte. Ainda não, pelo menos. Mas enquanto
aquelas máquinas zumbem e silvam no esforço para o manter vivo, a
corrida seguramente já começou. O seu pai quer Partridge no comando, se
ele morrer. Mas o que ficou por dizer é que, se Arvin descobrir a cura, o seu
pai não precisará que Partridge lidere. Portanto, se o velho está disposto a
entregar as rédeas do poder, Partridge tem de as agarrar, depressa.
Capítulo 49

Pressia
Fita Adesiva

Através da cerca, Pressia distingue um velho carrossel, um pouco


desequilibrado, mas ainda de pé. O seu tejadilho de raios nus liga-se aos
varões dos cavalos. A parada circular de cavalos está imóvel e deformada,
os seus corpos parcialmente derretidos, os focinhos contorcidos. Um cavalo
branco arreganha os dentes, mas o pescoço e a crina pendem moles e
torcidos. Há cascos tortos e caudas cortadas. Mas o pior de tudo são os
olhos: parados e grandes, alguns derreteram e escorreram pelos focinhos.
Noutros tempos aquele carrossel fora impecável — inocente e fantasista —,
o que torna tudo ainda pior agora.
— Não podem entrar — diz Fandra. — Eles viram-no. — Gesticula na
direção de El Capitan e Helmud, que descansa o queixo no ombro do irmão.
El Capitan está ao lado de Hastings, cuja hemorragia diminuiu, mas
cujo rosto está contorcido de dor.
— A mim? Que mal tenho eu? — diz El Capitan.
— A mim? — diz Helmud, claramente insultado.
— Diriges a OSR — replica Fandra a El Capitan, subitamente
dominada pela raiva. — Mataste pessoas que nós amávamos. Achas que
poderíamos alguma vez esquecer?
— Oh! — Que pode ele dizer, de facto? Era um líder implacável e
cruel.
Pressia tenta intervir:
— Ele modificou-se — argumenta, mas sabe que não servirá de nada.
Ela vê a tensão no queixo de Fandra. — Agora ele salva vidas. Ajuda as
pessoas.
— Não interessa. A única razão pela qual ainda não foi abatido
— Fandra olha por cima do ombro para o topo do pescoço partido da
montanha-russa —, é porque está com um profeta.
— Um profeta? — pergunta Pressia.
— Bradwell — esclarece Fandra.
Bradwell parece um pouco aturdido:
— Bem, eu não sou profeta...
El Capitan interrompe:
— Olhem, odeiem-me se quiserem, e adorem-no a ele, mas temos aqui
um soldado que precisa de ajuda. — Hastings.
— Eles acolherão o moribundo — diz Fandra. — Acolhem sempre os
moribundos. Foi assim que fiquei a viver aqui.
Aquela pequena referência enche Pressia de esperança. Os
sobreviventes que vivem aqui não são apenas aqueles que fugiram da
cidade para escapar à OSR. Já lá havia pessoas, que tinham sobrevivido às
Detonações. Talvez existam mais grupos como aquele — e o seu pai pode
estar entre eles.
Ouve-se um zumbido elétrico. O portão abre-se. Alguns sobreviventes
escanzelados aparecem, transportando uma maca artesanal feita com um
lençol preso a dois varões de metal.
— Preciso saber do meu irmão — diz Fandra, olhando para Pressia e
Bradwell. — A última vez que vi o Gorse foi durante uma batalha
sangrenta. Ele conseguiu regressar?
— Sim. Ele está bem — assevera Bradwell.
— Eu sabia que ele conseguiria. Eu sabia.
É preciso o esforço combinado de todos os sobreviventes que saíram
do portão para levantar Hastings e pô-lo na maca. A música estridente
continua a jorrar do sistema de PA, para afastar os Poeiras. Os
sobreviventes mantêm os olhos bem abertos e todos lançam olhadelas
disfarçadas a Bradwell, obviamente impressionados. Um profeta.
— Esperem — murmura Hastings. — Precisam de saber o destino.
— E a tua codificação comportamental não te permite revelá-lo
— diz Bradwell. — Que raio vamos fazer?
Hastings abana a cabeça.
— Não.
— Pousem-no por um minuto — pede El Capitan. Os sobreviventes
pousam a maca no chão.
— Não, o quê? — pergunta Bradwell.
— Tinhas razão em não confiar em mim. Não era a codificação
comportamental que não me permitia dar-vos o destino. Sou
suficientemente forte para a superar.
— Então por que não o fizeste? — pergunta El Capitan.
— Se eu vos dissesse, estaria a dar-vos menos um motivo para me
manterem convosco. Não quero ser dispensável.
— Diz-nos agora — pede Pressia.
— Ao Fignan — diz Hastings. — Quero dizer ao Fignan. Ele vai
compreender as informações que tenho.
Bradwell desamarra a caixa das costas. Fignan ilumina-se.
— Trinta e oito graus, cinquenta e três minutos, vinte e três segundos
Norte, setenta e sete graus, zero minutos, trinta e dois segundos Oeste —
diz Hastings.
Fignan emite um zunido enquanto aceita os dados e acende uma luz
verde quando termina.
— Espera. Diz-nos por que motivo esse dirigível é diferente. Por que
não está com os outros, sob uma guarda apertada? — indaga Pressia.
— Tudo o que sei é o que ouvi dizer — responde Hastings. — Tem
valor sentimental para Willux. Não sei como ou porquê. E não é guardado
porque Willux acha que nenhum desgraçado conseguirá lá chegar com vida.
— Oh... — faz Pressia.
— Desculpa — diz Hastings. — Querias a verdade.
Os sobreviventes levantam de novo a maca e começam a levar
Hastings para o parque de diversões.
— Vão cuidar bem dele? — brada El Capitan para Fandra.
— Temos algum material médico e um técnico de emergência médica
que cá estava com os filhos no dia das Detonações. Ele sabe o que está a
fazer.
A cerca fecha atrás da maca de Hastings com o mesmo zumbido
elétrico. Pressia tenta recordar as explicações do seu avô acerca de
amputações: os ângulos que a serra deve seguir, a melhor forma de manter
as lascas de osso longe da ferida, os melhores pensos e a utilização de
certos óleos para impedir que a ferida adira aos pensos, a elasticidade das
meias de lã, até a pressão.
— Diz-lhe que é preciso estar sempre em cima das artérias. Cada gota
de sangue é uma enorme perda. Se as deixarem acumular, perdem-no. — O
avô perdera um paciente, uma vez. Uma rapariguinha com uma perna
esmagada, que se encabritara em cima da mesa e soltara o torniquete. O avô
tentara recolocá-lo, mas os movimentos da pequena, que se debatia, e o
sangue escorregadio tornavam o torniquete difícil de agarrar.
— Eu digo-lhe — assevera Fandra, depois baixa a voz e sussurra para
Pressia; — Estou muito contente por vocês dois estarem juntos. Encontraste
uma pessoa para amar que te ama também.
— O quê? — pergunta Pressia. — De quem estás a falar?
— Tu e o Bradwell — segreda Fandra, surpreendida por Pressia não
saber.
Pressia abana a cabeça.
— Não, nós não estamos juntos.
Fandra sorri.
— Eu vejo como ele olha para ti.
— Vai escurecer — diz Bradwell a Fandra. — Há algum lugar
suficientemente seguro para passarmos a noite?
Fandra aponta para um ponto distante.
— Há uma passagem subterrânea de pedra, de uma linha de caminho
de ferro sobre-elevada. Ficarão bem se se revezarem a montar guarda.
— Obrigado por nos terem ajudado ali fora — diz Bradwell. — Se não
fosse isso, estaríamos mortos e enterrados.
— Estamos em dívida para contigo — replica Fandra. — Sabes que
sim, Bradwell. Muitos de nós aqui devemos a vida às tuas lições de
História-Sombra, à rede clandestina e a ti. Obrigada!
— Não tens de quê — diz Bradwell, obviamente emocionado.
— Calculo que se tenham posto a caminho para fazer algo importante?
— pergunta Fandra.
— Ou talvez apenas louca — diz El Capitan.
— Então, vão — diz Fandra. — E não desistam! — Afasta-se da cerca.
Pressia já tem saudades dela, e não apenas de Fandra, mas da sua infância,
das tendas feitas de lençóis — tendas de cachorrinho — que se chamavam
casa.
— Voltaremos a ver-nos — diz Pressia.
Fandra acena com a cabeça, depois corre para as profundezas do
parque de diversões e desaparece.
A estrutura nua de uma torre, da qual pendem as armações
carbonizadas das cadeiras, recorta-se contra o céu. Pressia imagina por um
momento como teria sido estar ali quando as Detonações rebentaram: o ar
cheio de luz, a força do calor e, se se sobrevivesse a tudo isso, ver-se
suspenso no ar, pendurado acima da terra, vendo histeria e destruição em
todas as direções. Olha para Bradwell. Fandra pensa que eles estão juntos,
que se encontraram um ao outro: uma pessoa para amar que te ama
também. E é como se estivesse às voltas numa daquelas atrações. O seu
estômago dá uma reviravolta. Bradwell, com as roupas rasgadas aqui e ali,
salpicadas de sangue, os músculos a ondular sob a camisa. As faces
avermelhadas e as pestanas escuras. Bradwell.
Começam a andar, mas ela tem de olhar para trás, para a montanha-
russa, preta e ossuda contra o céu crepuscular.
Capítulo 50

Pressia
Pirilampos

Ao fim de cerca de uma hora de caminhada, encontram a passagem


subterrânea de pedra. Está maltratada, mas de pé. Sentam-se no chão e
comem algumas das provisões trazidas por El Capitan: carnes fortemente
salgadas. Quando terminam, El Capitan oferece-se para fazer o primeiro
turno de vigia. Sobe a rampa e senta-se nos carris.
Bradwell diz:
— Devíamos aconchegar-nos, de costas para o vento.
Pressia faz um sinal de assentimento. Deitam-se juntos, ele enroscado à
volta dela, o braço em torno da sua cintura. O coração dela bate com força
no peito, mas é contrariado por aquela ânsia no estômago, a mesma velha
ânsia que ela designou por medo.
— O que achas que o Hastings queria dizer com aquilo de o dirigível
ter valor sentimental para Willux? — pergunta Pressia.
— Willux é um romântico, de acordo com Walrond. Os românticos não
são sentimentais? — Bradwell será um romântico, lá no fundo? O seu
cacifo, cheio de recordações do passado, não é sentimental?
— Sabes acerca do que eu sou sentimental? — diz Pressia.
— De quê?
— Das coisas de que não me lembro, de que só ouvi falar.
— O quê, por exemplo?
— Coisas como pirilampos — responde Pressia. — No Antes.
Lembras-te deles?
— Os jardins tinham demasiados produtos químicos para que os
pirilampos sobrevivessem, mas mais longe, nos campos por ceifar, eles
trepavam pelas plantas ao entardecer e emitiam uma luzinha amarela. Uma
vez, o meu pai levou-me ao campo para os ver. Eles acendiam e apagavam,
e nos corríamos atrás deles, apanhávamo-los e metíamo-los em frascos de
vidro, abrindo furos nas tampas. — Ela sente a sua respiração quente no
rebordo da orelha. — Mas eu julgava que querias saber acerca das
Detonações, não do Antes.
— Já me lembro de algumas coisas. Poucas.
— Houve outro tipo de insetos logo após as Detonações.
— Que tipo?
— Eram mais gordos do que os pirilampos, mais como borboletas
azuis luminescentes, que piscavam e depois desapareciam no ar. Eram
lindos. Quando deixei a casa dos meus tios, havia pessoas a morrer por toda
a parte, mas algumas das que ainda conseguiam andar tentavam capturar
aquelas coisas fosforescentes. Pequenas chamas, era o que pareciam,
chamas pequenas e rápidas. Eu quase fui com eles, lembrando-me do meu
pai e dos campos por ceifar, mas uma mulher agarrou-me no braço. «Não os
sigas», disse-me ela. «São atraídos para a morte.» Também gritou avisos
aos outros, mas eles não lhe deram ouvidos.
— E que aconteceu às pessoas que tentaram apanhá-los?
— As pessoas que tocavam nessas pequenas chamas, mesmo que só
pegassem num, por um segundo, para tentarem levá-lo ao seu filho
moribundo, não duravam muito. Adoeciam numa questão de horas e
morriam de intoxicação por radiação em poucos dias. Mortes rápidas e
violentas.
Pressia estremece.
— Tenho uma impressão que não desaparece.
— O que é?
— É uma sensação no estômago. Pensava que era medo, mas talvez
seja culpa.
— De que te sentes culpada?
— De estar viva. — Ela tenta imaginar as borboletas luminosas a
aparecer e desaparecer, e as pessoas, doentes e cambaleantes, a tentar
apanhar um pouco de beleza. Depois pensa na sua mãe, na floresta, doente e
cambaleante, ajoelhada ao lado do filho moribundo, o seu filho
primogénito, Sedge. Sente de novo o peso da arma. Os seus ouvidos
começam a zumbir e, de repente, dá por si a chorar.
— Pressia — diz Bradwell, apertando-a mais a si. — Que se passa? —
A voz dele é sombria, quase assustada.
— Não — diz ela. — Não posso dizer-te. — Ouve o farfalhar das asas
dos pássaros fundidos nas costas dele, a roçar no tecido da camisa. Não
consegue olhar para ele. Não consegue articular uma única palavra. A
névoa ensanguentada é uma nuvem em seu redor.
Ele soergue-se e inclina a cabeça de modo a tocar na dela.
— Conta-me. Diz-me o que é.
Ela responde:
Eu matei-a. Achei que era a coisa mais correta a fazer, mas agora...
Não tenho a certeza. Não sei.
— Não — diz ele —, eu estava lá. Foi um ato de misericórdia.
Ela não consegue respirar.
— Eu também me senti assim durante muito tempo, Pressia. Arrastei
um enorme fardo de culpa durante anos.
— Por que te sentias culpado?
— Estava a dormir na minha cama quando os meus pais foram
baleados, Pressia. Dormi enquanto eles eram assassinados.
— Não passavas de um rapazinho. — Pressia vira e encara-o. — Não
tiveste culpa.
— E tu não tens culpa por a tua mãe ter morrido. Foi um ato de
misericórdia. Eu estava lá.
— Sei porque é que eles não deram ouvidos ao aviso da mulher acerca
das borboletas azuis — diz Pressia.
— Porquê? — pergunta Bradwell.
— Precisavam de algo que pudessem agarrar e segurar. Precisavam de
beleza. Não consigo explicar. Eles precisavam de acreditar que algo belo
podia sair de todo aquele terror. Compreendo o impulso de querer acreditar
novamente em algo belo, e segurá-lo nas mãos.
Está escuro, mas ela consegue ver o brilho dos olhos de Bradwell. Ele
fita-a intensamente. Segura o rosto dela nas mãos, que são quentes, fortes e
ásperas. Beija-a. Ela fecha os olhos e beija-o também, sentindo o seu peito
comprimido contra o dela. Os lábios dele são quentes. Ela agarra-lhe a
camisa. Tudo em seu redor parece desaparecer.
Quando ele se afasta, estão ambos sem fôlego.
— O que ias dizer-me lá fora, quando os Poeiras nos cercaram?
— Algo acerca de cair... como tu me fazes sentir como se... estivesse a
cair e a despenhar-me.
Ele beija-a; beijos rápidos na boca, no queixo, ao longo do pescoço.
— Quando te conheci, pensei que éramos feitos um para o outro
embora parecêssemos ser opostos nalguns aspetos e discutíssemos bastante.
Mas agora...
— Quê?
— Agora sinto que não fomos feitos um para o outro. Estamos a fazer-
nos um ao outro, de modo a sermos as pessoas que devemos ser. Sabes o
que quero dizer?
Ela sabe, imediatamente. Parece-lhe a coisa mais verdadeira que jamais
ouviu.
— Sim — responde, beijando-o. — Sei o que queres dizer.
Capítulo 51

Partridge
Bolo

Partridge está de pé na casa de banho de um apartamento de luxo, no


último piso e com acesso ao telhado, no Wenderly, novamente no Superior
Dois. É a casa de alguém. Da família Crowley? Ele não sabe sequer ao
certo quem está a dar a festa, apenas que é em honra do seu noivado com
Iralene. Dá-se subitamente conta de que não tem um anel. Não devia pedi-la
em casamento primeiro? Pensa em Lyda. Deu-lhe a caixa de música. Isso
significava mais do que um anel. Era verdade. Isto é tudo falso, provisório.
Partridge ouve o murmúrio de conversas, uma gargalhada ocasional a
erguer-se acima das vozes. As pessoas que ali estão sabem que ele fugiu,
embora julguem que o fez em resposta a um desafio, para impressionar uma
rapariga de um grupo duvidoso. Mas não podem saber que o seu pai quer
que ele renuncie à sua memória de tudo isso. O que acontecerá a seguir?
Terão todos de fingir que a história da rapariga do grupo duvidoso também
desapareceu? Aquela gente é boa no que diz respeito a negação. Praticam-
na diariamente, como uma religião.
Arvin Weed; é essa a sua esperança. Glassings pode ter dúvidas, mas
Partridge tem de se agarrar à esperança de que Arvin o ajude a encontrar
uma saída. Talvez consiga fingir o raio da operação. Afinal de contas, é um
menino-prodígio, não é? Espera que Arvin ali esteja, algures entre os
convidados, e que consiga um minuto a sós com ele.
Despe-se e tira um fato novo em folha do respetivo cabide. Veste as
calças, abotoa os punhos da camisa, ajusta o nó da gravata azul-clara e enfia
o casaco azul-escuro. A roupa serve-lhe tão perfeitamente — até os
contornos suaves dos sapatos de couro — que Partridge se pergunta se terão
ido buscar as suas medidas ao seu antigo molde de múmia. É perturbante, o
muito que eles sabem a seu respeito, e não se trata apenas do tamanho dos
seus sapatos, mas até do seu ADN.
Não tem qualquer vontade de sorrir e trocar apertos de mão. Mimi, a
mãe de Iralene, estará presente? Será que ela sai da sua cápsula para aquele
género de coisas?
Batem à porta.
— Precisas de alguma coisa? — É Beckley.
— Estou ótimo.
— As pessoas estão a perguntar por ti. Estás pronto?
— Só um minuto. — Partridge tira a capa do seu mindinho. Daí a
algum tempo ainda restará algum sinal de que o dedo fora cortado? Se a sua
memória for apagada, haverá sequer uma ínfima cicatriz que revele o que
aconteceu? Foi a pesquisa da sua mãe que tornou aquilo possível. Ela podia
ter reconstruído os seus próprios membros com nanotecnologia biomédica,
mas recusara fazê-lo. O seu corpo era a verdade e ela não pretendia encobri-
la. Partridge pergunta-se o que diabo estará ele ali a fazer.
Beckley bate novamente à porta:
— Senhor?
Partridge repõe o molde, abre a porta e avança a passos largos à frente
de Beckley, em direção às vozes.
— Vamos lá despachar isto. — Atravessa a sala de estar, que é branca e
toda estofada, e sai para o terraço.
Toda a gente se vira. Alguns convidados começam a bater palmas.
Alguém faz tilintar um garfo contra um copo de vinho. Partridge vê rostos
que reconhece, todos a sorrir, a rir e a chamar o seu nome. Há vizinhos de
Betton West, onde Partridge cresceu, como os Belleweather, os George, os
Winthrop, e altos funcionários, como Collins, Bertson, Holt, e ainda alguns
que ele reconhece apenas de anúncios públicos, incluindo o próprio
Foresteed, que se tornou o rosto da liderança da Cúpula. Mais pessoas
tilintam garfos contra copos de vinho. Até o pessoal, composto por homens
e mulheres jovens, de camisa branca, colete azul-marinho e laço no
colarinho, se imobiliza e sorri a Partridge. Estão a servir comida a sério:
pastéis folhados, cubos de frango espetados em palitos. Que esperarão dele?
Beckley inclina-se para segredar:
— Podias acenar.
— O quê? — pergunta Partridge, perplexo.
— Acena com a cabeça, ou coisa do género.
Partridge faz um breve aceno e enterra as mãos nos bolsos, sem saber
que mais fazer. Acaba por ficar aliviado ao ver Mimi entre a multidão. Está
a conduzir Iralene para ele, com um sorriso radiante. A sua pele cintila de
maquilhagem. Tem o cabelo puxado para cima e empilhado numa rede solta
de caracóis no alto da cabeça, como um bolo em camadas.
O vestido e o ramo de flores tingidas de azul de Iralene combinam com
a gravata de Partridge. Traz uma flor de lapela na mão, com as mesmas
flores tingidas de azul. As flores parecem reais, carnudas, nada que se
assemelhe a plástico.
— Olá, Partridge — diz Mimi. — É ótimo ver-te de novo. Que bom
tudo ter resultado bem.
Iralene estica-se na ponta dos pés e dá um beijo na face de Partridge. A
multidão emite um suspiro coletivo e, por fim, acaba-se o tilintar. Partridge
sente as faces a arder, mas não é por ter ficado constrangido pela
demonstração pública de afeto. Não. É porque está furioso. Até onde tem
aquilo de chegar? Por que terão eles de ser exibidos daquela maneira?
Iralene prega a sua flor na lapela do fato dele. Julgando que ela já terminou,
Partridge recua, mas é demasiado cedo e Iralene pica-se no alfinete. Uma
gota de sangue brota-lhe do dedo.
— Desculpa — diz ele.
— Não faz mal! — responde Iralene.
— Acaba lá isso — diz Mimi, zangada, entregando-lhe um
guardanapo.
Iralene acaba de prender o alfinete.
— Pronto — anuncia.
O casal vira-se para enfrentar a multidão. Mimi diz:
— Por favor, comam, bebam, circulem! Haverá dança daqui a bocado!
Dançar só serviria para o fazer pensar em Lyda. Vai ter de arranjar
maneira de escapar.
— A ideia não foi minha — sussurra Iralene. — Não me culpes,
Partridge.
— Claro que não — diz ele. Estende a mão e pega na dela. — Ainda
temos o nosso segredo, Iralene, ajudar-nos um ao outro. Não é?
— É.
Ela tem um anel de noivado no dedo. Ele ergue-lhe a mão à luz.
— De onde veio isso?
— Foste tu — diz ela. — Deste-mo antes do acidente!
— Não podes fazer isso, Iralene.
— Mas tu concordaste com o plano do teu pai. As tuas memórias vão
desaparecer. Eu preenchê-las-ei para ti. É assim que vais ajudar-me.
— Foi isso que ele planeou? As minhas memórias são apagadas e
depois impingem-me a história dos artigos de sociedade?
— Podes escolher a verdade...
— Para.
— Nenhum de nós pode parar isto, Partridge. É maior do que nós.
— Weed pode parar isto — diz Partridge. — Preciso de apanhar ar.
— Mas já estamos cá fora — replica Iralene.
De facto estão no terraço exterior. Mas não há diferença entre o ar ali
ou dentro do apartamento. Partridge sente-se claustrofóbico. Esquadrinha a
multidão com os olhos. E vê Arvin Weed, de gravata vermelha, a tirar um
folhado de uma das bandejas trazidas pela empregada.
Partridge pensa em todos os percursos de comboio em que Weed ia
sempre com a cabeça inclinada sobre o ecrã, a ler, com aquela sua postura
que o tornava invisível. A última vez que Partridge o vira, no dia em que
planeara a sua fuga, pouco antes de Vic Wellingsly lhe oferecer uma sova,
Arvin tinha olhado para ele como se, por um momento, estivesse a ponderar
tomar o seu partido. Mas depois não o fizera. No momento da verdade,
Weed terá coragem suficiente para estar do lado de Partridge? Partridge
vira-o ser posto à prova, baixar o queixo para o peito e deixar os olhos
deslizar de novo para o ecrã. Mas agora Weed tem de o ajudar. É sua única
hipótese.
— Estou a ver um velho amigo meu — diz Partridge. — Vou trocar
dois dedos de conversa.
— Não queres apresentar-me?
— Só preciso de um bocadinho, está bem?
Iralene faz um sinal afirmativo.
— Há bolo. Vou ver se falta muito para o trazerem. Encontro-me
contigo aqui.
— Está bem. — Abrir caminho através dos convidados é mais difícil
do que ele esperava. Amigos do seu pai detêm-no, apertam-lhe a mão, dão-
lhe palmadinhas nas costas. Fazem piadas acerca do casamento,
comparando-o a uma prisão, e Partridge detesta-os por isso. Isto é uma
sentença de prisão, mais do que jamais saberão, é o que gostaria de lhes
dizer.
Do outro lado da sala, Arvin também está a ser felicitado. Partridge
ouve fragmentos de elogios, vê os inconfundíveis apertos de mão e
palmadinhas nas costas. Que terá Arvin ganho agora? Cruza o olhar com
Arvin. Este olha nervosamente em redor, emborca o seu ponche, pede
desculpa aos seus admiradores, e encaminha-se para a taça de ponche, para
voltar a encher o copo.
— Precisamos de um pouco de sangue fresco — diz Holt.
— Estamos satisfeitos por o teu pai ter resolvido integrar-te.
— Estou muito entusiasmado — diz Partridge, mantendo um olho em
Arvin, que está agora a ser elogiado pelo Sr. Winthrop, um dos vizinhos de
Partridge, um dos principais conselheiros do seu pai e um ávido jogador de
ténis.
— Qual é o êxito mais recente do Arvin Weed? — pergunta Partridge
ao grupo. Começam todos a falar ao mesmo tempo.
— Um trabalho de equipa e um verdadeiro progresso!
— Excelente trabalho!
— Uma verdadeira conquista científica!
Partridge sente-se nauseado. Weed terá descoberto a cura? Os homens
continuam a tagarelar e, por fim, Partridge interrompe-os:
— Não fazem ideia que descoberta foi, pois não?
Eles olham uns para os outros. Por fim, Holt diz:
— Uma mensagem vinda de cima disse-nos que era realmente
louvável.
— Mas não sabem por que o estão a louvar? — Partridge está
exasperado, mas também aterrorizado.
— Não concretamente — responde Holt.
— Absolutamente nada?
— Não — confessa Holt. — Mas é verdadeiramente excelente,
Partridge. Verdadeiramente.
Então Foresteed em pessoa aproxima-se: peito largo, levemente
bronzeado, o cabelo um pouco hirto.
— Partridge! Como é bom ver-te são e salvo. Preocupaste-nos.
— Dá uma palmadinha paternal no ombro de Partridge, mas depois
olha para Holt e sorri. Aproxima o rosto. — Mas já todos fizemos loucuras
por causa de um palminho de cara. Não é, Holt? Acontece aos melhores. Eu
próprio deixei por aí algumas sementes.
— Perdão? — diz Partridge. Foresteed estará a falar de Lyda? É disso
que se trata? Lyda corrompeu-o e ele tinha sementes para deixar por aí?
— É isso mesmo — diz Holt. — Somos homens, afinal de contas.
— Rapaziadas — remata Foresteed. Agarra o pescoço de Partridge por
trás e sacode-o um pouco em ar de brincadeira, mas Partridge sempre
desconfiou de pessoas demasiado calorosas. Sendo filho do seu pai, não
podia deixar de o fazer.
Vê Arvin a tentar escapar ao Sr. Winthrop.
— Com licença. Está ali uma pessoa a quem tenho de falar.
Mas Foresteed agarra-lhe no braço e puxa-o para si.
— Sabes, ouvi dizer que a operação apaga tudo, desde o ponto
escolhido no passado até ao momento exato em que se é anestesiado —
sussurra.
— Interessante — replica Partridge.
— O que significa que posso dizer o que me apetecer agora, e tudo será
completamente eliminado.
Partridge olha para o queixo quadrado de Foresteed, para os seus olhos
semicerrados.
— Vá em frente, então. Diga o que tem para dizer.
— Não passas de um merdas, Partridge. É isso que és e sempre serás. E
se julgas que vou deixar-te assumir o poder só porque o teu papá mandou,
estás muito enganado.
Partridge encara Foresteed, recusa-se a desviar o olhar.
— É bom saber que você é um cobarde. Por que não me diz isso de
novo, quando eu puder lembrar-me, hein?
— Prefiro apanhar-te de surpresa.
Partridge torce o braço e Foresteed larga-o.
— Feliz noivado! — diz Foresteed em voz alta.
Partridge tenta chamar a atenção de Arvin antes que ele chegue à porta.
— Weed! — grita.
Arvin continua a andar.
Partridge abre caminho à força através de um pequeno círculo de
mulheres.
— Desculpe. Com licença.
Interceta Arvin um momento antes de ele se esgueirar.
— Estás a evitar-me?
— Partridge! — exclama Arvin. — Ei, queria ver-te, mas calculei que
estivesses demasiado ocupado. Desisti de tentar.
— Palavra? Porque deu a impressão de que estavas a tentar escapulir-
te.
— Não, não — diz Arvin. — Nada disso.
Partridge agarra-lhe no cotovelo e leva-o para um canto da sala.
— Não me lixes, Arvin.
— Ei, isso dói — protesta Arvin. — Nem todos recebemos os mesmos
melhoramentos, sabes? Importas-te de acalmar um bocadinho?
Partridge larga-lhe o cotovelo.
— Que melhoramentos recebeste? Cérebro e...
— Comportamental? Supervisionei os meus próprios melhoramentos,
Partridge. Foram-me dados poder e recursos incríveis. Não podes imaginar.
— Não — replica Partridge. — Não posso. Sou apenas um peão aqui,
Arvin. Portanto, conta-me: qual o motivo deste corrupio de felicitações?
Qual foi a grande descoberta?
— Não me é permitido dizê-lo.
Partridge baixa a voz.
— É a cura?
Arvin olha para o chão, abana um tudo-nada a cabeça.
— Não? Não é a cura? Então o que é?
— Não posso dizer! — Arvin está afogueado. Olha de novo para
Partridge.
— Não te irrites, Weed. Ouve, estou a contar contigo.
— Bem, nisso acertaste. A fase seguinte está inteiramente a meu cargo
— diz Arvin, subitamente arrogante.
— O que vai acontecer comigo, Arvin?
Arvin puxa o nó da gravata.
— Como tem progredido o mindinho?
— Otimamente. Não mudes de assunto.
— É realmente incrível, o que podemos fazer hoje em dia. Regenerar
um mindinho? Quer dizer, quando eras criança achavas que viríamos a
conseguir isso, um dia?
— Nunca pensei que viria a precisar de regenerar um mindinho. —
Uma empregada passa por eles com uma travessa de queijos.
— Não, obrigado — diz Partridge. Espera que ela se afaste e sussurra:
— Não fujas à pergunta. Quero saber o que vai acontecer às minhas
recordações, Weed.
— A memória é uma coisa complicada. Não é infinita. É uma rede. A
nossa mente é um oceano. Podemos dragar apenas até certo ponto.
— O que quer isso dizer?
— Há coisas de que nos lembramos conscientemente e há coisas que
assentam nas fossas mais profundas do leito oceânico da memória. No
subconsciente. Se algo estiver assim tão fundo, não podemos tocar-lhe.
Podemos tentar danificar as vias de acesso, mas é tudo. Então, passado um
curto período de tempo em que ainda existe um acesso limitado às vias
danificadas, estas ficam seladas para sempre.
— Mas eu não vou ter de me preocupar com isso. Pois não, Arvin?
Está tudo a teu cargo. Tu tratas do assunto.
Arvin pisca o olho outra vez, o mesmo tipo de piscadelas nervosas e
quase indetetáveis que dirigia a Partridge enquanto este estava a ser
purificado. Arvin está do seu lado; Partridge tem quase a certeza!
— O teu dedo mindinho está a ser regenerado, Partridge. É
extraordinário. Devias estar contente com essa ciência.
— Sim, suponho que sim.
— Fica contente com isso — diz Weed, como se fosse uma ordem.
— Estou contente, está bem? Estou muito, muito contente por ir
recuperar o meu mindinho. Está bem?
— Uma parte elementar do teu mindinho ainda existia. É por isso que
foi possível recuperá-lo. — Arvin estará a dizer-lhe que a sua memória
poderá ser recuperada também, porque uma parte elementar dela existe nas
profundezas da mente?
— Está escuro lá fora — observa Arvin.
Partridge olha para o terraço através da multidão de convidados.
— Já é tarde.
— Vai ficar ainda mais escuro — diz Arvin.
Um arrepio gelado percorre o corpo de Partridge. Aquilo é um aviso.
Seja o que for que Partridge julga saber, Arvin Weed sabe mais.
Arvin olha para uma jarra de flores. Toca no centro de uma delas.
— Não é a cura — sussurra. — É pior do que isso, Partridge.
O que pode ser pior do que a cura? Arvin mostra-lhe o dedo salpicado
de pólen.
— Um toque agradável — comenta. — Flores verdadeiras. Pergunto-
me onde as terão arranjado.
Partridge quer fazer-lhe mais perguntas, tantas que nem sabe por onde
começar, mas Iralene chega. A sua mão desliza pelo braço de Partridge.
— Encontraste-me — diz ele.
Ela encosta a boca ao ouvido de Partridge e sussurra:
— Já trouxeram o bolo. — Como se estivesse a partilhar um segredo
íntimo.
— É bom saber — replica Partridge, depois apresenta Iralene e Arvin.
— Já conheço o Arvin — diz Iralene. — Prazer em ver-te.
Arvin aperta-lhe a mão desajeitadamente, sacudindo-a com demasiada
força, depois baixa o olhar para os sapatos. Sempre foi nervoso quando está
com raparigas. De certo modo, é consolador que algumas coisas não
mudem.
— Como é que vocês os dois se conhecem?
— Lições — explica Iralene. — Tenho tido lições privadas na
Academia. Para aperfeiçoar os meus conhecimentos. Era uma pena se não
fosse capaz de manter uma conversa inteligente contigo, Partridge. Não
era?
— Cruzámo-nos algumas vezes nos corredores da Academia — diz
Arvin, levantando os olhos —, quando lá fui visitar amigos.
— Com quem tens tido lições? — indaga Partridge. — Com que
professores?
— Alguns, aqui e ali. Era tão maçador que mal consegui aguentar.
— Glassings? Welch? Hollenback? Quem?
Ela encolhe os ombros:
— Qual é a diferença entre eles?
— Tenho de ir andando — diz Arvin.
— Queres uma fatia de bolo? — pergunta Iralene. — É bolo de limão!
— Obrigado — responde Arvin —, mas estou cheio e tenho de ir.
— Oh — diz ela, fazendo beicinho. — Tenho muita pena.
Arvin sorri a Iralene, mas não parece ter nada a dizer. Começa a
afastar-se, depois volta para trás.
— Vejo-te amanhã, Partridge.
— Amanhã?

— O teu pai é um grande homem, mas não é conhecido pela paciência.


A operação está marcada para amanhã.
— Mas... não. É muito cedo.
— E que podemos nós fazer? Não é? A única coisa que podes fazer é
preparares-te. Mental mente.
Mentalmente, pensa Partridge. Como nos preparamos mentalmente
para perder um bocado da nossa mente?
Arvin faz uma pausa. Quer dizer qualquer coisa, mas olha para Iralene
e a presença dela impede-o de falar. Partridge percebe que, em vez de dizer
o que queria, Arvin está a procurar outra maneira de o formular.
— Que foi? — pergunta Iralene.
— Nada — diz Arvin. — Só estou satisfeito por o Partridge estar de
volta. Nada mais. — Fita Partridge. — É bom estares de volta. Estás cá.
— Que queres dizer com isso? — pergunta Iralene, dando uma
cotovelada discreta a Partridge.
— De volta? Aqui? Ha, ha! — diz Partridge. — Nunca de cá saí.
Capítulo 52

Lyda
Moledos

A meio da noite, Lyda desliza a mão por baixo da almofada fria.


Encontra a ponta de metal da caixa de música, que guarda escondida contra
a parede de gesso. Puxa-a para junto do peito. Normalmente, abre-a, por um
breve instante, para deixar sair algumas notas, como se a própria música
pudesse sufocar dentro da caixa e morrer. Mas desta vez não o faz. Senta-se
e mete os pés descalços nas botas frias. Não aperta os atacadores. Não se
veste. Enfia simplesmente o casaco por cima da camisa de noite, que lhe foi
dada pelas Mães. Freedle solta um gorjeio mecanizado. Quer ir com ela?
Lyda deixa-o empoleirar-se no seu ombro, junto do pescoço, onde o seu
cabelo comprido formava um drapeado outrora. Caminha o mais
silenciosamente que pode, passando pelas Mães adormecidas e os
respetivos filhos. É inverno, pelo que estão congestionados, um pouco
arquejantes, e irrequietos.
Estão a viver numa velha sala de aprovisionamento, por baixo do que
era outrora uma fábrica que produzia um tipo qualquer de doce, umas
gomas que requeriam matérias de origem animal. Quase uma década
depois, o ar ainda tem um odor doentiamente doce, com um matiz sombrio
a morte. O cheiro da fábrica faz com que Lyda se sinta enjoada. A Mãe
Hestra passou o dia a falar-lhe acerca da gravidez: como ela continuará a ter
enjoos e tonturas durante algum tempo, mas que isso passará à medida que
a sua barriga for crescendo, como os seus seios ficarão sensíveis (já estão),
e como precisa de comer mais. Lyda fez perguntas acerca do trabalho de
parto e do nascimento, mas a Mãe Hestra disse que falariam disso mais
tarde. «Por agora isto é quanto basta.»
A mente de Lyda é atraída para o futuro. Os novos bebés que nascem
dos sobreviventes também estão alterados de algum modo.
Os pais foram tão profundamente afetados pelas Detonações que o seu
código genético ficou alterado. E as mutações podem ter também origem
ambiental. A radiação entranhou-se na terra, no ar, na água. Flutua nas
cinzas e é inspirada para os pulmões. Lyda aprendeu isso na Cúpula. O seu
filho nascerá alterado também? Tem tido sonhos em que dá à luz algo
peludo, mutilado, com presas, vidro a cintilar nas costelas.
Partridge não tem tais preocupações. Não sabe de nada. Ela sente-se
mais sozinha do que nunca. Passou um mês desde a última vez que o viu.
Por vezes, ela evoca o rosto dele e a imagem estilhaça-se na sua mente.
Segurando a caixa, Lyda sai da sala de aprovisionamento para o recinto
aberto da fábrica. Há apenas uma luz fraca, que a orienta ao longo das filas
de velhas cintas transportadoras, máquinas, tubagens expostas. As Mães
esventraram o local, como de costume. Arrancaram engrenagens, correntes,
pegas de borracha, alavancas, tudo o que tinha valor, dando ao espaço um
aspeto oco. Lyda sabe que a Mãe Hestra quer informar a Nossa Boa Mãe
brevemente acerca da sua gravidez, e tem medo da sentença que venha a ser
pronunciada. A Nossa Boa Mãe aterroriza-a.
Aperta a caixa com força contra o peito e estuga o passo. Não há porta
do outro lado do grande recinto da fábrica, apenas um retângulo a assinalar
o sítio onde dantes se encontrava. Sai para o ar frio da noite. Freedle gorjeia
ao de leve, talvez feliz por estar ao ar livre.
Por muito só que se sinta, ela não quer que a notícia da sua gravidez
chegue aos ouvidos de Partridge. Distraí-lo-ia da sua missão. E agora essa
missão tornou-se mais pessoal. Lyda pensa na rapariguinha que viu, Wilda:
não nascida Pura, mas feita Pura. Se o filho de Lyda nascer marcado, ela
desejará que o bebé seja feito Puro? Gostaria de pensar que não, que ficaria
orgulhoso do seu filho, qualquer que fosse a sua forma. Mas, por vezes,
pensa que a criança gostaria de ser Pura; é natural. Se os outros descobrirem
uma maneira de reverter a Degeneração Celular Rápida, a criança talvez
possa ser curada.
Ela também não quer que Partridge saiba que está grávida, porque quer
que ele volte para ela por amor, e não por obrigação. Detesta-se por pensar
assim. Ele não vai voltar. Tem de continuar a dizer isso a si mesma. Uma
parte de si sente que ele não merece saber da sua gravidez. Esta é apenas
sua. Ele partiu. Ela tem de aprender a contar apenas consigo própria.
O chão é de cimento duro e terra gelada. Lyda dobra a esquina da
fábrica, onde existe um cemitério. É improvisado e pequeno, rodeado de
estacas de metal cravadas no solo e amarradas com arame farpado. As
estacas estão profundamente enterradas, para que os Poeiras não consigam
infiltrar-se lá dentro.
Lyda destranca a cancela e tranca-a de novo atrás de si. Em vez de
lápides, há moledos, pedras pálidas cuidadosamente empilhadas sobre cada
sepultura. Duas das sepulturas são recentes: uma mãe enterrada sozinha e
um par mãe e filho enterrados juntos. A mãe e a criança costumavam
dormir no catre número nove. Lyda para junto do seu moledo. As pedras
são tão brancas que parecem brilhar. Pousa a mão sobre elas. Por um
momento, parece que toda gente no mundo é substituível. Aquela mãe e o
seu filho partiram. Mas Lyda e seu filho estão a chegar. Um dia, será a sua
vez de partir — enterrados sob um montículo de pedras ou abandonados na
floresta, como a mãe de Sedge e Partridge. Corpos. É tudo o que somos?
Existirá também o pavio da alma a palpitar dentro de Lyda, dentro do bebé
também? Terá agora duas almas?
A caixa de metal.
Dirige-se para o canto do cemitério e pega numa colher de pedreiro
pelo punho de madeira áspera. Ajoelha-se, pousa a caixa de música no chão
e levanta a colher de pedreiro com ambas as mãos, apunhalando a terra fria
com quanta força tem. O solo cede um pouco. Ela golpeia de novo, uma e
outra vez, a respiração a sair em baforadas, até conseguir inserir a colher
suficientemente fundo para poder arrancar um torrão, depois outro.
Por fim, há um pequeno buraco. Lyda pega na caixa de música.
Freedle abre as asas em antecipação; sempre adorou a música que a caixa
toca. Lyda dá corda ao instrumento, os dedos tão dormentes que tem
dificuldade em mexê-los. Lembra-se do calor de estar com Partridge,
tapados com o casaco, no meio da armação da cama de dossel. Precisa dele
naquele preciso momento. As lágrimas correm-lhe pelo rosto. Abre a caixa
de música ainda uma vez. As notas libertam-se. Freedle esvoaça no ar sobre
sua cabeça. Ela deixa a música pairar no frio. A caixa de música vai
abrandando, cada vez mais lenta, até terminar.
Lyda faz menção de meter a caixa no buraco, mas detém-se. Dá-lhe
corda de novo, mas não abre a tampa. Quer que, se alguém a encontrar, um
dia, a caixa toque para essa pessoa. Foi para isso que foi feita. Por essa
altura, talvez esteja demasiado corroída para trabalhar, mas Lyda quer dar-
lhe essa possibilidade.
Freedle pousa no chão ao seu lado. Ela estará também a tentar enterrar
Partridge, de certo modo? Não. Isso não é possível. Ele continua com ela,
haja o que houver. Lyda agarrar-se-á sempre a uma parte dele.
Enterrar a caixa de música significa que deixou de esperar que ele
volte para ela. Não pode continuar a viver assim. Tem de se habituar à ideia
de que vai ter de cuidar de si mesma e do seu filho. Conseguirá, sozinha.
Empurra a caixa de música para o fundo do buraco, cobre-a com os
torrões de terra e comprime a terra solta, calcando-a com a colher de
pedreiro.
Capítulo 53

Partridge
Sete Verdades Simples

— Eu é que devia levar-te à tua porta — comenta Partridge —, se


queremos ser tradicionais acerca disto.
— E beijar-me à luz do alpendre — diz Iralene. Encontram-se de novo
no corredor, diante da porta fechada do quarto de Partridge. Iralene tem a
chave e olha para Partridge com uma expressão expectante.
Ele mete as mãos nos bolsos, indicando que não vai mexer-se.
— Pergunto-me como o quarto estará programado. Tu sabes?
Iralene faz deslizar a chave para a fechadura.
— Se não gostares, posso mudá-lo para o que mais te agradar.
— Abre a porta, mas acrescenta, antes de Partridge entrar: — Isto
aplica-se a mim também, Partridge. Posso mudar. Posso ser a pessoa que tu
quiseres que eu seja.
— Iralene — diz Partridge.
— Obrigada — prossegue ela, olhando para as próprias mãos — por
aceitares tudo isto. Por fingires à frente de todas aquelas pessoas que
realmente queres casar comigo. Obrigada por tudo, Partridge. Sei que esta
noite não teve grande significado para ti, mas para mim... — Levanta os
olhos para ele e sorri, mas o sorriso é frágil.
— Onde é que dormes, Iralene?
— Lá em baixo, palerma — replica ela.
— Iralene — insiste ele. — Lá em baixo é uma miragem. Não existe.
Para onde vais?
— Tu sabes para onde vou — diz ela. — Não me faças dizê-lo.
— Depois ri-se, como se estivesse a brincar, como se tudo aquilo fosse
muito divertido.
— Não é bom para ti — afirma Partridge. — Não pode ser bom para ti.
— Preservação — responde Iralene. — Não há nada melhor para a
longevidade.
— Sonhas, nessas cápsulas? Não podes. O teu cérebro está demasiado
lento, tal como todas as tuas outras células. Não consegues sonhar lá dentro.
— Estás a convidar-me a entrar? — sugere Iralene. — Isso agradar-
lhes-ia, mesmo que te aproveitasses.
— Não me aproveitaria.
— Se achas que eu não devia estar numa cápsula — diz Iralene —
então convida-me para ficar contigo esta noite.
Ele não sabe o que dizer.
— Não faz mal, Partridge. Estou habituada à suspensão. Sou um dos
que têm sorte!
Partridge lembra-se da Sra. Hollenback na cozinha. Sorte a nossa. Se
Iralene tem sorte, quem terá azar?
— Fica — diz ele. Ela sorri e baixa timidamente a cabeça: —
Obrigada.
Entram no quarto. É rústico, com uma colcha de retalhos na cama,
cortinas desbotadas com um padrão floral, vista para uma pradaria banhada
pelo luar.
— Posso desligar as câmaras, sabes — diz Iralene —, pelas razões
certas.
Partridge levanta o olhar para as câmaras empoleiradas nos cantos do
compartimento, depois fixa-o de novo em Iralene. Ela é bonita. Essa é a
mais pura verdade. Mas ele só consegue pensar em Lyda, e dói-lhe sempre
que o faz. Os seus dedos lembram-se da sensação da pele dela. Tem de
confiar que Arvin tenha um plano para o salvar da operação do dia seguinte.
Não pode perder Lyda. Mas também quer as câmaras desligadas. Quer
pensar, ainda que apenas por um bocadinho, que a sua vida lhe pertence.
Talvez, se não estiver a ser vigiado, consiga pensar com mais clareza.
— Está bem — decide. — Vamos desligá-las.
Iralene aproxima-se dele. Chega-se tanto que ele sente o calor do seu
corpo. Ela sussurra, «pelas razões certas», com os lábios a roçar-lhe o
ouvido.
Ele faz um sinal afirmativo, por causa das câmaras.
Iralene mete a mão na pochete e tira o globo. Toca no ecrã e as câmaras
desligam-se com um estalido, uma a uma. Partridge suspira e senta-se na
beira da cama. Arvin dissera-lhe para se preparar mentalmente, mas como?
Vira-se para Iralene:
— Tenho de te perguntar uma coisa, Iralene.
Ela senta-se ao seu lado e desenha-lhe um oito na perna com o dedo.
— O que quiseres.
Ele levanta a mão dela e repõe-na no seu próprio colo.
— A que te referias quando disseste que eras um dos que têm sorte? —
Há algo naquelas palavras que não lhe sai da cabeça.
— Willux suspende-nos pelas razões certas. Sabes como ele deu
ordens para suspender os que são afetados por várias doenças, na esperança
que a ciência evolua até poder curá-los.
— Os que são afetados? Quem?
— As pessoas julgam que temos recursos para cuidar de todos os que
estão em centros de reabilitação e não podem ser devolvidos à sociedade, e
dos bebés que nascem com alguma coisa errada. Bem, não se deve
desperdiçar recursos, certo? Não quando se pode recorrer à suspensão.
Partridge pensa no bebé Jarv. Ele estará no hospital, ou suspenso numa
cápsula fria, algures?
— Quem te disse isso?
— Ninguém me diz nada — responde ela. — Falam à minha frente
como se eu fosse imbecil, e eu vou percebendo coisas.
— Estás a dizer que...
— Não temos vizinhos, Partridge, apenas compartimentos gelados que
impedem as pessoas de envelhecer, ou, pelo menos, retardam o processo.
Glassings saberá daquilo? Meu Deus.
— É tudo pelo melhor — prossegue Iralene. — O papá está a ajudar as
pessoas.
— Não lhe chames isso.
— Mas o teu pai é meu padrasto e vai ser meu sogro também, um dia.
Não é, Partridge?
— Uma coisa de cada vez, está bem? Explica-me só como o meu pai
está a ajudar as pessoas.
— Eu cresci lá em baixo, dentro e fora do gelo, a vaguear pelos
corredores.
— Iralene — atalha ele. — Não, não digas isso.
— É a verdade e isso não me entristece, porque não conheço outra
coisa, pois não?
— Iralene, lamento muito. — Talvez ele esteja a pedir desculpa pelo
seu pai.
— Não faz mal. O que estou a dizer é que encontrei alguns, umas
cápsulas num corredor no andar abaixo de nós, que são diferentes.
— Como?
— São as pequenas relíquias do papá. — Pequenas relíquias. Ele já
tinha ouvido aquela expressão. Ingership aplicara-a a Bradwell pouco antes
de morrer. Dissera que Willux não se importaria de adicionar Bradwell à
sua coleção, às suas pequenas relíquias. — Creio que se trata de um
conjunto de pessoas que ele não quer matar, mas também não quer ver
vivas. Quer simplesmente conservá-las.
— Iralene, tu não tens sorte. Isso não é maneira de viver.
Ela pousa as mãos no rosto de Partridge.
— Salva-me, então. Salva-me. — Beija-o. Os seus lábios são suaves,
mas ele recua e agarra-lhe gentilmente nos pulsos.
— Ultrapassaremos isto — diz ele. — Mas não como eles querem. Não
vamos apaixonar-nos.
Ela olha-o fixamente por um momento.
— Não vou apaixonar-me por ti, mas também não vou abandonar-te.
Vou fazer com que ambos saiamos disto. Estás a ouvir?
Ela faz um sinal de assentimento, mas os seus olhos estão fixos e
distantes, como se estivesse a olhar através de Partridge.
Ele pega nalgumas almofadas extra e dispõe-nas no meio da cama,
formando uma divisória. Depois diz:
— Pronto. Dorme deste lado.
Iralene deita-se, muito hirta. Pousa suavemente a cabeça na almofada.
— Sonha à vontade esta noite — acrescenta Partridge.
Ela fecha os olhos:
— Acho que esqueci como sonhar.
Partridge levanta-se e dirige-se para o outro lado da cama. Imagina
Jarv numa cápsula de tamanho infantil, com o rosto gelado e hirto. Tem de
se lembrar de Jarv depois da operação, tem de se lembrar que Jarv precisa
dele. Tem de se lembrar de tudo.
Prepara-te. Mentalmente. O que queria Arvin dizer?
A piscadela de olho. Partridge dá-se conta até que ponto está a confiar
na estúpida piscadela de olho de Weed. Convenceu-se que isso significava
que Weed iria salvá-lo, mas e se Weed se transformou num canalha astuto?
Ou se tem simplesmente um problema qualquer nos olhos? Jesus, pensa
Partridge para consigo. Tem de avançar e arriscar, acreditando em Weed,
mas também tem de arranjar um plano de contingência. Se o seu pai
conseguir o que quer, haverá alguém em quem possa confiar para lhe dizer
a verdade acerca da sua própria vida? Se Glassings lhe dissesse que ele
tinha fugido da Cúpula, encontrado a mãe e o irmão, e visto o pai matá-los,
que ele tem uma meia-irmã lá fora e uma namorada para quem prometeu
voltar, ele julgaria que Glassings estava bêbedo. E não seria no melhor
interesse de Iralene contar-lhe que ele está apaixonado por Lyda e que o seu
noivado com a própria Iralene é uma farsa.
Ele apenas pode confiar em si mesmo. Tem de encontrar uma maneira
de conseguir que o seu eu atual diga a verdade ao seu eu futuro. Iralene já
está a dormir, respirando pesadamente.
Partridge vê a pochete dela na mesa de cabeceira. Contorna
silenciosamente a cama, pega na malinha e rebusca entre lenços, batom,
algumas contas dobradas. Sente as arestas rijas do cartão de identidade de
Iralene; contém uma fotografia atualizada aos dezasseis anos, como é
costume. Ela tem a mesma aparência, incluindo as ondas suaves no cabelo.
Partridge prepara-se para o repor no seu lugar quando dá com os olhos na
data de emissão do cartão: há oito anos. Não é possível. Há oito anos,
Iralene ainda não tinha dezasseis anos. Há quanto tempo terá ela sido
suspensa? Terá sido escolhida para ele, e depois o seu envelhecimento
retardado para que ele pudesse apanhá-la? O seu pai tê-la-á escolhido
quando ele era ainda criança? Ou ainda mais cedo? O seu pai terá incluído
Mimi e Iralene na lista porque já estava envolvido com Mimi antes das
Detonações?
Olha para Iralene, quase à espera de ver o rosto dela subitamente
envelhecido. Ela tem vinte e quatro anos. Mas não é apenas a sua aparência
que é jovem. Ela própria parece ser jovem. Afinal, o que faz as pessoas
crescerem? A experiência. Ela foi privada disso por causa dele. Sente-se
imediatamente aturdido pela culpa. Mas não foi ele que pediu ao pai para
fazer aquilo. Como se atreveu o seu pai a fazer uma coisa daquelas a
Iralene?
Repõe o cartão de identidade dela na pochete. Enfia os dedos até ao
fundo da mala e sente os sulcos de um lápis. Puxa-o para fora, juntamente
com um recibo quadrado. Antes da festa, Iralene tinha comprado pastilhas
para o hálito.
Partridge tem de escrever em letras pequenas. Sente-se tão assoberbado
que resolve numerar os seus pensamentos.
1. Fugiste da Cúpula. Encontraste a tua meia-irmã, Pressia, e a tua mãe.
A tua mãe e Sedge estão mortos. O teu pai matou-os.
2. Estás apaixonado por Lyda Mertz. Ela está fora da Cúpula. Tens de a
salvar, um dia.
3. Prometeste a Iralene fingires ser noivo dela. Cuida dela.
4. Neste prédio, há pessoas vivas, suspensas em cápsulas. Salva-as.
O bebé Jarv pode estar entre elas.
5. Confia em Glassings. Não confies em Foresteed.
6. Não te lembras disto porque o teu pai te obrigou a apagar as
memórias da tua fuga. Foi ele que causou as Detonações. As pessoas na
Cúpula sabem disso. Ele tem de ser derrubado.
7. Toma o poder. Lidera a partir de dentro. Começa de novo.
São sete verdades simples. A partir delas, ele pode descobrir o resto. E
agora tem de esconder a lista. Onde?
Percorre todo o quarto, depois dirige-se para a casa de banho. Como a
decoração virtual representa uma casa de campo rústica, a casa de banho é
antiquada. Em vez de duche, há apenas uma velha banheira com pés. O
lavatório é uma bacia com duas torneiras: quente e fria. E a sanita é das
antigas, com o assento gasto e um depósito preso à parede. Em vez de se
premir um botão para o autoclismo, é preciso puxar uma corrente.
O problema é simples: se esconder o bilhete, como saberá que deve
procurá-lo?
Ele olha de novo para o depósito fixado à parede, para a corrente que é
preciso puxar. Baixa o tampo da sanita e empoleira-se em cima dele. Estuda
o interior do depósito. Está meio cheio de água. A corrente está ligada a
uma boia de borracha. Puxar a corda move a boia, levantando uma válvula
que permite que a água corra para a sanita.
Se ele soltar a corrente, o autoclismo não funcionará. Será obrigado a
perceber como repará-lo e dará novamente por si ali, de pé sobre o tampo
da sanita. Se esconder o bilhete entre o depósito e a parede, entalando-o na
tampa do depósito, o papel cairá ao chão quando ele abrir a tampa.
Dobra rapidamente o bilhete em acordeão. Na dobra superior, escreve:
Para Partridge. De Partridge. Lê-me.
Encaixa-o no sítio e apercebe-se de que terá de elaborar um plano para
voltar àquele quarto. Que tipo de plano? Não faz ideia.
De repente, ouve um grito. Corre para o quarto e aproxima-se da cama.
Iralene esperneia e debate-se.
— Iralene! — chama ele. — Acorda! — Agarra-lhe nos ombros. Ela
arranha-lhe o peito. — Iralene! — grita ele de novo. Ela abre os olhos,
ofegante, olha em redor como um animal enjaulado, e, por fim, olha para
Partridge.
— O que nos aconteceu?
— Nada — assevera ele em voz baixa. — Foi apenas um sonho mau.
Um pesadelo.
Ela põe-lhe os braços à volta do pescoço e aperta-o com força.
— Éramos muito pequeninos. Tínhamo-nos tornado muito pequeninos
e eles esqueceram-se de nós. Tentei chamá-los. Tentei lutar para conseguir
ajuda, mas não havia para onde ir. E éramos tão minúsculos, Partridge,
como bonecas em pequenos recipientes de plástico.
— Nada disso aconteceu. Foi só um sonho. Chiu — tranquiliza-a ele,
acariciando-lhe os cabelos. — Chiu. Está tudo bem. Dorme.
— Está mesmo tudo bem? Tens a certeza?
— Foi só um sonho. Está tudo ótimo. Vai correr tudo bem.
Ele tenta acreditar no que está a dizer.
— Prometo.
— Abraça-me, por favor — diz ela.
Partridge deita-se e ela pousa a cabeça no seu peito, encaixa a mão
entre os botões da sua camisa.
— Quero que te lembres disto — declara ela. — Que foste bom para
mim. Amanhã, depois da operação, vou contar-te este momento. Como
foste querido.
— Esta é a minha versão favorita do quarto, Iralene — diz ele. —
Amanhã, quando me lembrares este momento, certifica-te de que o quarto é
este, não um local de férias ou uma grande cidade. Este é acolhedor, é um
lar. Promete que vais manter esta decoração. Quero viver aqui. Diga eu o
que disser amanhã, certifica-te de que é a este quarto que regressamos. Está
bem?
— Este quarto. Assim farei. Prometo. — Iralene alisa as rugas da
camisa dele. Com a cabeça dela no seu peito, Partridge imagina que ela
ouve as batidas do seu coração. Estão acordados e vivos num edifício cheio
de corpos em suspensão: os mortos-vivos.
— Posso ligar outra vez as câmaras, Partridge? Sinto-me mais segura
com elas ligadas. Vigiada. E quero que eles nos vejam assim, juntos. Posso?
— As câmaras não me agradam, mas, por agora, está bem.
Ela estende a mão para a mesa de cabeceira e prime o ecrã do globo.
As coberturas das lentes das câmaras dispostas nos cantos retraem-se, com
um estalido familiar. E mais uma vez, há olhos voltados para ele.
Capítulo 54

Pressia
Solstício

Pressia desperta de um sono agitado. Sob as camadas formadas pelo


seu casaco e duas camisolas de lã, sente a curva das costas
confortavelmente aconchegada a outro corpo quente. Vira-se rapidamente.
É Bradwell, a dormir profundamente; e ela tem uma sensação de
choque perante o volume dele, como se tivesse acabado de encontrar um
lindo urso na sua cama. Só que ela não está na cama. Está numa passagem
subterrânea de pedra. Lembra-se de que há contos de fadas que metem
ursos e camas, mas não consegue recordar-se das histórias. O flanco dele
sobe e desce. Ambos estão completamente vestidos, as pernas dele
entrelaçadas nas dela. Beijaram-se e voltaram a beijar-se, até Pressia sentir
os lábios inchados, e, por fim, tiveram de adormecer. Os pássaros nas costas
de Bradwell agitam-se por baixo da camisa. É noite, mas ela consegue ver o
rosto dele à luz do luar filtrado pelas cinzas: as suas feições estão tão
tranquilas que ele parece jovem. Ele é jovem, lembra Pressia a si própria.
Ambos são. E ele parece tão vulnerável que ela quase consegue imaginar
como ele teria sido se nada daquilo tivesse acontecido — o assassinato dos
pais, a perda de Walrond, as Detonações... Seria possível Bradwell ser do
tipo doce, um coração de manteiga? Talvez uma parte dele ainda tenha um
coração de manteiga, e seja esse o motivo por que demoraram tanto tempo a
reencontrar-se um ao outro daquela maneira. Ele tem medo de ser ferido, tal
e qual como ela.
Apalpa instintivamente os dois frascos, agora atados à sua barriga.
Estão em segurança.
Não vai conseguir adormecer de novo, além de que devem ser horas de
substituir El Capitan e fazer o seu turno de vigia. Desliza de baixo do
casaco, põe a espingarda às costas e pega na sua faca.
Ao sair do túnel, ouve alguém cantar. Uma voz baixa e áspera, a cantar
uma canção de amor sobre um homem cuja amada morreu nas Detonações.
Pressia já a tinha ouvido várias vezes.
Cinza e água, cinza e agua fazem a pedra perfeita.
Ficarei aqui, para sempre à espera, até me transformar em pedra.
Só pode ser a voz de El Capitan. Pressia encosta-se ao declive do
morro, muito quieta, a ouvir. A voz dele é triste, um lamento vindo do
coração. Ela não o sabia capaz de algo assim. Pergunta-se se El Capitan
estará apaixonado por alguém, ou se terá perdido alguém a quem amava.
Não há outra explicação para a profundidade da nostalgia na sua voz áspera.
Ela não quer embaraçá-lo, sendo apanhada a ouvir, pelo que regressa à
passagem subterrânea e volta a sair, tossindo alto.
Ele para de cantar, a meio de uma nota. Ela chama:
— Cap?
— Que é? — responde ele, roucamente.
Ela sobe o morro e encontra-o sentado entre os carris mutilados e
amolgados, com a arma nos braços e Helmud às costas. El Capitan vai-se
baloiçando ligeiramente, como se estivesse a tentar manter um bebé a
dormir: Helmud ou a arma? Ele não parece ter consciência disso. Fignan
repousa ao seu lado, silencioso e com as luzes apagadas.
— Por que não vais lá para baixo e dormes um bocado? Eu faço o meu
turno.
— Onde está o Bradwell?
— A dormir.
— A sério? — diz ele, num tom acusador. Saberá que eles se beijaram?
— Sim, a sério. Fica com o turno seguinte. Eu não conseguia dormir.
— Estou a ver.
— Que se passa contigo?
— Nada. — El Capitan põe-se em pé. — Queres o Fignan aqui ou
levo-o para baixo?
— Deixa-o ficar — diz Pressia. — Se as coisas estiverem sossegadas,
posso pesquisar um bocado.
— Tem estado sossegado até agora, mais ou menos. — El Capitan
começa a caminhar para o morro. — Ainda mal partimos e já sofremos uma
baixa. Temos de nos concentrar. Todos nós.
— Eu sei.
Ele arqueia as sobrancelhas, como se duvidasse. Ela não gosta da
expressão desconfiada dos seus olhos. Helmud levanta a cabeça, ensonado.
Vê Pressia e sorri.
— Dorme, Helmud — diz-lhe ela.
El Capitan olha por cima do ombro, para o irmão:
— Sim, dorme. — Vira-se e corre morro abaixo.
Está frio. Pressia abraça o seu próprio corpo. Trauteia a canção por
alguns minutos, pensando em Bradwell. A letra é sobre esperar por alguém
que não regressará. Os seus temores reaparecem, insidiosos.
O terreno está desolado e silencioso, pelo que Pressia se vira para
Fignan:
— Acorda. Vamos trabalhar.
As luzes de Fignan piscam. As pernas emergem do corpo, a zumbir, e
ele apoia-se nelas.
— Quero mais informações acerca da Irlanda, e de Newgrange — pede
ela.
Fignan apresenta um estonteante sortido de informações: uma história
bélica, topografia, clima, geologia, até algumas referências da mitologia
irlandesa, poesia, tradição oral. O ar em redor está iluminado como se ela
estivesse a aquecer-se a uma fogueira.
Por fim, Fignan foca-se em Newgrange, que é mais antigo do que
Stonehenge e as pirâmides, e foi construído por uma cultura antiga
avançada. Dentro da cúpula há uma passagem que penetra cerca de dezoito
metros até ao centro do monte. Uma vez por ano, durante o solstício de
inverno, o sol nascente faz incidir os seus raios diretamente nessa passagem
para o coração da cúpula, através de uma abertura especial imediatamente
acima da entrada. Atualmente, isso acontece quatro minutos após o nascer
do Sol, mas há cinco mil anos acontecia exatamente quando o Sol se erguia.
Há algo naquilo que lhe faz cócegas. Pede a Fignan que lhe fale do
solstício de inverno — o dia mais curto e a noite mais comprida do ano.
— Quando calha este ano? — pergunta.
— Dia vinte e um de dezembro — responde Fignan na sua voz
ligeiramente metálica. — O nascer do Sol é às oito e trinta e nove da
manhã.
— Por que tinham eles essa obsessão pelo solstício de inverno?
Fignan leva-a para outra página, com informações acerca de como
alguns investigadores pensavam que a cúpula era um túmulo, mas outros
achavam que tinha sido um local de culto de uma fé baseada na astrologia.
— O que nos traz de volta a Cygnus — sussurra Pressia. — A
constelação.
Sente-se esquisita, de repente. Tem uma forte pontada no peito e fica
sem fôlego. É como se o seu corpo tivesse compreendido algo que a sua
mente ainda não assimilou. Uma fé baseada na astrologia. O nascer do Sol.
Vinte e um de dezembro. Oito e trinta nove da manhã.
— Durante quanto tempo é que o Sol ilumina a câmara? — pergunta a
Fignan.
— Dezassete minutos — é a resposta.
— E ilumina o chão, certo? O chão da câmara?
Fignan ilumina-se, em confirmação.
Pressia pega na caixa negra e corre pelo morro até à passagem
subterrânea. Grita:
— Bradwell! Cap! Helmud! Acordem!
Bradwell soergue-se, apoiado num cotovelo.
— Que se passa?
El Capitan, que está a dormir um pouco mais atrás, exclama:
— Que diabo...?
Helmud pergunta, num tom assustado:
— Diabo?
— Walrond — diz Pressia. — Lembram-se do que ele disse?
— O quê? Posso ter um pouco de contexto, por favor? — Bradwell
esfrega os olhos com as suas bonitas mãos, as mãos que estiveram no corpo
dela, as mãos que ela ama.
— Na sua mensagem, Walrond disse: O tempo urge. Lembras-te? Até
perguntaste por que motivo ele diria tal coisa, não foi?
Bradwell senta-se direito.
— Sim. Quero dizer, o tempo só urgia quando tinham uma hipótese de
deter Willux antes de ele fazer explodir o mundo, não agora.
— De que estamos a falar? — indaga El Capitan.
— Estive agora mesmo a pesquisar Newgrange, e lá o tempo urge
apenas uma vez por ano — explica Pressia. — Num certo dia, a uma certa
hora.
Explica rapidamente o monte, a passagem e a luz que ilumina a
câmara.
— Apenas durante dezassete minutos.
— Achas que é aí que Walrond pode ter escondido a fórmula? —
pergunta El Capitan.
— Se Walrond sabia que havia uma boa probabilidade de Willux
poupar a cúpula de Newgrange, escondê-la-ia lá e talvez isto seja a
maneira como identificou o esconderijo — responde Bradwell. — Isto
pode ser o seu X que assinala o local.
— Temos de partir já — declara Pressia. — Temos de pegar nas nossas
coisas e ir embora. O dia vinte e um de dezembro é daqui a três dias.
Precisamos da luz no chão. Precisamos desses dezassete minutos.
— A caixa é uma chave — diz Bradwell.
— Uma chave — diz Helmud. — Uma chave.
***
O terreno é plano, varrido pelo vento, coberto de pó e cinza. O Sol
sobe lentamente no horizonte. Fignan tem as coordenadas de Hastings e
traçou uma rota. Poeiras erguem-se do solo aqui e ali. Eles revezam-se a
disparar; na maioria dos casos, uma única bala de espingarda é quanto
basta. Tirando isso, vão todos em silêncio.
Bradwell olha disfarçadamente para Pressia. Ela quer acreditar que
partilham um segredo, mas El Capitan está desconfiado. Tê-los-á visto
beijar-se?
El Capitan acaba por romper o silêncio.
— É como as tatuagens que pulsavam no peito da tua mãe, Pressia.
Aqueles sobreviventes no Crazy John-Johns devem ser a prova de que
existem pequenos clãs de sobreviventes como aquele, talvez por todo o
mundo. Alguém gostava de saber quem mais estará por aí?
Pressia pensa no seu pai.
— Sim — responde ela.
— É possível — diz Bradwell, lançando-lhe novo olhar disfarçado.
— Mas é melhor não termos demasiada esperança.
— Se é possível que haja sobreviventes — argumenta Pressia —,
também é possível que, algures, alguns deles tenham prosperado.
— É teoricamente possível — diz El Capitan.
Helmud acena pensativamente com a cabeça.
— Neste momento não podemos pensar teoricamente. Está bem?
— Bradwell estaca subitamente. — Ouçam. Estamos todos a ser
assombrados pelo mesmo pensamento, não estamos?
El Capitan e Pressia param também.
— Que pensamento? — pergunta El Capitan.
— Podemos ser tão otimistas quanto nos apetecer, mas todos temos
medo de não nos safarmos. É possível que morramos nesta viagem.
— Não podemos dar-nos ao luxo de pensar assim — objeta Pressia.
— Não podemos dar-nos ao luxo de não o fazer — replica Bradwell.
Ela olha para seu punho da cabeça de boneca, para as pálpebras
coaguladas com cinza a tremular ao vento. É tão perigoso apaixonar-se por
alguém como ser otimista. Será isso que ele quer dizer? Ela dissera-lhe que
estava a cair, mas ele respondera que estavam a fazer-se um ao outro. Estará
a recuar agora?
— Vamos todos mas é calar-nos e continuar a andar — diz El Capitan.
— Não pensar de todo e continuar simplesmente a pôr um pé à frente do
outro.
— Não pensar de todo — diz Helmud.
— Muito bem — replica Bradwell.
Por fim, o terreno transforma-se em colinas revestidas de pinheiros da
Virgínia e troncos de árvores nuas. Seguem por uma estrada que foi
reduzida a cascalho. Alguns bocados de pedra ainda ostentam a tinta
amarela da antiga linha divisória.
Chegam a um rio. A montante há uma barragem delapidada. A parte de
cima da barragem permanece intacta, mas está coberta de fendas e fissuras,
uma dos quais termina num buraco que parece arrancado ao meio da
parede, formando uma bica. Em baixo, o rio reafirmou o seu domínio,
turbilhonante e impetuoso, e Pressia não pode deixar de pensar no seu quase
afogamento, no gelo arrepiante de estar presa debaixo de água.
Quando chegam à barragem, El Capitan trepa até lá acima, dobra um
joelho e examina o solo.
— É praticável — brada-lhes. — Há rastos de animais de um lado ao
outro, em ambos os sentidos.
Bradwell vira-se para Pressia:
— Parece que desta vez ficamos secos. — Há algo no brilho dos seus
olhos escuros que a faz desejar mergulhar na água e quase se afogar, só para
se deitar com ele de novo, para reencontrar aquela sensação de proximidade
com ele.
— Parece que sim. — Ela sobe até ao topo da barragem. De lá, avista
pequenos aglomerados de escombros, edifícios arruinados, estradas
desfeitas, algumas carcaças de carros carbonizadas, um autocarro tombado
de lado, a desintegrar-se no chão.
Bradwell segue-a e Fignan iça-se também a poder de garras.
— A América pitoresca — diz ele.
— Quanto falta, Fignan! — pergunta El Capitan.
— Falta? — ecoa Helmud.
Fignan faz alguns cálculos e responde:
— Vinte e nove mil e cem metros.
Bradwell detém-se:
— Vinte e nove mil e cem metros? Isso deve ser perto de Washington.
Podes inserir essas coordenadas num mapa do Antes, Fignan?
El Capitan vem ao seu encontro.
Fignan mostra um mapa, um ângulo panorâmico do ponto onde estão e
do ponto para onde se dirigem.
— Foca o destino — diz Bradwell.
Fignan contrai o ecrã.
— É Washington? — pergunta Pressia.
O ecrã de Fignan imobiliza-se.
— Isto não pode estar certo — diz Bradwell.
— O que é? — indaga Pressia.
— Uma cúpula — exclama Bradwell. — Raios me partam!
— Que cúpula? — pergunta El Capitan.
— É Washington, não há dúvida — diz Bradwell. — Nunca te levaram
numa visita de estudo, Cap?
— Uma vez fui a uma aldeia colonial — responde ele. — Vimos
pessoas a fazer velas de cera.
— É uma cúpula célebre em Washington? — pergunta Pressia.
Bradwell abana a cabeça.
— Não é possível que ainda esteja de pé.
— Que é que não pode estar de pé? — grita Pressia. — Diz-nos!
— O Capitólio.
— A capital de quê? — indaga Pressia.
Bradwell enterra as mãos nos bolsos, o olhar perdido no vazio.
— O Capitólio dos Estados Unidos da América — responde.
— Por outras palavras, o edifício do Capitólio. Era uma cúpula. Uma
bela cúpula.
— Jesus — exclama El Capitan. — O edifício do Capitólio? Essa
cúpula? É lá que está o dirigível?
Bradwell faz um sinal afirmativo.
— No que resta dele, suponho. Não pode ser grande coisa.
— Willux parqueou um dirigível no Capitólio dos Estados Unidos? —
admira-se El Capitan. — Isso sim, é sentimental!
— Willux — diz Helmud, espantado.
O vento sopra com força em torno deles. Bradwell diz:
— Afinal sempre vais ter a tua visita de estudo, Cap.
Pressia começa a atravessar o cimo da barragem. O vento é forte e ela
receia ser arrastada quando sopram rajadas. Baixa-se mais. O vento levanta-
lhe o cabelo, insufla-lhe as calças e o casaco. Ela tenta imaginar um
dirigível dentro de uma enorme cúpula. Que aspeto teria?
Comete o erro de olhar por cima da borda íngreme, para a água que
jorra em turbilhão do buraco, rugindo e espumando, e deseja imediatamente
não o ter feito. Quando levanta os olhos, vê algo saltar-lhe ao caminho: uma
Besta pequena, com os pelos eriçados. Arqueia as costas, quase como um
gato. Mas parece mais uma ratazana grande, a mostrar os dentes afiados. A
criatura emite um guincho agudo, estridente. As patas ostentam uma densa
fileira de garras, talvez retráteis.
— Temos aqui um amigo — diz ela.
— Eu abato-o — diz El Capitan.
Os olhos da besta são ligeiramente avermelhados.
— Vai atacar — diz Pressia. — É bom que não falhes a pontaria.
El Capitan levanta a espingarda muito devagar. Helmud tapa os
ouvidos. Porém, ao ouvir El Capitan engatilhar a arma, a Besta salta sobre
Pressia, que se agacha e rebola no chão. El Capitan dispara, mas a Besta
está em movimento e o tiro falha o alvo. O focinho estreito, de presas
aguçadas, está junto ao rosto de Pressia. Esta soca-o e rebola de novo,
demasiado perto da borda. As pernas escorregam, diretamente acima do
buraco de onde jorra água. Pressia agarra-se à borda com a mão sã e o
cotovelo do braço da cabeça de boneca, a face esfolada pelo cimento. A
Besta rosna para o seu rosto.
Desta vez, El Capitan atira-se à Besta, pegando-lhe pela pele da parte
de trás do pescoço, enquanto a criatura morde e arranha. Bradwell agarra
nos braços de Pressia. Ela segura-se à manga do casaco dele, os nós dos
dedos contra o seu ombro musculoso. Ele puxa-a para si. Ela continua
agarrada ao casaco, firmando-se, recuperando o fôlego — deixando-se
inundar pela sensação de estar perto dele.
Helmud bate na Besta, tentando afastá-la do irmão. Por fim, El Capitan
consegue libertar-se. A Besta provou sangue, mas solta um miado e afasta-
se, coxeando.
El Capitan apoia as mãos aos joelhos, sem fôlego. Olha para Pressia e
parece reparar que ela ainda está agarrada à manga do casaco de Bradwell.
Se ele pensar que existe um laço mais profundo entre Bradwell e Pressia
pode ficar desagradado. El Capitan é imprevisível. Ela larga Bradwell,
sacode a terra das calças.
— Que diabo era aquilo? — pergunta Bradwell.
— Uma espécie de doninha — responde El Capitan.
— Quase fui morta por uma doninha? — diz Pressia.
— Mas não chegaste a ser — replica Bradwell. — Nós salvámos-te.
Isto até podia ser considerado romântico.
— Não a minha definição de romântico — observa El Capitan.
— Tens uma definição de romântico? — pergunta Bradwell,
surpreendido.
— Quê? Não posso ser romântico? — replica El Capitan. — Acontece
que acredito nesse tipo de coisa. Mas não se trata apenas de salvar uma
rapariga. Isso não passa de cavalheirismo.
Pressia lembra-se da voz de El Capitan, triste e áspera. Talvez a ideia
de Pressia e Bradwell juntos recorde a El Capitan o amor que perdeu, sobre
o qual estava a cantar. É difícil imaginar El Capitan apaixonado, mas claro
que ele é capaz de amar. É humano, por muito duro que finja ser.
— Toda a gente tem direito a ser romântica — diz ela. — Se é isso que
deseja.
Capítulo 55

Lyda
Votos

Lyda está sentada num banquinho na fábrica, integrada numa fila de


Mães, a descascar a pele seca e áspera de tubérculos. Estão crivados de nós,
dalguns dos quais brotaram pequenos fiapos grossos, quase como
tentáculos. Outros foram armazenados durante tanto tempo que
desenvolveram algo que parece garras arroxeadas, como se pretendessem
transformar-se em Bestas e partir a rastejar. Lyda não se importa com o
trabalho. Depois de descascados, são brancos, brilhantes e lisos. Deslizam
como peixes da sua mão para o balde que é necessário encher; depois serão
levados e cozidos a vapor. Os únicos ruídos que se ouvem são os estalidos
suaves e o raspar das facas de cozinha.
Quando vê a Mãe Hestra entrar pela ombreira vazia da porta da fábrica,
Lyda sente um nó no estômago. A Mãe Hestra passou a manhã à espera,
para apresentar um pedido à Nossa Boa Mãe: permitir que a Mãe Hestra e
Lyda falem com ela a sós, sobre um assunto privado, mas urgente. A Nossa
Boa Mãe não costuma aceitar pedidos de audiências individuais. Acredita
na solidariedade e que qualquer notícia deve ser absorvida pelo grupo todo
ao mesmo tempo. Uma onda pode abater-se sobre um indivíduo e arrastá-
lo para o mar. Mas se permanecermos unidos, ela levanta-nos e pousa-nos
outra vez no chão. Não é mais do que uma ondulação.
A Nossa Boa Mãe aterroriza Lyda. Preferia não ter de falar com ela de
todo.
No entanto, a expressão da Mãe Hestra é de triunfo silencioso; até
Syden parece estar feliz. A recém-chegada diz à Mãe Egan:
— A Lyda tem de vir comigo. Ordens superiores.
— Ordens superiores, hein? — diz a Mãe Egan.
A Mãe Hestra acena.
— Muito bem, então. Lyda? Ouviste. Podes ir. — A Mãe Egan é
responsável pela tarefa de descascar os tubérculos e parece ela própria um
tubérculo: pele seca e escura, com algumas marcas. Não tem uma criança
fundida consigo. Perdeu os filhos nas Detonações. Lyda levanta-se,
segurando a bainha do avental para recolher as cascas. Para junto do lixo,
sacode as casca para o caixote e arruma o seu banquinho contra a parede.
Todas as Mães estão a olhar para ela, e os filhos também. Observam-na
com uma expressão a que ela já se habituou. Orgulham-se de poder
reivindicar uma Pura como um dos seus, mas também a desprezam. Partem
do princípio de que Lyda não conhece o sofrimento. Algumas sussurram-
lhe: «És muito bonita, não és?», e «Tens uma pele muito clarinha». Seriam
elogios, se não fosse o tom hostil. Uma vez, Lyda encontrou na sua
almofada um bilhete que dizia: «Vai-te embora. Não precisamos aqui de
gente da tua laia.»
E quando lhe dera uma faca de cozinha pela primeira vez, a Mãe Egan
dissera: «Tem cuidado com isso. Não queremos cicatrizes nessa pele Pura e
cremosa.»
É nesses momentos que Lyda sente a falta de Pressia. Não a conhece
muito bem, mas passaram por muita coisa juntas, em muito pouco tempo, e
Pressia nunca deu a impressão de se ressentir das origens dela. Lyda está
convencida que, se pudesse contar a Pressia acerca da gravidez, encontraria
nela uma verdadeira amiga, uma confidente. Onde estará Pressia agora?
Também sente a falta de Illia; as suas histórias, embora estranhas e
sombrias, eram emocionantes e pareciam conter lições, do tipo que as mães
transmitem às filhas.
Ao sair da sala cavernosa, sente os olhos das outras nas suas costas.
Que irão pensar dela quando constar que está grávida? Vão odiá-la ainda
mais, não vão? Por ser descuidada e estúpida. Por se ter entregado a um
rapaz de modo tão impensado. Considerá-la-ão uma puta. Já ouviu essa
palavra. Três raparigas tinham sido classificadas como tal, em sussurros, na
Academia feminina. Tinham ido parar ao Centro de Reabilitação. Ficaram
lá por muito tempo e voltaram sombrias, usando perucas lustrosas até o seu
cabelo voltar a crescer. Que punição será aplicada aqui?
O dia está enevoado, o céu de um cinzento ainda mais escuro. As
nuvens parecem mais lívidas nas extremidades.
— Disse-lhe? — pergunta Lyda à Mãe Hestra.
— Isso é contigo. Ela sabe que há algo para dizer.
— Ela irá expulsar-me? Não faria isso a uma jovem mãe, pois não? A
Mãe Hestra fica calada por um momento. Por fim, suspira.
— Ela é impenetrável. Mas é bom podermos dizer-lhe a sós primeiro.
Passam o cemitério. Parte de Lyda deseja subitamente recuperar a
caixa de música. Mas ela sabe que não devia desejá-lo. Partridge acabou.
Dirigem-se para outro edifício, a sala da cuba, onde a Nossa Boa Mãe
tem estado a viver. Duas mulheres montam guarda à porta, fortemente
armadas. Não têm apenas lanças, dardos e facas. Dantes essas armas
contavam-se entre as melhores, mas agora possuem as armas roubadas aos
Rapazes da Cave.
A Mãe Hestra anuncia:
— Trouxe-a comigo. Ordens superiores.
As guardas permitem que Lyda e a Mãe Hestra passem.
A cuba propriamente dita fica no centro da sala de teto alto, qual
gigantesco caldeirão de metal. O trono da Nossa Boa Mãe foi colocado por
trás dela. Mas hoje o trono está vazio. Ela está deitada de costas num divã,
enquanto uma das Mães puxa o seu pescoço. A Mãe diz:
— Respirar fundo e reter o ar. Pronta?
A Nossa Boa Mãe fecha os olhos levemente e acena.
A Mãe torce a cabeça dela com um movimento rápido. O pescoço da
Nossa Boa Mãe estala. Ela suspira.
— Obrigada.
A Mãe põe-se em pé. Tem uma criança escarranchada numa das suas
ancas, repousando a cabeça no seu peito. Vê Lyda e a Mãe Hestra.
— Está aqui alguém para falar consigo.
A Nossa Boa Mãe olha na direção delas.
— Sim, têm marcação.
Lyda espera que ela se sente, mas ela não o faz. Apesar do frio, os
braços da Nossa Boa Mãe estão nus e Lyda pode ver claramente a boca do
bebé no seu braço. Está húmida de saliva e faz um pequeno movimento
com os lábios, franzindo-os.
— Fala comigo — diz a Nossa Boa Mãe.
A Mãe Hestra começa:
— As notícias da Lyda são muito...
— Tu, não — interrompe a Nossa Boa Mãe. Os seus olhos estão
novamente fechados e ela jaz perfeitamente imóvel. Lyda vê o metal duro
da armação da janela embutido no seu peito a subir e descer ligeiramente,
em sincronia com a respiração.
— Lyda, dá-me essas notícias urgentes.
Lyda dá um pequeno passo em frente.
— Não tenho a certeza...
— São notícias da Cúpula? Ele contactou contigo?
— O Partridge?
— Quem havia de ser?
— Não — diz Lyda. — Creio que ele não pode.
— Então abandonou-te completamente?
Lyda faz uma pausa.
— Suponho que pode dizer-se isso.
— Bem, isso não é novidade. Um Morte é um Morte. E isso é o que os
Mortes fazem. Partem.
Lyda olha para a Mãe Hestra. Conta-lhe, incita a Mãe Hestra. Fala.
— Mas antes... — diz Lyda, virando-se de novo para a Nossa Boa
Mãe. — Antes de ele partir...
A Nossa Boa Mãe abre os olhos.
Lyda respira fundo.
— Antes de ele partir, quando estávamos a fugir e havia Forças
Especiais por toda parte e...
A Nossa Boa Mãe senta-se com esforço. Fita Lyda, com os olhos
semicerrados, o rosto coberto pelas pequenas fissuras das rugas.
— Fugimos sozinhos. E havia a casa do diretor da prisão. Não tinha
telhado e...
— Diz-me o que aconteceu na casa do diretor.
— O piso superior — prossegue Lyda. — Não havia nada sobre a
nossa cabeça. E havia uma armação de cama antiga. De dossel. Latão...
— Que te fez ele na casa do diretor da prisão, Lyda?
Lyda abana a cabeça. Percebe que está quase a chorar. Entrelaça os
dedos uns nos outros.
— Ele não me fez nada. Não foi assim.
— Estás a tentar dizer-me que ele te violou?
— Não!
A Nossa Boa Mãe põe-se em pé:
— Estás a dizer que ele te raptou de junto da Mãe Hestra e arrastou
para a casa do diretor, onde ninguém te ouviria gritar. — Aproxima o rosto
do de Lyda. — E violou-te?
— Não foi assim que as coisas se passaram! Ele não me violou. Não
foi assim.
A Nossa Boa Mãe dá uma bofetada a Lyda, com tanta força e tão
depressa que, a princípio, nem sequer lhe dói. Apenas arde, mas depois o
ardor intensifica-se e alastra a toda a face. Ela estende a mão, e a mão da
Mãe Hestra está lá para a amparar.
— Nunca defendas um Morte — ordena a Nossa Boa Mãe. — Não
aqui. Não perante mim.
Afasta-se bruscamente de Lyda, vai até à parede, ergue os punhos e
esmurra a parede até começar a gemer de dor. Para e fica ali especada, de
cabeça baixa.
— Ela está grávida — diz a Mãe Hestra baixinho.
— Eu sei — replica a Nossa Boa Mãe.
A sala fica completamente silenciosa durante muito tempo. Por fim,
Lyda não aguenta mais:
— O que vai fazer-me? — pergunta.
— Não vou fazer-te nada — responde a Nossa Boa Mãe. — É o que
vou fazer por ti. — A voz dela é um sussurro áspero. Isso assusta Lyda mais
do que os murros na parede.
— O que quer dizer?
— Vou matá-lo — declara ela com naturalidade.
— O quê? — Ainda abalada e vacilante por causa da bofetada, os
joelhos de Lyda quase cedem debaixo do seu corpo. — Não, por favor.
— É a verdade — afirma a Nossa Boa Mãe. — Vou matá-lo e, para
chegar a ele, vou ter de matar outros pelo caminho. É inevitável, mas está
na hora de planearmos um ataque à Cúpula. É hora de lutar. — Dirige-se
para Lyda.
Lyda não pode conceber que algo tão fugaz, rápido e inocente possa
espoletar uma guerra. Outros vão morrer por causa daqueles escassos
momentos na casa sem telhado do diretor da prisão.
— Não faça isso — sussurra, chorando. — Não por mim.
A Nossa Boa Mãe pousa a mão suavemente na barriga de Lyda. Olha
para a Mãe Hestra e diz:
— Um bebé que todas podemos ter nos braços. O primeiro desde as
Detonações.
— O primeiro — diz a Mãe Hestra. — Será amado.
A Nossa Boa Mãe suspira e leva um dedo à boca do bebé no seu braço.
Insere o dedo e massaja a gengiva inferior.
— Dois dentes de leite — diz ela. — Tinha-te dito? Ao fim de tantos
anos, dois pequenos botões brancos.
Capítulo 56

Partridge
Fibras

Quando ele acorda, Iralene já lá não está. O seu lado da cama está
impecavelmente feito e ela reprogramou o quarto para a decoração da praia.
Uma onda de pânico percorre as entranhas de Partridge. Iralene irá ser fiel à
sua palavra e repô-lo na casa rústica quando ele regressar? Caso contrário,
ele está tramado.
O pequeno-almoço está à espera dele. Mais uma vez, comida a sério:
papas de aveia e sumo cor-de-rosa. As câmaras observam-no com os seus
olhos vítreos. Ele olha diretamente para elas, como que para dizer aos que o
vigiam que não tem medo. E mentira. Está tão assustado que mal consegue
comer. Dirige-se para a janela e vê o velho a passar a praia a pente fino com
o seu detetor de metais. Debruça-se da janela e grita:
— Ei, velho idiota falso! Estás condenado! Nunca encontrarás coisa
alguma!
O homem vira-se, sorri, e leva a mão ao chapéu.
Batem à porta.
— Entre.
Partridge presume que será Iralene, visto que ela parece estar
constantemente com ele. Mas é a voz de Beckley que vem do outro lado da
porta:
— Estou aqui para te levar — diz ele.
— Já? — pergunta Partridge. — Dê-me um minuto.
Não sabe ao certo para que precisa de um minuto. Ele gostaria de
transformar o quarto de novo na casa rústica e verificar se o bilhete ainda
está no depósito do autoclismo. Sem Iralene, não pode fazê-lo.
— Eles precisam de ti lá já — diz Beckley.
— Raios partam — pragueja Partridge. Ouve o barulho da chave na
fechadura. Beckley abre a porta.
— Pronto?
Uma hora depois, Partridge está no centro médico, desinfetado e
vestido com uma bata de hospital, deitado na maca de uma sala do bloco
operatório, sozinho.
Ouve o estalido e o zumbido familiar do sistema de filtragem de ar.
Diretamente acima dele, no teto, há uma abertura de ventilação. O ar jorra
sobre ele e Partridge dá por si a desejar que se assemelhasse mais à
sensação do vento. A abertura de ventilação fora a sua via de fuga da outra
vez. Mas agora tem de ficar. Tem de ter fé em Arvin Weed.
Um técnico entra.
— Venho pôr as cintas de retenção.
— Cintas? — Partridge senta-se na maca; é um reflexo instintivo.
Tenta rir. — Então? Tenho ar de quem precisa de ser amarrado?
O técnico mantém as feições inexpressivas.
— O Dr. Weed disse que era necessário.
O facto de Weed o mandar prender à cama parece muito mau sinal.
— Doutor? O Weed não é médico.
— Agora é.
— Ouça, eu não preciso de cintas. — Partridge põe a mão no peito do
técnico. O técnico olha fixamente para a mão, depois para ele. E Partridge
dá-se conta de que aquele não é um técnico vulgar. Submeteu-se a
melhoramentos e, antes que Partridge perceba o que se está a passar, torce-
lhe o braço com força, paralisando-o de dor. A sua respiração sai em
gemidos curtos.
Com mais alguns movimentos rápidos, o técnico aperta as cintas de
retenção. Fica ao lado da maca até Arvin entrar, vestindo um fato
esterilizado completo, incluindo máscara, pelo que Partridge apenas
consegue ver-lhe os olhos.
— Dê-nos um minuto — diz Weed. — Quero explicar o procedimento
ao paciente, responder a quaisquer perguntas.
O técnico sai.
Partridge e Arvin ficam sozinhos, embora ainda existam câmaras.
Partridge precisa desesperadamente de algo que o tranquilize, mesmo que
seja em código.
— Por que o mandaste amarrar-me? Não preciso de ser amarrado.
— Vamos ter de te imobilizar quando te anestesiarmos, de qualquer
maneira — responde Arvin, olhando para uma das câmaras no canto da sala
de operações.
— Diz-me que isto vai correr bem — diz Partridge. — Podes fazê-lo?
— Isto é um trabalho verdadeiramente pioneiro, Partridge, e vamos
registá-lo para a posteridade.
— Tudo?
— Claro.
— Não posso ter um verdadeiro momento a sós contigo?
— Para que havias de querer isso?
Aquilo significará que Weed não poderá dar-lhe quaisquer garantias,
ou que nunca pretendeu sequer fazê-lo?
— Sabes por que motivo eu quereria isso, Weed.
— Bem, e se te explicasse a ciência da memória e este procedimento?
Partridge não está nada interessado em ciência naquele momento. Mas
receia que a voz lhe falhe se tentar dizer uma palavra sequer. Ele é capaz de
se ir abaixo, ali mesmo — e tudo ficaria registado para a posteridade.
Resolve deixar Weed falar enquanto se prepara interiormente.
— A memória de curto prazo é química. Mas, para além desse
processo de recordação rápida, a memória fica alojada no cérebro. É
anatómica. Basicamente, aprendemos como ligar e desligar neurónios e
padrões de neurónios específicos no cérebro. Quando as memórias se
formam, criam esses padrões. Portanto, se desligarmos os neurónios
corretos, podemos amortecer essas memórias. Chama-se optogenética.
Falámos sobre isso uma vez, quando foram reveladas novas descobertas,
lembras-te?
— Hum, isso diz-me qualquer coisa. Mais ou menos. — Na verdade,
Partridge era muito bom a desligar Weed quando este se lançava no jargão
científico. Mas agora talvez não seja o melhor momento para o confessar.
— Primeiro selecionamos, depois alteramos geneticamente os
neurónios escolhidos, usando vírus portadores de determinados tipos de
ADN. Sabes, microbiologia, e, no teu caso, introduziremos então no
neurónio uma suscetibilidade a ser desativado por luzes de cores
específicas. Utilizaremos fibras óticas extremamente finas, que vamos
introduzir, com muito cuidado, no teu cérebro. E atingiremos um desses
padrões. Desse modo, podemos, em seguida, desativar o neurónio e o
respetivo circuito enviando sinais de luz através das fibras. E voilà!
A ideia de alguém introduzir fibras no seu cérebro deixa-o doente.
— Voilà. Metem coisas no meu cérebro e piscam umas luzes.
— Essa é a versão resumida.
Partridge engole em seco.
— Encantador.
Arvin tinha-lhe dito na festa que, depois de as vias danificadas
cortarem o acesso às memórias profundas — às fossas no leito oceânico —,
haveria um curto período de tempo durante o qual ainda era possível
chegar-lhes antes de ficarem isoladas para sempre. De quanto tempo irá
dispor?
— Diz-me uma coisa, Dr. Weed. Quanto tempo tenho para nadar até ao
fundo?
— Nadar? De que estás a falar? — Arvin pega numa agulha.
— Vou ligar-te o sistema intravenoso, Partridge. Descontrai.
— Quanto tempo, Weed? — implora Partridge, virando a cabeça para
não ver a agulha entrar na pele macia da dobra do cotovelo. Arvin usa um
pouco de adesivo para prender tudo no sítio.
— Quieto agora.
Partridge olha para o cateter no seu braço, para a pele, vermelha e
franzida pelo adesivo, a formar uma ligeira lomba sobre ele. Arvin dá
alguns piparotes no tubo que liga o cateter a um saco de líquido
transparente, pendurado num varão de metal. Em breve, a sala escurecerá.
Partridge estará inconsciente, anestesiado.
— Quanto tempo para nadar até ao fundo do oceano?
— Ah! — exclama Arvin, dirigindo-se a quem quer que possa estar a
ouvir. — Começou com ligeiras alucinações. Não tarda a adormecer.
— Quanto tempo? — insiste Partridge. — Diz-me!
O rosto mascarado de Arvin começa a ficar turvo. Ele bate levemente
no molde do mindinho de Partridge.
— Quanto tempo achas que vai demorar para acabar de crescer? Cerca
de uma semana, não é? Incrível. Vai simplesmente voltar a existir, um
mindinho inteiro — diz Weed, num tom quase cantante. — Um mindinho
inteiro. Um mindinho inteiro.
Um mindinho inteiro, um mindinho inteiro, um mindinho inteiro,
pensa Partridge. Weed estará a dizer-lhe que tem uma semana para trazer as
memórias à superfície? Apenas cerca de uma semana? Vai ter de encontrar
a lista de sete verdades simples nesse espaço de tempo. Mas, mesmo que
acredite nelas, não terá qualquer indício de que dispõe apenas de sete dias
para recordar o que se tiver perdido. As luzes vacilam e tremulam. A sala
guina e gira. O rosto de Arvin está agora tão turvo que Partridge não tem a
certeza de ser ele. Entram mais algumas pessoas com máscaras, atarefando-
se à sua volta.
Partridge não pode perder a consciência. Não pode deixá-los meter
fibras no seu cérebro. Arqueia as costas, lutando contra as cintas de
retenção. Grita a Weed, mas não sabe ao certo se lhe sai algum som da
boca. As pessoas com as máscaras continuam a trabalhar, estoicamente,
metodicamente.
Ele empina-se e debate-se, pensando no velho que percorre a praia com
o detetor de metais. Será que vai esquecê-lo completamente? Chamou-lhe
idiota, falso, condenado. E se o velho for real e percorrer aquela praia todos
os dias, e achar que Partridge é falso? Isso faria alguma diferença?
Está a ficar flácido. Fecha os olhos, ouve apitos. É o detetor de metais?
Ele vê o homem na praia de novo, a olhar para Partridge à janela. Quando
sorri e leva a mão ao chapéu, Partridge vê que não é um velho. É um jovem.
É o próprio Partridge, muito satisfeito por acenar a um estranho falso de
uma praia real, com coisas reais enterradas em areia real e, para lá dele, um
oceano infindável.
Capítulo 57

Pressia
Dirigível

Para evitar os montes de entulho, eles deslocam-se para sul, entrando


em Washington por Rock Creek Valley. Mais do que uma vez ouvem
gemidos baixos e gritos agudos, alguns dos quais parecem humanos.
Pássaros cruzam o céu e pousam pesadamente nos ramos. Alguns têm um
brilho oleoso. Alguns têm cabeças de répteis, e um assemelha-se mais a um
morcego, mas grande, com uma cabeça que gira quase a toda a volta e
mandíbulas rápidas, que batem no ar. As suas asas, salpicadas de manchas
claras de pelo felpudo, cortam o vento. Crocita como um corvo.
Passado um pouco mais de três quilómetros, Pressia vê uma torre
recortada, com a metade superior caída e estilhaçada. Há pilhas de tijolos e
pedras, alguns arcos ainda intactos.
— O que era aquilo?
Fignan indica as coordenadas.
— Trinta e oito graus, cinquenta e cinco minutos, cinquenta segundos
de latitude Norte. Setenta e sete graus, quatro minutos, quinze segundos de
longitude Oeste.
— Já chega de coordenadas — diz El Capitan. — O que era?
— A Catedral Nacional de Washington. — Fignan mostra uma
imagem de uma bonita estrutura, com arcos, arcobotantes e pináculos.
— Uma igreja — diz Pressia.
— Mas muito maior — acrescenta Bradwell. Pressia sabe que ele se
sente atraído por igrejas. Deve a sua sobrevivência, em parte, à cripta de
Santa Wi. — Era enorme. Devia vir cá gente de toda a parte.
— Vamos vê-la — sugere Bradwell.
El Capitan fita-o:
— Porquê?
— É um ponto alto. Precisamos de vista panorâmica para vermos o
melhor caminho.
Começam a subir. O monte de entulho é enorme.
— Os teus pais não acreditavam em Deus, pois não? — Pressia
lembra-se que eles não frequentavam a igreja e tinham recusado o cartão,
mas no que dizia respeito a Deus?
— Acreditavam em factos; tinham fé na verdade. Nesse sentido, eram
devotos.
— E em que acreditas tu? — indaga Pressia. Gostaria de acreditar em
Deus. Quase acredita. Por vezes, sente algo que está para além de tudo
aquilo. Gosta de olhar para o céu, a única coisa que os habitantes da Cúpula
não têm, o que a faz ter pena deles.
— E se Deus e a verdade forem a mesma coisa? — diz Bradwell.
— E se a verdade estiver no centro de tudo? Se acreditarmos nisso,
acreditamos que a verdade acabará por prevalecer. Irá revelar-se...
— Como Deus? — sugere Pressia.
— Não sei.
— No Antes, a caixa onde guardávamos Deus foi ficando cada vez
mais pequena. Por um lado, havia a ciência. E com toda essa ciência,
Willux pensou que podia armar em Deus. Por outro lado, havia a igreja
inventada para os seus próprios fins, na qual os ricos sabiam que eram
abençoados porque eram ricos. Quando se considera uma pessoa melhor do
que outra, isso permite todos os tipos de crueldade.
— Bradwell encolhe os ombros.
— A caixa onde guardávamos Deus explodiu nas Detonações, como
tudo o resto — diz Pressia. — Ou talvez tenha simplesmente continuado a
ficar cada vez mais pequena, até existir apenas uma partícula de Deus,
talvez apenas um átomo de Deus.
— Talvez isso baste para Deus sobreviver.
El Capitan, que fora andando, chama-os:
— Temos vista panorâmica! Venham ver!
Pressia e Bradwell escalam o monte de escombros. Misturados no
entulho há bocados de vitrais multicoloridos. Embora polvilhadas de cinzas,
as cores permanecem vívidas. Pressia pega num caco. É afiado, mas a sua
superfície é lisa. Fez outrora parte de algo bonito, algo capaz de inspirar as
pessoas.
Quando chegam ao cimo dos escombros da catedral, Pressia olha para
baixo, para a parte superior arruinada. E ali, perdido nas profundezas do
buraco que é a própria catedral esventrada, jaz o que era dantes um telhado
de cobre verde, que colapsou sobre si mesmo. Das camadas granulosas de
cinza e terra brilham tonalidades amarelas e vermelhas, e vitrais
estilhaçados, sem padrões nem sentido. Mas Pressia ouviu dizer que a arte
deve refletir o mundo, o que significa que aqueles painéis de vidro partidos
continuam a ser arte.
— Então, isto é o que restou da cidade — observa Bradwell,
contemplando o panorama.
Pressia vira-se e olha para a paisagem arrasada que se estende diante
deles. A cidade foi invadida por uma charneca pantanosa e fria. Animais e
pássaros esgueiram-se pela vegetação húmida. Enormes extensões de
escombros conduzem aos restos espetrais de um obelisco decepado. Resta
apenas uma protuberância e uma tira de pedra rachada, talvez mármore
agora enegrecido.
— O monumento de Washington — diz Bradwell. — O lápis.
— Onde é a Casa Branca? — pergunta Pressia.
— Seria ali — responde Bradwell, apontando para norte do obelisco
caído. — Desapareceu.
— E os museus? — indaga El Capitan, com Helmud a olhar
excitadamente por cima do seu ombro. — Prometeste-me uma visita de
estudo.
— Ali estão: Arquivos, Galeria Nacional, História Americana, História
Natural, Museu Onda Vermelha de Probidade... Estão a ver todas aquelas
pedras rebentadas, alinhadas a leste com o lápis? — Bradwell aponta para
pilhas de rocha. — A Declaração da Independência ainda pode existir.
Estava preparada para cair, de um momento para o outro, num cofre
subterrâneo. Supostamente podia sobreviver a um ataque direto.
— Vejam ali — diz El Capitan, apontando um pouco mais para leste.
— Não é o que procuramos?
O Capitólio dos Estados Unidos recorta-se contra o horizonte como
uma delicada bolha de sabão. É frágil, sim, mas está lá, numa pequena
colina que se eleva da região pantanosa. É uma cúpula quebrada, feita de
pedra pálida, agora cinzenta. A maior parte do telhado desapareceu, o que
resta está rachado e cheio de fendas. Faltam pedaços de parede, pelo que o
edifício parece aberto e, visto de longe, quase rendilhado. Pressia pensa em
como as traças comem a lã, deixando buracos finos, como gaze.
E através desses buracos, Pressia vê que a cúpula não está vazia. Algo
repousa no seu interior, emitindo reflexos metálicos. É o dirigível: a
estrutura bojuda, o casco. Será realmente possível que ali esteja?
— Olha, Helmud — sussurra El Capitan ao irmão. — Ali está ele.
Pressia deseja que o seu avô pudesse ver aquilo. Ele falara-lhe muitas
vezes sobre aquele dia, após as Detonações, em que o dirigível deslizara
através das nuvens, zumbindo no céu, e como todos aqueles pedaços de
papel branco haviam pairado até ao chão, com a Mensagem impressa. As
pessoas tinham pensado que era algo para lhes dar esperança: a Cúpula, da
qual os seus irmãos e irmãs os observavam com benevolência. Viriam
reunir-se a eles em paz, um dia.
E agora, por muito belo que o Capitólio seja, e apesar da promessa que
contém — aquele dirigível — a sensação é de traição, de um mal profundo
e odioso. Nem sequer está vedado por uma cerca de arame como o Crazy
John-Johns. Está simplesmente ali, sem proteção, prova da arrogância de
Willux, que nunca acreditou que um desgraçado conseguisse chegar tão
longe com vida, e provavelmente pensava que, se por acaso conseguissem,
não teriam coragem para o roubar.
Embora El Capitan esteja perto, encontra-se do outro lado de Bradwell,
pelo que Pressia faz deslizar a mão para a de Bradwell. Os seus dedos
entrelaçam-se como se já o tivessem feito um milhão de vezes, como se de
um hábito familiar se tratasse.
— Esteve todo este tempo aqui — murmura Bradwell.
— Raios partam — diz El Capitan.
— Willux não construiu aquilo com a porra das suas próprias mãos —
diz Bradwell. — Foi o povo que o fez. Gente que ele considerava
dispensável.
— Gente como nós — concorda El Capitan.
— É nosso — afirma Pressia. Estreita mais a mão de Bradwell, que
corresponde estreitando a dela. — Pertence-nos.
— Sim, raios! — apoia El Capitan.
— Sim, raios! — ecoa Helmud.
— Então — diz Bradwell — vamos buscar o que é nosso.
***
Retrocedem rapidamente para o vale e, passada meia hora, têm as botas
encharcadas de caminhar através dos pântanos. Tiveram de atravessar
alguns lodaçais, que chegavam às coxas de Pressia. A água está gelada. Os
pés de Pressia doem-lhe por causa do frio.
— Dantes chamavam a esta área Fundo Brumoso — diz Bradwell.
— Algures por aqui. — Fiel ao seu nome, o ar está envolto em névoa.
— É melhor mantermo-nos em terreno elevado.
Isso significa trepar pelos escombros que os rodeiam. El Capitan, que
carrega o peso do irmão, já está com um aspeto exausto.
— Tens a certeza?
— Gosto de poder ver o que está na água — diz Pressia.
É o voto decisivo. Trepam, mas os escombros têm os seus próprios
perigos, pois não sabem se lá terão sobrevivido Poeiras e Bestas. Viram
para leste, rumo ao Capitólio.
Começa a chover ligeiramente. Pressia encolhe os ombros para se
proteger da humidade. O cabelo de Bradwell cobre-se de gotículas. Ele
sacode-o bruscamente. Não tardam a estar rodeados de árvores jovens e
delgadas. A água, fria e escura, cobre-lhes de novo as botas.
Pressia é a primeira a ouvir rosnar. Para e agacha-se.
— O que será? — sussurra El Capitan.
Um rugido rasga o ar. É o mais alto e mais profundo que Pressia jamais
ouvira.
— Não sei o que é, mas é grande.
— Acabo de me lembrar de uma coisa — diz Bradwell — sobre a tal
visita de estudo, Cap.
— O quê? — pergunta El Capitan.
— O Zoo Nacional.
Algo desliza sobre a bota de Pressia. Ela vê uma cabeça semelhante à
de um lagarto, grande, embotada, nodosa, incrustada de um vidro baço,
talvez acrílico. A jovem imobiliza-se. A Besta deve ter uns noventa
centímetros de comprimento e nada em frente fazendo a cauda oscilar de
um lado para o outro. Pressia sabe o que era outrora enjaulado nos jardins
zoológicos: animais exóticos, simultaneamente belos e ferozes.
— Isto não é bom — observa. A Besta ruge novamente, depois emite
uma série de ganidos curtos e agudos. Outras Bestas, pequenas e
escorregadias, começam a espadanar loucamente, fugindo do ruído.
Algumas têm orelhas gigantescas e focinhos de roedores. Outras têm uma
pelagem que parece borracha e o seu aspeto lembra ao mesmo tempo uma
serpente e uma lontra. Os pássaros levantam voo. O ar palpita com asas;
pássaros pequenos e esguios, com olhos dardejantes. Um deles é enorme e
cor-de-rosa. As suas asas largas são magníficas, o seu bico torto. Veados —
serão veados? — saltam e fogem. São providos de cascos e muito rápidos.
Alguns são pretos, outros listrados. Alguns ostentam armações, quer
achatadas, quer aguçadas, entrelaçadas ou enroladas. Há-os peludos,
lanudos, com pelo curto e liso, e ainda escamosos como répteis, todos com
queimaduras e cicatrizes, pontilhados de estilhaços de vidro e pedra.
Movem-se com leveza, saltando sobre os escombros, depois desaparecem.
— Vem aí — diz El Capitan. — Sugiro que também fujamos.
E assim partem a correr, esparrinhando água através do pântano, com
as armas firmemente encostadas ao peito.
Um pouco mais à frente, Pressia vê um vulto avançar pesadamente
para eles. Todos param. El Capitan prepara a espingarda e faz pontaria.
— Espera — diz Pressia. Não consegue evitar pensar que, tendo vivido
enjaulados ali, os animais têm direito a reivindicar o território. — Nós é que
somos os intrusos. — Acocora-se na vegetação baixa.
A bruma é tão densa que, num primeiro momento, a Besta aparece
apenas como um vulto pouco nítido, mas, emergindo aos poucos entre as
árvores, a figura define-se: trata-se de um enorme gorila. Coxeia; a sua
perna esquerda está imobilizada por uma espécie de haste de metal. Tem
todo o peito coberto de borracha, algo com sulcos profundos, e segura um
gorila-bebé, mas a cria está flácida e parcialmente decomposta. Não está
fundida à mãe, não. Nasceu, mas agora está morta. O fedor é intenso.
Pressia presume que a cria morreu de desidratação. Como pode a mãe
amamentar com borracha fundida no peito?
A gorila grita, enfurecida.
E Helmud solta um grito em resposta.
— Cala a boca — ordena El Capitan por cima do ombro.
— Ela vai ficar violenta, para proteger o seu bebé — diz Pressia.
— O que resta dele — acrescenta El Capitan.
— Ela não desistiu — diz Pressia.
Ouvem outro rugido, este felino e distante.
— Havia leões neste zoo? — pergunta El Capitan. — Será que quero
sequer saber?
Bradwell suspira:
— Infelizmente, tinham quase tudo. Estavam bem abastecidos.
— Por aqui — diz Pressia. — Há uma clareira. Estou a vê-la através
das árvores.
A princípio movem-se lentamente, afastando-se da gorila. Esta olha
para eles com tristeza, como se tivesse ido à procura de ajuda. Aperta a cria
contra o peito e senta-se numa rocha. Depois levanta o filho até junto do
pescoço, para o aconchegar, e é então que Pressia vê a mão dela: sem pelo,
pálida e delicada. O vestígio de algo humano.
Pressia desvia o olhar. O humano terá sido completamente consumido?
El Capitan e Bradwell já começaram a correr. Ela sente-se tonta,
quente até ao âmago, mas corre atrás deles, continuando para leste.
Do outro lado das árvores há um trecho de pântano e mais árvores.
Entretanto Pressia passou para a frente e, em plena corrida, o chão
desaparece abruptamente debaixo dos seus pés. Ela mergulha, mas o pé
volta a assentar no solo meio metro mais abaixo. A jovem vacila, mas não
cai.
Bradwell e El Capitan dão o mesmo tombo. Bradwell olha para leste,
onde o lápis e o edifício do Capitólio se avolumam, e para oeste, onde o
Monumento a Lincoln parece ter sido cortado à machadada.
— O Espelho d’Água — diz Bradwell, sondando a água com a bota. —
É capaz de ser isto.
— O Espelho d’Água?
— Dantes manifestavam-se aqui, quando esse tipo de coisa era
permitido — explica Bradwell. — Juntavam-se e faziam discursos, na
esperança de mudarem as coisas. Aqui mesmo.
Continuam a avançar através da água, que a certa altura se torna mais
profunda. Quando já dá pelas ancas de Pressia, esta sente coisas em
movimento no fundo escuro. Peixes? Cobras? Ratos-almiscarados?
Híbridos de todos três? Pressia fica satisfeita por a água ser turva; prefere
não saber. Fecha os olhos e continua a andar. A água baixa à medida que
sobem do outro lado do lago. O obelisco já não está muito longe, e o
Capitólio fica imediatamente atrás dele.
Transpõem a correr uma pequena colina, mais depressa agora que têm
a meta à vista. Sobem uma última elevação e lá está ele, mesmo à sua
frente, um edifício enorme. Pressia apoia a mão na fachada de pedra fria.
— É de uma arrogância tão grande deixar o dirigível aqui — comenta
Bradwell —, como se Willux tivesse a certeza absoluta de que ninguém
jamais teria força para cá chegar.
— Sem as Forças Especiais, provavelmente não teríamos conseguido
— replica Pressia.
— É o que se chama ironia — observa El Capitan. — Chegámos aqui
por causa da própria criação de Willux.
— Própria criação — diz Helmud.
Contornam o edifício e encontram a entrada. Há um grande globo de
ferro derretido, algo que fora outrora uma estátua.
— O que era isto? — pergunta El Capitan.
— Uma estátua da Onda Vermelha de Probidade — responde Fignan.
— Dedicada ao movimento dois meses antes das Detonações.
Entram e percorrem vários corredores, encontram uma escada
desbloqueada, depois uma abertura no piso superior, que dá para um espaço
grande e arejado. A cúpula é alta e aberta em cima. O vento penetra pelos
buracos, criando funis de ar frio.
E, tal como Hastings dissera, lá está um invólucro grande, rígido e
elítico, apoiado em vigas metálicas e preso ao chão por fio grosso. Por
baixo tem uma gôndola com duas hélices na traseira. As hélices apontam
para um leme que está ligado à parte de trás do balão. A gôndola tem portas
com pequenos puxadores prateados. A parte traseira da gôndola é feita de
um material sólido, com vigias. Mas o terço dianteiro, o nariz, é uma cabina
com amplas janelas, que se curvam acompanhando o nariz cónico do
dirigível.
Embora coberto de pó, ainda é um objeto de extraordinária beleza.
O dirigível.
Caminham à volta dele, boquiabertos.
El Capitan é o primeiro a pousar uma mão sobre ele. Abre bem os
dedos sobre o corpo da cabina, como se fosse o flanco de um cavalo. Vai
falando para si mesmo:
— Hélice de estibordo, hélice de bombordo. — Olha para trás do leme
e vê uma prancha disposta na perpendicular. — Pranchas da ré.
O avô de Pressia falava do dirigível como se talvez não fosse real,
como se se tratasse de um mito ou lenda. Vira-o com os próprios olhos, mas
a sua existência parecia exigir um ato de fé.
— Tens a certeza de que és capaz de tripular essa coisa? — pergunta
Bradwell a El Capitan.
— Nunca tive tanta certeza de nada na minha vida! — afirma El
Capitan, mas a sua voz é demasiado alta para aquele espaço oco e cheio de
eco, demasiado forçada. Ele está a tentar convencer-se a si mesmo de que
está a dizer a verdade. Não é isso que todos eles estão fazendo, de algum
modo: a mentir a si próprios para se persuadirem de que aquela viagem é
possível de todo?
Então ouve-se um grunhido. Vem do exterior do Capitólio. Distante,
mas claro. Um grunhido e depois três gritos agudos e destacados.
Capítulo 58

El Capitan
Nuvens

No cockpit, El Capitan toca em cada interruptor, cada válvula, cada


botão.
— Olha para tudo isto — diz ele a Helmud. — Pensavas que seria tão
bonito? — Está um pouco ofegante, chocado pela pura realidade de tudo
aquilo.
— Tão bonito — diz Helmud, muito encolhido nas costas do irmão
naquele espaço apertado.
Fignan entra, zumbindo.
— Está tudo aqui — diz-lhe El Capitan. — Sabes como estas coisas
funcionam, certo, Fignan? Tudo retro, reminiscências dos antigos
dirigíveis. Como se chamava aquele famoso que explodiu?
— Hindenburg — responde Fignan, projetando uma imagem da nave
em chamas, acompanhada pela gravação áudio de um repórter a exclamar:
«Oh, a humanidade.»
— Obrigado, Fignan — diz El Capitan num tom cáustico. — Isso era
exatamente o que eu precisava.
Ouve Bradwell e Pressia a falar na cabina. Não lhe agrada a forma
como as suas vozes estão baixas, como se estivessem a trocar segredos.
Tinha-os visto na véspera à noite, a beijarem-se no chão frio. Descera do
seu posto de vigia na linha férrea apenas para informar que tudo parecia
calmo, depois saíra apressadamente, tentando recuperar o fôlego no ar frio.
— Que diabo — resmungara.
— Quê? Quê? — perguntara Helmud repetidamente, até que ele lhe
dissera para calar a boca.
Não pode pensar nisso agora. Abre um compartimento e encontra uma
lista de verificação e um manual. Entrega-os a Fignan.
— Consegues aprender isto muito rapidamente, não consegues?
Fignan prende os dois objetos nas suas pinças e começa a digitalizar
as páginas.
El Capitan levanta a mão e agarra a alavanca de controlo do leme e das
pranchas. Os sulcos ajustam-se perfeitamente à sua mão. Toca nos
manómetros alinhados na consola, cada um deles muito bem rotulado:
bucky de vante, bucky principal, bucky da ré.
— Fala comigo, Fignan. Como funciona este bebé ao certo?
Fignan explica os reservatórios, feitos de estruturas moleculares
extremamente fortes e extremamente leves, mas relativamente recentes. A
voz de um narrador debita uma explicação: «Quanto mais ar bombeiam
para fora, mais elevação proporcionam, até atingirem um vácuo quase
perfeito.»
— Então sobe-se bombeando ar para fora. Quanto tempo até estar
pronto para descolar?
Fignan recita o manual na sua própria voz automatizada:
— O processo leva cerca de meia hora a atingir flutuabilidade de voo.
— E acerca das alavancas? — pergunta El Capitan, ansioso para pôr o
aparelho no ar.
— As alavancas controlam as velocidades das hélices, de modo a
impulsionar o dirigível para a frente. Há dois conjuntos de alavancas para as
hélices de cada lado da consola.
— E aqui em baixo? — indaga El Capitan, apontando para uma
espécie de ecrã por baixo da bússola simples, com a respetiva agulha.
— A mesa do ecrã de navegação.
— Mapas?
— Os mapas são anteriores às Detonações.
— Vão ajudar, mas não nas aterragens. Quem sabe em que estado
estará o terreno? E quanto a GPS e satélites? Foram todos abatidos, portanto
como se processa a navegação?
— Esta aeronave não depende de satélites de GPS ou de torres de
controlo.
— Willux sabia que tudo seria arrasado pelas Detonações, portanto de
que serviriam essas coisas? O que me preocupa — acrescenta El Capitan,
espremendo-se para a cadeira do capitão com Helmud entalado nas costas
— é a navegação sobre o oceano. Não há pontos de referência. Mesmo a
navegação astronómica, como os marinheiros costumavam fazer, não
funcionará, especialmente sem qualquer forma de contar o tempo, sem
cartas celestes e tudo o mais. Não que eu fosse capaz de fazer os cálculos
necessários, de qualquer maneira.
— Foi desenvolvido um novo sistema de navegação transoceânica com
essa questão em mente. Envolve boias refletoras de laser, lançadas pela
própria aeronave, associadas a um sistema de Navegação Estimada Visual
Integrada, ou NEVI, que aparece num ecrã de navegação — explica
Fignan. — A aeronave tem uma série de giroscópios e acelerómetros que
rastreiam a respetiva posição, orientação e velocidade e, com base nesses
dados, o sistema NEVI calcula a alteração da nossa localização desde o
lançamento da última boia.
— Boa. — El Capitan está impressionado. — Como uma combinação
de tecnologia medieval e bomba inteligente.
— A mesa do ecrã de navegação tem botões de lançamento para as
boias de rastreio refletoras de laser. O piloto lança a primeira quando o
avião atinge a altitude de voo que pretende manter, depois efetua um novo
lançamento a cada duas horas.
Fignan explica que a fonte de energia para as bombas, o aquecimento
da cabina e as hélices, depende de fusão a frio. E existem máscaras que
cairão do teto se for atingida uma altitude superior a dez mil pés.
El Capitan puxa para a frente um par de binóculos presos a um braço
articulado, de aspeto antiquado, aparafusado à parede. Olha através deles e
verifica que dispõe de uma definição de visão noturna. O dirigível parece
complexo, um feito científico, mas de ciência aplicada a uma máquina
simples.
El Capitan coça o queixo e diz para si próprio, mais do que para
Fignan e Helmud:
— A coisa é que lá os dias são muito curtos nesta altura do ano. É
inverno. As probabilidades de uma aterragem à luz do dia são quase nulas.
Só temos dois dias para encontrar a cúpula em Newgrange, a tempo do
solstício, e apenas dispomos de janelas de luz do dia limitadas. Temos de
partir já.
O estômago de El Capitan contorce-se de nervos. Há um botão
prateado para ativar a fonte de energia.
— Muito bem — diz El Capitan. — Vou premir o botão da fonte de
energia, certo? Está bem?
— Certo? Está bem? — diz Helmud, o que torna El Capitan consciente
da insegurança patente na sua própria voz.
— Diz-me apenas se eu for fazer algo errado, Fignan. Percebeste?
Fignan pisca uma luz verde.
El Capitan pousa o dedo no botão prateado e prime-o. Com a mão
pronta a puxar os três interruptores que começarão a bombear o ar dos
reservatórios, olha para Fignan, que pisca nova luz verde. El Capitan puxa
os interruptores.
Bradwell mete a cabeça pela porta do cockpit.
— Quanto tempo para levantarmos?
— Meia hora, mais ou menos. O nível do ar nos reservatórios tem de
baixar o suficiente para a aeronave subir. — Por uma vez, sente-se mais
inteligente do que Bradwell. — Porquê?
— Ouvi mais ruídos.
— Bestas?
— Não tenho a certeza. Era um arranhar ligeiro, mas vindo de baixo.
— Continua à escuta — diz El Capitan.
Quando Bradwell regressa à cabina, Pressia espreme-se para passar por
ele, tão perto que os seus corpos se tocam.
— Está tudo a fazer sentido? — pergunta ela a El Capitan.
— É simples. — Aquela bravata fá-lo entrar em pânico. Quer
confessar-lhe que se sente completamente fora de pé, mas é demasiado
tarde. Já mentiu.
— A sério? — comenta Pressia, olhando para a consola. — Simples?
— Sim — replica ele. — Não me achas capaz de fazer isto?
— A minha intenção não era duvidar de ti — diz ela. — É só que
parece... complicado.
El Capitan fica calado por um minuto. Olha através do tejadilho
envidraçado do cockpit para o telhado escancarado do Capitólio dos
Estados Unidos, aberto ao céu cinzento, varrido pelo vento. Pensa no que
sentia pelo céu depois de o seu pai os ter deixado definitivamente.
— Quando eu era pequeno, punha-me a olhar pelas janelas, deitava-me
nos campos, passava a vida a tropeçar porque estava sempre com os olhos
voltados para cima, e não para a frente. «Andas sempre com a cabeça nas
nuvens!», dizia a minha mãe. Mas ela sabia que eu estava à procura de
aviões. O meu pai era piloto e, mais cedo ou mais tarde, o avião dele havia
de passar lá em cima, e eu queria vê-lo. Cada avião que passava oferecia
essa possibilidade. Reparava em aviões em tudo quanto era sítio: livros,
revistas, brinquedos. — El Capitan vira-se para encarar Pressia. — Talvez
tenha sido assim com Willux e as suas cúpulas, quando ele era pequeno.
Quando andamos pelo mundo à procura de uma única coisa, nós
encontramo-la ou ela encontra-nos. A obsessão pode ser recíproca.
Pressia fita-o como se ele a tivesse surpreendido. Mas há verdadeiro
respeito na sua expressão, talvez mesmo admiração. É eletrizante. El
Capitan está habituado a um tipo de respeito baseado no medo, mas aquilo é
diferente. Ainda bem que Helmud ficou calado e o deixou falar à vontade.
Por um segundo, quase pode imaginar que estão sozinhos, apenas os dois.
Então ouve-se um baque no casco.
Pressia vira bruscamente a cabeça. Bradwell brada da cabina:
— Estou a ver três Bestas. Talvez mais. São grandes.
O chão do dirigível oscila, inclinando-se lentamente para um lado e
depois o outro.
— Raios partam, eles conseguem mexer esta coisa? — exclama
Bradwell.
É exatamente isso que parece: Bestas por baixo do dirigível, a
empurrá-lo para cima.
Mas então El Capitan diz:
— Não, talvez não. É ele que está a subir! Não é? Temos um pouco de
elevação?
— Elevação! — brada Helmud.
No entanto, ainda não descolaram completamente. As Bestas estão
agora a esmurrar o casco.
— É melhor sentares-te lá atrás — aconselha El Capitan a Pressia. —
Apertem os cintos.
Há um baque muito alto, grunhidos e guinchos agudos.
— Depressa, Cap! — grita Pressia, correndo de novo para a cabina.
El Capitan fecha a porta, pega rapidamente em Fignan e coloca-o na
cadeira do copiloto. Passa o cinto de segurança em torno da caixa negra,
fecha-o e aperta-o com um puxão. Depois senta-se na cadeira do capitão,
mas ele não pode pôr o cinto. É demasiado volumoso, com Helmud nas
costas.
O dirigível continua a elevar-se lentamente, libertando-se aos poucos
da prisão da gravidade, subindo, mas ainda não inteiramente no ar.
El Capitan pousa as mãos no ecrã de navegação, que se iluminou,
bruxuleando. Há um mapa tosco e, no centro do ecrã, um ponto verde, que
representa o próprio dirigível.
— O que faço? — pergunta a Fignan.
— Ligar os motores de bombordo e estibordo.
El Capitan esquadrinha a consola. As pancadas no casco tornam-se
rítmicas. Os gritos transformaram-se em uivos, que soam mais como
encantamentos. Ele encontra os rótulos corretos, puxa os interruptores.
— Vá lá, Fignan! E agora?
O dirigível já não parece estar ligado à terra.
— Estamos a subir! Certo?
De súbito, a aeronave para com um sacão, as amarras de fio metálico
todas esticadas de ambos os lados. El Capitan esqueceu-se das amarras e
entra em pânico.
— Que se passa? — brada Bradwell. — Que aconteceu?
Os uivos são mais altos, mais famintos.
— Soltar amarras, vante e ré — diz Fignan.
— Sim, e como faço isso? — O dirigível oscila de novo. Será possível
que as Bestas estejam a puxar as amarras?
— Por que parámos? — grita Pressia. — El Capitan?
— Está tudo bem! — grita ele, esperando que seja verdade, mas não
tem a certeza. — Fignan!
Fignan acende uma página de referência, mostrando a El Capitan a
imagem de um botão vermelho por baixo do ecrã.
El Capitan passa a mão ao longo da parte de baixo do dispositivo,
encontra o botão, prime-o. Os cabos desengancham-se e são recolhidos,
emitindo um silvo alto enquanto se retraem. O dirigível eleva-se tão
bruscamente que El Capitan se agarra à consola à sua frente para não ser
projetado para o chão. Aciona acidentalmente um interruptor, fazendo
ressoar uma sirene.
— Jesus! — exclama ele.
— Jesus! — grita Helmud.
El Capitan prime o interruptor de novo e a sirene extingue-se. Mas
talvez o incidente tenha sido pelo melhor. As Bestas estão a ganir, como se
a sirene as tivesse assustado.
— Precisas de ajuda aí dentro? — grita Bradwell.
— Ajuda! — berra Helmud.
— Estamos bem — brada El Capitan. O dirigível começou a ganhar
altitude rapidamente — com demasiada rapidez. Está a aproximar-se
perigosamente da borda da cúpula destruída.
— Fignan! — grita El Capitan.
— As hélices controlam a direção da aeronave — informa Fignan,
com uma calma perturbadora.
El Capitan agarra nas alavancas das hélices e puxa-as para a esquerda,
no sentido oposto ao interior da cúpula. Mas o puxão foi demasiado rápido.
O dirigível aderna. El Capitan afrouxa a pressão. Os controlos são mais
sensíveis do que ele julgava.
Compensa para o outro lado, agora com mais leveza. O dirigível oscila
para a esquerda e para a direita, baloiçando muito perto das bordas de
ambos os lados. El Capitan retém a respiração e encolhe-se por instinto,
como se isso pudesse tornar a aeronave mais estreita.
Continuam a subir e ele vai manobrando os controlos um pouco para
esquerda e um pouco para a direita, até quase encontrar o ponto central e
estabilizar a ascensão do dirigível...
E, finalmente, estão lá fora. El Capitan ouve Bradwell e Pressia gritar e
bater palmas. Lembra-se do olhar que Pressia lhe dirigiu depois do seu
comentário acerca de obsessões, de como fora eletrizante. Ela tinha achado
que ele dissera algo inteligente. Respeitara-o por isso. Sente-se novamente
eletrizado, como se tivesse um fusível aceso no peito. Nuvens baixas e
escuras correm ao seu lado. El Capitan está no ar. Não é um rapazinho,
abandonado pelo pai, a esticar o pescoço para ver um avião distante a
zumbir através do céu.
Não, é ele que está no céu. Não é a primeira vez na sua vida que se
sente como um homem. El Capitan sempre teve de ser mais homem do que
devia. Mas é como se já não fosse aquele rapazinho solitário, que receava
mostrar qualquer fraqueza, que tinha demasiado medo de chorar, embora se
sentisse desesperado e triste e perdido, o rapazinho que tinha a certeza de
que o seu pai partira porque não suportava voltar a pôr a vista no seu
indigno filho.
Pela primeira vez na sua vida, não se sente absolutamente nada
indigno.
Parte III
Capítulo 59

Partridge
Iralene

Partridge abre os olhos. Dói-lhe a parte de trás do crânio. Uma


ventoinha roda junto ao teto. Não está na aula de História Universal de
Glassings. Não está no seu quarto do dormitório.
Então o rosto de uma rapariga surge à sua frente, um pouco turvo a
princípio, focando-se depois subitamente. A rapariga diz:
— Oh meu Deus! Estás acordado! — Chama: — Ele está acordado! —
Começa a remexer num portátil de bolso. — Vou informar o teu pai! Ele vai
ficar tão aliviado. — Olha para ele e toca-lhe no braço. — Todos vão ficar
aliviados, Partridge. Todos nós!
Ele está a tentar lembrar-se de como foi ali parar. Terá passado o toque
de recolher? Nunca entrou nos dormitórios da Academia feminina, mas tem
quase a certeza de que não são nada assim: espaçosos, com cortinas
ondulantes. Pestaneja, olhando para a rapariga e, sem qualquer motivo
discernível, há apenas uma frase na sua cabeça, pelo que a diz em voz alta,
na esperança de que faça sentido para ela.
— Bela barbárie.
— O que é isso? — indaga a rapariga.
— A aula de Glassings sobre culturas antigas. Ele estava a fazer uma
palestra sobre... — Lembra-se do blazer de Glassings.
— Não estás contente por isso ter acabado? Palestras, aulas,
professores. É um dos aspetos positivos de se ter sofrido uma lesão como a
tua. Estás livre!
— Livre? — O que quererá ela dizer? Partridge gostaria de acreditar
nela, mas não consegue. Tenta levantar a cabeça, mas sente de novo a
mesma dor intensa. Apalpa duas áreas de cabelo rapado perto da base do
crânio, onde a dor, que lhe vara profundamente o cérebro, é mais forte.
— Onde estou?
— Isto é a nossa casa, Partridge. Não te lembras dessa parte? — Ela
levanta a mão e mexe os dedos, exibindo um anel de noivado com um
grande diamante. — Disseram que não te lembrarias de várias coisas, que
terias amnésia, por causa do golpe na cabeça. Mas eu disse-lhes que te
lembrarias de mim.
Portanto ele sofreu um golpe. É por isso que a sua cabeça dói.
Amnésia. Olha para a rapariga, tentando localizá-la.
— Hum, sim — diz. — Tu és...
— Sou a tua noiva. Estamos noivos. O teu pai instalou-nos aqui.
Conhecemo-nos no baile.
— O baile de outono?
— Nem mais!
— Convidei-te para o baile de outono?
Não se lembra de jamais ter visto aquela rapariga. Lembra-se de
raparigas a fazer ginástica e a cantar num coro, no palco.
— Foste com outra pessoa, mas, mais tarde nessa noite, conheceste-me
e a outra rapariga saiu-te da cabeça. — Ela pega na mão dele, levanta-a,
encosta-a ao seu rosto.
É então que ele vê que parte do seu dedo mindinho desapareceu,
cortada na ponta.
— Jesus! O que aconteceu à minha mão?
— Calma, Partridge. Não deves enervar-te assim.
— O que me aconteceu? — A sua voz ressoa demasiado alto e um
pouco estranha na sua própria cabeça, como se estivesse a ouvi-la através
de um rádio.
— Estiveste em coma. Tens estado a recuperar a consciência. Aos
poucos. É inverno, agora. Quase Natal!
— Tive um acidente? Jesus, diz-me! — Partridge toca no coto onde
dantes ficava a ponta do seu dedo mindinho. Imagina uma faca a cair sobre
ele e um estalo estranho. A faca fá-lo pensar em cozinhas antigas. Haverá
uma Exposição de Domesticidade em Founders Hall, ou não?
— O acidente foi horrível. Não te lembras da pista de gelo?
Ele abana a cabeça. O quarto rodopia num turbilhão atrás dela. O
pânico invade-lhe o peito, contudo ele está exausto.
— A pista de gelo? — Quase sente um ponto vazio na sua mente, um
ponto cego. Tenta fixá-lo, mas, assim que o faz, o ponto desaparece — Que
pista de gelo?
— Montaram uma para diversão, uma placa de plástico que
congelaram e puseram no ginásio. Tu e o Hastings foram para lá depois da
hora. Não deviam lá estar. Puseram os patins e estavam a correr sobre o
gelo e embrulharam-se de algum modo. Tu caíste, batendo com a cabeça no
gelo. O Hastings passou acidentalmente por cima do teu mindinho,
cortando-o.
Aquele ponto vazio, apagado na sua mente parece um lençol de gelo
branco.
— Onde está o Hastings? — Tem de ouvir a versão do amigo.
— Voltou para o dormitório?
— Está nas Forças Especiais.
— O Hastings? Ele não é talhado para as Forças Especiais.
— Partridge iria ser selecionado também, mas tivera de ser deixado por
causa do acidente? Pensa em Sedge. Quase pergunta se está realmente
morto, mas depois a verdade apresenta-se-lhe: Sedge morreu há dois anos.
Matou-se. Fim.
— Tiveram de recrutar uma quantidade de rapazes rapidamente. O Vic
Wellingsly, os gémeos Elmsford, o Hastings, e muitos outros. Os
desgraçados — acrescenta ela, num sussurro. — Houve revoltas. Eram
precisos mais soldados.
— Lá fora? Fora da Cúpula? — Pensa em vento carregado de pó,
quase o sente na sua pele.
— Chiu — diz ela. — Nem toda gente sabe disso, mas sim.
A cabeça de Partridge está incrivelmente pesada.
— As minhas sessões de codificação — diz ele. — Estão todas viradas
do avesso. Faltei a uma tonelada delas. E a escola. Onde está o meu pai?
— Está tudo bem — assevera a rapariga. — O teu pai tem um plano
para ti. Um plano muito bom!
Ele sente uma pontada no peito. Será medo?
— Eu? Porquê? Ele nem sequer gosta de mim.
— O teu pai ama-te, Partridge. Nunca te esqueças disso!
— Que tipo de plano?
— Não é só para ti, mas para nós dois!
— Nem sequer sei o teu nome.
— Sabes o meu nome. É Iralene. Já o sabias. Estava escondido aí
dentro, guardado para sempre. Não te lembras dele?
Iralene. Segredos. Promessas.
— Lembro-me agora — diz ele.
Iralene. Piano. Iralene. No frio. No escuro.
— Sim, lembro-me. — Amará Iralene? Terão segredos e promessas?
Terão estado juntos no frio e no escuro? Olha para ela. Ela inclina-se e
beija-o suavemente nos lábios. Ele tem a impressão de se lembrar de beijos
trocados no frio, sem roupa. Frio? Onde poderiam ter aquele frio? No
ginásio, refrigerado por causa da pista de gelo?
— Fala-me mais de ti. Preenche alguns detalhes.
— Bem, a minha mãe era viúva. Conhecia o teu pai há anos e,
recentemente, casaram-se. Mas nós não temos qualquer parentesco de
sangue, Partridge, portanto não há problema.
— O meu pai casou outra vez? Ele não é do tipo... — Não é do tipo de
se apaixonar, pensa Partridge. O seu pai não compreende o amor. — O teu
pai morreu? A minha mãe também está morta. Foi uma mártir. Morreu
durante as Detonações, a tentar salvar pessoas.
— Aquilo não lhe parece inteiramente correto, mas Iralene aceita as
suas palavras.
— Sim, eu sei — diz ela. — O meu pai... bem, ele meteu-se em
sarilhos por causa de uma fraude e foi mandado para a prisão antes das
Detonações. Felizmente a minha mãe já conhecia o teu pai quando isso
aconteceu, por isso ele ajudou-nos financeiramente. Não teríamos
conseguido sem ele, e muito menos teríamos vindo para a Cúpula.
— A história perturba Partridge. Fá-lo sentir-se enjoado. Porquê? O
seu pai ajudou alguém. Voltou a apaixonar-se. Tudo isso é bom, não é?
Iralene pega no portátil que tem no colo.
— Há uma mensagem de voz do teu pai.
Partridge endireita-se; tornou-se um hábito sempre que o seu pai está
envolvido.
Iralene prime um botão e a voz do seu pai diz:
«Partridge, estou tão feliz por estares acordado e suficientemente bem
para receberes esta mensagem.»
Partridge é inundado por um ódio tão repentino pelo seu pai, e por uma
raiva tão intensa, que tem a sensação de que o seu peito está a ponto de
explodir.
— Espera! — diz ele a Iralene. — Prime «parar».
O quarto fica em silêncio.
Ele tapa a boca, tentando acalmar a respiração.
— Estás bem?
— Põe isso a tocar — murmura ele. — Vamos lá despachar isso.
«Agora quero que vás com calma», prossegue o pai. «Deves regressar
aos poucos à tua vida normal. Diverte-te.»
O coração de Partridge continua a bater com força. O seu pai nunca lhe
disse para se divertir. Nunca, nem uma única vez. E há algo na sua voz —
parece tensa, talvez até mais envelhecida do que ele recordava, e não
apenas alguns meses mais velho, mas anos, mesmo décadas. Partridge
pergunta-se se o pai estará a sentir-se mal. Será por isso que não veio
pessoalmente?
«Daqui a poucos dias», diz o pai, «serás chamado outra vez ao
hospital. Ele podem fazer um pouco mais para tentar salvar e renovar
algumas das...», hesita, mas depois resolve prosseguir no tom clínico,
«ligações sinápticas do teu cérebro. Quando isso estiver feito, meu filho,
irei visitar-te. Vou pedir grandes coisas de ti como líder. Oficializarei tudo
agora.» Faz uma pausa, do género das que faz em discursos públicos. Uma
pausa dramática. O seu pai está prestes a anunciar algo. O estômago de
Partridge contrai-se como se estivesse à espera de um soco. «Tu serás o
meu sucessor. Não posso liderar para sempre. Tenho de começar a passar
algum poder. Quem melhor para transmiti-lo do que a ti?»
Partridge está estupefacto. Ainda sente a chama ardente do ódio, mas
agora também se sente desorientado, como se o quarto não estivesse fixo no
tempo e no espaço. O seu pai quer que ele seja seu sucessor, que lidere?
Nada faz sentido, nem o seu pai, nem aquele quarto com cortinas
esvoaçantes, nem a rapariga que o fixa com os olhos muito abertos.
O seu pai continua: «Imagino que Iralene esteja ao teu lado neste
preciso momento. Ouçam-me: aproveitem estes próximos dias para se
divertirem os dois. Isto é uma ordem. O futuro está a chegar e vai chegar
depressa.»
E assim termina a mensagem. Iralene está a olhar para Partridge,
apertando o portátil nas mãos.
— Partridge? — diz ela baixinho.
Ele dá um soco violento no colchão e fica admirado com a sua própria
força. Ela assusta-se, fica com as costas hirtas por um momento.
— Não faz sentido! — diz ele, a dor a varar-lhe o crânio. — O meu pai
tem vergonha de mim. Isso é algo que eu sei e sempre soube.
— Ele ama-te — sussurra Iralene.
— Não sabes nada sobre mim e o meu pai — replica Partridge.
— Sei, sim — diz ela, aproximando-se da beira da cama. — Talvez ele
nunca tenha querido admitir que precisava de ti. Talvez quisesse poupar-te
ao fardo do teu futuro. Mas ele precisa de ti agora. Tem estado...
— Ele está doente, não está? Está a morrer?
— Não, não, não a morrer — atalha Iralene rapidamente. — Não tem
estado bem. Vai ficar melhor em breve, mas acho que ele é mortal. Não tem
mais ninguém, não é?
Partridge deixa os olhos vaguear pelo quarto. Não sabe ao certo como
argumentar com Iralene. O seu pai nunca fez sentido para ele. Talvez ela
tenha razão. Sedge foi-se. Partridge é tudo o que resta ao seu pai.
— É importante que descanses — acrescenta Iralene —, para
podermos começar a divertir-nos. Essa parte era uma ordem, não era?
— Suponho que sim.
Iralene levanta-se e dirige-se para a porta. Partridge olha para a
ventoinha no teto. Lâminas de ventoinha. Por um segundo, imagina-as
como facas afiadas de metal, capazes de o cortar em pedaços. De onde virá
aquela ideia?
Olha para Iralene, que está de pé num feixe de raios de Sol que
penetram pela janela, como num autêntico Sol de fim de tarde. Ouve o
vaivém de ondas na areia.
— Aquilo é o mar?
— Pensa nisso como uma luz de presença — diz Iralene — que o teu
pai fez só para ti.
O seu pai nunca faria qualquer coisa só para ele. Isso era algo que a sua
mãe faria. Pensa nela na praia, enrolada numa toalha batida pelo vento. É
uma velha recordação e ele fica aliviado por ainda a possuir. Pensa na mãe
como sempre pensou: morreu santa. Mas assim que esse pensamento se
forma na sua mente, ele regressa às últimas palavras que se lembra de ter
ouvido antes de acordar: não é nada sobre corridas com Hastings numa pista
de gelo artificial no ginásio refrigerado. Não. É a voz de Glassings, a
discursar numa sala de aula abafada acerca de culturas antigas, de rituais
para os mortos. Bela barbárie.
Capítulo 60

Lyda
Saber

A Mãe Egan entra com um prato de alhos-porros, tubérculos, carnes


tenras e um copo de líquido tingido de rosa.
— Senta-te, senta-te — diz ela com doçura.
Lyda está confinada ao catre número nove, quase como se estivesse
sob prisão. Não se importa com isso. Sente-se doente de culpa. Não
consegue parar de pensar na Nossa Boa Mãe, a dizer que tenciona matar
Partridge, que vai atacar a Cúpula e que morrerão pessoas no processo. A
Nossa Boa Mãe anunciou que as Mães devem preparar-se para a guerra, que
Lyda é a causa disso e que também representa todas elas: arruinadas,
abandonadas, deixadas por conta própria.
Lyda senta-se na cama e a Mãe Egan ajeita-lhe uma almofada atrás das
costas, depois entrega-lhe o prato com o respetivo garfo.
— Este outono foram encontrados uns frutos vermelhos de pele grossa.
Descongelámos e esprememos alguns para ti. A Mãe Hestra quer-te forte.
Lyda beberica o sumo, que é salgado e azedo. Ainda tem enjoos de vez
em quando, mas a maior parte do tempo sente-se simultaneamente cansada
e inquieta.
— Obrigada.
A Mãe Egan sorri.
— Tudo por ti.
Agora todas as Mães se mostram mais agradáveis para com ela, não
tanto por simpatia, como por algo que se assemelha a medo. Pressentem
que ela tem poder.
— Mal posso esperar que o bebé venha!
Lyda força um sorriso, mas passa um braço protetor em torno da
barriga. De quem vai ser aquele bebé? Outra razão, pela qual as Mães são
amáveis para com ela, é o facto de cobiçarem o bebé.
— Um bebé vai ser uma alegria para todas nós. — A Mãe Egan olha
para ela avidamente.
— Obrigada pela comida — agradece Lyda de novo. Fica aliviada
quando ouve alguém entrar na sala: uma distração. E a Mãe Hestra. Vem da
caça. O seu saco ostenta manchas de sangue recentes, mas está vazio. Ela já
entregou o produto do seu trabalho.
— Mãe Egan! — diz a Mãe Hestra. — Importa-se que eu visite a
doente?
Lyda percebe que a Mãe Egan não tem vontade de sair. Foi ela que
trouxe comida, pelo que tem uma desculpa para estar com Lyda. Ela não
pode fazer uma fita.
— Claro que não me importo — responde. — Come bem. — É uma
forma subtil de recordar a Lyda que deve aquela refeição, aquela
amabilidade, à Mãe Egan.
— Assim farei — diz Lyda.
A Mãe Egan sai e a Mãe Hestra senta-se pesadamente na cama. Syden
parece sonolento, com as faces avermelhadas pelo ar frio.
— Como estás?
Lyda mastiga a carne tenra.
— Estou a pensar partir. — Fica surpreendida por ter dito aquilo em
voz alta. É apenas um pensamento obscuro nas profundezas do seu cérebro.
A ideia de tentar sobreviver sozinha lá fora aterroriza-a.
— Não resistirás — afirma a Mãe Hestra. — Ouve, tu foste o
incidente. Se não fosses tu, teria sido outra coisa. Está na hora.
Lyda lança um olhar a Syden, a espreitar sobre a barriga da mãe.
— Ele não me magoou. Sabe disso.
A Mãe Hestra pousa o seu saco. Esfrega as mãos, tentando aquecê-las.
— Mas tu compreendeste verdadeiramente, Lyda? Sabias realmente o
que aquilo podia significar?
— E ele sabia? — Lyda nem sequer consegue dizer o nome dele.
— Não sabia? — replica a Mãe Hestra.
Lyda não tem a certeza. Ele não saberia realmente que ela podia
engravidar? Lyda nunca tinha ouvido falar de um bebé nascido de pais que
não fossem casados. Por isso não havia qualquer prova palpitante e viva de
que tal coisa pudesse acontecer a alguém como ela, tão jovem. Lembra-se
da pele quente do peito de Partridge, do calor dos seus bafos retido no
casaco. Ele perguntara-lhe se ela tinha a certeza. Portanto, ele tinha de
saber. Por que outra razão lhe faria essa pergunta? E ela nem sequer
compreendera o que ele estava a perguntar, que ele queria permissão, e
menos ainda o que dar-lhe essa permissão podia implicar. Mas ela podia tê-
lo travado. Ela não quisera parar.
Pousa o prato e o copo no chão. Deita-se na cama, junta as mãos e
aconchega-as debaixo da almofada.
— Não tem importância se ele sabia ou não — afirma, embora na
verdade tenha importância. E a diferença entre ser um golpe que os
apanharia de surpresa aos dois, ou só a ela.
— Mãe Hestra — sussurra num tom urgente —, preciso mandar recado
ao Bradwell, à Pressia e a El Capitan. É possível? Eles talvez possam
ajudar. Esse ataque não pode realizar-se.
A Mãe Hestra diz:
— Não sei.
Lyda precisa de lhes dizer o que se passa. Talvez eles tenham uma ideia
de como pôr fim àquela conversa louca de guerra e morte. Ela tem vontade
de chorar.
— A Cúpula... vocês não os conhecem. Não compreendem até que
ponto estão bem equipados, como são poderosos. Todos vocês andam por aí
sem fazer ideia... Vai ser um banho de sangue. Não compreende isso?
A Mãe Hestra abana a cabeça e sorri:
— Não vamos atacar a Cúpula. Vamos atacar Morto, os homens que
nos fizeram sofrer durante anos antes de as Detonações se abaterem sobre
nós, que nos arruinaram e abandonaram a todas. Tu representas abandono,
quer queiras, quer não. Tu és todas nós e o teu filho é todos os nossos
filhos.
— Não quero representar coisa nenhuma.
— Às vezes não se tem escolha.
— Prometa que vai tentar encontrar os meus amigos. Por favor —
implora Lyda. — Tente, nada mais.
A Mãe Hestra acaricia o cabelo de Syden.
— Veremos — diz ela. — Mas não prometo nada.
Capítulo 61

Pressia
Aceso

O céu está escuro. De vez em quando, El Capitan diz-lhes onde estão,


bradando através da porta aberta do cockpit, com a voz confiante e, mais
estranho ainda, feliz. Pressia nunca ouvira El Capitan tão feliz. Ele dissera-
lhes a distância total da viagem — 2910 milhas náuticas — e explicara que,
conforme os ventos e velocidade de que o dirigível fosse capaz, demoraria
entre trinta e cinco e trinta e seis horas.
Passaram Baltimore, a parte superior da baía de Chesapeake,
Filadélfia, Nova Iorque, o Cabo Ann, o Golfo do Maine, a Ilha do Príncipe
Eduardo, o Golfo de S. Lourenço. Pressia gostaria que fosse dia, para poder
ver todos esses locais; em vez disso, imagina cidades arrasadas, estradas e
portos destruídos, e Bestas e Poeiras a vaguear.
A casa das máquinas do dirigível é barulhenta. As bombas assobiam e
vibram.
— O que havia em cada uma dessas cidades no Antes? — pergunta ela
a Bradwell, que está sentado ao seu lado.
— Em Baltimore havia um grande porto, um aquário e navios, e uma
enorme placa da Domino Sugar, que estava sempre iluminada. Em
Filadélfia havia a estátua de um homem no topo de um edifício e um
enorme sino que representava a liberdade. Em Nova Iorque, bem... — A sua
voz perde-se. — Os meus pais diriam que tinha de se ter estado lá antes da
Onda Vermelha de Probidade. Tinha de se estar lá para se acreditar. Era
cheia de vida.
Pressia sabe que muitas coisas podem correr mal. Podem não conseguir
atravessar o oceano. El Capitan pode não conseguir aterrar o aparelho. A
Irlanda pode estar reduzida a uma cratera escura, ou atulhada de Bestas e
Poeiras mais cruéis do que todos os que encontraram antes. Se tiverem a
sorte de chegar a Newgrange a tempo do solstício, o Sol pode iluminar um
ponto no chão e eles cavarem para encontrar... uma bolsa de ar vazia, terra,
absolutamente nada. E ela ainda não sabe como Fignan vai servir de chave.
Mas, mesmo sabendo tudo isso, ainda há este momento: bem alto no ar
com Bradwell, a caminho de um lugar, a tentar sair, a atuar com base na
esperança. A alegria está lá, solidamente instalada dentro dela. Os dois dão
as mãos.
El Capitan grita:
— Estamos a sobrevoar Horse Island, na Terra Nova. É a última massa
de terra antes do Atlântico.
Pressia olha pela vigia, embaciada pela humidade que escorre pelo
vidro como as lágrimas que escorrem dos olhos sob um vento forte, e
imagina Horse Island a transbordar de manadas de cavalos selvagens. Mas
tudo o que vê é a ondulação de nuvens de fuligem.
— Vou lançar a primeira boia daqui a trinta segundos — avisa El
Capitan. — Vai fazer barulho. Segurem-se bem.
Bradwell estreita a mão de Pressia.
— Estou bem seguro.
O lançamento da boia provoca um tal estrondo que o dirigível vibra.
Um clarão passa pela janela, inundando a cabina por um momento com uma
luz ofuscante. E, de súbito, Pressia é assaltada por uma recordação nítida
das Detonações. Luz a irromper de toda a parte. Janelas e paredes e corpos
e ossos incandescentes.
Acesos.
Incendiados.
Como uma explosão do Sol.
Então a luz desvanece-se. A pequena vigia fica novamente escura. Ela
exala, encosta a cabeça ao ombro de Bradwell e diz:
— Por um momento, foi como...
— Eu sei.
É noite e aquilo é um pequeno milagre: estar de mãos dadas com
Bradwell enquanto deslizam sobre as nuvens, correm acima do oceano
escuro, velejam através do céu.
Capítulo 62

Partridge
Baleias

A piscina foi fechada ao público para que Partridge e Iralene possam


nadar sozinhos. Ele não deve molhar a cabeça, por causa da sua lesão, mas
pode andar dentro de água.
Iralene veste um fato de banho amarelo com uma saia curta atada à
cintura. Flutua de costas, mergulha e vem de novo à tona. A sua
maquilhagem não escorre.
Há um guarda chamado Beckley, de pé no chão de cimento,
completamente vestido e armado. Quando se afastam o suficiente para que
ele não possa ouvi-los, Partridge pergunta a Iralene:
— O que há com o Beckley?
— Está a olhar por ti, não vás ter sintomas ou coisa assim — diz ela.
— Apenas para o caso de algo correr mal.
— A sério? — pergunta Partridge, fazendo força com os braços na
água. — Não tem aspeto de membro do pessoal médico.
Ela parece mudar de opinião.
— Bem, se vais ser o líder, tens de te habituar a ser protegido.
— Então, o guarda não é realmente uma sugestão do médico, mas uma
ideia do meu pai?
— Sim — confirma ela. — Estás a ver como ele gosta de ti? —
Também é uma maneira de o seu pai saber sempre o que ele está a fazer.
Partridge sente-se fraco, mas trata-se de uma debilidade mais mental
do que física. O seu corpo está estranhamente irrequieto. Ele pergunta-se se
isso será porque, durante o coma, foi acumulando energia, enjaulada no seu
próprio corpo, à espera de ser libertada. Tem vontade de meter uns cestos.
— Não haverá por aí uns rapazes da Academia com quem eu possa
jogar um bocado de basquete?
— Os médicos nunca te permitiriam fazer uma coisa tão perigosa!
— Gostava de ver quem está por aí, talvez até mesmo alguns dos meus
professores. — Gostaria de ver Glassings e de lhe fazer perguntas acerca da
sua recordação mais recente: a aula sobre bela barbárie. — Eles enviaram-
me cartões? Fazíamos sempre isso quando algum miúdo ficava de
quarentena.
— Claro que enviaram! Mas foram... destruídos. Os médicos não
queriam correr o risco de virem germes nos cartões.
— A sério? Destruíram-nos a todos?
— Sim, mas havia toneladas deles. As pessoas gostam realmente de ti.
— Têm de gostar de mim — observa Partridge. — Sou o filho de
Willux.
Ela nada à volta da cintura dele e emerge de novo.
— Eu gosto de ti — afirma. — Gostaria de ti fosse como fosse.
Embora ele não possa pôr as mãos no fogo, ela parece-lhe sincera. Ela
mergulha e nada debaixo de água entre as pernas dele. Quando rompe de
novo à superfície, atrás dele, comenta:
— É difícil acreditar que é inverno. Não é?
— Talvez não seja — replica Partridge. — Quem sabe como é lá fora?
Iralene ri.
— Tens tanta graça! É uma das coisas que amo em ti.
Mas Partridge não estava a brincar.
— Eu acho que tu tens graça? — pergunta ele.
Ela nada para ele, encosta o nariz molhado ao seu. Ele sente uma dor
surda; será amor? Parece mais saudade, ou nostalgia.
— Achas que sou bonita — diz Iralene.
— Mas acho-te graça?
Ela desvia o olhar.
— Achas que sou tudo o que sempre quiseste!
Partridge acena com a cabeça. Deve ser assim. Por que outro motivo a
teria ele pedido em casamento?
***
Beckley leva-os num pequeno carrinho motorizado fechado. Partridge
e Iralene viajam no banco de trás. São mantidos fora de vista. O cabelo de
Iralene está perfeitamente tufado. Como conseguiu ela aquilo com tanta
rapidez, depois de ter estado a nadar, é o que Partridge não percebe. Haveria
um batalhão de cabeleireiras no vestiário das senhoras?
— Para onde vamos agora? — indaga Partridge.
— Ao jardim zoológico — diz Iralene, olhando pela janela de plástico
fosco. — As borboletas e o aquário são as minhas zonas preferidas,
lembras-te?
Ele não se lembra, pelo que não responde. Repara num pequeno
escaravelho nas costas do banco de Beckley. Quase estende a mão para lhe
tocar. Mas algo lhe diz que não deve chamar a atenção de Iralene para o
inseto.
Começam pela casa das borboletas. O recinto é mantido quente e
húmido. Estão rodeados por folhagem densa. Borboletas mergulham e
esvoaçam à sua volta. Beckley guarda uma distância respeitosa. Parece
pouco à vontade entre todas aquelas asas esvoaçantes.
Aquela área também foi reservada apenas para eles, mas algumas
partes do zoo devem estar abertas ao público. Partridge ouve crianças não
muito longe. Aquele passeio lembra-lhe os natais em que ficava com os
Hollenback, Julby e Jarv, meias e pequenos presentes, feriados solitários em
que o seu pai estava demasiado sobrecarregado de trabalho para ficar com
Partridge, ainda que apenas por alguns dias. Às vezes vinham ao jardim
zoológico e passeavam por lá.
Iralene aperta muito a mão de Partridge, como se tivesse medo das
borboletas.
— Pergunto-me se o meu pai quererá que eu passe as festas com ele?
Iremos aproximar-nos de repente, enquanto ele me prepara para o meu novo
futuro? — Não consegue sequer dizer aquelas palavras sem um ligeiro
sarcasmo.
Uma borboleta azul-forte pousa no ombro de Partridge. Iralene aponta-
a:
— Olha! É tão delicada e perfeita!
A borboleta é realmente bonita. Assim de perto, Partridge vê as orlas
pretas e aveludadas das asas. Mas ele olha para lá dela, para Iralene: os
olhos verdes cintilantes, os traços perfeitos, o cabelo brilhante.
— Será que o meu pai começou a amar-me de repente? — pergunta
ele. As borboletas revoluteiam em torno das suas cabeças.
Iralene rodeia-lhe a cintura com os braços:
— Talvez tenha sido difícil para ele exprimir o seu amor, depois das
perdas que vocês dois sofreram.
— Queres dizer, com a morte da minha mãe e o suicídio do Sedge.
— Partridge não sabe ao certo por que motivo pôs as coisas com tanta
crueza. Talvez esteja a testá-la.
— É triste — diz ela —, mas realmente não devíamos falar sobre eles.
O passado passou!
Partridge sente um impulso de defender a sua mãe e Sedge, como se
tivessem sido postos à margem. Fica subitamente irritado. Põe o braço atrás
das costas e desprende as mãos de Iralene.
— Não digas isso.
— O quê?
— Não fales assim deles. O passado não passou.
Afasta-se dela.
— Agora que estamos noivos, há a esperança de um princípio. Um
novo começo. É isso que podemos ser para o teu pai, um para o outro.
— Algo não está certo — diz ele, massajando a têmpora.
— O que queres dizer com isso? — Ela avança para ele, mas ele dá
mais um passo atrás.
— Não sei — confessa. Cerra o punho. — O meu corpo — diz,
olhando para si próprio.
— O que tem?
O seu corpo não dá a impressão de ter estado acamado. Os seus
músculos estão mais fortes e secos do que nunca. Ele não confia em Iralene,
embora haja nela algo de sincero, de inocente.
— Partridge — diz ela —, fala comigo.
Ele replica:
— Nada. Não é nada.
Um bico de rega dispara no teto, projetando uma névoa.
Partridge pensa em sangue. Um véu enevoado de sangue. A imagem
mancha-lhe a mente. As borboletas ficam frenéticas. Ele olha por cima do
ombro para Iralene, mas apenas vê bocados do seu vestido, do seu cabelo,
como se a miríade de asas a tivesse retalhado em pequenos fragmentos.
***
Até os corredores que ligam a casa das borboletas ao aquário foram
evacuados. Caminham por um túnel de vidro, com peixes a nadar de ambos
os lados e por cima. As alforrecas contraem-se e deslizam, contraem-se e
deslizam. Iralene comprime a mão no vidro.
— Quem me dera ter uma máquina fotográfica — comenta. —
Adorava ter uma fotografia disto.
— Não tens um milhão delas de quando eras criança?
Não há muitos sítios na Cúpula onde se possam tirar fotografias de
infância memoráveis.
— Claro que tenho! — Iralene afasta-se apressadamente do vidro e
pega-lhe na mão.
Caminham em silêncio por algum tempo, depois há uma confusão mais
à frente, um som de passos rápidos.
Beckley levanta a mão e diz a Partridge e Iralene para pararem. Avança
sozinho, em direção a uma esquina cega.
— Quem está aí? — grita.
Uma voz de homem chama nervosamente:
— Sou só eu! Perdi-me a caminho dos lavabos!
Glassings dobra a esquina. Está afogueado, como se tivesse vindo a
correr.
— Por favor, volte para onde veio — diz Beckley num tom autoritário.
— Espere! — brada Partridge e começa a correr para Glassings, mas
tem de abrandar o passo porque a sua cabeça começa a latejar. —
Glassings! — exclama, estendendo a mão.
Glassings aperta-a com grande vigor.
— Partridge!
Iralene mete-se entre eles.
— Não podemos falar agora! — declara. — O Partridge não pode ter
visitas. O seu sistema imunitário está demasiado fraco! Não é, Beckley?
Beckley pousa uma mão firme no peito de Glassings.
— Tem de recuar imediatamente, senhor.
— Não, não — atalha Partridge. — É apenas Glassings.
Iralene puxa pelo braço de Partridge.
— Larga-me! — diz-lhe ele. — Deixe-o em paz, Beckley! Raios
partam, ele é o meu professor de História Universal!
Beckley não presta atenção a Partridge. Puxa da sua arma e, embora a
mantenha apontada para o chão, insiste:
— Preciso que se retire, Glassings.
— Hei, calma — diz Glassings.
— Que diabo se passa consigo, Beckley?
— Está tudo bem — diz Glassings. — Estava apenas a cumprimentar.
Ainda não tinha visto o Partridge desde o regresso dele.
— O meu regresso? — indaga Partridge.
— Cale a boca! — ordena Beckley, e levanta a arma.
— Raios partam, Beckley! — grita Partridge. — Pare com essa porra!
Desta vez, Glassings não diz palavra. Recua muito devagar, com as
mãos no ar. Beckley diz:
— Continua a andar, Partridge, e tudo vai correr bem.
Glassings faz um sinal afirmativo a Partridge. Isto é a sério, diz a sua
expressão. Faz o que ele diz.
— Anda — diz Iralene.
Ele deixa-a puxá-lo até à esquina. Depois arranca o braço da mão dela.
— Silêncio!
Não se ouve qualquer tiro. Nenhum ruído de luta. Nenhum barulho.
Passado um ou dois minutos, Beckley regressa, como se nada tivesse
acontecido. Resmunga: — Toca a andar — e começa a caminhar pelo
corredor.
Partridge apanha-o.
— Que diabo foi aquilo lá atrás?
— Ordens. Nenhum contacto seja com quem for além de Iralene. Ponto
final.
— O Glassings é apenas um professor meu da Academia, e você
apontou-lhe uma arma!
— Não foi nada de pessoal. Ordens. — Continua a andar, os ombros
rígidos, o rosto inexpressivo.
Partridge não sabe o que dizer. Vira-se para Iralene.
— Ordens — diz ela —, nada mais! — Estende a mão para ele, mas
Partridge afasta-a bruscamente. Está tão irritado que nem consegue falar.
Quando chegam ao pequeno teatro aquático, Partridge ocupa um lugar
na parte de trás e olha fixamente para a parede de vidro reforçado. Do outro
lado, as belugas, belas e fortes, impulsionam as caudas grossas através da
água.
Iralene senta-se ao seu lado. Ele sabe que ela não tira os olhos dele,
mas recusa-se a devolver-lhe o olhar.
— Por que diabo deu o meu pai ordens para eu não falar com ninguém
além de ti? — pergunta Partridge, observando Beckley pelo canto do olho.
— Para tua própria segurança, para teu próprio bem.
— Para com isso, Iralene. Alguma coisa está errada. Sei que está.
— Claro que alguma coisa está errada! Ainda estás a voltar à tua vida.
É um grande choque, Partridge.
— A que se referia o Glassings? Ele disse que não me tinha visto desde
o meu regresso. Regresso de onde?
— Não sei! — replica Iralene, levantando e baixando os ombros. —
Talvez da beira do abismo. É assim que eu penso nisso. Tinhas partido e
agora regressaste!
— Não foi isso que me pareceu. Pareceu outra coisa.
— Vou perguntar ao médico se é normal pacientes com problemas
semelhantes ao teu desconfiarem da lacuna na sua memória. Aposto que é.
— Achas?
— Tenho a certeza.
As belugas deslizam diante deles, duas, lado a lado. Partridge sente-se
profundamente cansado. Esfrega os olhos e deixa-os desfocados enquanto
olha para a água.
— Por que estamos a fazer estas coisas todas, Iralene?
— Temos de reconstruir — diz ela. — Foi assim que nos apaixonámos.
Não posso sacrificar todo o nosso passado. Ficaria com o coração
destroçado se não pudéssemos refazer as memórias.
Partridge admira-se que uma rapariga como Iralene o ame. Ela parece
tão normal, tão aperfeiçoada, e ele nunca se sentiu normal e sempre esteve
longe de ser perfeito. Parece cruel estar condenado a não se lembrar de
nada. Pergunta-se até onde chegou a sua intimidade. É uma pergunta justa.
Mas não se sente à vontade para a fazer. E se já procederam como se
fossem casados e ele não se lembrar disso? Por um lado, adoraria saber
mas, ao mesmo tempo, não quer sabê-lo, pois embora ela seja atraente, ele
não se sente atraído por ela. Conhece Iralene, mas, ao mesmo tempo, não a
conhece; é isso que é esquisito. São próximos, mas também estranhos.
— A ideia é reconstruirmos as memórias ou refazê-las? — pergunta.
— Qual é a diferença?
— Acreditas que as memórias podem ser reconstruídas? Quero dizer,
alguma vez me lembrarei da primeira vez que estivemos aqui juntos? Ou
teremos simplesmente de refazer tudo? Refazer as memórias.
— Não sei — diz ela. Parece ficar um pouco hirta. — O teu pai disse
para nos divertirmos. Foi uma ordem.
— Talvez eu não goste que me digam o que fazer.
— Não sejas assim — diz Iralene, e é a primeira vez que ele ouviu uma
ponta de zanga na voz dela. Isso surpreende-o, agradavelmente. Agrada-lhe
pensar que ela tem alguma capacidade de luta. Ela olha furtivamente para
Beckley, como se ele não fosse apenas um guarda, mas também um
informador, um bisbilhoteiro. Depois aponta para as belugas.
— Elas têm umbigos, sabes. São muito parecidas connosco.
As belugas batem as caudas tão poderosamente que ele imagina pernas
humanas, como as de uma sereia, por baixo da sua pele.
— Talvez nós sejamos parecidos com elas — replica.
Iralene sorri-lhe:
— Nunca me senti tão feliz. — Está a dizer a verdade. Partridge sente-
o na maneira como ela olha para ele. E sente também que ela está à espera
que ele diga o mesmo. Tem os olhos marejados de lágrimas. — Ainda me
amas, não amas?
A pergunta deixa Partridge em pânico. Beckley oscila de um pé para o
outro, olha para eles, depois desvia o olhar. Está demasiado longe para os
ouvir, mas, apesar disso, Partridge detesta a sua presença. É como se tivesse
público; um público contrariado, que, por vezes, puxa uma arma.
Como pode Partridge dizer a Iralene que não tem a certeza? Sente uma
dor de amor. Sente-a quando olha para os olhos dela. Se não está
apaixonado, já esteve. No entanto, não pode honestamente dizer que a ama,
e nunca poderia dizer-lhe que não sabe ao certo. Nem sequer se lembra de
lhe ter dado um primeiro beijo, e muito menos de a ter amado.
As pestanas dela são escuras, os lábios cheios. Ela está ali, à espera,
portanto ele inclina-se e beija-a. A princípio, ela fica surpreendida. Retrai-
se por um momento, depois deixa-se ir. Ele espera uma aceleração, algo
apaixonado ou, pelo menos, familiar. Mas o beijo não lhe desperta nada. É
como se fosse o primeiro, só que não tem o formigueiro característico de
um primeiro beijo. É oco, vazio.
Quando ele se afasta, ela diz:
— Não há problema, Partridge.
— Que problema é que não há?
— Eu compreendo.
Ela compreende que ele não pode dizer-lhe que a ama? Partridge
desejaria que as memórias o inundassem. Ela merece pelo menos isso.
— És bonita — diz ele. — És mesmo.
Ela pousa-lhe a mão na face. Ele diz:
— Eu podia... — O quê? Tentar apaixonar-se por ela? — Temos tempo
— diz ele, por fim. — Não temos de apressar as coisas.
Ela abana a cabeça, encosta-lhe a boca ao ouvido:
— Não temos, não, Partridge. Não temos tempo.
Capítulo 63

Lyda
Fraqueza

Os ruídos vindos do exterior rufam ruidosamente nos ouvidos de Lyda.


Andaram naquilo o dia inteiro: Mães a chamar nomes de listas, a organizar
as mulheres em grupos, batidas de martelos, rangidos de serras, crianças a
berrar. O local transformou-se numa colmeia.
Estão a preparar-se para o seu ataque à Cúpula. Lyda não pode fazer
nada para as deter. Está sentada de pernas cruzadas em cima do seu
cobertor, sentindo-se inútil. Resiste ao impulso de espalmar as mãos nos
ouvidos e bater no chão com os pés. As Mães não explicaram o seu plano a
Lyda, mas ela sabe que está condenado.
A Mãe Hestra entra na sala. Ergue-se como um pilar ao lado do catre
número nove, olhando para Lyda. Syden tosse, como para lhe chamar a
atenção, mas a jovem não consegue olhar para eles. Está demasiado
perturbada.
— Foi fiel à sua palavra? — pergunta Lyda, por fim. — Procurou-os?
Pressia, Bradwell, El Capitan e Helmud, é deles que ela precisa agora.
A Mãe Hestra replica:
— Eles foram-se embora.
— Embora?— Lyda levanta os olhos para a Mãe Hestra. — Para onde?
— Nenhum dos nossos espiões no posto avançado sabe, mas foram
para longe. Além dos nossos próprios limites. Mais longe do que qualquer
pessoa de que nós tenhamos conhecimento.
— Vão ser mortos nesses ermos.
— O que quer que os tenha levado a partir deve ser importante e valer
o risco.
Lyda está cansada de ver pessoas arriscar a vida por coisas
importantes, Partridge desapareceu. Illia morreu. E agora os outros
partiram. Ela está sozinha.
— E quanto à Wilda?
— Quem?
— Uma miúda. Nada mais do que uma rapariguinha. A que eles
tornaram Pura.
— Agora há muitos como ela.
— Ela foi com eles?
— Não.
— E ela está bem?
— Nenhuma das crianças Purificadas está bem, Lyda. E foram os
Mortes que lhes fizeram isso. Estão a apagar-se. É mais uma razão para nós
lutarmos.
Lyda abana a cabeça.
— Que tipo de pessoa era no Antes? — pergunta ela à Mãe Hestra.
— Lembra-se de ser essa pessoa?
— Era escritora.
— Escritora? O que escrevia?
— Escrevia dois tipos de coisas: as que o governo permitia e as que o
governo não permitia.
— ...Os cães ladravam alto. Era quase noite... Escreveu isso?
A Mãe Hestra faz um sinal afirmativo.
— Era acerca da minha irmã, que tinha tentado fugir. Vivia para lá das
Terras Derretidas. Não levava uma vida dupla, como eu: uma para o
governo, outra, escondida, para mim própria. Fazia parte da resistência.
Eles encontraram-na. Largaram cães atrás dela.
— Sinto muito — diz Lyda. — Como...
— Como é que me ficou queimado no rosto?
Lyda acena com a cabeça.
— Estava a levantar a página que tinha escrito à luz da janela. O
branco do papel refletiu a luz. O preto da tinta absorveu e queimou as
palavras na minha pele. Eu estava a viver uma mentira. Nunca contaria a
ninguém o que tinha acontecido à minha irmã. Ia escrevê-lo e guardá-lo
numa gaveta. E agora vivo com esse pecado de cobardia no meu rosto para
sempre.
Lyda baixa o olhar para as mãos. Agora têm calos e esfoladelas. Ela
não quer continuar a ser Pura e agora, por causa do bebé, já não o é e sente-
se bem por isso.
— Os teus amigos — diz a Mãe Hestra — levaram-nos a coisas
importantes. O posto avançado tem andado a trabalhar arduamente.
Descobrimos o que eles estavam a fazer, depois entrámos e apoderámo-nos
do material. Queres ver?
Lyda suspira e olha. Parte dela quer ficar a olhar para a parede,
particularmente para uma mancha de água que se assemelha um pouco a
uma cabeça de urso, até o barulho se desvanecer e tudo estar terminado.
Acabado. Mas não pode.
— Mostre-me.
A Mãe Hestra mete a mão no seu saco de caça, acastanhado devido ao
sangue seco, e tira um pedaço de metal preto e duro.
— O que é isso?
— Bem, era uma aranha robótica enviada pela Cúpula para nos matar.
Mas agora é uma granada que nós vamos usar para os matar a eles.
— A Cúpula resistiu às Detonações. Acham mesmo que granadas
artesanais vão fazer diferença?
— Encontrámos mais uma coisa — diz a Mãe Hestra. — Precisamente
aquilo de que mais precisamos, em termos táticos. Isto fará toda a diferença.
— O quê? — Lyda não pode imaginar o que pode fazer qualquer
diferença numa batalha contra a Cúpula.
Desta vez, é Syden que mete a mão no saco de caça da mãe. Tira dois
bocados achatados e acinzentados de papel grosso. Um deles é colorido de
um lado, com a impressão desbotada de um anúncio publicitário. Ela
reconhece-o imediatamente. O cartaz com os dizeres «Arranje a sua casa
com todo o esmero!», que ela tirara do acrílico partido na carruagem de
metro. Syden estende-os a Lyda. Ela pega-lhes e desdobra-os na cama,
passando as mãos sobre os seus próprios desenhos da Academia feminina e
do centro de reabilitação, e os de Partridge representando o interior da
Cúpula, piso sobre piso, em requintado pormenor.
— Os nossos mapas. — Ela pensa em como estivera deitada de bruços
no chão da carruagem, à frente de Partridge, na maneira como ele se
adiantara sobre os mapas, apoiado nos cotovelos, e a beijara. Leva a mão
aos lábios. — Partridge.
— Sim, Partridge. O Morte — diz a Mãe Hestra. — Ele fez um bom
trabalho.
Lyda e Partridge tinham estado a falar acerca do Natal. Ela contara-lhe
do seu pai, que uma vez lhe oferecera um globo de neve e como ela tinha
percebido que era uma rapariga presa no globo. Ele contara-lhe os seus
natais no apartamento dos Hollenback. Prometera-lhe um presente: um
floco de neve de papel. E perguntara-lhe se isso era quanto bastava para a
fazer feliz, ao que ela respondera sim, mas acrescentara, e isto, e tu.
— Partridge marcou o caminho por onde saiu e também, talvez, o
ponto onde tu foste posta fora: os pontos fracos — prossegue a Mãe Hestra.
Fraqueza, como não ser capaz de enterrar o passado. Fraqueza, como
não renunciar à esperança quando se sabe que se deveria fazê-lo. Lyda
pestaneja, deixando cair lágrimas num dos mapas, depois seca os olhos.
— As granadas — diz a Mãe Hestra — devem ser lançadas nos pontos
fracos.
Lyda fita-a.
— Não — afirma. Equipadas com os mapas e as granadas, as Mães
conseguirão de facto fazer algum dano real? A Cúpula é uma fortaleza, sim,
mas, com a sua fuga, Partridge provara que até as fortalezas têm buracos.
Os mapas não bastam para derrubar a Cúpula, mas podem bastar para
alguém entrar — armado — e perseguir Partridge, como a Nossa Boa Mãe
jurou, e matá-lo.
Lyda dobra freneticamente os mapas e segura-os nos braços.
— Eles não estão corretos. Estão falsificados. Ele estava a enganar-
vos.
— A sério? — duvida a Mãe Hestra.
— Ele é um Morte. Não se pode confiar nele.
A Mãe Hestra agarra no pulso de Lyda.
— Não faças isso. Eu sei o que estás a fazer.
— Ensinou-me a nunca confiar num Morte!
A Mãe Hestra responde enfaticamente:
— Eu sei o que os Mortes fazem quando conseguem entrar na cabeça
de uma mulher. Para de tentar salvá-lo. Estes são os pontos fracos!
A Mãe Hestra prende o pulso de Lyda num torno de aço. Dá-lhe um
puxão brusco no braço e os mapas caem ao chão. Os mapas que ela ajudou
Partridge a fazer podem permitir-lhes chegar até ele — e matá-lo.
— Pontos fracos — sussurra Lyda.
Capítulo 64

El Capitan
Turvo

Estão a voar há dois dias e uma noite, e agora está a escurecer de novo.
Os olhos de El Capitan estão turvos de exaustão e os seus nervos sofrem
descargas irregulares de adrenalina. Helmud dormiu e acordou, e dormiu
outra vez. El Capitan acorda-o com um safanão. Estão a aproximar-se. Abre
brevemente os selos quase herméticos de vácuo dos três reservatórios,
permitindo uma ligeira entrada de ar para reduzir a altitude. Abaixo deles já
não está o oceano vítreo e interminável; um foco de luz por baixo do nariz
do dirigível revela que estão a deslizar sobre contornos escuros de colinas,
vales, cristas rochosas, lagos escuros e cidades destruídas, trechos de casas
e edifícios arruinados.
— Vês aquilo, Helmud? Um país diferente. Nunca pensaste que verias
um país diferente, pois não?
— Pensaste? — pergunta Helmud.
— Não, não pensei — diz El Capitan.
A consola de navegação disponibiliza um mapa topográfico, mas é
inútil. As Detonações alteraram a terra. El Capitan terá de aterrar em breve.
— Quanto falta? — pergunta ele a Fignan.
Fignan acende-se.
— Vinte e sete mil e quinhentos metros. Para leste.
— Muito bem — diz El Capitan. — Vamos começar a procurar um
trecho de terra plana.
O dirigível oscila bruscamente, empurrando El Capitan para trás, como
se Helmud estivesse a puxá-lo com força.
— Que diabo foi isto? — pergunta ele, com o coração a acelerar-lhe no
peito.
Fignan emite um sinal sonoro, sem saber o que fazer.
— Vinte e cinco mil e setecentos metros! — anuncia, como se isso
ajudasse.
O dirigível estabiliza e El Capitan suspira.
— Pronto. Foi apenas uma falha. Está tudo bem agora.
Mas não está. Acontece mais uma vez, de forma mais acentuada. El
Capitan põe-se em pé. A traseira do dirigível aderna, o nariz empina.
Helmud encolhe-se nas costas do irmão.
— Jesus, procura a parte do manual relativa a emergências! Achas que
é qualquer coisa no bucky da ré? — pergunta El Capitan a Fignan.
— Em caso de emergência — diz Fignan —, em caso de emergência.
Em caso de falha de motor no bucky da ré... — Estará a virar as páginas do
manual? As luzes da caixa negra estão todas acesas.
— Verificar o ecrã de navegação.
El Capitan senta-se de novo e passa os olhos pela consola. Uma luz
vermelha pisca num esboço da estrutura básica do dirigível, indicando uma
fuga capilar. Ele ativa as bombas no reservatório avariado, expelindo o ar
tão depressa como entra. A luz vermelha continua a piscar, mas a fissura é
pequena, contida. Desde que a vá monitorizando e mantendo o nível do ar,
o dirigível deve aguentar-se até ser possível aterrar.
— Tenho de o pousar.
— Pousá-lo! — diz Helmud.
O dirigível abranda outra vez. O bucky da ré está a admitir mais ar. O
aparelho arrasta-se. Aderna para trás.
— Que raio se passa aí dentro? — grita Bradwell.
— Uma pequena fuga. Está a entrar ar!
De repente, Bradwell avoluma-se à entrada da porta.
— Uma pequena fuga? O que significa isso?
— Estamos bem. Vai sentar-te. Aperta o cinto.
O facto de não poder apertar o cinto, com Helmud às costas, não tinha
preocupado El Capitan durante a descolagem, mas agora não se importaria
de ter essa proteção.
— Precisas de ajuda! — afirma Bradwell. — Precisas de um copiloto.
— Já tenho o Fignan, para além de um copiloto permanente.
— Aponta para Helmud nas suas costas.
— Cap — diz Bradwell. — Deixa-me fazer alguma coisa...
— Não podes! — corta El Capitan. — Volta para o teu lugar. Isto é
uma ordem.
Bradwell volta para a cabina, a cambalear. El Capitan ouve-o falar com
Pressia. Bradwell estará a miná-lo nas suas costas?
El Capitan não quer aterrar mais longe do seu alvo do que o
estritamente indispensável. Estão a menos de vinte e quatro quilómetros,
mas cada quilómetro que tenham de fazer a pé pode estar a transbordar de
criaturas letais, pode ser intransitável. Tem de os deixar o mais perto
possível. O foco ilumina um estranho rebanho de criaturas a galope: Bestas,
Agrupados, Poeiras, ou algo completamente diferente? As criaturas
desaparecem num pequeno maciço de árvores.
O dirigível rola para um lado. El Capitan puxa com força para o lado
oposto, para o endireitar. Ouve-se um silvo, proveniente do bucky da ré, e o
ecrã de navegação mostra uma fissura nova, mais comprida.
— O quê? Porquê? Fignan! — grita El Capitan. — Talvez eu esteja a
sobrecarregar as bombas e haja demasiada pressão!
— Demasiada pressão nas bombas pode resultar em fendas,
especialmente se o dirigível tiver estado a viajar em velocidade de cruzeiro
a altitudes elevadas por períodos superiores a quarenta horas — informa
Fignan.
— Bolas! Por que não me disseste isso antes?
Fignan fica calado. As suas luzes baixam, como se ele estivesse a
exprimir culpa.
— Fica comigo, Fignan! És tudo o que eu tenho!
— És tudo o que eu tenho! — diz Helmud.
— Não te ponhas com ciúmes, Helmud! — grita El Capitan ao irmão.
Ouve-se o som de algo a rachar, um ruído alto e forte. Algo se partiu e
soltou. O dirigível abana de novo, com mais violência, atirando El Capitan
e Helmud para trás na cadeira.
— Cap! — grita Pressia. — O que se passa?
Deus, ele não quer falhar, não com Pressia ali, não com a vida dela nas
suas mãos.
— Vou aterrar! Estamos a deixar entrar demasiado ar.
Ele não tem alternativa senão puxar pelas bombas dos reservatórios
bons, na esperança de não perder altitude com demasiada rapidez e entrar
numa pirueta descontrolada. Põe-se em pé e olha para o mapa topográfico e
o terreno, vasto e volumoso, que desliza por baixo da aeronave.
À sua frente há um anel de vegetação e bosques verdejantes, para lá do
qual o terreno parece relativamente plano. Mas não lhe parece que consiga
lá chegar; no entanto, há um prado antes da faixa de vegetação, no qual ele
fixa a sua atenção. Fica apenas a cerca de catorze quilómetros do alvo.
— O vento sopra de noroeste! — diz El Capitan a Fignan.
— Como faço para aterrar esta coisa?
— É melhor virar a aeronave contra o vento antes de pousar.
— Certo, muito bem. — El Capitan vira o nariz na direção do vento e
aponta ao centro de um campo. — Seria agradável ter uma equipa de
aterragem à mão.
Passa sobre uma colina e, quando chega à zona plana, começa a pairar,
com o nariz diretamente contra o vento e as hélices a propulsionar no
sentido contrário, de modo a manter o aparelho estável.
Mesmo assim, a cauda puxa-os para baixo. El Capitan alivia as bombas
dos outros dois reservatórios. O dirigível começa a descer rapidamente.
— Não muito depressa! Não muito depressa! — incita ele. Baixa os
pés providos de espigões sobre os quais devem pousar. — Com calma.
— Com calma! — diz Helmud.
Mas a parte de trás do dirigível está demasiado pesada. Estão a descer
demasiado depressa. El Capitan aplica pressão às bombas dos reservatórios
intactos, mas a pressão funciona como um jato, levantando abruptamente o
nariz.
— Segurem-se! — grita. — Preparem-se para aterrar!
Helmud agarra-se aos ombros do irmão, mas El Capitan não tem onde
se agarrar. Ainda está a tentar suavizar o impacto da aterragem, ligando as
hélices, cortando o reservatório de vante e puxando pelo reservatório
central.
— Preparem-se para aterrar — sussurra Helmud em voz rouca. —
Preparem-se para aterrar!
Quando tocam no solo, a cabeça de El Capitan embate violentamente
nas alavancas. Cai ao chão. Fica atordoado, um olho imediatamente turvo
por causa do sangue. O reservatório central ainda está a bombear, o que faz
com que o dirigível ainda tenha alguma flutuabilidade. É apanhado pelo
vento, que o atira de lado. O para-brisa bate em qualquer coisa, racha e
estilhaça-se. Estamos a capotar, pensa El Capitan.
É projetado contra o lado envidraçado do cockpit. Esforça-se para se
levantar, visto que o aparelho ainda tem vida.
— Preparem-se para aterrar! — grita Helmud. — Preparem-se para
aterrar!
— Está tudo bem, Helmud! Está tudo bem, irmão! — El Capitan estica
o braço e bate com o punho nos interruptores da bomba que ainda está a
trabalhar e das hélices. O dirigível solta um suspiro de alívio e oscila como
se estivesse no fundo do oceano. A consola de navegação é um ecrã em
branco.
Piscando sangue de um olho, El Capitan arrasta-se sobre os cotovelos
até ao para-brisa. O mundo do outro lado do vidro é escuro. Ele nota o
silêncio.
— Pressia! — chama, mas a sua voz está fraca.
E depois há apenas escuridão.
Capítulo 65

Pressia
Golpe Na Cabeça

Pressia está virada, quase de cabeça para baixo, presa ao banco pelo
cinto de segurança, que se enterra dolorosamente numa das suas coxas. Tem
o rosto encostado à vigia. Apenas vê lâminas de relva, espessas e aguçadas.
A gravidade fez rolar o dirigível, que jaz de lado, já sem flutuar.
A jovem mete a mão por baixo da camisola e verifica os frascos.
Intactos.
— Que diabo aconteceu? — pergunta Bradwell. Também está preso
pelo cinto de segurança, mas é suficientemente alto para estender a mão e
apoiar-se, fazendo força contra o lado da parede curva, acima da vigia.
— Aterragem de emergência. — Pressia encontra o fecho liso da fivela
do cinto, mas, se a abrir, pode cair desamparada.
Bradwell faz força com ambas as mãos contra o teto.
— Abre o meu cinto, depois eu ajudo-te com o teu.
Ela ajusta a mão ao fecho prateado flexível do cinto de segurança dele
e puxa-o para cima. A força dos braços de Bradwell amortece a queda. Ele
ergue-se, com os pés na parede lateral, passa o braço livre em volta da
cintura de Pressia, enquanto ela põe os dois braços à volta do pescoço dele.
Pressia gosta do facto de ele ser largo e forte, com músculos endurecidos
por anos de sobrevivência árdua. Bradwell desafivela o cinto de segurança e
ajuda-a a pôr-se em pé.
Correm para o cockpit, com o dirigível a balouçar sob o seu peso.
El Capitan está esparramado no chão, inconsciente, com os braços
abertos, um golpe na cabeça, o sangue a formar uma poça à sua volta como
um halo escuro. Está desmaiado.
Helmud levanta a cabeça do ombro de El Capitan.
— Preparem-se para aterrar — diz ele em voz baixa. — Preparem-se
para aterrar. Preparem-se para aterrar. — O seu rosto está vermelho e
molhado com o sangue do irmão.
— Jesus! — exclama Bradwell. — O que vamos fazer?
Fignan está ao lado deles.
— Aplicar gelo para reduzir o inchaço. Aplicar pressão para conter a
hemorragia.
Pressia ajoelha-se ao lado de El Capitan. Puxa a manga da camisola
para baixo, sobre a palma da mão, e cobre a ferida com ela.
— Arranja um cobertor — diz ela a Bradwell.
Ele desaparece rapidamente pela porta.
— Onde está a mala de primeiros socorros? — pergunta ela a Helmud.
— Preparem-se para aterrar — diz Helmud novamente, os olhos
arregalados e esquivos.
— Vai correr tudo bem, Helmud — diz Pressia.
Bradwell reaparece e entrega-lhe um cobertor. Ela dobra-o e
comprime-o sobre a ferida. O cobertor azul-marinho absorve rapidamente o
sangue, ficando um tom mais escuro.
— Vê-lhe os olhos — diz Pressia a Bradwell.
Este levanta uma das pálpebras de El Capitan.
— Que procuro? Dilatação?
— Sim — responde Pressia. — E esperemos que estejam ambos a
dilatar em sincronia.
Bradwell levanta as duas pálpebras ao mesmo tempo. Desloca-se para
trás e para frente, ora bloqueando a luz de Fignan, ora deixando-a passar.
— Não temos essa sorte.
— Ele está com um traumatismo craniano — conclui Pressia.
— Não podemos abandoná-lo.
— Não podemos abandonar a missão — afirma Bradwell.
— Preparem-se para aterrar — diz Helmud.
As pálpebras de El Capitan palpitam.
— Cap? — diz Pressia. — Estás bem? — Ela toca-lhe na face com o
seu punho da cabeça de boneca.
Ele pestaneja, erguendo os olhos para ela. Franze as pálpebras. Os seus
olhos focam e desfocam o rosto da jovem, até que se fixam nos olhos dela.
Ele tenta sussurrar qualquer coisa, mas a sua voz está demasiado rouca.
Pressia inclina-se para ele.
— O que é, Cap?
Ele levanta as mãos e segura-lhe suavemente no rosto.
— Pressia — sussurra, e depois beija-a. É um beijo breve, suave e
meigo nos seus lábios.
Pressia está estupefacta. Não sabe o que dizer. Dá por si a reter a
respiração. Tem os olhos muito abertos. Lembra-se de El Capitan a cantar a
canção de amor, e, mais tarde, na barragem, como tinham discutido todos
sobre a definição de romântico.
Ainda está comprimir o cobertor sobre o ferimento dele. Abana a
cabeça.
— Cap — diz ela. — Tu... — Beijaste-me. El Capitan beijou-a. Deve
ter sido um engano.
Então ele diz:
— Amo-te, Pressia Belze.
E não há qualquer engano a esse respeito.
As mãos dele tombam, os olhos desviam-se do rosto dela. As pálpebras
cerram-se. E, sem mais, ele está novamente inconsciente.
Helmud olha para ela e diz:
— Pressia? — Como se quisesse saber se ela corresponde ao amor de
El Capitan.
Ela tem vontade de chorar. Aquela canção de amor que ele estava a
cantar. Estaria a pensar nela? Sente-se aturdida. Pergunta-se há quanto
tempo ele se sentiria assim, há quanto tempo andava por aí com aquele
segredo. Agora compreende o olhar que ele lhe deitou quando ela estava
agarrada a Bradwell na ponte.
Bradwell levanta-se e dirige-se para a porta do cockpit.
— Eu não sabia — diz ele.
— Que queres dizer com isso? — Pressia é invadida por uma onda de
pânico. Bradwell estará a falar acerca dela e El Capitan? Julgará que havia
alguma coisa entre eles? — Não há nada que saber.
Bradwell dá um murro em qualquer coisa. Pressia ouve um baque
súbito. O dirigível oscila por um segundo. Ele estará com ciúmes? Ou
apenas zangado por não saber alguma coisa — ainda que não houvesse
nada para saber?
— Não estamos a raciocinar direito! — exclama Pressia. — Nenhum
de nós! Ele não estava a falar a sério. Ele...
— Ele estava a falar a sério — afirma Bradwell. — Eu tenho obrigação
de saber. Há muito que quero dizer aquelas palavras. E agora ele vem e di-
las?
— Ele apanhou uma pancada na cabeça! — diz Pressia, depois
interrompe-se, revendo o que Bradwell acabou de dizer. — Tu querias dizer
aquelas palavras?
Ele imobiliza-se, de costas para ela. Respira fundo.
— Sim.
— Sim — diz Helmud, como se soubesse desde sempre.
Pressia olha para Helmud, olha para ele a sério pela primeira vez em
muito tempo. Tem vontade de lhe perguntar se ele sabia daquele segredo.
Helmud compreende muito mais do que deixa transparecer. Ele morde
ansiosamente o lábio inferior com a sua pequena fileira de dentes
superiores.
— O que vamos fazer? — pergunta Pressia a Bradwell. — Um de nós
tem de ir. Outro tem de ficar.
Bradwell não responde.
Ela levanta o cobertor. A hemorragia abrandou. A ferida está inchada,
mas não jorra sangue.
— Helmud — diz ela. — Põe a tua mão onde eu tenho a minha. —
Estende-lhe uma secção limpa do cobertor. Ele pega-lhe e ela carrega-lhe na
mão. — Aplica uma pressão constante.
Ele diz:
— Pressão.
Pressia levanta-se e dirige-se para Bradwell. Apenas vê as suas costas,
os pássaros a agitarem-se por baixo da camisa. Ele está a olhar para os nós
dos dedos, que deve ter esfolado. Há uma mossa na parede, uma sombra em
teia de aranha no forro. Pressia passa por ele, trepa pela porta e vai buscar
um saco de provisões: alimentos e água. Trá-los para o cockpit.
— Eu vou — diz ela. — Tu ficas.
Ele vira-se, abanando a cabeça.
— Não, não, não. Nem pensar nisso.
Ela mete-lhe o saco de provisões nos braços.
— É assim mesmo.
— Não deves ir sozinha, de maneira nenhuma.
— Esqueces que estou aqui, até certo ponto, por motivos egoístas.
— Não vais encontrar o teu pai, Pressia.
— Se tu fores e o encontrares em vez de mim, ou se descobrires algum
indício, um único mísero indício, da sua existência, eu nunca te perdoarei.
Esta viagem é minha.
— Não é apenas tua, Pressia. Walrond deixou aquela mensagem para
os meus pais antes de se matar, antes de eu encontrar os meus pais mortos a
tiro na cama.
É claro que foi ele que os encontrou. Ela simplesmente nunca tinha
percebido isso.
— Encontraste-os?
Ele olha para Helmud, a comprimir o cobertor na cabeça do irmão.
— Bradwell — sussurra ela.
— Era de manhã. Desci para o pequeno-almoço. Eles não estavam na
cozinha. Fui andando pela casa, a chamar por eles. Depois comecei a
correr... Abri a porta. E lá estavam eles.
— Tenho tanta pena...
— No princípio não percebi que estavam mortos. O sangue não parecia
sangue. Tinha secado. Mas quando me aproximei e toquei no braço da
minha mãe, estava hirto e frio. E vi o tom arroxeado da pele dela.
— Por que não me tinhas contado?
— Tive anos para superar isso.
— Não se consegue superar uma coisa dessas.
— Portanto também sou egoísta. Estou a fazer isto porque os meus pais
estão mortos. Willux mandou-os matar. Não vim apenas para fazer
companhia. Não faço isto apenas pelo bem maior.
— Bradwell — sussurra ela. — Eu é que vou seguir. E tu é que vais
ficar, porque o meu pai ainda está vivo. — É cruel, mas é a verdade.
Fignan manobra para passar pela porta do cockpit.
— Não podes deixar-me aqui com o Cap depois de ele te ter beijado,
depois do que ele te disse!
Estará a culpá-la? Achará que ela encorajou El Capitan, ou que tinha
um relacionamento com ele ao mesmo tempo que o tinha com Bradwell?
Pressia vira costas e encaminha-se, vacilante, ao longo das paredes do
dirigível até à porta de saída da cabina, agora quase completamente ao nível
do teto.
— Espera! — diz Bradwell. — Não! Não podes...
Ela usa os bancos como uma espécie de escadote para subir até à porta.
Faz girar a grande roda que a mantém trancada, depois deixa-a tombar para
o lado de fora, aberta.
— Vais mesmo fazer isso.
— Passa-me o Fignan. Vou precisar dele para ajudar a orientar-me.
Pressia apoia-se nos cotovelos, içando-se até lá acima e sentando-se
depois no flanco da gôndola do dirigível. Está escuro, apesar da luz do
dirigível que jorra da porta, do cockpit envidraçado, das vigias.
Bradwell passa as mãos pelo seu cabelo e esfrega rudemente as
cicatrizes que lhe marcam o rosto.
— Então vou sem o Fignan. É isso que queres?
Bradwell suspira. Pega em Fignan e entrega-lho através da porta da
cabina. Fignan acende um foco estreito que bruxuleia sobre o campo
circundante, as árvores distantes.
Ela desliza da gôndola para o chão.
Bradwell segue-a apressadamente. Pressia olha para ele, com o cabelo
despenteado, todo espetado à volta da cabeça, os ombros musculosos, os
olhos escuros e húmidos. Que pensará dela? Que pensará deles dois? Ele é
uma caixa preta, indecifrável.
Ela ainda sente o beijo de El Capitan nos seus lábios. Talvez o que
mais a tenha surpreendido foi o facto de ser tão terno. El Capitan não é do
tipo de fazer seja o que for com ternura. Ela não ama El Capitan, não como
ele a ama. Mas ela ama-o de alguma forma. Passaram por muita coisa.
Quando ela não tinha ninguém, ele ajudara-a. Salvara-a. E ela está bastante
segura de que o modificou, de algum modo elementar. Há tanta coisa entre
eles agora. Não é uma relação simples ou fácil. Como podia ser? Quando o
conhecera, ela tinha medo de que ele fosse matá-la.
Bradwell fita-a, expectante.
Ela põe-se à escuta, por um momento, do que possa andar lá por fora.
Está tudo em silêncio e, por qualquer razão, isso assusta-a ainda mais.
Diz a Bradwell:
— Estou a senti-lo agora mesmo.
— O quê?
Uma sensação de vertigem no estômago, o coração a rufar no seu peito
como se estivesse a cair, a cair.
— Não compreendo o que significamos um para o outro, nem tudo o
que passámos juntos. Mas... — Esfrega uma lágrima da face. — Sei que um
dia vou ter saudades, mesmo das partes brutais, mesmo do horror. Vou ter
saudades tuas — conclui, fitando-o —, neste momento, agora mesmo.
Ele olha para ela como se estivesse a memorizar o seu rosto.
— Eu vou conseguir lá chegar — diz ela.
— Eu quero que consigas voltar.
Capítulo 66

Partridge
Nebrasca

Os dias de Partridge e Iralene são rigorosamente planeados: um


piquenique junto aos campos de soja, uma visita ao planetário, aulas de
dança privadas com Mirth e DeWitt Standing, com quem aprendem a
dançar o chá-chá-chá, a rumba, o foxtrot. DeWitt vai contando alto,
elevando a voz acima da música arranhada. Mirth diz: «Queixos
levantados! Queixos levantados!», enquanto Beckley espera, com um
sorriso trocista.
E a conversa de circunstância não tem fim. Por vezes, ele fica furioso
sem razão nenhuma. Talvez seja apenas porque o seu pai alegadamente quer
que ele seja um líder, e ele está a empregar o seu tempo naquilo?
O pior de tudo é que ele não tem qualquer controlo. Se pede para fazer
outra coisa, conversar com amigos, por exemplo, ou ir ter com Glassings
para lhe pedir desculpa por Beckley lhe ter apontado uma arma, Iralene diz-
lhe que ele ainda está demasiado frágil.
— Só podes ter contacto com pessoas que tenham sido rigorosamente
examinadas quanto a vírus e doenças.
Às vezes, ele pergunta-se se não seria melhor estar inconsciente do que
ser arrastado de passeiozinho estúpido em passeiozinho estúpido. E nada
lhe desperta sequer uma pequena centelha de memória. A única coisa que
lhe volta continuamente à cabeça são as palavras que Iralene disse no
aquário: Não temos, não, Partridge. Não temos tempo.
Enquanto Iralene muda de sapatos depois de uma aula de dança, ele
pergunta-lhe o que quis dizer com aquilo.
— Nem me lembro de o ter dito, Partridge. Tu conheces-me. Às vezes
digo disparates!
— Não te conheço, não — replica ele. — É esse o problema.
Ela levanta os olhos para ele, sobressaltada, depois solta uma
gargalhadinha breve, mas quando o riso se desvanece, dá a impressão de
estar quase a chorar.
— Desculpa, Iralene. Não pretendia ferir os teus sentimentos.
— Ferir os meus sentimentos? De que estás a falar?
Desde o beijo no aquário, ela tem-se mostrado um pouco mais tensa.
Talvez esteja à espera que ele se apaixone por ela de novo. E ele está a
tentar. Deus sabe que está a tentar. Quer dizer, que espécie de cretino leva
uma pancada na cabeça e vai dizer a uma rapariga que já não a ama? Ele
não pode fazer-lhe isso.
No entanto, sente-se manipulado e impotente. Mais tarde, no banco de
trás do carrinho motorizado, inclina-se para a frente e diz a Beckley que
quer ir ver o seu pai. Já o disse muitas vezes e Beckley arranja sempre
desculpas. Desta vez, Partridge acrescenta:
— Deixa-me adivinhar, Beckley. Não posso ir ver o meu pai porque ele
tem uma série de reuniões consecutivas, ou um longo jantar com outros
líderes, ou uma apresentação para a qual precisa de se preparar?
Beckley não responde. Iralene dá-lhe uma palmadinha no joelho:
— Tenho a certeza de que ele vai chamar-te para uma visita em breve!
Como se Partridge estivesse magoado pela falta de atenção do seu pai.
Ele não está magoado. Está desconfiado.
E está exausto. Ainda lhe dói a cabeça. Às vezes, quando lhe fazem
perguntas, ele tem a sensação de estar a tentar ler os lábios dos seus
interlocutores porque não consegue ouvi-los bem; é como estivesse dentro
dos aquários com as belugas, a olhar para fora através de um painel de vidro
grosso. «Desculpe? Perdão. Como disse?»
Está cansado até aos ossos. Lembra-se de se sentir assim logo após as
Detonações, depois da morte da sua mãe. Arrastava-se de um lado para o
outro, demasiado pesado para se mexer. Abençoados, abençoados. Foi
nessa altura que a palavra se tornou tão prevalente. Somos abençoados por
termos entrado. Se se é abençoado, dificilmente se tem culpa de se ter
entrado quando outros ficaram de fora. Ser abençoado é algo que escapa ao
nosso controlo. Não foi culpa de ninguém: ser ou não abençoado fora, antes
das Detonações, uma qualidade oculta, algo enterrado na alma. Mas depois
tornara-se claro quem era abençoado e quem não o era. Tão claro, de facto,
que havia uma lista.
Aquilo significava que lhes era permitido sentir-se culpados. Culpados
de quê? Do amor de Deus? Das suas bênçãos?
Partridge devia sentir-se alegre. Todos deviam. Se assim não fosse,
estavam a desperdiçar as bênçãos de Deus. Ele tentara, mas a dor, não dita,
não expressa, apenas se tornava mais pesada. O sofrimento era físico. É isso
que esta sensação pós-coma lhe recorda: a fisicalidade do sofrimento.
Mas ele não tem qualquer motivo de desgosto. Não se lembra de a sua
vida jamais ter sido tão boa. Confessa a Iralene uma noite, contemplando a
cena da praia, que a sua vida lhe parece tão melhor que se torna quase
desconfortável.
— É como se tivesse sido metido num corpo que não é bem o meu.
— No corpo errado? Isso parece horrível! — Iralene olha fixamente
para ele. Ele está a tentar habituar-se ao facto de ela levar à letra tudo o que
ele diz.
— Está bem, pronto, não no corpo errado. É mais como quando pego
acidentalmente no blazer de outra pessoa, na Academia masculina, e me
fica demasiado apertado no tronco, ou muito curto nas mangas. Algo
errado, apenas.
— Isso é só porque tens de recuperar o que perdeste até este momento.
Ainda estás lá atrás e tens de trabalhar para chegar ao futuro, que é agora.
— Hum.
— Nada está errado. Vai começar a parecer-te certo quando se tornar
familiar, nada mais. Seja como for, de que tens de te queixar, afinal?
Aquilo lembra-lhe os abençoados e os não abençoados, os desgraçados
lá fora, a viver as suas existências condenadas. Como serão as suas vidas de
facto? Partridge massaja a parte de trás do pescoço e imagina o sabor a
terra, cinza. E a imaginação é tão real que quase parece uma memória.
***
Quando a Academia fecha para as férias de Natal, Partridge sugere um
passeio pelos terrenos da escola.
— Vá lá! — diz ele. — Podemos fazer pelo menos uma coisa que me
apetece?
— Está bem! — acede Iralene. — Se isso te faz feliz, vamos embora!
As portas para os dormitórios já estão fechadas à chave, mas Beckley
permite-lhes deslizar por uma janela aberta no piso inferior.
Partridge mostra a Iralene o seu antigo quarto, agora completamente
limpo, vazio. Fala-lhe de Hastings, da sua resmunguice, de como ele dizia
sempre «Não vou levar isso a peito», mas depois levava. Tem saudades de
Hastings.
— Ele era um matulão magro e desengonçado. Só queria divertir-se,
fazer porcaria. Vivia para esse tipo de coisas.
Iralene deambula pelo quarto, salta para cima do beliche inferior.
— Era o teu?
— Não — diz Partridge, apontando para a escada.
Iralene sorri, sobe a escada e deita-se no colchão nu, cruzando os
braços atrás da cabeça.
— Com que sonhavas aqui em cima?
Ele sonhava com raparigas como Iralene a entrar no seu quarto do
dormitório e a subir a escada para a sua cama, mas, nesse preciso momento,
ouve o estalido do sistema de ventilação. Regulam as temperaturas mesmo
quando não há lá ninguém. Vai até à janela.
— Com que sonhava? — Imagina as raparigas alinhadas no campo, lá
em baixo, fazendo os seus exercícios matinais. Uma rapariga vira a cabeça.
Olha diretamente para ele. Quem é ela? Como se chama? A mãe dela não
trabalha no centro de reabilitação? Ela cantará no coro?
— Mertz — diz ele.
— Como? — pergunta Iralene, nervosa.
— Nada — diz ele, levantando os olhos para ela. — Estava apenas a
tentar lembrar-me do nome de uma pessoa e veio-me à cabeça de repente.
Sabes como é.
Ela acena com a cabeça.
— Não consigo imaginar o Hastings a andar na linha nas Forças
Especiais. — Partridge dirige-se para o espelho onde Hastings costumava
tratar do cabelo. Lembra-se de o ver ali em pé, exatamente naquele sítio,
vestindo um fato. — O baile, não foi?
— Que tem o baile?
— O Hastings... só me lembro de ele me dar na cabeça por eu não estar
pronto. — Vira-se para Iralene. — E conheci-te depois do baile?
— Eu tinha lá ido com uma amiga. Nem toda a gente frequenta a
Academia, sabes.
— Eu sei, eu sei — diz ele com doçura. Não quer ferir-lhe os
sentimentos outra vez. A Academia é reservada aos jovens da elite. — Eu
não tinha um par? Não estava com ninguém?
Iralene fita-o com tristeza. Na verdade, é quase como se fosse começar
a chorar. Com Iralene, é assim. Partridge nunca sabe o que irá perturbá-la.
Beckley assobia. Partridge vai à janela e olha para fora. Beckley está a
acenar-lhes que desçam.
— O Beckley — diz Partridge. — É como uma mãe-galinha.
Iralene desce a escada até meio e diz:
— Apanha-me!
Partridge aproxima-se. Ela estende os braços e põe-nos à volta do seu
pescoço. Ele segura-a no ar por um momento, depois pousa-a no chão, mas
ela não o larga. É o tipo de abraço que se dá a alguém a quem se está a dizer
adeus, alguém que poderemos não voltar a ver.
— Iralene? — sussurra ele. — Estás bem?
— Precisamos de estar sozinhos. Tem de ser. Eu consigo despistá-lo —
sussurra Iralene. — Sei como despistar toda a gente. Tenho um plano.
E tem mesmo.
Mais tarde, nessa noite, Iralene e Partridge estão no quarto dele. Ele
pergunta-se o que poderá acontecer a seguir. Não voltaram a beijar-se desde
aquela vez no aquário. Não lhe tinha despertado qualquer memória e não
fora o beijo mais emocionante do mundo, mas, bem, ele não deveria, pelo
menos, tentar de novo? Iralene é muito bonita. Ele estivera apaixonado por
ela a dada altura.
Mas assim que pondera as possibilidades, é invadido por uma vaga de
exaustão. Sinceramente, o que lhe apetece é meter-se na cama, sozinho,
fechar os olhos e deixar todo aquele dia desvanecer-se nas profundezas do
seu cérebro. Quase diz Quero ir para casa. Por que tem tantas saudades de
casa?
Mas agora Iralene irradia urgência. Aquele é o único sítio onde podem
escapar a Beckley, mas aquilo parece estranho. Partridge tem consciência
das câmaras que os observam dos cantos, mas, apesar disso, nunca tinha
sido deixado sozinho com uma rapariga antes. Todas as interações mistas na
Academia eram vigiadas por paus de cabeleira mal arranjados, à espreita
pelos cantos. As câmaras servem perfeitamente, mas não há nada como a
presença física de um professor de cálculo ofegante para estragar o
ambiente.
Iralene abre o globo. Introduz um código, e, enquanto o portátil cintila
através dos espaços entre os seus dedos em concha, o quarto começa a
mudar. As cortinas ondulantes, sopradas pela brisa automatizada do mar,
passam a ostentar um padrão amarelo-escuro estampado com flores azuis.
Pendem grossas e lisas aos lados das janelas bem fechadas. A cama
transforma-se numa antiga peça de dossel, com uma colcha de retalhos
dobrada aos pés. Há também um velho guarda-fatos torto e uma mesa de
cabeceira periclitante.
— O que aconteceu à casa de praia? — pergunta Partridge.
— Fizeste-me prometer que te traria outra vez a este sítio.
— A sério? Que sítio é este?
— Uma antiga quinta. Algures no Nebrasca, acho eu.
— Eu queria voltar ao Nebrasca? — admira-se Partridge. Não faz
sentido. — Tens a certeza de que eu me referia a este sítio? Não estava a
brincar? Quando te fiz prometer isso?
Ainda com o globo nas mãos, ela cruza os braços como se tivesse frio e
roda sobre si própria, num círculo lento.
— Fizeste, está bem? — Está agitada. Dirige-se para ele, pousa a mão
na sua camisa, fá-la escorregar para baixo do colarinho. — Acho que
devíamos ficar sozinhos. — Volta os olhos rapidamente para os cantos do
quarto, onde as câmaras estão empoleiradas.
Ele pousa a mão sobre a dela. Ela agarra a mão dele, aperta-a.
— Não sei.
— Confias em mim? — pergunta ela.
É uma pergunta carregada de significado. Há algo na voz de Iralene
que deixa claro que ela quer que ele pondere a resposta com muito cuidado.
Ele olha-a nos olhos, de um verde vibrante. Não teve realmente grande
contacto com raparigas, nem mesmo com a sua própria mãe. No entanto,
Iralene não é como as outras raparigas. É doce e recatada, mas dura como
aço. Estará a segui-lo ou a conduzi-lo em segredo? É capaz de muito mais
do que deixa transparecer, mas, apesar disso, ele tem a certeza de que ela é
boa.
— Sim — responde Partridge —, confio em ti.
Iralene começa a trabalhar novamente o globo. Prime loucamente o
ecrã. O quarto altera-se e turbilhona. As luzes vacilam. Por fim, a decoração
regressa à casa rústica, mas as luzes estão fracas, as câmaras emitem
pequenos estalidos derrotados e o globo suspira.
— Sobrecarreguei o sistema. Tens algum tempo. Este sítio significa
alguma coisa para ti? — indaga Iralene.
— Não.
— Pensa bem.
— Está bem — diz ele, acenando com a cabeça para o quarto, em toda
a sua simplicidade. — Estou a pensar e... não. Não significa nada.
Ela suspira.
— Tens de encontrar o que escondeste aqui!
— O que escondi aqui?
— Tenho a certeza de que escondeste qualquer coisa para ti próprio,
para encontrares mais tarde. Por que outra razão me pedirias para cá voltar?
— Não estás a fazer sentido.
Ela puxa os cobertores, depois põe-se de gatas e espreita para baixo da
cama.
— Achas que isto é fácil para mim? Passei quase toda a minha vida à
espera da possibilidade de te apaixonares por mim. Mas não posso fazê-lo,
não assim. — Põe-se em pé, agora a chorar, atira com as almofadas, corre
as mãos pelo parapeito da janela.
Partridge aproxima-se e segura-a pelos ombros.
— Iralene, acalma-te. Fala comigo.
Ela engole em seco e pisca os olhos, sacudindo as lágrimas.
— Na última noite antes de te limparem a memória... escondeste algo
aqui, para saberes a verdade.
— Limparam a minha memória? — Partridge sente-se nauseado. —
Julgava que tinhas dito que...
— Não, não houve nenhum acidente.
Ele pensa no seu beijo. Olha em redor para o quarto.
— Alguma vez nós...
Ela abana a cabeça.
— Nunca estiveste apaixonado por mim.
Ele massaja a parte de trás do pescoço, sentindo o plástico rígido do
seu molde. Ergue a mão diante do rosto.
— E o meu dedo mindinho?
— Partridge — diz ela —, se quisesses esconder alguma coisa aqui,
onde a porias?
— Bem, eu não saberia que ia procurá-la, pois não? — Está confuso,
mas também irritado. — Mentiste-me este tempo todo!
— Estou a dizer a verdade agora. Tens de pensar! Não há tempo!
Partridge anda à volta do quarto, sentindo-se tonto.
— Nada faz sentido. Não sei o que é verdade e o que é... — Olha para
Iralene. — O que queres dizer com isso de teres esperado toda a vida que
me apaixonasse por ti?
Iralene agarra-se ao pilar da cama, as veias azuis salientes na parte de
dentro do seu pulso esguio. Está a chorar.
Partridge dirige-se para ela.
— Diz-me o que se passa.
— Estou a prescindir de tudo — diz ela. — Tens uma hipótese,
Partridge. Tens uma hipótese de impedir que isso aconteça.
— O quê?
— Ele vai matar-te.
— Quem é que vai matar-me?
— O teu pai.
— Porque dizes isso? Ele começou justamente a gostar de mim...
Ela crispa as mãos na parte da frente da camisa dele.
— Tu podes detê-lo — afirma. — Estou a dar-te essa hipótese. Tens de
a aproveitar.
— Iralene...
Ela larga-o e vai até à parede oposta. Encosta-se a ela.
— Estou a renunciar a tudo por ti, Partridge.
— Porquê?
Iralene olha para ele e sorri através das lágrimas.
— Contigo — diz ela — senti-me realmente mais feliz do que jamais
fora na vida. Sempre quis saber como era. A felicidade. E senti-a contigo.
— Iralene. — Há tantas outras coisas que ele quer perguntar-lhe.
Ela escorrega ao longo da parede e senta-se no chão, com o vestido
amarrotado em seu redor. Puxa os joelhos contra o peito e esconde os olhos.
— Procura — diz ela, com a voz abafada e rouca. — Não tens muito
tempo.
Capítulo 67

Pressia
Criação De Animais

Pressia começou por correr, mas era impossível manter um tal ritmo.
Assim, opta por correr apenas nas descidas, quando tem a inércia a seu
favor, como agora. Está escuro. Ela segura Fignan debaixo do braço. Ele
projeta um cone de luz que percorre as árvores — atrofiadas, retorcida e
corcundas —, depois volta a iluminar o caminho à sua frente. O solo está
coberto de hera densa, que reveste pedras, troncos de árvores, o chão da
floresta. Ela apanha uma área coberta de folhas e as suas botas perdem a
aderência. Pressia escorrega, cambaleia, firma-se agarrada a um galho.
Depois recomeça a correr, esquivando-se a ramos, saltando sobre buracos e
raízes salientes. Sabe que está a correr contra o tempo. A lama exerce um
efeito de sucção nos sulcos das solas das suas botas, fazendo-a perder
velocidade.
Fignan mantém-na no bom caminho, acendendo um mapa com
estradas antigas e pontos de referência. E vai contando as horas que faltam
para o solstício. Restam sete horas e quarenta e dois minutos. Há uma
hipótese de chegar a tempo, mas Pressia não pensa no destino — apenas
num passo de cada vez.
Sente a falta de Bradwell, de El Capitan e de Helmud. Ainda está a
pensar no beijo de El Capitan, no seu, Amo-te, Pressia Belze, e em
Bradwell, a vê-la partir. Quanto mais pensa neles, mais segura se sente de
que precisa de estar ali sem eles, sozinha.
Já avistou algumas aves, ou serão morcegos? Parecem atrofiadas e
dardejam mais do que deslizam. Pequenos roedores correm entre a
vegetação rasteira. São criaturas pervertidas, deformadas de maneiras que
ela aprendeu a esperar: fusões, pele queimada, híbridos.
Mas aqui a atmosfera não está tão turva e escurecida pelas cinzas, o
que dá a impressão de que o mundo é maior, simplesmente porque consegue
ver mais daquilo que a rodeia. A vegetação também recuperou com mais
rapidez.
Um galho retorcido engancha-se na perna das calças de Pressia, com
tanta força que a faz cair. Ela ampara a queda com o cotovelo, mas o
impacto atira Fignan contra as suas costelas, cortando-lhe a respiração.
Pressia liberta-se com um puxão, rasgando a perna das calças. A sua
pele foi picada. Toca no ponto dorido e encontra um vergão. Quando tira a
mão, vê os dedos manchados de sangue.
— Estás bem? — pergunta a Fignan.
A caixa negra acende e apaga as luzes.
— Um espinho desagradável — comenta ela.
Levanta-se, com o vergão a pulsar, e segura Fignan com mais força.
Começa a correr de novo, mas o solo está cada vez mais escorregadio. É
obrigada a abrandar e a avançar apoiando-se de árvore em árvore, para não
cair.
A terra parece mover-se por baixo dos seus pés, como se a hera
estivesse viva. Pressia prossegue, o mais depressa que pode, mas então algo
se enrola no seu tornozelo. Cai de novo. Uma gavinha enrosca-se no seu
braço. Ela tenta libertar-se, mas há mais espinhos. Perfuram-lhe
rapidamente a pele. O sangue brota, goteja ao longo do braço. Outra
gavinha entrelaça-lhe a perna.
— Fignan! — Uma gavinha circunda o seu bicípite, serpenteia por
cima do ombro, depois por trás do pescoço e atravessa a bochecha em
direção à sua boca. Pressia sacode a cabeça e debate-se, arrancando
algumas gavinhas. Mas as trepadeiras continuam a brotar da terra, com as
gavinhas soltas a baloiçar, e os galhos das plantas resistem. Pressia e
Fignan estão amarrados ao solo. Está presa. Entra em pânico:
— Fignan! Não consigo mexer-me!
Apenas os seus olhos estão desvairados. Não quer morrer ali.
Decompor-se-ia no chão. Bradwell, El Capitan e Helmud esperariam por
ela, sem nunca saber o que lhe acontecera.
Ouve Fignan a zumbir, depois um odor a pinho enche o ar.
— Tens uma faca? — grita ela.
A caixa negra apita.
Pressia sente-o a serrar trepadeiras. Corta uma, que fica flácida e tomba
em espiral da sua perna.
Fignan desloca-se para a gavinha enrolada no seu braço bom, serra-a.
Pressia consegue então puxar a sua própria faca do cinto, e ambos
trabalham. Ela sente uma nova gavinha envolver o tornozelo da sua bota e
apertar rapidamente o couro. Vira-se e corta-a.
Ergue-se sobre os joelhos, depois está quase de pé. Uma gavinha
rápida estala no ar, como um chicote, e circunda-lhe o pulso, no ponto onde
a cabeça da boneca encontra a sua pele. Pressia imagina a gavinha a
estrangular a boneca e essa imagem paralisa-a por um momento. Mas
depois enfia a faca entre a cabeça da boneca e a gavinha e liberta-se. Fignan
corta a última gavinha que a prende ao chão e Pressia afasta-se, tropeçando.
A hera recua, sibilando.
Pressia agarra em Fignan e começa a correr o mais depressa que pode.
A luz dele ressalta no terreno à sua frente até a jovem avistar o limite da
floresta. Estuga ainda mais o passo. Mesmo depois de emergir das árvores,
continua a correr até dar por si no meio de um campo.
Há uma faixa de terra e as volumosas ruínas de um edifício ao longe,
muros de ambos os lados a desfazer-se em nada. A hera rastejou sobre o
que resta dos muros e do edifício, cobrindo tudo, talvez a devorá-lo.
Com os pulmões ansiosos por ar, Pressia pousa Fignan no chão,
descansa as mãos nos joelhos e tenta recuperar o fôlego.
— Perdemos tempo — diz ela. — Quanto nos resta?
— Cinco horas e doze minutos.
— Ainda podemos conseguir — afirma Pressia, mas sente-se fraca. As
suas roupas estão cobertas de pequenos rasgões e pontilhadas do sangue que
lhe escorre da pele. Cada picada de um espinho parece um vergão doloroso.
— Só preciso de um segundo — diz ela. Começa a tremer, tem a
sensação de que a sua cabeça está cheia de abelhas. A sua vista turva-se e,
ao tentar focá-la, repara num pequeno punhado de trevos com folhas
cerosas. Vira Fignan de modo que a luz incida nas folhas. A cinza que
assentou na vegetação é fina e sedosa, tão leve que ainda se vê o verde das
folhas. Estas estão pontilhadas de insetos minúsculos, semelhantes a
pequenas carraças, mas escudados por cascas vermelhas-vivas e rijas.
Os insetos parecem possuir pinças dianteiras que funcionam como
braços e afastam a cinza, enquanto caminham aos estalidos por cima das
folhas, sobre as patas delicadas.
— Estão a limpar a cinza, abrindo pequenos carreiros? — pergunta ela
a Fignan. Mas não: parece que os bicharocos estão a comer a cinza. Os seus
movimentos são aerodinâmicos e deliberados. Os seus corpos são
simétricos, exatamente iguais uns aos outros. Pressia observa:
— E se foram criados para este fim? — Endireita-se, sentindo-se
gelada e doente.
Fignan apita.
— Se assim é, sobreviveram alguns irlandeses. Estão aqui, algures, e
são inteligentes.
Capítulo 68

El Capitan
Irmãos

Há algo na sua boca, a roçar-lhe nos lábios, cada vez com mais
insistência. Ele sacode o que quer que seja com uma palmada. Gotas de
água fria pulverizam-lhe o rosto. Ouve um tinido de metal a bater em metal.
Abre os olhos. Está deitado de lado, enroscado sobre si mesmo.
A sua cabeça. Levanta a mão e toca num penso de gaze sobre o que
parece uma ferida aberta no seu crânio. A dor é intensa e profunda: a sua
cabeça terá sido rachada à machadada?
Sente a respiração nervosa de Helmud no seu ouvido: fraca e rápida.
Não está sozinho. Nunca está sozinho.
Estão no dirigível.
O dirigível está em terra.
Jazem no nariz cónico do cockpit. A sua visão desfocada pousa em
erva e hera, achatadas do outro lado da grande janela como flores prensadas
dentro de um livro. Lembra-se dos velhos livros da sua avó; pegava-se num
e uma flor roxa deslizava das páginas, achatada e seca, e flutuava até ao
chão como um pequeno presente, um pequeno bilhete de amor secreto.
Ele beijou Pressia.
A recordação impulsiona-o bruscamente para frente. Levanta as mãos,
as palmas ásperas e calejadas, e fica a olhar para elas. Segurou o rosto dela
naquelas mãos. Os seus lábios tocaram-se. Por que foi ele beijá-la? Jesus.
Por que raio fez aquilo?
— Helmud — chama, com a voz rouca e seca. — Onde está ela?
— Onde está ela? — repete Helmud.
— Para com isso! — grita El Capitan. — Isto não é altura para essa
merda, Helmud. — Tenta levantar-se.
— Para com isso! — grita Helmud, passando-lhe os braços sobre os
ombros e puxando-o para trás. — Para com isso!
El Capitan olha em redor, para o cockpit. Helmud estava a tentar dar-
lhe de comer. Um copo de metal, pacotes de carne seca. A faca de Helmud.
Sente-se tonto. A sua mão desliza pelo vidro. No preciso momento em
que ia firmar-se nos pés, as botas derrapam debaixo do seu corpo e ele vai
parar outra vez ao chão. Nem sequer consegue levantar-se. As suas faces
ardem de vergonha. Bradwell estava lá quando ele beijara Pressia. Tem a
certeza. El Capitan pontapeia a parede de vidro com o calcanhar da bota. O
que pensará ela dele agora?
Ela partiu. Não que pudesse ficar. Como poderia? O tempo está a
contar. Ela tinha de ir. Mas Bradwell terá ido também?
— Será que nos abandonaram aqui à morte? — diz El Capitan.
— Raios partam, Helmud. Acharam que tu ias cuidar de mim?
— Cuidar de mim — diz Helmud.
El Capitan sabe que devia perguntar-se se eles já teriam chegado a
Newgrange, se teriam encontrado a fórmula, mas, em vez disso, pensa que
podem dizer o que quiserem um ao outro nas suas costas. Podem fazer troça
dele. Claro que ela não queria que ele a beijasse. Ele é um tipo que anda
com o irmão às costas, uma aberração entre aberrações.
Sabe por que a beijou. Estava orgulhoso de si mesmo por ter
conseguido pilotar aquele dirigível, orgulhoso até da sua aterragem de
emergência. E quando viu o seu rosto, ficou feliz por ela estar viva. Ama-a.
Disse-o em voz alta. Tem a certeza de que disse. E agora não há como
voltar atrás.
— Talvez morramos aqui, Helmud. Talvez seja pelo melhor. Helmud
torce-se para o lado. Está a vasculhar um saco.
— Pelo melhor.
— Ainda bem que o pai desistiu de mim antes de nos ver assim. Sabes,
Helmud? Sabes o que quero dizer? Estou contente por ele ter partido antes
de ver como somos doentes. Somos doentes. Olha para nós.
Sente a mão de Helmud deslizar sob o seu queixo, puxando-o para
cima. El Capitan senta-se, mas não se endireita completamente. Não tem
energia para isso. Encosta-se, apoiado a Helmud, que tem uma colher numa
mão e uma pequena lata de arroz na outra. Helmud passa os braços em
torno de El Capitan e leva a colher à boca do irmão.
— Olha para nós — diz ele.
El Capitan tem vontade de chorar. Helmud, ao fim de tantos anos, vai
cuidar dele. São os dois, ligados.
— Olha para nós — diz Helmud de novo, depois acrescenta uma
palavra: — Cap.
Não está a repetir algo. Não é apenas um eco. Disse alguma coisa. El
Capitan não sabe quando foi a última vez que ouviu Helmud dizer o seu
nome. Antes das Detonações? El Capitan olha por cima do ombro. Olha
para o rosto do irmão. É como se não o tivesse visto de perto há anos.
Helmud já não é apenas um miúdo. O seu rosto está deformado, mas é
robusto. Os seus olhos são fundos e agora enchem-se docemente de
lágrimas.
— Olha para nós — diz El Capitan. — Olha para nós.
— Olha para nós — diz Helmud.
Então El Capitan ouve passos acima deles: passos pesados. Uma
Besta? Vê a sua arma encostada à parede. Estende a mão para ela. A dor na
sua cabeça dispara pela espinha abaixo. Não consegue chegar à arma. Firma
a bota e faz força, empurrando-se, a si e a Helmud, para a frente.
Os passos aterram pesadamente no interior da aeronave, que abana um
pouco. Ouve alguém aproximar-se da porta do cockpit.
Os seus dedos roçam a coronha da espingarda. Faz força mais uma vez,
com uma careta de dor, pega na arma, vira-a, engatilha e aponta à porta,
onde um vulto grande se recorta na sombra.
— Jesus, Cap! Pousa isso. — É Bradwell.
— Estás cá — diz El Capitan.
— Sim, estou cá e a Pressia não. Partiu, sozinha — diz Bradwell,
levantando-se.
— Deixaste-a ir?
Bradwell fita-o, carrancudo, com o queixo dobrado sobre o peito.
— Estás a criticar-me? Não me parece que isso seja do teu interesse
neste momento.
— Isso parece uma ameaça.
— Uma ameaça — sussurra Helmud.
— Toma-o como um aviso amigável.
El Capitan não gosta nem de ameaças, nem de avisos, mas gosta do
facto de Bradwell parecer abalado. Talvez o beijo tenha tido mais efeito do
que ele julgava.
— Há quanto tempo partiu ela? — pergunta, sentando-se o mais direito
que pode.
— Está quase a amanhecer. Talvez ela lá esteja. Talvez não. Eu não
podia ir com ela e deixar-vos aqui sozinhos aos dois, pois não?
— Não foste com ela... por minha causa?
— Por minha causa? — diz Helmud, pousando a lata.
Bradwell faz um sinal afirmativo.
— Ela disse que eu tinha de ficar contigo e com Helmud, e que era ela
que tinha de ir.
— Devias ter ido — afirma El Capitan, zangado. — A última coisa que
quero é a Pressia por aí sozinha! Pode acontecer-lhe seja o que for! Não
conhecemos este terreno, as suas Bestas e Poeiras!
— Querias que te abandonasse aqui à morte? — replica Bradwell.
— Tu não farias o mesmo sacrifício? — diz El Capitan. — Por ela!
E, naquele momento, El Capitan tem a impressão de ter dito o
indizível: que ambos estão apaixonados por ela, que morreriam por ela.
Bradwell cruza os braços sobre o peito. As aves fazem uma restolhada
zangada nas suas costas.
— Suponho que temos isso em comum.
El Capitan não sabe o que dizer. Sente os braços fracos. Descansa a
arma no chão.
— Também sabemos que ela não deixaria qualquer um de nós
sacrificar o outro por ela — acrescenta Bradwell.
— Certo — diz El Capitan.
— Mas além disso — prossegue Bradwell —, eu não podia abandonar-
te aqui à morte... porque és como um irmão para mim. Ambos são.
— Ambos são — diz Helmud.
El Capitan está estupefacto. Sente-se culpado. Beijara Pressia. Mesmo
à frente de Bradwell. Dissera-lhe que a amava. Os irmãos não fazem isso
uns aos outros.
— Desculpa — diz ele.
— Porquê?

— Desculpa aquilo com a Pressia. Eu não queria... — começa El


Capitan.
— Cala a boca — corta Bradwell. Avança para El Capitan, ergue-se
acima do seu corpo. El Capitan prepara-se. É possível que Bradwell lhe
pontapeie as costelas. — Tens de comer qualquer coisa. — Acocora-se,
pega na lata. — E temos de pensar em como reparar os danos. Temos de
arranjar maneira de levar este dirigível para casa.
— Para casa — diz Helmud.
— Para casa — repete El Capitan, como se agora fosse ele a ecoar as
palavras do irmão.
— Vou voltar lá para fora — declara Bradwell, entregando a lata a
Helmud. — Acho que sei onde está a fissura no reservatório. Vou ver
melhor.
— É seguro lá fora? — pergunta El Capitan.
— Não sei ao certo. Até agora, tem estado sossegado.
— Sossegado não me agrada — diz El Capitan. — Põe-me os nervos
em franja.
— Em franja — diz Helmud.
Bradwell põe-se em pé.
— Quando voltar, quero isso tudo comido. — Acena com a cabeça a
Helmud. — Ouviste, Helmud? Certifica-te de que ele come tudo.
El Capitan sente Helmud dar um safanão com a cabeça. Um sinal
afirmativo.
Quando Bradwell se prepara par sair, El Capitan diz:
— Eu teria ficado para trás para te salvar.
Bradwell para.
— Obrigado.
— Obrigado — diz Helmud.
Bradwell rasteja para fora do cockpit, trepa pela cabina e iça-se para o
flanco da aeronave. El Capitan ouve as suas botas a raspar o chão, sente o
dirigível oscilar um pouco com o seu peso. Ouve os seus passos no
tejadilho, depois nada: Bradwell está no solo.
Helmud leva a colher aos lábios de El Capitan.
— Espera — diz El Capitan, mas, mal abre a boca, Helmud mete-lhe a
comida lá dentro. El Capitan mastiga obedientemente. A mão de Helmud
aparece de novo, empunhando a colher, pronta para a meter na boca do
irmão. Agora El Capitan é o mais fraco, Helmud o mais forte. E, por um
minuto, El Capitan deixa o seu peso cair sobre o irmão. Permite que o
irmão o ampare, lhe dê de comer, cuide dele. Quando foi a última vez que
alguém cuidou de El Capitan? Nunca mais, desde que a sua mãe foi levada
de casa. Quando ele tinha dores de cabeça, ela pegava num pano fresco,
colocava-o sobre os seus olhos e deixava-o comer gomas. El Capitan fecha
os olhos por um minuto. Deixa-se ir.
É então que ouve o grito — a voz de Bradwell.
— Cap! — O apelo é alto e curto, como se a sua boca tivesse sido
tapada. El Capitan atira-se para a frente, o crânio varado por uma dor
lancinante, insuportável.
— Bradwell! — grita. — Bradwell!
Nada.
Silêncio.
— Bradwell! — El Capitan ouve apenas a sua própria respiração e a de
Helmud, ambas rápidas e arquejantes.
— O Bradwell! — diz para Helmud. — Foi-se. Terá sido apanhado?
— Apanhado — diz Helmud.
El Capitan lança-se para diante.
— Não podemos deixá-lo ir.
— Deixá-lo ir — diz Helmud. — Deixá-lo ir.
— Não! — recusa El Capitan, pondo-se de gatas e começando a
rastejar para a porta. Os cotovelos cedem sob o seu peso. Cai de peito no
chão.
— Deixá-lo ir — diz Helmud.
— Não! — sussurra El Capitan. — Não.
Capítulo 69

Lyda
Chilreios e Grunhidos

Grupos de Mães estão a criar distrações nos Campos de Escombros e


nas Terras Derretidas, atraindo as Forças Especiais. Entretanto, Lyda e um
esquadrão de mulheres vão-se esgueirando entre as árvores, numa fila
comprida e serpenteante, a coberto da noite, com lanternas penduradas em
varas a baloiçar sobre as suas cabeças. Grupos de quatro transportam
pequenas catapultas aos ombros, como caixões de tamanho infantil. Lyda
vai no meio. Olha para o rosto das mulheres, distorcidos pelas sombras, e
pergunta-se se algumas delas terão sido escolhidas para penetrar na Cúpula
através dos pontos fracos. Irão matar Partridge com uma faca, um tiro, um
explosivo? Embora acredite que a Cúpula não será violada, as Mães
assustam-na. São fortes, engenhosas e violentas.
Gostaria de, pelo menos, tentar avisar Partridge. Ao mesmo tempo, o
impulso de fugir é inegavelmente forte. Talvez seja o bebé a crescer dentro
do seu corpo que lhe dá vontade de retroceder por onde vieram, ou talvez
seja a sua própria cobardia. Quando fora escoltada da Cúpula, tinha a
certeza de que seria violada, espancada, devorada; no princípio, quando não
encontrara ninguém, pusera-se a bater na porta blindada, na esperança de
que a deixassem entrar.
Agora estar na Cúpula assusta-a mais do que estar ali fora. Gosta do ar
fuliginoso, dos bosques húmidos, das brisas frescas. É uma terra viva, e ela
está viva nela.
Ninguém lhe explicou por que motivo ali está, e ela também não
perguntou à Mãe Hestra, que marcha à sua frente na fila. Talvez a Nossa
Boa Mãe queira que ela assista àquela violência, a título de castigo por ter
confiado em Partridge e o ter defendido na sua presença.
Receia vir a ser um sacrifício, como Wilda fora, um aviso. Mas não.
Ela representa as Mães, o abandono de que foram vítimas, e carrega o mais
precioso dos bens: um bebé. Não sabe ao certo como ou porquê, mas é um
simples peão. Foi assim que saiu da Cúpula e talvez seja assim que irá parar
outra vez lá dentro.
As ordens das Mães são transmitidas por meio de chilreios e
grunhidos. Foi dado um sinal qualquer. A fila estaca em uníssono. As
lanternas são baixadas. As Mães desfazem a formação e internam-se na
vegetação rasteira. A Mãe Hestra agarra na mão de Lyda. Deslocam-se
silenciosamente em direção à orla da floresta, que se abre para as Terras
Áridas. Agacham-se atrás de um arbusto espinhoso, com folhas cerosas.
Através das árvores atrofiadas, Lyda vê a Cúpula no cimo da colina,
fria e estéril, brilhantemente iluminada. As granadas terão algum impacto?
A sombra da Cúpula, as granadas mais parecem mosquitos do que armas.
— Isto só vai servir para irritar a Cúpula — diz Lyda, soltando-se da
mão da Mãe Hestra. — A Nossa Boa Mãe não percebe o poder de fogo que
eles têm?
— O que havemos de fazer? Esperar para sempre? Portarmo-nos bem e
estar sossegadas? — diz a Mãe Hestra.
— Isto não é a coisa certa a fazer.
— Já não confio no certo e no errado — sussurra a Mãe Hestra. —
Apenas sei fazer e não fazer. Às vezes, é preciso fazer.
Lyda sente Freedle mexer-se no seu bolso. Devia protegê-lo para
Pressia. Devia tê-lo deixado ficar, mas Freedle é o seu pequeno protetor
alado.
A líder esquadrinha as Terras Áridas. Lyda presume que vão sair por
elas de modo a aproximarem-se o mais possível da Cúpula com as
catapultas.
Naquele preciso momento, Partridge talvez esteja de novo na
Academia, a andar pelos corredores em direção ao quarto. Talvez tenha
acordado a meio da noite, por não conseguir dormir. Talvez esteja a pensar
nela. Aperta as mãos uma na outra, fecha os olhos e pensa em Partridge,
como se pudesse alertá-lo. Se estiverem ligados, verdadeiramente ligados,
talvez ele pressinta o seu aviso.
Então as Mães fazem rolar as catapultas pela encosta acima para as
Terras Áridas. Rápida e silenciosamente, carregam as granadas. Com o quê?
Simples maçãs. Punhos amputados. Por fim, soltam as travas de segurança.
Recuam e dizem:
— Pronto.
Outro grupo de Mães solta os bloqueios das molas. As catapultas
ejetam as granadas.
Ao aterrar, estas produzem um som que lembra passos. Pequenos tufos
de pó erguem-se na crista exterior da Cúpula. Algumas batem no
revestimento exterior rijo da construção.
E depois começam a detonar. Explosões potentes e concisas. Syden
tapa os ouvidos e grita.
— Sim, sim, sim — sussurra a Mãe Hestra orgulhosamente.
Quando começam, não param. A princípio, a Cúpula não estremece.
Elas estão a atingir o sistema de filtragem de ar em cheio, mas este
permanece selado.
Então abre-se uma porta, a mesma pela qual Lyda foi mandada sair.
Parece que passaram anos.
Um esquadrão de soldados das Forças Especiais irrompe em fila. São
altos, esguios, musculosos, e arrancam em alta velocidade pela colina
abaixo, na direção delas.
— Por que não estão a disparar? — pergunta a Mãe Hestra.
O coração de Lyda quase para de bater.
— Preferem aproximar-se e descobrir quem somos.
— Nós queremos que eles se aproximem.
— Que quer isso dizer?
— Queremos que algumas de nós sejam capturadas. Só podemos
causar verdadeiros danos se estivermos lá dentro. Tu sabes isso.
Lyda abana a cabeça.
— Isso é uma loucura!
As Mães continuam a carregar as catapultas. Apontam às Forças
Especiais. As granadas aterram, batendo no chão em torno dos soldados, e
explodem quase imediatamente. A maioria das Forças Especiais dispersa,
mas alguns mantêm a formação, como se tivessem sido programados e não
pudessem reagir à nova situação. Os seus corpos explodem, mas não de
uma vez só. As granadas não são suficientemente potentes para isso.
Rebentam peitos, rasgam pernas, arrancam braços.
Lyda não aguenta aquilo. A culpa é sua. Agarra-se à Mãe Hestra e
suplica:
— Faça-as parar! Eles são apenas rapazes da Academia! Não passam
de miúdos!
— Eles são Mortes, Lyda. Mortes!
Lyda percebe que ninguém vai pôr fim àquilo. As mães vão continuar a
matar os soldados, tirando os que saíram da formação, e os soldados que se
refugiaram na floresta vão fazer fogo sobre elas. Ouve um tiro de uma
espingarda de precisão. Uma das Mães que estão a trabalhar nas catapultas
fica flácida e tomba.
Lyda tem de parar com aquilo. Se correr para a Cúpula, as Mães
cessarão fogo. Ela está grávida. Pode ser abatida pelas Forças Especiais ou
capturada, mas se alguém tem de ser capturado, então deve ser ela. Tem de
ir ter com Partridge e avisá-lo. O bebé, está preocupada com o bebé, mas
não pode permitir que aquilo continue, sabendo que a culpa é sua.
Não é lógico. Não teve tempo para ordenar as ideias. Só sabe que tem
de fazer alguma coisa, como a Mãe Hestra disse há pouco. Assim, afasta-se
lentamente da Mãe Hestra, põe-se em pé e começa a correr.
A Mãe Hestra grita:
— Não, Lyda! Volta! — Depois brada: — Cessar fogo! Cessar fogo!
Lyda lembra-se de descer aquela colina a correr, quando saiu da
Cúpula, da sensação de não ter corrido desde criança, da liberdade que
sentira, e agora está a correr outra vez pelo mesmo caminho acima. As suas
pernas bombeiam o mais depressa que podem. Mantém os olhos fixos na
Cúpula.
Rebentam mais algumas granadas. Lyda ouve tiros no bosque.
Sabe que, se tiver a sorte de não levar um tiro, pode ir parar outra vez à
sua antiga cela, com a sua cama estreita, paredes brancas, relógio indigno
de confiança, tabuleiros de comida, pequenas pílulas, e a imagem da janela,
regulada automaticamente para imitar as mudanças de luz ao longo do dia.
O seu cabelo será novamente rapado, a tal ponto que ficará com o couro
cabeludo arranhado.
A sua mãe estará lá, com as faces a arder de vergonha.
E Partridge — ele também lá estará, não é verdade?
Finalmente, não há mais explosões, não há mais tiros. De facto, faz-se
um silêncio mortal. O único som é o do vento a assobiar nos seus ouvidos.
Tem a garganta seca, os pulmões frios. Fará mal correr quando se está
grávida? As mulheres nunca corriam na Academia.
Pouco mais ouve do que o bater dos seus pés no chão e as batidas
ruidosas do seu coração, mas vê algo pelo canto do olho: uma mancha
indistinta de movimento.
Não olhes, diz para consigo própria. Não olhes.
Ouve um estalido e o eco de um tinido. Sente uma picada aguda na
coxa. Olha para baixo e vê um espigão de metal fino, muito mais pequeno
do que as aranhas robóticas. Cravou-se na sua perna, perfurando as calças
de lã grossa. Ainda consegue dar mais alguns passos, mas depois o joelho
cede. Tem a perna dormente. Cai ao chão e rebola, ficando de costas. Vê os
ramos cinzentos de árvores raquíticas, o céu negro, e depois um rosto:
queixo pesado, olhos encovados, narinas que pulsam como guelras.
Lyda levanta a cabeça e olha para o espigão cravado na sua perna, a lã
molhada de sangue em torno da ferida. Podiam tê-la matado, mas não o
tinham feito. Ela lembra-se da fêmea de veado-anão na floresta, grávida,
com o pelo ensopado em sangue, ofegante, a tentar levantar-se mesmo
quando estava a morrer. A Mãe Hestra dissera-lhe que, por vezes, elas
davam à luz quando eram atacadas. Irá perder a gravidez?
— Não — sussurra e pousa a cabeça para trás.
De repente, sente-se muito cansada. Os seus olhos voltam-se
preguiçosamente para o céu, depois fecham-se. Ela sente alguém levantá-la,
ajeitá-la nos braços, começar a correr. Vão levá-la de novo... para casa.
Capítulo 70

Partridge
Avariado

Nada é o que ele julgava que era e, por alguma razão que não consegue
explicar, Partridge sente-se melhor por saber que aquela vida para a qual
acordou, e que era supostamente a sua vida, não passa de uma mentira, tão
falsa como aquela casa rústica do Nebrasca. O pai de Partridge não o ama.
Essa é a pura verdade. Ele sempre o soube. Sabe que devia rejeitar a ideia
de que o seu pai quer matá-lo. Isso, só por si, devia provar que Iralene está a
ter um colapso nervoso qualquer — agora está muito calada e quieta,
sentada com as costas apoiadas à parede —, mas, no fundo ele acredita
nela.
O seu pai diz que só quer que ele aproveite aqueles poucos dias para se
divertir, antes de começar a confiar-lhe um enorme poder. Mas o pai nunca
quis que Partridge se divertisse. E Ellery Willux nunca confiou poder a
ninguém em toda sua vida.
Ellery Willux; o nome completo, só por si, dá a volta ao estômago de
Partridge.
— O meu pai conheceu a tua mãe antes de o teu pai ter sido preso
— diz Partridge a Iralene. — Nunca tiveste qualquer problema com
isso? Nenhuma suspeita?
— Estás a insinuar que o teu pai teve algo a ver com a prisão do meu?
— Ela abana a cabeça. — Não! Não podes pensar assim! O teu pai era
casado, nessa altura, Partridge. Tenho a certeza de que a minha mãe nunca,
nunca se envolveria com um homem casado. O teu pai é o teu pai,
Partridge. Mas a minha mãe é boa, lá no fundo. É boa.
— Está bem, está bem! — Ele sabe que Iralene não é parva. Já deve ter
pensado no assunto milhares de vezes. Ela sabe. Por que outra razão
responderia com tanta raiva? Seja como for, não há tempo para aprofundar
essa linha de raciocínio. Iralene pode ter razão acerca de tudo aquilo. Se a
sua memória foi eliminada, então ele sabe algumas verdades, a um nível
instintivo. E isso dá-lhe uma confiança que não possuía antes. Algo está a
despertar. Não tem muito tempo.
Pergunta a si próprio: como se pode esconder algo para se encontrar
mais tarde, tendo consciência de que não se vai sequer saber que se deve
procurar? Seria preciso escondê-lo num sítio onde se saiba que se vai
encontrá-lo — por acidente.
Percorre rapidamente o quarto, passando os olhos pelas tábuas do
soalho, pela cabeceira da cama, pela cruz na parede. Abre o guarda-fatos de
repelão, na esperança de ter criado um bilhete que possa cair ao chão. Puxa
a pequena gaveta da mesa de cabeceira, depois fecha-a com força. Corre
para a casa de banho, abre a torneira do lavatório e da banheira. Puxa a
corrente do autoclismo antiquado. Ouve um estalido. Não corre água.
Está avariado.
Partridge fecha a tampa da sanita, empoleira-se em cima dela, abre o
depósito ao lado da parede. Um bocado de papel muito bem dobrado cai ao
chão.
— Encontrei uma coisa — anuncia a Iralene. Salta da sanita, pega no
papel. Vê as palavras Para: Partridge. De: Partridge, escritas na sua
própria caligrafia, o que lhe parece uma espécie de piada. Desdobra o papel
e depara com uma lista.
1. Fugiste da Cúpula. Encontraste a tua meia-irmã, Pressia, e a tua mãe.
A tua mãe e Sedge estão mortos. O teu pai matou-os.
2. Estás apaixonado por Lyda Mertz. Ela está fora da Cúpula. Tens de a
salvar, um dia.
3. Prometeste a Iralene fingires ser noivo dela. Cuida dela.
4. Neste prédio, há pessoas vivas, suspensas em cápsulas. Salva-as. O
bebé Jarv pode estar entre elas.
5. Confia em Glassings. Não confies em Foresteed.
6. Não te lembras disto porque o teu pai te obrigou a apagar as
memórias da tua fuga. Foi ele que causou as Detonações. As pessoas na
Cúpula sabem disso. Ele tem de ser derrubado.
7. Toma o poder. Lidera a partir de dentro. Começa de novo.
Sai da casa de banho e entra no quarto da casa rústica no falso
Nebrasca. Levanta o papel no ar. Tem a mão a tremer. Olha para Iralene. Ela
não diz nada. Tira o molde do mindinho e fica a olhar para o coto.
— Isso aconteceu-te fora da Cúpula — explica Iralene. — O Weed
arranjou-o de maneira a voltar a crescer.
Partridge repõe o molde no dedo trémulo.
Glassings. Pode confiar em Glassings. Em quê? História Universal?
É tudo demasiado inconcebível para ser processado.
Iralene levanta-se e dá um passo em direção a ele.
Partridge reflete acerca da ideia de ter uma meia-irmã. Pensa na sua
mãe e em Sedge; vivos, mortos, vivos, mortos.
— Lyda — sussurra, lembrando-se dela a cantar no coro. Fora esse o
rosto que ele vira mentalmente, a olhar para ele das filas de raparigas. Sente
outra vez a mesma dor. Tinha razão: não era amor, era nostalgia. — Lyda
Mertz. — Olha para Iralene.
Ela faz que sim com a cabeça.
O peito parece estar a abrir-se, com uma sensação simultaneamente
dolorosa e libertadora. O seu pai, a assassinar a sua mãe e o seu irmão? A
assassinar o mundo?
— O meu pai não é perfeito, mas não provocou as Detonações. Pelo
menos isso posso dizer-te. É quase tão absurdo como eu ter fugido da
Cúpula.
— Não é absurdo — replica Iralene. — E tu sabes isso.
Partridge sente-se subitamente furioso.
— Não esperas que eu acredite...
— Tu podes detê-lo. Glassings explicou-te como.
— Glassings. Devo confiar nele.
— E eu não devia confiar nele.
— Que queres dizer?
Ela sussurra:
— Trabalhei para ambos os lados.
— O quê? Porquê?
— Não tinha alternativa. Julgas que a sobrevivência é uma coisa em
que só os desgraçados têm de pensar, Partridge? Não sejas tão ingénuo.
— O quê? Iralene, eu pensava...
— Eu sou o que sou a cada dado momento, Partridge. Essa é a única
maneira como podes conhecer-me.
Ele não sabe o que dizer.
— Mas eu confio em ti, Iralene. Confio mesmo. És boa. Sei que és.
Sinto-o.
Ela fecha os olhos, como se estivesse muito cansada. Sorri:
— Talvez sejas a única pessoa que eu conheci verdadeiramente — diz
ela. — Compreendes o que quero dizer?
— Sei muito bem o que queres dizer. — Conhecer alguém, ser
conhecido. Tem mais importância do que ele alguma vez julgara.
— Ouve, Iralene. Diz-me. Como conheceste Glassings?
— Levavam-me lá para ter aulas. Não frequentei a Academia, mas
tinha de ser instruída para poder ser digna de ti. Mas eles levavam-me a ter
aulas com todos os professores em quem não tinham grande confiança. Eu
estava lá para os testar, para ouvir. E assim fiz.
— Deste informações acerca deles?
— Informei que estava entediada. Que a minha instrução era inútil.
Glassings deu-me uma coisa para ti. — Ela entrega-lhe um envelope
branco, pequeno e simples. Ele abre-o. Lá dentro há apenas uma cápsula.
— O que é isto?
— Veneno. Fatal e indetetável. Tens de o dar ao teu pai. A cápsula
dissolve-se em quarenta segundos e o veneno alastra rapidamente ao
organismo. Ele morrerá no espaço de três minutos.
— Não posso matar o meu pai. Se matamos um assassino, tornamo-nos
igualmente maus.
— Isso foi o que disseste da última vez que te pediram.
— Bem, pelo menos sou coerente.
— Podes mudar de opinião. Eu posso provar como o teu pai é
tenebroso — diz ela — se é disso que precisas. Está aqui. Neste edifício.
Os corpos, suspensos.
— Jarv — diz ele.
— Sim — confirma ela — Jarv.
Iralene conduz Partridge rapidamente para fora do quarto e ao longo do
corredor. Descem um lanço de escadas e atravessam uma sala de cimento,
grande e vazia, com rachas nas paredes, tubos expostos, e, curiosamente,
um piano vertical. Tudo lhe parece estranhamente familiar. Já ali esteve
antes. O seu cérebro talvez não se lembre, mas o seu corpo lembra. Um
arrepio percorre-lhe a espinha.
Não quer ver o lado tenebroso do seu pai, mas tem de o fazer. Não
pode acreditar em qualquer outra coisa da lista, a menos que possa provar
pelo menos uma delas, vê-la com os seus próprios olhos.
Iralene pega-lhe na mão e leva-o por um corredor forrado de portas.
Cada porta tem uma placa com um nome gravado.
Passam por porta atrás de porta e, a cada uma, Partridge sente-se mais
doente por dentro.
— O que é este sítio?
— Passei grande parte da minha vida aqui, suspensa. Para permanecer
fresca e envelhecer quase impercetivelmente ao longo do tempo.
— Passaste grande parte da tua vida aqui? Que idade tens?
— Não vou dizer-te.
— As Detonações só foram há nove anos. Que idade podes ter?
— Esta tecnologia é anterior às Detonações, Partridge. A minha mãe e
eu não estamos amarradas aos anos como as outras pessoas. Começámos
cedo.
— Cedo, a que ponto?
— Eu comecei a fazer sessões aos quatro anos de idade.
O rosto dela é liso. Sem vincos, sem rugas. Os seus olhos são límpidos
e brilhantes.
— Jesus, Iralene. Que idade tens? Diz-me só.
— Tenho a tua idade, Partridge. Acontece apenas que a tenho há mais
tempo do que tu, nada mais. E continuarei a ter a tua idade enquanto puder.
— Iralene — sussurra ele. — Que te fizeram eles?
Ela abana a cabeça. Não quer falar no assunto.
Partridge caminha lentamente ao longo da fila de placas: PETRYN
SUR, ETTERIDGE HESS, MORG WILSON.
— Mas não é para efeitos de preservação que estas pessoas todas estão
aqui. Não é por isso que o Jarv está aqui. Os pais dele eu conheço-os. São
boa gente. Não iriam tentar preservá-lo.
— Que havia de errado nele? — pergunta Iralene sem rodeios.
— Nada — responde Partridge, num tom defensivo, mas depois lança
um olhar rápido a Iralene, pois é claro que havia algo de errado em Jarv. —
O que queres dizer com isso?
— Por vezes, os pequenos vêm porque têm algo que não está
completamente certo. Para quê desperdiçar recursos com eles? Mas, por
outro lado, vamos precisar de mais gente quando formos para o Novo Éden.
Nessa altura, teremos o suficiente para todos. Ele pode acabar de crescer
quando lá chegarmos. Não foi eutanasiado, Partridge. Essa é a boa notícia.
— Essa é a boa notícia? Que não o mataram por ser um pouco lento no
seu desenvolvimento?
— Portanto ele era lento.
— Suponho que sim. Os pais estavam preocupados. Houve alguns
problemas. Não me lembro ao certo quais. Foi no inverno passado.
HIGBY NEWSOME, VYRRA TRENT, WRENNA SIMMS.
— A sua pequena coleção de relíquias — diz Iralene. — Algumas são
pessoas que deviam ter sido executadas por crimes, por traição. Mas ele
conservou-as por uma questão de sentimentalismo.
Dobram outra esquina e encontram uma barreira de janelas, em vez de
portas. É como uma versão distorcida de um berçário, como os que se
encontram na ala de maternidade de um hospital. Há camas em forma de
ovo, cobertas por vidro. As crianças estão deitadas lá dentro. Todas têm
tubos na boca, para lhes fornecer oxigénio. Partridge ouve um zunido
elétrico.
Corre ao longo da fila de camas, procurando Jarv e acaba por o
encontrar: é o quarto a contar do fim. O seu nome está claramente marcado
na cápsula. Há uma criança na cápsula ao lado da sua, mas as duas últimas
estão vazias, à espera. As faces de Jarv estão pálidas e os seus lábios
exibem um tom arroxeado à volta do tubo, tal como as pálpebras. Mas os
braços e as pernas ainda são rosados e carnudos, embora a carne esteja
provavelmente intumescida. Há cristais nos seus joelhos; um pé está
coberto por uma película prateada de gelo, como se usasse uma meia de
renda.
— Como se desliga isto? — Partridge caminha ao longo da parede de
vidro. —Jesus! Como vamos tirá-los dali? — Encontra uma porta de metal.
Dá-lhe um puxão. Está trancada. — Temos de o tirar dali.
— Mesmo que conseguisses entrar, seria demasiado perigoso tentares
tirá-lo da suspensão. Isso só pode ser feito por um médico.
— Onde está o médico? Eu posso convencê-lo. Posso levá-lo a reverter
isto!
— Não há necessidade de estarem aqui médicos de serviço
permanente. Eles vêm quando é preciso. Os pacientes em suspensão têm os
sinais vitais monitorizados por computadores. E se um falhar, bem, nunca é
uma tragédia, pois não? A tragédia já se deu.
Partridge encosta a testa à janela.
— Então, os pais dele não sabem? — Começa a chorar. Já devia ter
chorado mais cedo, provavelmente quando lera a nota, mas o impacto só
agora se faz sentir.
— Não sabem ao certo onde ele está, mas provavelmente têm uma
vaga ideia.
— Não podem saber.
— As vezes os mais novos são libertados por um tempo, levados para
o centro médico. Os pais vão visitá-los. E raro. Têm de estar
particularmente bem relacionados para obterem essas autorizações.
— Isto tem de acabar. — Partridge afasta-se bruscamente do vidro. —
Isto não pode continuar.
— Ele também tem planos para ti, Partridge. Piores do que isto.
Partridge encara-a.
— Não faz sentido. Disseste que ele quer matar-me, mas por que se
daria ele ao trabalho de me apresentar como líder, como seu sucessor, se
tenciona simplesmente eliminar-me?
— Não sei. — Iralene vira o rosto.
— Estás a mentir, estás a esconder alguma coisa, não estás?
— Podes pôr fim a isto. Sabes como.
— Ele é que é o assassino. Queres que me transforme também num?
— Quero que tu vivas — diz ela. — Guarda a cápsula contigo.
Quarenta segundos e o revestimento dissolve-se, depois, em três minutos,
tudo estará terminado. Só tu podes chegar suficientemente perto dele para
que isso aconteça.
A cápsula está no envelope, dobrado no seu bolso.
— Vou guardá-la, mas não tenciono usá-la.
— Há uma pessoa que quero que tu vejas — diz ela.
Partridge segue-a até ao fim do corredor. Dobram outra esquina.
— Costumo assombrar este sítio sempre que posso. Não quero que eles
se sintam completamente sozinhos. Não é que se pense lá dentro, na
verdade. Os investigadores acham que não somos capazes de tomar
conhecimento seja do que for quando estamos nesse estado. Mas eu acho
que sabemos quando está alguém connosco, quando nos visitam.
Metem por outro corredor. Mais nomes em placas: FENNERY
WILKES, BARRETT FLYNN, HELINGA PETRY.
— Sei quando chegam pacientes novos e, quando as circunstâncias são
estranhas, presto atenção.
— Quem é? — pergunta Partridge. Ele sabe que a sua mãe e o seu
irmão estão mortos, um facto que deixou claro para si mesmo.
— Aconteceu enquanto estiveste fora. Trouxeram-no do centro
médico. Lembro-me dele, porque é diferente dos outros. Por um lado, é
mais velho do que a maioria dos habitantes da Cúpula. Como muito bem
sabes, os idosos não são dignos de recursos e não é provável que consigam
chegar sequer ao Novo Éden. Mas a outra coisa — Iralene abranda o passo,
olhando atentamente para os nomes — que me chamou a atenção foi que
não lhe puseram o rubo de oxigénio na boca. Taparam-lhe os lábios e, em
vez disso, inseriram o tubo diretamente na sua garganta. — Para diante de
uma porta e aponta para a placa. — Odwald Belze — diz. — Conheces o
nome? Belze?
Partridge sente o nome despertar uma porção mal iluminada do seu
cérebro, uma centelha de reconhecimento. Belze. Belze. Quer lembrar-se de
algo mais. Toca na placa com a mão. O molde no
mindinho produz um estalido. E, por uma fração de segundo, ele pensa
num olho, pequeno e vítreo. É aberto. Um estalido. Está fechado. Um
estalido. Está aberto outra vez.
O pequeno olho de uma boneca.
Iralene vai até ao fundo do corredor. Apoia a mão numa grande porta
de metal, fechada à chave e trancada, com um sistema de alarme montado
na parede.
— E esta, fortemente protegida, sem placa de identificação. Quem sabe
o que estará do outro lado desta porta?
Capítulo 71

Pressia
Luz

Fignan faz a contagem decrescente em quilómetros, depois em metros


e, por fim, Pressia vê-a, no topo de uma colina relvada. Newgrange. O
grande monte não foi obliterado, varrido da face da terra. Permanece.
— Quanto tempo temos? — pergunta ela.
— Seis minutos e trinta e sete segundos — informa Fignan.
O céu já está a pintar-se de um tom de rosa pálido. Ela corre o mais
depressa que pode. Os vergões provocados pelos espinhos doem-lhe a cada
passo. A luz de Fignan oscila à sua frente, ressaltando sobre raízes e hera.
O vento frio bate-lhe nas faces. Os seus pulmões ardem com o esforço de
bombear o ar frio, que ali é mais limpo e transparente.
Pressia precipita-se para o lado do monte, pousa a mão sobre as
enormes pedras cobertas de musgo, tocando nas espirais gravadas na rocha,
depois corre-a ao longo da parede de quartzo frio. Sobe os degraus. Quase
perdida atrás de uma cortina de hera, a entrada é guardada por pedregulhos,
mas não está tapada. Pressia agarra num punhado de hera e puxa com força,
limpando não apenas a porta, mas também a janela que se abre sobre um
parapeito de pedra acima dela.
O Sol está a subir, aproximando-se do horizonte. Pressia lança-se pelo
corredor escuro, que tem cerca de dezoito metros de comprimento e é tão
estreito que, a dada altura, ela tem de se virar de lado para passar.
Desemboca numa pequena câmara em forma de cruz. Há também grandes
bacias. Com que objetivo? Não consegue imaginar. Lembra-se da estátua de
Santa Wi, na cripta onde Bradwell começara a rezar. Pensa no rapaz, cujo
corpo estava na morgue, e no avô, que realizara tantos funerais, mas não
chegara a ter um, e na sua mãe e em Sedge, cujos corpos se tinham juntado
ao solo da floresta.
— O teto — sussurra para Fignan. Ele faz incidir a luz no teto. Há um
arco falso, as pedras cuidadosamente ajustadas de modo a manter toda a
estrutura em pé. Pressia desejaria não estar sozinha. Deseja que Bradwell,
El Capitan, e Helmud vissem aquilo. Imagina as meninas fantasma, os seus
rostos a olhar fixamente das paredes da casa de pedra. Ficariam orgulhosas
dela.
Estou aqui, quer dizer-lhes.
Diz a Fignan para se desligar.
— Não pode haver qualquer luz.
Segundos depois, está tudo escuro.
Ela senta-se, com as costas apoiadas a uma das paredes. Ouve a voz de
Bradwell na sua cabeça: a caixa onde guardávamos Deus foi ficando cada
vez mais pequena... até existir apenas uma partícula de Deus, talvez apenas
um átomo de Deus.
Naquele momento ela tem a certeza de que pelo menos um átomo de
Deus sobreviveu, pois que outra explicação pode ela encontrar para o facto
de — enquanto o Sol se eleva no céu e faz jorrar a sua luz através da
pequena janela por cima da porta, brilhando ao longo da passagem e
iluminando uma faixa brilhante no chão — ela estar segura de que aquele é
um lugar sagrado?
Fignan repousa ao seu lado.
— Tu não és uma caixa — diz ela, repetindo a mensagem de Walrond.
— És uma chave.
Mas a verdade é que não faz ideia de como ele vai tornar-se numa
chave. Sente uma pontada de pânico. Depositou a sua fé numa caixa. Uma
caixa cheia de informações, mas uma caixa, apesar de tudo.
Fignan parece saber o seu papel. Zumbe para o meio da câmara. Uma
lente de vidro fino eleva-se do seu centro, na extremidade de um braço
comprido e fino. A lente é quase tão grande como o punho da cabeça de
boneca de Pressia. Fignan mantém a lente estável. A luz do Sol passa
através dela.
Pressia sustém a respiração. Sente a pedra fria através do casaco. Não
tira os olhos de Fignan, enquanto a luz do Sol enche a lente e ilumina o
chão.
A princípio não vê nada, apenas o pavimento de pedras pulverizadas,
ou talvez de argila comprimida.
Mas então há algo iridescente. Um padrão gravado no chão começa a
brilhar.
Ouve uma voz. Passos na entrada. A luz bruxuleia quando o corpo de
alguém projeta uma sombra por um segundo ou dois. Pressia retém de novo
a respiração. Vão-se embora, pensa insistentemente. Saiam!
O chão ilumina-se novamente, e há três espirais interligadas; em
conjunto, têm cerca de trinta centímetros de largura. Pressia rasteja para o
local e toca nas espirais. Faz força na terra dura, ouve outra vez a voz a
ressoar na comprida passagem em túnel, mas não consegue distinguir as
palavras. Tem vontade de desaparecer de vista na alcova da cruz, mas não
pode dar-se ao luxo de se esconder.
— És uma chave! — diz a Fignan, e um conjunto de pequenas
ferramentas emerge com um zumbido do interior da caixa. Ele começa a
cavar o chão, no ponto onde as espirais iridescentes estão iluminadas.
Encontra metal, revelando três círculos concêntricos iguais às gravações na
pedra.
— O que é isto, Fignan? O que são essas formas?
Fignan não responde. É como se estivesse concentrado em absorver a
luz.
Ela ouve passos a avançar na sua direção. Diz a Fignan para se
desligar de novo. A câmara é iluminada pelo Sol nascente. Pressia pega em
Fignan, desliza pelo canto de uma das alcovas e ergue a caixa acima da
cabeça, pressionando o mais que pode com o seu punho da cabeça de
boneca.
— Quem está aí? — É uma voz de homem. — Quem é?
O vulto, baixo e atarracado, está a uns escassos trinta centímetros dela,
respirando pesadamente, a camisa branca iluminada pelo Sol da manhã. A
camisa é de um branco tão intenso que Pressia não tem a certeza de alguma
vez ter visto algo tão brilhante. Por um brevíssimo instante, tem a esperança
de que aquele homem seja o seu pai, Hideki Imanaka, e fica paralisada. Mas
sabe que as probabilidades são incrivelmente pequenas.
Respira fundo, arqueia as costas, levanta Fignan o mais alto que pode e
baixa a caixa, pesada e com arestas afiada, sobre a parte de trás da cabeça
do homem. Ele desequilibra-se, ampara-se com uma mão na parede de
pedra. Estica o braço, toca no sangue que já escorre do golpe, molhando os
seus abundantes cabelos grisalhos, e olha para a sua mão. Não está fundido
a nada, mas também não é Puro. Cicatrizes de queimaduras percorrem-lhe
um dos lados do rosto, mas a sua pele tem um tom dourado estranho. Ainda
consegue dizer, «Quem?», mas depois desliza pela parede, com a camisa
branca solta a enfunar-se, e cai de costas em cima das três espirais gravadas
no chão.
Pressia põe-se à escuta de mais vozes e passos. Não ouve nada. Pousa
Fignan de novo no chão. Tem a mão a tremer. Até o seu coração parece
estar trémulo.
Baixa-se e tenta afastar o homem de cima das três espirais. Ele é mais
pesado do que ela pensava. Senta-se e empurra-o com as botas, usando toda
a força que lhe resta nas pernas. Ele desloca-se um pouco. Ela empurra de
novo e ele desloca-se um pouco mais. A manga da sua camisa está agora
manchada de lama. Ela continua a empurrar e, por fim, as três espirais
ficam à vista.
— Fignan — diz ela, ofegante —, não pares agora.
Fignan apita. Aproxima-se zumbindo da tripla espiral. Uma placa
peitoral fina retrai-se e uma espiral de metal sulcada, apenas uma, surge na
extremidade de um comprido braço robótico. Pressia baixa-se e afasta os
seixos. Fignan ajusta a sua espiral metálica na espiral central, e ela encaixa
com uma série de estalidos. Fignan pressiona, com uma sacudidela rápida,
fazendo as três espirais girar alguns centímetros, entrelaçando-se. Pressia
estende a mão e puxa a borda de uma das espirais. Esta abre-se, ficando
segura de um lado por dobradiças que se ligam a uma caixa enterrada no
chão. As três espirais decoram a tampa da caixa.
Fignan faz incidir uma luz no interior da caixa, que é feita de metal,
frio e húmido. Lá dentro, Pressia vê um quadrado pálido. Mete a mão e
pega num envelope. Tem uma palavra rabiscada na parte da frente: Cygnus.
Pressia segura na carta, aperta-a ao peito por um momento, depois abre
o envelope. Contém uma folha de papel pautado a azul, arrancada de um
caderno. Escritos em gatafunhos rabiscados, veem-se números e letras,
separados por parêntesis, sinais de mais e de menos. Uma fórmula.
A fórmula.
O homem caído no chão solta um gemido. Pressia dobra rapidamente a
folha de papel, fá-la deslizar de novo para o envelope e mete-o no bolso.
Fignan avança para o homem.
— Não! — sussurra Pressia com severidade.
Mas Fignan não lhe dá ouvidos. Estende o braço mecânico e arranca
alguns fios de cabelo ensanguentado da cabeça do homem para testar o seu
ADN, tal como fizera com Bradwell, Pressia e Partridge.
Pressia levanta-se e aproxima-se do corpo inerte do homem. Tem as
faces avermelhadas, as pestanas escuras. A camisa branca é feita à mão.
Aperta à frente com atilhos, em vez de botões, e está desapertada no
colarinho, em resultado dos empurrões que Pressia lhe deu com as botas. O
colarinho está tão aberto que ela vê o peito nu do homem subir e descer.
E quando Fignan solta um apito agudo, ela ajoelha-se ao lado do
homem e vê uma fila de seis pequenos quadrados embutidos no seu peito,
dois dos quais pulsam.
— Um dos Sete — sussurra.
E Fignan diz:
— Bartrand Kelly.
Ela estende a mão e toca na camisa dele. Bartrand Kelly, um homem
que conheceu a sua mãe e o seu pai. Um dos Sete.
Um dos quadrados pulsantes pertence a Ghosh. Quem sabe onde ela
estará?
O outro pertence a Hideki Imanaka, o pai de Pressia.
Ela olha para as duas tatuagens. O seu pai ainda está vivo. Aquele
quadrado pulsante é único laço que a liga a ele.
Bartrand Kelly geme. Mais vozes ressoam pela passagem, bem como
algo que parece o relinchar de um animal.
Pressia agarra em Fignan e põe-se em pé. Bem vistas as coisas, não
sabe de que lado está Kelly. Os olhos dele abrem-se. Olha para o teto em
arco, depois vê Pressia. Esta ergue Fignan de novo acima da cabeça, mas
com pouca convicção.
— Espera um minuto. Calma — diz ele. Soergue-se apoiado no
cotovelo e estende a mão.
— O senhor é Bartrand Kelly? — pergunta ela.
— Quem quer saber? — Ele pisca os olhos e esfrega-os.
— Onde está Hideki Imanaka?
— Imanaka? — repete ele, como se não ouvisse esse nome há anos. —
De onde conheces Imanaka?
Ela ouve as vozes, agora mais próximas. Ouve passos a descer o
corredor.
— Onde está ele? — grita ela.
— Por que queres saber? — insiste ele.
— É meu pai — diz ela. Meu pai. Meu pai. As palavras têm um sabor
estranho nos seus lábios. — É meu pai — repete ela e sente o peito contrair-
se, mas recusa-se a chorar.
Bartrand Kelly olha fixamente para o seu rosto. Sussurra:
— Emi Brigid Imanaka.
O nome que fora dado a Pressia à nascença, o nome que fora destruído
pelas Detonações, a rapariga que ela nunca chegara a ser.
— És mesmo tu?
Ele estende a mão para ela e ela dá um passo atrás. O facto de ele estar
vivo significa que pode ter feito um acordo especial com Willux.
Ela tem a fórmula no bolso. Tem os frascos atados à volta das costelas.
Se Kelly tiver laços com Willux e conseguir capturá-la, Willux ficaria com
tudo aquilo por que ela arriscou a vida.
Pega em Fignan e corre para a passagem, mas é travada por um
homem e uma mulher, ambos jovens e fortes. O homem agarra-a pelo pulso
do punho da cabeça de boneca. A sua mão é coriácea e calejada. Puxa a
cabeça de boneca para cima e arqueja ao vê-la. A mulher também olha para
a cabeça de boneca.
— Quem és tu? — pergunta a mulher, mas num tom que dá a
impressão de estar a perguntar, «O que és tu?» Nenhum deles tem fusões,
tanto quanto Pressia pode avaliar, no entanto a luz do amanhecer mostra-lhe
que ambos ostentam também cicatrizes e queimaduras, e o mesmo matiz
dourado na pele.
— Larga-me! — berra Pressia.
— Kelly? — grita a mulher. — Estás bem?
Pressia tenta libertar o braço. Está com frio e cansada. Os seus
músculos ardem. Os vergões no seu corpo doem.
— Deixem-na em paz! — brada Bartrand Kelly. — Deixem-na ir!
O homem olha para o rosto de Pressia por um momento, depois
afrouxa a mão. Pressia passa por eles, corre pela passagem, vacilando e
chocando contra as paredes de pedra apertadas, em direção à luz.
Ouve um ruído de cascos, o estranho relinchar de novo. Pousa uma
mão na pedra e sai para o ar livre, para o Sol, para o novo dia.
E ali, à sua frente, está um cavalo.
Aquele cavalo parece um milagre; a sua própria existência, as costelas
largas, a crina escura, as pernas longas e elegantes que afunilam em
tornozelos delicadamente finos. Uma grande cicatriz escura corre-lhe a todo
o comprimento do corpo, que, de resto, está coberto por uma pelagem
aveludada. As suas orelhas palpitam e rodam de um lado para o outro. O
seu bafo forma uma névoa no ar.
O cavalo tem uma sela, mas não está preso. Pressia aproxima-se
rapidamente dele, pousa a mão aberta sobre as suas costelas, que estão
quentes. Sente-as subir e descer. Ouve as vozes dentro do túmulo. A
aproximar-se?
Pressia nunca montou a cavalo. O seu avô contou-lhe uma história de
passeios de pónei numa das suas festas de aniversário, mas era mentira,
uma invenção da vida que ela nunca tivera. Lembra-se dos corpos
retorcidos dos cavalos no carrossel inclinado.
Aquele cavalo é um milagre que lhe é destinado.
Agarra um nó na parte da frente da sela com a mão boa, prende Fignan
debaixo do outro braço, e iça-se para o dorso do animal. Fica surpreendida
com a altura do cavalo, com a sua majestade. Pega nas rédeas e dá um toque
no cavalo com as botas.
— Vai — diz ela.
O cavalo dá alguns passos.
Ela dá-lhe novo toque, mais urgente. Inclina-se para a frente e sussurra:
— Vai! Por favor, vai!
Agora ouve as vozes claramente.
Bate levemente com os calcanhares no cavalo e brada:
— Vai!
E no preciso momento em que o homem e a mulher, que amparam
Bartrand Kelly entre os dois, emergem da passagem, o cavalo começa a
galopar. Pressia aperta as costelas do animal entre as pernas e tenta manter
o equilíbrio, ao mesmo tempo que segura Fignan com firmeza contra o
peito. Inclina-se sobre a crina do cavalo. Com o vento nos cabelos, lágrimas
a jorrar-lhe dos olhos, ela diz:
— Vai, vai! Continua!
Capítulo 72

Partridge
Lyda Mertz

Quando as câmaras voltam a ligar-se, Partridge e Iralene estão sentados


na beira da cama. Desde que viu o olho da boneca na sua mente — a conta
vítrea, a franja de pestanas de plástico, o mecanismo da pálpebra empastado
de cinza — já viu outras coisas, em detalhes nítidos e vívidos.
Um carneiro com chifres nodosos e retorcidos.
Vidro estilhaçado a cobrir uma espécie de mapa.
Um homem a carregar outro homem magricela nas costas.
E Lyda Mertz. Tem a certeza de que era o rosto dela, mas a sua cabeça
estava rapada, as faces manchadas de terra, e ela empunhava uma lança
comprida, numa bacia de pó erma e varrida pelo vento, como se tivesse de
facto ido com ela a uma versão arrasada do Nebrasca, feita de pradarias
carbonizadas. Será esse o aspeto dela, agora que não vive na Cúpula?
Cada imagem começa com um clarão, como um efeito de luz, um
brilho intenso que afunila num pequeno detalhe. É como estar num quarto
escuro durante uma trovoada, quando surge o primeiro relâmpago e ilumina
aquilo em que os olhos estão focados antes de a luz desaparecer.
— Pega nisso — diz Iralene, metendo-lhe o portátil na mão. O motor
do dispositivo está a zumbir e uma luz vermelha pisca como um farol.
Antes de as câmaras acenderem, ele dissera-lhe que tinha começado a ver
coisas, sem contexto: apenas imagens dissonantes, sem qualquer sentido de
correlação, primeiro uma, depois outra. Ela recomendara-lhe que não o
desse a entender, não diante das câmaras.
E agora aquilo. Ele sabe o que a luz vermelha significa: uma
mensagem do seu pai. Este dissera-lhe que brevemente o levariam de novo
para o centro médico, na esperança de salvar as ligações sinápticas do seu
cérebro. Mas não é para isso que vão levá-lo. O seu pai quer matá-lo.
— Prime «reproduzir» — diz Iralene, tentando parecer jovial. —
Vamos ouvir.
Partridge olha para as câmaras e pergunta-se se quem está a assistir
pensará que Iralene desligou as câmaras para os dois poderem estar
sozinhos. O cabelo dela até está com um aspeto autenticamente
desgrenhado.
Um pássaro com um bico de metal e uma dobradiça na articulação.
Um carro preto numa nuvem de poeira.
O rosto de seu pai, em carne viva e reluzente, como se estivesse
coberto por uma fina membrana de pele artificial.
As memórias vêm em grupos, de forma imprevisível, em lampejos, e
depois param tão abruptamente como começaram. Lembra-se das sessões
de codificação: como espoletavam memórias estranhas, mas estas
assemelham-se mais a ataques. Não têm nada de familiar, exceto Lyda
Mertz. Sim, ele lembra-se dela da Academia feminina, mas não assim, não
suja e armada. No entanto, essa é a imagem a que ele quer voltar. Lyda com
a cabeça rapada e uma lança. Quer prolongá-la. Amá-la-á? Será ela a fonte
da sua nostalgia? Lyda Mertz? Deve regressar para junto dela e salvá-la.
Mas aquela imagem não é a de alguém que precisa de ser salva.
— Reproduz a mensagem — diz Iralene, orientando-o com instruções
simples.
Ele prime o botão vermelho. A voz do seu pai enche o quarto.
«Vamos precisar de ti no centro médico bem cedinho, às sete horas.
São tudo boas notícias, Partridge. Eles têm a certeza de que conseguem
fazer uma série de reparações rápidas. É apenas uma afinação. Terás de ser
anestesiado, mas será rápido e indolor. Eu estarei lá quando acordares.
Estou ansioso por me juntar de novo a ti, filho.»
— Bem — diz Iralene — aí tens! Não são ótimas notícias?
Partridge faz um sinal afirmativo. Tenta mostrar algum entusiasmo.
Até um simples sorriso ajudaria. Mas não consegue.
— Estou cansado — diz ele. Desejaria não ter a pílula, não saber da
sua existência.
— É tarde. Vou deixar-te descansar — diz Iralene.
— Não quero dormir. — Partridge tem medo das memórias que podem
vir à tona, misturadas com os sonhos. Se pudesse encomendar sonhos,
pediria Lyda Mertz. Ela e apenas ela. Mas sabe que não é assim que o
subconsciente funciona.
— Devias tentar dormir. Amanhã é um grande dia. Vais querer estar
em forma. — Iralene levanta-se. Mete a mão num bolso a fingir, depois
levanta-a:
— Ofereço-te um bolso cheio de bons sonhos!
Ele ergue também a mão e ela finge pôr lá os bons sonhos, mas o que
ela quer dizer é A pílula está no teu bolso, aquela que pode matar o teu pai
e pôr fim a tudo isto. Ela quer dizer: usa-a.
Capítulo 73

El Capitan
Trepadeiras

El Capitan tem a sensação de andar a tropeçar, a cair, a chamar o nome


de Bradwell na escuridão à volta do dirigível há horas. Mas não obtém
resposta. Bradwell está algures ali fora, mas tudo o que El Capitan tem
ouvido é o restolhar ocasional de folhas e, agora que está a amanhecer, os
gorjeios dos pássaros.
Tem a cabeça a latejar. Já vomitou duas vezes. À luz fraca do nascer do
Sol, pode finalmente procurar rastos no terreno. Está de gatas, a
esquadrinhar o chão com os olhos, na esperança de encontrar uma marca da
sola de uma bota. Helmud parece pesar mais do que nunca nas suas costas,
mais até do que quando El Capitan era apenas um rapaz, ainda coberto de
queimaduras por causa das Detonações, e mal era capaz de segurar Helmud
por mais do que alguns minutos de cada vez. A sua vista turva-se, depois
começa a ver a dobrar.
Pestaneja com força e franze os olhos. Sabe por que está ali à procura
de Bradwell, e por que não desistiu. Não quer dizer a Pressia que Bradwell
está morto. Não quer destroçar o coração dela assim. Viu-os na passagem
subterrânea. Sabe como ela olha para Bradwell. Talvez o ame e nunca
venha a amar El Capitan, mas El Capitan ama-a e não suportaria vê-la
sofrer mais uma perda. Imagina a expressão do rosto dela quando lhe desse
a notícia. É arrasador. Tem de continuar a procurar.
— Helmud — chama. — Diz-me o que vês.
— O que vês — repete Helmud.
— Não temos tempo para essa merda agora, Helmud! — exclama El
Capitan. — Preciso de ti.
— Preciso de ti — diz Helmud.
Precisam um do outro. Sempre precisaram e sempre precisarão. Talvez
ele devesse sentir-se simplesmente feliz com esse fato. Nem toda a gente
tem oportunidade de precisar de alguém e de ser constantemente preciso,
para sempre. Devia deixar ir Pressia. Não devia sequer ter aspirado a ela,
para começar.
Rasteja em direção às árvores. As sombras espasmódicas de pássaros
em voo cruzam o terreno. Ouvem-se grasnidos no céu. El Capitan pensa: Se
Bradwell tiver morrido, eu vou ter de dizer a Pressia e depois terei de a
confortar. É cruel imaginar tal coisa, mas lá está: a cabeça no seu ombro.
Ele a acariciar-lhe o cabelo.
— Não — resmunga em voz alta. — Não o faças.
— Não o faças — diz Helmud, como se pudesse ler-lhe a mente.
— Tens razão, Helmud — diz El Capitan, mas já sente alguma
adrenalina. É como se seu corpo já tivesse começado a desejar que
Bradwell esteja morto e enterrado, e não há nada que a sua consciência
possa fazer a esse respeito. Continua a rastejar. O seu cotovelo cede e ele
cai, mas endireita-se lentamente.
— Mantém os olhos bem abertos — recomenda. — Não pares de
procurar.
Então Helmud aperta os braços em torno de El Capitan e diz:
— Para de procurar.
El Capitan imobiliza-se. Olha fixamente para a terra lamacenta e
coberta de hera, e vê uma folha cerosa manchada de sangue. Segura a haste
da folha entre os dedos e levanta-a. A fina camada de sangue está quase
seca.
— Onde diabo está ele?
— Onde diabo está ele. — Helmud aponta para o maciço de árvores,
do outro lado do campo.
E agora El Capitan vê os rastos de botas, a derrapar pela terra, a pisar a
hera. Vê o contorno do corpo de Bradwell, a sua forma envolta em
trepadeiras. O seu rosto está inexpressivo. Adormecido? Morto?
El Capitan põe-se em pé com esforço e tenta correr, mas a floresta
oscila. Olha para o céu para se orientar. As aves, expulsas das árvores,
espalham-se pelo céu. Uma delas abre as asas e lança uma girândola para
baixo, ou será da vista dele? El Capitan cai violentamente sobre o ombro.
— Bradwell! — grita. — Bradwell!
Ele respira fundo e ergue-se sobre os joelhos. Assenta um pé no chão,
levanta-se e caminha — num percurso em ziguezague. Vê o corpo de
Bradwell. A sua vista falha, vacila.
À medida que se aproxima, vê que a hera está apertada em torno dos
braços e pernas de Bradwell, amarrada em volta do peito e da garganta. E é
farpada. Meu Deus, quem lhe terá feito aquilo? E como? Os espinhos
enterraram-se na sua pele. Houve uma perda lenta e constante de sangue.
Bradwell está pálido. Tem os olhos fechados. A sua espingarda está a
poucos passos de distância, igualmente coberta de trepadeiras. Talvez ele
não tivesse faca.
El Capitan cai de joelhos. Pousa a mão no rosto de Bradwell. Está frio.
Um pensamento irrompe-lhe no cérebro: foi ele que matou Bradwell.
Imaginou-o morto e agora ele morreu. A culpa é dele.
— Não estava a falar a sério — diz ele a Helmud.
— Falar a sério! — diz Helmud.
E a voz de Helmud é tão zangada e forte que El Capitan levanta
bruscamente a cabeça.
— Está bem — diz ele. — Está bem. — Recupera a compostura. Mete
a mão por baixo da hera que circunda a garganta de Bradwell e tenta
encontrar pulsação.
A princípio, não há nada. Mas depois pressiona mais e sente-a, lenta e
fraca. Ele está vivo!
— Vá lá, Bradwell! — Levanta a cabeça pesada de Bradwell. Este
tosse, depois abre os olhos.
— Cap, Helmud — sussurra. — Os meus irmãos.
— É isso mesmo — diz El Capitan. — Os teus irmãos estão aqui.
— Estende a mão para a faca que traz no cinto, mas ela desapareceu.
Onde estará? Terá ficado no dirigível? Ter-se-á soltado quando ele caiu?
Helmud tê-lo-á desarmado enquanto ele estava desmaiado?
— Helmud — pede —, preciso de uma faca. Preciso da porra de uma
faca?
— A minha faca — diz Helmud —, a porra da minha faca. — Tira a
sua faca de talhar e estende-a ao irmão.
— Sim — diz El Capitan. Está satisfeito por ter dado uma faca a
Helmud, por lha ter confiado. Quer olhar o irmão nos olhos. Não é fácil.
Diz-lhe: — Obrigado, Helmud — e quer dizer, Obrigado por tudo, não
apenas por lhe ter cedido a faca, mas também por ter cortado a aranha da
sua perna, por ter cuidado dele no dirigível, por ser seu irmão, sempre
presente.
— Obrigado — diz Helmud por sua vez, e El Capitan tem a certeza de
que o obrigado de Helmud significa tanto como o seu.
El Capitan começa a cortar as trepadeiras, primeiro as que estão em
torno do pescoço de Bradwell. Mas mal se soltam, as plantas parecem
crescer de novo, rapidamente. Cravam os seus espinhos na pele de
Bradwell, infligindo-lhe novos ferimentos, e regressam, à força de
arranhões, ao lugar onde estavam. Bradwell está tão aturdido que mal
estremece. Os seus olhos estão agora distantes, a respiração sai-lhe em
arquejos curtos.
Tonto e exausto, El Capitan continua a cortar, mas parece fazer mais
mal do que bem: cada novo espinho cria uma nova ferida, um novo fio de
sangue. Sentindo-se impotente, El Capitan deixa cair a faca. Levanta
Bradwell, ombro a ombro, passa-lhe o braço à volta das costelas, que estão
cobertas de gavinhas. Vê as aves de Bradwell a lutar contra a trama de hera
que lhe aperta as costas.
— Não te deixaremos — diz ele a Bradwell. — Estamos aqui contigo.
É então que se apercebe das ligeiras cócegas provocadas pela primeira
gavinha a deslizar sobre o seu pulso; logo a seguir, a planta contrai-se como
uma algema apertada, espetando-lhe os espinhos na pele. El Capitan não a
sacode; já não lhe resta muita capacidade de luta.
— Vamos ficar contigo — diz mais uma vez.
— Ficar contigo — diz Helmud.
Bradwell pestaneja duas vezes. Os seus olhos fecham-se e o queixo
descai-lhe sobre o peito.
E, enquanto as trepadeiras envolvem o braço de El Capitan e começam
a cercar-lhe as pernas, ele compreende que é assim que ele e Bradwell
ficarão ligados um ao outro para sempre, com espinhos, gavinhas e sangue.
É um tipo de fraternidade que El Capitan compreende. Estar ligado. Olha
por entre as árvores, através do campo, para o dirigível pesadamente
tombado de lado. Sente a cabeça incrivelmente pesada. Descansa-a no
ombro de Bradwell, e Helmud descansa a sua no ombro de El Capitan, à
medida que as trepadeiras continuam a enrolar-se à sua volta, cada vez mais
depressa, como se estivessem a ser tecidas numa rede farpada. Imagina
Pressia a vê-los, primeiro de longe, direitos e juntos. Presumirá que estão
vivos, sentados na orla do campo, como três irmãos, a conversar, talvez a
falar sobre ela. É ela que os liga. Os espinhos começam a parecer dentes,
produzindo uma dor intensa, torturante. As trepadeiras estão vivas, são
carnívoras. Eles estão a ser devorados.
Se estiverem mortos quando Pressia chegar, pelo menos ela saberá que
morreram juntos.
Helmud empina-se e agita-se nas suas costas, como só agora
compreendesse que aquilo é o fim.
— Ficar aqui? — diz ele — Ficar?
— Não podemos partir — responde El Capitan.
— Partir! — grita Helmud.
— Não, Helmud. — El Capitan tem a certeza de que não vão escapar.
— Nós vamos morrer aqui.
— Não — diz Helmud.
— É o nosso fim — diz El Capitan.
— Não! — insiste Helmud, ofegante.
Então El Capitan vê uma mancha no horizonte. Alguma criatura a
carregar na direção deles. Pensa por um momento que é a morte. Ela não
galopava para os mortos, para lhes roubar as almas? A sua avó contava-lhe
histórias acerca da morte. A sua avó, que prensava flores em livros.
— A morte vem aí — diz El Capitan —, para roubar as nossas almas.
— Roubar as nossas almas? — Helmud está a tremer.
El Capitan fecha os olhos.
— Roubar as nossas almas — sussurra, como se fosse a sua última
ordem. — Roubar as nossas almas!
Então, quando tudo fica escuro, ele ouve uma voz, límpida e doce
como a voz de um anjo. É o seu irmão, a cantar como cantava para a sua
mãe, a bela voz que a fazia chorar. Talvez Helmud seja um anjo, afinal de
contas. Talvez o tenha sido sempre.
Capítulo 74

Lyda
Fato-Macaco

Lyda vem a si quando é atingida pela água. A princípio está fria, talvez
de propósito para a acordar. Encontra-se num cubículo branco, tão pequeno
como um armário, com bocais apontados para si; dezenas deles. Há uma
maçaneta prateada à sua frente. Ela tenta agarrá-la, mas a sua mão
escorrega. Está nua. Vê o volume da sua barriga sensível. Não é evidente,
mas talvez lhe tenham feito análises enquanto estava inconsciente. Tem a
parte de dentro do braço dorida. Saberão que ela está grávida?
Os bocais pulverizam espuma, que cheira fortemente à piscina da
Academia, a álcool e a outros produtos químicos. Lyda tosse e engasga-se.
Ardem-lhe os olhos.
Depois a água fica quente. O pequeno compartimento enche-se
rapidamente de vapor.
Quando os bocais finalmente se desligam, ela estende de novo a mão
para a maçaneta da porta. Como suspeitava, está fechada à chave. Uma
gaveta abre-se na parede. Há um fato-macaco branco, do centro da
reabilitação, e um lenço de cabeça. Voltou ao início.
Pega na roupa e começa a vesti-la. Ao puxar o fecho do fato-macaco,
imagina a sua barriga a crescer, redonda e tensa, a enchê-lo. Qual será o
aspeto de uma criança concebida lá fora, no meio dos desgraçados? Talvez
agora ela também seja uma desgraçada. As autoridades da Cúpula não
permitiriam que um filho seu nascesse na Cúpula, pois não?
A maçaneta roda. A porta abre-se. Uma voz diz:
— Sai cá para fora.
Mas não há fora. Ela sai de um pequeno espaço fechado para outro
espaço fechado. O ar não tem qualquer movimento. É estéril e estático. A
Cúpula é o verdadeiro deserto. Ela lembra-se de falar a Partridge sobre o
globo da neve; está presa de novo, só que não existe sequer o torvelinho
aquoso de neve artificial húmida.
Capítulo 75

Pressia
Promete-me

Pressia habituou-se à passada do cavalo, ao barulho dos seus cascos, ao


seu resfolegar. Enquanto Fignan vai indicando o caminho, ela vai puxando
as rédeas e o cavalo responde imediatamente. É como se ela estivesse
destinada a montar aquele cavalo. A fórmula no seu bolso, os dois frascos
restantes comprimidos contra a pele, sente-se forte e poderosa.
A primeira coisa que vê é o dirigível. Em plena luz do dia, parece em
bastante mau estado. Virado e inclinado para um lado, os seus reservatórios
tem um aspeto frágil e exposto. Ocorre-lhe brutalmente que talvez não
tenha qualquer importância ela ter a fórmula e os frascos; a menos que
consigam pôr o dirigível novamente no ar, ficarão ali encalhados para
sempre.
Abalada, esquadrinha o campo que sobe na direção de uma colina,
depois o perímetro de árvores distantes.
É então que avista o que parece ser um Agrupado com três cabeças,
coberto por uma pelagem feita de vegetação. Puxa as rédeas e o cavalo
abranda. Não é um Agrupado. Pressia vê os rostos pálidos: Bradwell, El
Capitan, Helmud. Dá um toque ao cavalo e galopa para eles.
Quando se aproxima, vê que só o rosto de Bradwell está lívido e
flácido. El Capitan e Helmud estão a olhar para ela, mas com uma
expressão distante nos olhos, como se não a vissem de facto. O sangue na
gaze enrolada na cabeça de El Capitan endureceu e enegreceu. Ela puxa as
rédeas. O cavalo para, ela passa-lhe a perna sobre o dorso e desliza para o
chão. Pousa Fignan e corre para eles.
— O que aconteceu? Que é isto?
— Almas — sussurra El Capitan.
— Almas — diz Helmud. Ela vê a faca no chão, pega-lhe e quase
começa a cortar as trepadeiras, mas El Capitan grita:
— Não. É pior. Elas voltam a crescer.
— O que queres dizer com isso?
Ele limita-se a abanar a cabeça.
— Não faças isso.
Ela ajoelha-se, estende os braços e segura o rosto de Bradwell entre as
mãos.
— Bradwell! — grita. Encosta a mão aos lábios entreabertos dele e
sente um ínfimo vestígio de ar quente. — Ele está vivo.
— Estamos ligados — diz El Capitan. — Vamos morrer juntos.
— Não — diz Pressia, olhando para as trepadeiras, que formam laços
intermináveis em torno dos seus corpos. — Tem de haver uma raiz. Se eu
conseguir chegar-lhe...
— Roubar as nossas almas — diz El Capitan.
— Almas — diz Helmud.
Pressia percorre as trepadeiras com os olhos frenéticos, em busca de
uma raiz comum. Pousa os dedos numa trepadeira delgada, esperando sentir
uma pulsação, um rasto de energia que possa seguir. Por fim, sente mais
tensão numa das gavinhas. Segue essa tensão ao longo das voltas e
reviravoltas da trepadeira em torno do corpo de Bradwell, cruzando o seu
peito, subindo por uma anca, passando à volta da perna. Agarra-se àquela
gavinha, sentindo uma vibração como se aquele fio estivesse realmente
vivo, como se algures, talvez nas profundezas da própria terra, houvesse um
coração a bater.
No ponto onde a trepadeira algema o tornozelo de Bradwell e passa por
baixo do tacão da sua bota, Pressia empunha de novo a faca. Prende a
trepadeira contra o chão com o seu punho da cabeça de boneca e corta o
mais depressa que pode. A trepadeira encolhe-se e recua para baixo de
terra, com um silvo de serpente.
Os espinhos partem-se, subitamente secos e quebradiços. Pressia
arranca um punhado de trepadeiras do peito de Bradwell, e outro que
percorre todo o braço de El Capitan, do ombro até ao pulso.
Assim que o seu braço fica livre, El Capitan começa a arrancar as
trepadeiras do seu corpo e do de Helmud, mas Bradwell tomba no chão. Só
agora Pressia vê o sangue. Há milhares de pequenos cortes no corpo dele.
Ela fá-lo rolar, de modo a ficar deitado de lado. As aves estão flácidas nas
suas costas. Se morrerem, isso significa que ele morrerá também?
Pressia segura o rosto dele nas mãos em concha.
— Bradwell! — chama. — Bradwell!
Ele não acorda, não se mexe.
— Cap — diz ela.
El Capitan abana a cabeça.
— Não me faças dizer essas palavras.
— Essas palavras — diz Helmud.
— Ele não vai morrer! — exclama Pressia. — Não vou deixá-lo.
— Agarra na camisa dele, toda perfurada e encharcada de sangue. —
Bradwell! Estou aqui! E a Pressia! — A voz falha-lhe. — Comichão no
joelho! — Ela grita as palavras do seu sonho com postes de telefone, as
palavras que tinham dito juntos quando julgavam que iam morrer de frio
nos braços um do outro. — Sol, ela vai!
Os olhos dele abrem-se, franzem-se. Ele comprime os lábios e
sussurra:
— Conseguiste?
— Consegui. Sim. — Pressia tem as mãos a tremer. Há muito sangue.
O centro da camisa está ensopado. Ela encontra um pequeno buraco, rasga a
camisa de cima a baixo. Ao longo do centro do peito, os espinhos
mastigaram uma incisão como se tivesse sido cortado por uma faca, como
se os espinhos fossem serrilhados como dentes.
Pressia começa a chorar.
— Está tudo bem — diz ela —, está tudo bem. Tudo bem.
— Pressia — diz Bradwell. — Eu não vou safar-me. Mas tu vais. Vais
salvá-los.
— Não! — exclama ela. — El Capitan, diz-lhe que vai ficar bem!
El Capitan abana a cabeça. Levanta-se pesadamente, apoiando-se ao
tronco de uma árvore delgada para se equilibrar.
— Não posso. — Estende a mão para outra árvore. Cambaleia em
direção ao cavalo, elegantemente parado no campo. Ela sabe que ele está a
dar-lhe privacidade. Está a dizer-lhe que chegou o momento de dizer o que
tiver para dizer — incluindo adeus.
Isso enfurece-a. Não vai dizer adeus, porque aquilo não é o fim. Pousa
as mãos no rosto de Bradwell. Está a chorar, lágrimas escaldantes, de raiva.
Está a chorar tanto que mal consegue falar.
— Vais ficar bem. Não podes morrer.
— Essa decisão não é tua — diz ele.
Ela enrola-se sobre si própria, sentindo os frascos da sua mãe enterrar-
se profundamente nas costelas, e lembra-se do Poeira perto do parque de
diversões, como a sua mão sarara e inchara, forte e musculosa. Tem duas
das seringas da sua mãe. Levam o corpo a regenerar as células. Por que não
as feridas de Bradwell?
— Posso tratar isso! — Ela puxa a camisola para cima e desenrola o
pano que segura os frascos no sítio. Ergue-os na mão. — Olha.
Ele meneia a cabeça.
— Quero morrer Puro, Pressia.
Ela abana a cabeça também.
— As drogas podem ser perigosas, mas este é o momento certo para
correr esse risco.
— Eu já sou Puro. Tu também. Deixa-me morrer assim. — Bradwell
estica a mão e toca-lhe no rosto. — Promete-me.
Ela faz um sinal de assentimento. Concordará com tudo o que ele
disser. Quer que ele fique com ela.
— Está bem — replica, como se estivesse a negociar com ele. — Mas
promete-me que vais ficar acordado. Não me deixes.
Ele abana a cabeça.
— Vais ter saudades minhas — declara.
— Ouve-me, Bradwell! Não podes ir.
Mas ele fecha os olhos. O seu rosto parece calmo, tranquilo. Ela
sussurra:
— Não, não, não.
Não pôde salvar a sua mãe ou Sedge. Não havia nada que pudesse
fazer. Mas desta vez há. Olha para o rosto de Bradwell, as duas belas
cicatrizes que lhe descem ao longo da face. Prometeu que o deixaria morrer
Puro. Prometeu.
Mas está desesperada. Nunca recuperará aquele momento — o
momento em que ainda é possível salvá-lo. Pousa as seringas no chão,
despe-lhe o casaco e faz um rasgão na parte de trás da camisa, expondo as
costas ensanguentadas e os três pássaros, cujos corpos estão ligados ao dele
para sempre. Dois já parecem mortos. Têm as garras hirtas, os olhos
vidrados. Mas o terceiro eriça as penas e pisca os olhos.
Pressia pega numa das seringas. Tem as mãos a tremer tanto que mal
consegue tirar a tampa da agulha. Enche-a rapidamente com o conteúdo do
frasco. Empurra o êmbolo apenas o bastante para libertar uma pequena gota
de líquido espesso, dourado.
Prometeu deixá-lo morrer Puro, mas não prometeu deixar os pássaros
morrer também. Eles estão ligados, Bradwell e os pássaros, para sempre.
Injetará os pássaros. É uma lacuna, uma lacuna louca.
Enfia a agulha por baixo das penas das costas de um dos pássaros e
injeta lentamente cerca de um terço do soro. O pássaro abre as asas e
debate-se por um momento ou dois, depois acalma. Pressia injeta o segundo
pássaro, depois o terceiro, até a seringa ficar vazia.
Rasteja por cima das pernas de Bradwell para o encarar de novo e
passa-lhe a mão pelo cabelo.
— Bradwell — sussurra. Ele não se mexe. Não pestaneja. Tem os
lábios entreabertos, mas não vai falar.
Pressia soluça, as costelas em convulsão. O coração palpita-lhe no
peito. Tapa a boca com a mão, depois diz a si própria que ele vai voltar. Ela
não pode perdê-lo, não agora. Já chegaram tão longe!
Ele está a voltar.
Está a voltar.
Ela deita-se no chão ensanguentado, a curva do seu corpo contra a
curva do dele.
Ele está a voltar.
Ela puxa-lhe o braço, pesado de músculos, passa-o em torno da sua
cintura. Olha para o campo. El Capitan e Helmud estão ao pé do cavalo,
cujo focinho se inclina para a erva.
De súbito, ouve respirar. O braço de Bradwell aperta-se à volta dela. A
sua mão cerra-se num punho.
Pressia vira a cabeça.
Os olhos dele estão esbugalhados.
Geme e grita de dor. Mesmo sob o sangue seco, ela vê a ferida no seu
peito nu, a pele e o músculo exposto, a coser-se sozinha. Cada pequeno
golpe fecha-se num nó de pele endurecida.
Bradwell diz o nome dela, apenas uma vez.
— Pressia.
Ela ouve o seu nome ao longe também. É El Capitan. Ouve uma voz
bonita a ressoar por entre as árvores, a cantar o nome dela. Será Helmud?
Levanta-se e vê El Capitan a correr para ela.
— Ele voltou! — grita Pressia. — Eu trouxe-o de volta!
O rosto de El Capitan está de uma palidez fantasmagórica, paralisado
numa máscara sombria. Aterrorizado.
— Que fizeste? — pergunta quando chega junto dela.
Então ela ouve um arrepio de penas, como o barulho das lâminas de
uma gigantesca ventoinha manual. Toca na árvore ao seu lado, com medo
de se virar. Ela sente a casca áspera por baixo da sua mão. Olha para El
Capitan. Tem a boca aberta, como se se preparasse para falar, mas não
consegue.
Tem de se virar e ver o que ele vê. Sente-se nauseada, mas roda a
cabeça, olha para trás por cima do ombro.
E lá está Bradwell. Vivo, mas numa agonia. Contorce-se no chão,
dobra-se e atira a cabeça para trás com a dor. Põe-se em pé, cambaleante, o
peito nu rasgado e agora a sarar, coberto de sangue, a fechar-se numa
cicatriz comprida e escura. Os seus braços parecem mais fortes e, por um
segundo, dá a impressão de que está a usar uma capa escura e grossa. Uma
capa de penas.
Mas Pressia sabe que não é uma capa. Sabe que os pássaros se
instalaram. Que pensava ela que aconteceria? Não sabe ao certo, mas não
aquilo...
Arqueando-se para ambos os lados das costas de Bradwell há asas,
grandes e elegantes, e não apenas um par. Não. Seis asas começam a agitar-
se nas suas costas. Com todo o corpo a tremer violentamente, ele fita
Pressia:
— O que me fizeste?
A voz dela fica presa na garganta por um longo momento, depois ela
conseguir finalmente dizer:
— Trouxe-te de volta.
Capítulo 76

Partridge
Beijo

Beckley está lá de manhã, a bater à porta com o que soa como a


coronha da sua arma. Partridge está vestido. A pílula está no envelope, num
dos bolsos das suas calças, e a lista está no outro. Devia destruir a lista, mas
não consegue. Precisa de ter uma verdade a que possa agarrar-se.
Quando abre a porta, não fica admirado por ver Iralene no corredor,
com os braços cruzados sobre o peito, os olhos a dardejar em volta
nervosamente.
— Estás pronto? — pergunta Beckley.
Partridge faz um sinal afirmativo, mas na verdade não está pronto.
Passou a noite a tentar analisar a situação à luz da lógica e concluiu que o
seu pai não vai matá-lo. O seu mindinho — agora já quase regenerado, com
um início de unha a formar-se sobre a última articulação — e a limpeza da
sua memória provam isso mesmo. O seu pai não faria nada disso se
tencionasse matá-lo. Para quê preocupar-se? Concluiu que Iralene deve ter
compreendido tudo mal, de algum modo. Apesar disso, não deixa ficar a
pílula. Persistirá alguma dúvida na sua mente? Talvez.
Usam as vias reservadas para seguir para o centro médico, pelo que
chegam um pouco antes da hora. Uma técnica introduz os três num quarto
particular.
— Pode esperar aqui fora — diz ela a Beckley. — Guarde a porta.
O quarto é pequeno e bege. Há uma cama coberta por um lençol de
papel branco enrugado, algumas cadeiras, um computador montado na
parede.
— Gostava de ver o meu pai antes do início do procedimento — diz
Partridge.
— Isso não faz parte do plano.
— Chegámos cedo e ele está cá, não está?
A técnica faz um sinal afirmativo, mas parece pouco à vontade.
— Não posso aprovar esse tipo de coisa.
— Então eu desejo falar com o Dr. Weed — diz Partridge.
— Não creio que o Dr. Weed tenha planeado uma consulta antes do
procedimento. Falará com ele depois.
Iralene passa o braço pelo de Partridge e dá-lhe um pequeno beliscão
acima do cotovelo. Vira-se para a técnica:
— Sabe quem ele é, não sabe? Ou, melhor dizendo, quem ele vai ser
um dia? Um dia em breve, percebe. Muito em breve.
A técnica esboça um sorriso que mais parece uma contração de uma
bochecha maquilhada com rouge.
— Partridge Willux — responde. — Claro que sei.
— E sabe também que o testamento do pai dele está lavrado e em
ordem. Já foi assinado. A transferência de poder para o seu filho será
imediata. Compreende onde quero chegar? Portanto, o Partridge gostaria de
ver o pai, está bem — Iralene inclina-se para ler o nome na chapa de
identificação da técnica —, Rosalinda Crandle?
— Vou contactar o Dr. Weed. Vou pedir-lhe permissão — diz a técnica.
— Com licença. — Sai apressadamente do quarto, que está equipado com
uma câmara montada num dos cantos.
Partridge puxa Iralene para si. Toca-lhe levemente na face e esconde o
rosto, aninhando-o no pescoço dela. Sussurra-lhe ao ouvido:
— Não vou fazê-lo. Ele não vai matar-me. Não bate certo.
Ela sorri — para a câmara. Dá-lhe um beijo na face e sussurra:
— Ainda não percebeste?
Ele abana a cabeça.
Ela aperta-o nos braços. Leva a mão à orelha dele e diz:
— Ele quer viver para sempre. Quer que o seu cérebro continue a
viver. O seu corpo não lho permite. Mas o teu...
O peito de Partridge é invadido por uma vaga de calor escaldante. O
meu corpo, pensa. O meu pai precisa do meu corpo. E de repente todas as
peças encaixam. É por isso que ele vai transferir poder para Partridge. Ele
será Partridge. Vai tentar um transplante. Jesus, é isso que a equipa de
investigadores de Arvin Weed descobriu? Era por isso que ele estava a ser
felicitado na festa de noivado? Quando o cérebro do seu pai estiver
transplantado para o corpo de Partridge, ele quer um mindinho totalmente
intacto?
Partridge inclina-se para Iralene. Sente-se tonto e nauseado.
— Por que não me disseste isso antes?
— Disse-te que ele ia matar-te. Não gosto de dar mais informações do
que as estritamente necessárias, em qualquer momento. Às vezes, os nossos
segredos são o nosso único valor.
Ele olha para Iralene.
— Mas isso significa... tu serias...
— Isso fez sempre parte do seu plano — diz ela, a sua respiração
quente no pescoço de Partridge. — Eu estava destinada a ti, mas se ele
conseguisse que aperfeiçoassem o transplante, então...
— Ficavas para ele?
— É o meu papel.
— E a tua mãe?
— Terá cumprido o seu dever. Não necessitará de mais recursos.
Partridge sente-se doente. Tem vontade de esmagar a câmara, dar um
murro no computador, atirar com a mesa de exame.
— Tinhas razão — prossegue Iralene ao ouvido de Partridge,
brincando com o seu cabelo. — Willux montou uma armadilha ao meu pai.
Meteu-o na prisão para poder ficar com a minha mãe. Tudo começou há
muito tempo, e muito longe. Mata-o. — A voz dela é baixa. Fá-lo.
Ele reconhece o poço de raiva que existe nela. Também o tem, e sente-
o a queimá-lo. Por si próprio, por Iralene, por todos os sobreviventes e por
todos os habitantes da Cúpula que tinham perdido entes queridos. Pela sua
mãe e o seu irmão. Perda. Tanta perda.
Mas há coisas que ainda não lhe parecem bem.
— O cérebro dele — diz Partridge. — Tem de estar a deteriorar-se tal
como os restantes órgãos, se não ainda mais depressa. Afinal, ele submeteu-
se a melhoramentos cerebrais. Por que julgará que transplantar o seu
cérebro devastado pela DRC para o meu corpo irá dar resultado?
Iralene afasta-se e agarra-lhe no mindinho.
— Desde que uma parte saudável do seu cérebro permaneça intacta,
desde que tenha condições onde possa prosperar...
Weed conseguirá regenerar o seu cérebro a partir da parte saudável
restante? Se é capaz daquele tipo de recriação com um mindinho, talvez
possa fazê-lo também com tecido cerebral.
— Está certo — admite Partridge, mas há um facto que ainda não faz
sentido. — Sei porque o meu pai pode querer ser transplantado para um
corpo sem cicatrizes, mas para quê roubar a minha memória? Não faz
sentido.
— Esperas mesmo compreender o teu pai? — Iralene fita-o com olhos
que parecem de aço. Sussurra: — Tudo o que sei é que vais ter quarenta
segundos antes que a cápsula se dissolva e liberte o veneno. Se não quiseres
que as câmaras vejam, deves... — Mas não termina a frase. Em vez disso,
estica-se nas pontas dos pés e dá-lhe um beijo leve nos lábios.
Batem à porta.
A técnica mete a cabeça pela ombreira:
— O Dr. Weed deseja que saiba que o seu pai também será submetido
a um ligeiro procedimento hoje. Algo cosmético. Estará anestesiado. Mas
tendo em conta que já não o vê há muito tempo, o Dr. Weed concedeu a sua
aprovação para uma visita curta.
— Ótimo — diz Partridge. Weed. Tratar-se-á de uma pequena
concessão? Será aquele o seu papel, afinal — fornecer uma pequena janela,
uma oportunidade para Partridge matar o pai?
— Beckley conduzi-lo-á lá. Mas, primeiro, tem de vestir uma bata
esterilizada.
— O meu pai está contagioso? — Aquilo talvez seja a pior coisa de
que se pode acusar alguém na Cúpula.
— Não, mas não queremos que o contacto consigo o faça adoecer.
— Diga-lhe que quero vê-lo sem essa tralha toda, a não ser que ele
esteja demasiado fraco.
A técnica fica ainda mais perturbada. Olha para Iralene, que se limita a
sorrir-lhe. Afasta-se em passo rápido e desaparece. Por fim, regressa e
acena apenas com a cabeça.
— Ótimo — diz Partridge. Sente que ganhou uma pequena batalha de
vontades. É bom manter o seu pai um tudo-nada inseguro.
Enquanto avançam pelo corredor, Partridge repara que há pequenos
grupos de pessoas a sussurrar.
— O que se passa? — indaga.
— Nada — sussurra Beckley.
— Quero saber.
— Um prisioneiro trazido do exterior. Um desgraçado. — Há médicos
a entrar e a sair, técnicos à disposição, alguns vestindo fatos de proteção
completos.
— Um desgraçado? — pergunta Iralene.
— Que está para aí a dizer? — objeta Partridge. — Como pode um
desgraçado entrar na Cúpula?
Beckley abana a cabeça e faz um sorriso presumido.
— Tenho ordens para não falar. Trata-se de uma informação altamente
classificada.
— Mas, Beckley, eu tenho medo — diz Iralene. Para e agarra no braço
de Beckley. Os seus olhos enchem-se subitamente de lágrimas. Partridge
não sabe bem como ela faz aquilo.
— Não tenhas medo, Iralene — diz Beckley. — Supostamente houve
um ataque à Cúpula, mas não surtiu grande êxito. Trouxeram um para
interrogatório e, provavelmente, para fazerem dela um exemplo.
— Dela? — pergunta Partridge.
— Bem, sim — diz Beckley —, mas ninguém diria que é uma
rapariga, com o cabelo rapado como está.
— Quero vê-la — declara Partridge.
— Pensava que querias ver o teu pai — diz Beckley.
— Partridge — diz Iralene —, devíamos respeitar o plano.
Mas Partridge não consegue evitá-lo. É irresistível. Uma rapariga do
exterior, uma rapariga de cabeça rapada. Tem de a ver. Começa a andar
rapidamente na direção do cacho de médicos e técnicos perfilados diante de
uma porta aberta. Beckley alcança-o e puxa-o para trás, com força.
Partridge gira sobre si mesmo com grande rapidez e agarra Beckley
pela garganta. Aplica uma pressão constante e, numa voz baixa e rouca:
— Estás aqui para me proteger, lembras-te?
Beckley sacode a cabeça: um ligeiro aceno afirmativo.
Partridge larga-o e brada pelo corredor:
— O que se passa aqui? — Os médicos e técnicos trocam olhares.
— Um caso clínico — responde um deles.
— Quero ver a paciente! — declara Partridge, dirigindo-se para eles a
passos largos.
— Não pode. Há a possibilidade de contágio — diz um dos médicos.
— Contágio? — pergunta Partridge.
— Ela esteve lá fora, senhor. Precisa... — O técnico interrompe-se a
meio da frase e olha em volta, sem saber o que pode divulgar.
— De quê?
Um médico adianta-se, barrando a passagem.
— De uma intervenção médica.
Moldes da Múmia. Bela barbárie. Uma faca.
Partridge dá um empurrão no peito do médico. Este embate na parede e
cai ao chão. Outros técnicos seguram Partridge por trás, mas ele liberta-se
de um e agarra no casaco de outro até conseguir virá-lo de costas e deixá-lo
esparramado no chão.
Partridge corre para o quarto. Há uma janela de vidro a separá-lo de
Lyda. Ela está sentada na borda de uma mesa de exame metálica. Veste um
fato branco e chinelos de papel.
O médico grita a toda a gente que disperse.
— Vamos circular! Vão tratar dos vossos assuntos! — Entra no quarto.
Iralene segue-o, com passinhos miúdos e rápidos. Beckley guarda a porta,
garantindo que toda a gente dispersa de facto.
O médico baixa a voz, tentando não gritar.
— Você não pode estar aqui! Está a entender?
Partridge não lhe presta atenção.
— É um espelho de observação unidirecional. Ela não pode vê-lo —
diz o médico.
Partridge bate no vidro e Lyda levanta o olhar.
O vestido dela, a sua textura nas mãos dele enquanto dançam sob um
teto de estrelas falsas.
— Temos de ir, Partridge — diz Iralene.
Partridge não lhe presta atenção também. Está a olhar para Lyda. As
maçãs do rosto angulosas, os olhos azuis. O corpo de uma criança fundido
com o corpo de uma mãe. Lyda a inclinar-se para conversar com a criança,
a segurar-lhe o queixo nas mãos. Lyda a caminhar através de um deserto
de cinza, a correr para ele, a beijá-lo numa rajada de vento. Ela está a
olhar na direção de Partridge, mas os seus olhos passam por ele sem o ver,
quase como se ele fosse transparente. Ele sente a dor aguda, o sentimento
vago de perda e nostalgia, mas agora tem um nome: Lyda. E aquele
sentimento de tristeza, que fazia com que o seu corpo parecesse pesado e
sem reação, agora sabe o que o provocava: aquele rosto. O rosto dela.
— Por que está aqui? O que se passa com ela?
O médico suspira.
— Ao que parece, foi impregnada enquanto esteve lá fora. Não
sabemos que tipo de criatura pode estar a enraizar-se. O mais provável é a
criança ser resultado de uma violação, pois todos nós sabemos muito bem
do que os desgraçados são capazes.
Partridge tem a impressão de que lhe sugaram o ar dos pulmões.
— O que disse?
— Grávida, senhor. A desgraçada que foi outrora Pura está grávida.
Partridge tenta engolir, mas tem a garganta seca. Os seus pulmões
continuam sem ar. Tudo parece ter parado de repente: Lyda está grávida. Os
seus olhos enchem-se de luz. Um céu varrido pelo vento, uma batalha
ruidosa, uma casa velha e periclitante, um quarto sem teto, uma armação
de latão oxidada sem cama. Lyda e ele, debaixo do casaco. Pele contra
pele.
— Tenho de falar com ela.
— Partridge, não — diz Iralene baixinho. Beckley entra na sala.
— Diz-lhe, Beckley. Ele não pode falar com a desgraçada! Agora, não!
— Não antes de veres o teu pai — diz Beckley. — Não é possível. Ele
vai submeter-se a uma intervenção cirúrgica e tu também. Não podes correr
o risco de contágio.
— Saiam! — brada Partridge. Olha para Iralene e insiste:
— Iralene! Sai! Sabes o que isto significa para mim! Sai!
Iralene solta um grito. Vira-se, entontecida, e estende a mão para o
ombro de Beckley. Falha o alvo, mas ele apanha-a quando ela sai aos
tropeções da sala e cai de mãos e joelhos no chão de ladrilhos. O médico
corre para o seu lado. Ela olha para Partridge por um momento, depois
revira os olhos e fica flácida.
Estava a fingir. Ele tem a certeza. Iralene consegue ser brilhante.
Aquilo dá a Partridge tempo para bater a porta e trancá-la. Ele tenta
respirar fundo, mas os seus pulmões parecem demasiado apertados. Lyda
está grávida. Não é uma criatura qualquer. É o seu filho, o filho de ambos.
Estão novamente na carruagem de metro destruída. «Flocos de neve
de papel», ouve-se dizer. «É quanto basta para te fazer feliz?» E Lyda
sussurra: «Sim. E tu.» Beija-o. «E isto.»
Partridge tira do bolso a lista em forma de quadrado. É o único papel
de que dispõe. Dobra-a em secções triangulares. Rasga a ponta, abre
rapidamente pequenos buracos dos lados com os dentes, depois rasga a
outra extremidade irregularmente. Tira o envelope do outro bolso e faz
deslizar a lista lá para dentro. Extrai a pequena cápsula e guarda-a de novo
no bolso. Fecha o envelope e cola-o.
Abre a porta. Iralene está no corredor, tendo sobrevivido muito bem ao
seu delíquio. Deram-lhe uma cadeira desdobrável. Beckley está ao seu lado.
O médico segura-lhe no braço, tomando-lhe o pulso. Quando Partridge sai,
ela levanta-se, puxando o braço das mãos do médico, e aproxima-se.
Ele entrega-lhe o envelope. Ela aperta-o contra o coração com uma
mão e rodeia o corpo dele com o outro braço.
— Nunca mais voltes a zangar-te assim comigo — diz ela.
Ele sussurra-lhe ao ouvido:
— Iralene, quero que a rapariga receba isto. Percebes?
Iralene faz que sim com a cabeça.
— Confio em ti — diz ele. — Tu confias em mim?
Ela faz novo sinal afirmativo. Às vezes ele esquece-se de como ela é
bonita, perfeita, de facto, e isso apanha-o desprevenido mesmo por baixo da
maquilhagem meticulosa: as feições delicadas, o queixo atrevido, os dentes
brancos e reluzentes. Está a sorrir para ele, mas a tristeza nos seus olhos é
evidente. O que quer que aconteça a seguir irá modificá-los. Partridge dá-
lhe um beijo na face. Isso surpreende-a. Leva a mão ao local.
Ele vira-se e caminha pelo corredor. As pessoas dispersam quando ele
se aproxima. Beckley não tarda a surgir ao seu lado. Caminham em
silêncio. A dinâmica de poder alterou-se. Agora Beckley tem um pouco de
medo dele. Conduz Partridge ao longo dos corredores, até se deter diante de
uma porta.
— É aqui?
Beckley confirma com um aceno. Partridge não sabe se Beckley o
odeia ou o respeita contra vontade.
Partridge abre a porta e Beckley entra no quarto atrás dele. Há outro
guarda ao lado da cama do seu pai.
— Preciso de um momento a sós com ele — diz Partridge a Beckley.
— Leva este guarda contigo.
Beckley cruza o olhar com Partridge, e por um segundo, este pergunta-
se se irá desafiá-lo. O jovem não desvia o olhar.
— Quero-vos aos dois de guarda à porta — afirma. — Quero este
tempo privado com o meu pai protegido.
— Com certeza — diz Beckley por fim, e faz sinal ao outro guarda.
Saem ambos.
Partridge aproxima-se da tenda retangular de plástico que rodeia a
cama do seu pai. A própria tenda parece respirar. Transborda de atividade,
com apitos, zunidos de máquinas, e os suspiros e silvos de uma pequena
caixa de ferro disposta em torno das costelas do doente. Tudo aquilo lhe
parece familiar. Partridge já ali tinha estado.
Tem de enfrentar o pai. Mas não pode cometer um assassínio. Não é
capaz. E não pode acreditar na história de Iralene, não inteiramente, porque
ainda não faz sentido: por que motivo se daria o seu pai ao trabalho de
mandar limpar a sua memória se só pretendia deitar fora o seu cérebro?
Puxa um dos lados da tenda de plástico. Os olhos do pai estão
fechados. A sua própria pele está a rejeitá-lo: ou está em carne viva, ou
enegrecida. Ambas as mãos se enrolaram para dentro e estão entaladas por
baixo do queixo. Mesmo a dormir, ele não para de tremer: uma paralisia que
não dá tréguas.
Mas o choque de ver o corpo do seu pai, tão torcido, destruído e gasto,
faz-lhe vir as lágrimas aos olhos. Aquele é o seu pai. Aquilo é o corpo dele.
Aquilo é a morte. A pele de seu pai, purulenta como se tivesse sido
escaldada por dentro, com partes cobertas por uma gaze de plasticina. Esta
brilha.
Sangue; uma névoa fina de sangue a explodir, enchendo o ar. O sangue
da sua mãe. O sangue do seu irmão. Partridge lembra-se de câmaras, não
do tipo que se encontra neste quarto, mas das minúsculas lentes nos olhos
da irmã. Ele está a gritar. Está enlouquecido. Por fim, para e lá está o rosto
da irmã, os olhos, a boneca; ele vê-a também. Lyda está lá, a chamar o seu
nome, só que aquela memória é silenciosa.
Partridge mete a mão no bolso. Apalpa a cápsula com a ponta dos
dedos indicador e médio. Há câmaras em cada canto do quarto, bem como
dentro da própria tenda, mas, mesmo que não as houvesse, ele não o faria.
Não é um assassino. É essa a diferença entre o seu pai e ele. Não pode
permitir que essa diferença se desfaça. Abana a cabeça e tira a mão do
bolso. Não o fará.
Os olhos do seu pai abrem-se.
— Partridge? — A sua voz é um gorjeio tosco.
— Pai. — O pai contorce os dedos de uma das suas mãos enegrecidas e
enroladas, fazendo sinal a Partridge para se aproximar. — Há uma coisa de
que preciso antes de...
— Antes de quê?
— Antes do fim.
O fim de quem? Do seu pai? De Partridge? A diferença entre um
assassino e os assassinados, a diferença entre o mal e o bem... parece tão
translúcida e frágil como um véu húmido.
— De que se trata? — pergunta Partridge.
O seu pai parece abalado. O seu rosto ensombra-se devido à dor física,
ou será uma emoção? Fecha os olhos com força, projeta o queixo para a
frente e, por fim, diz:
— Quero o teu perdão.
É isso que o seu pai quer? Perdão para todos os seus atos abomináveis,
por milhões de mortes, porquê?
— Diz-me — prossegue o pai — diz-me que me amas.
Partridge afasta-se bruscamente da barra de proteção da cama do pai.
Caminha em redor do quarto, com a impressão de que o azulejo branco
reluzente gira à sua volta. Foi por isso que o seu pai quis que a memória de
Partridge fosse limpa. Quer que Partridge saiba apenas o que sabia antes de
partir. O seu pai quer perdão para um punhado de crimes menores, das
coisas normais que os filhos têm contra os pais. Quer uma falsa absolvição,
palavras de perdão a passar pelos lábios do filho, um perdão que alastraria e
abrangeria os seus infinitos pecados.
E depois de receber esse perdão, o seu pai pode apoderar-se do seu
corpo. Partridge firma-se com o ombro contra a parede. O seu pai está a
escolher construir a sua própria verdade, uma verdade na qual o seu filho o
ama e lhe perdoa. Sente um fio de suor a escorrer-lhe pelas costas. O seu
pulso é alto e rápido. Mete a mão no bolso. Lá está a pílula, mesmo nas
pontas dos seus dedos.
— Partridge — chama o pai. — Vem cá.
Partridge enxuga o suor do rosto. Os seus dedos roçam na pílula.
Depois aperta-a entre o indicador e o dedo médio e esconde-a na palma da
mão, fechando o punho. Volta para a beira da cama, mas não consegue olhar
para a pele devastada e as mãos deformadas do seu pai.
— Isso é tudo o que quer? — pergunta, ofegante. — Apenas perdão?
Apenas que eu diga que o amo?
O seu pai faz um sinal afirmativo, com os olhos marejados de lágrimas.
Partridge leva o punho à boca, finge tossir e põe a cápsula debaixo da
língua. As câmaras pesam-lhe. Puxa a pílula escorregadia para a bochecha.
Passarão ainda quarenta segundos antes que a pílula se dissolva.
Partridge não vai precisar de quarenta segundos.
Agarra-se às barras da cama. Imagina por um momento o seu pai a
apoderar-se do seu corpo, da sua vida. Imagina o seu pai a viver um futuro
com Iralene. A tocá-la com as mãos de Partridge. E o próprio cérebro de
Partridge... desaparecido? Suspenso? Imagina Lyda — nunca mais a ver.
A sua mãe morta.
O seu irmão morto.
O mundo inteiro morto, morto, a morrer, e morto.
Debruça-se sobre as barras. O sangue aflui-lhe ao rosto, ao pescoço.
Sussurra para o pai:
— Nunca compreenderá o amor. Mas eu vou perdoar-lhe... com um
beijo.
O seu pai nunca os beijava, nem a ele, nem a Sedge, quando eram
crianças; nunca os abraçava. Ensinara-lhes a apertar as mãos, como
homens. Mas isto, esta absolvição, está sujeita às condições de Partridge, e,
ao inclinar-se e dar um beijo ao pai, sopra a cápsula da sua boca para lá dos
lábios do pai, até ao fundo da garganta dele.
— Perdoar-lhe? — diz Partridge. — Perdoar-me? Que importância tem
isso agora?
A garganta do seu pai prende. Ele engole. Os seus olhos avermelhados
arregalam-se. Reconhece aquele momento. Sabe o que Partridge fez.
Levanta a mão que parece uma garra e segura na camisa do filho.
— Tu és meu filho — diz ele. — És meu.
Capítulo 77

Lyda
Tremor

E um envelope voa por baixo da porta. Paira por um momento,


apanhando o ar, depois desliza até parar. Lyda olha para ele: é simples e
branco, um envelope vulgar ligeiramente volumoso no meio.
Apanha-o do chão. Imagina que é uma espécie de convite, mas sabe
que nunca será convidada seja para onde for ali dentro.
Faz deslizar um dedo por baixo da aba, descolando-a.
Um pedaço de papel rasgado e dobrado, com palavras escritas a lápis.
Parece desgastado, com buracos.
Tira-o e desdobra-o.
Um pequeno floco de neve de papel. O seu coração começa a bater
mais depressa.
Vê a marca fantasmagórica de palavras escritas de trás para a frente.
Vira o papel e vê as palavras a flutuar na página.
Lyda. Vê o seu próprio nome. Alguns números, como se se tratasse de
uma lista. As palavras capsulas e memória.
Só há uma explicação para aquele floco de neve.
Lyda olha para o espelho unidirecional. Ele estará ali? Tê-la-á visto?
Aquilo é o seu presente para ela, o que ele prometera dar-lhe quando
ainda estavam na carruagem do metro. Ele beijara-a nos lábios com tanta
suavidade. Leva os dedos à boca, lembrando-se do beijo. Ele está com ela.
Ele sabe que ela está aqui. Ainda estão ligados.
O floco de neve de papel treme-lhe na mão. Escapa-lhe do dedo e paira
no ar, para trás e para a frente, até cair no chão.
Capítulo 78

Pressia
Asas

Está tudo sossegado. Bradwell está deitado no chão, com o peito nu.
As suas costelas — maiores agora, mais pesadas — sobem e descem
rapidamente. Mas, tirando isso, está imóvel. Pressia tem estado de vigia e
acaba por rastejar para junto dele. O vento despenteia-lhe o cabelo, as asas,
uma das quais está enrolada em torno do seu ombro, qual abóbada
emplumada a proteger o seu corpo. A cicatriz sobe ao longo do centro do
seu peito. Ela toca-lhe e ele estremece, sem abrir os olhos.
El Capitan está sentado com as costas do irmão a descansar contra uma
árvore, a cerrar os punhos sobre a terra. Talvez El Capitan a ame de facto.
Ela pensa em Bradwell, El Capitan e Helmud, presos nas trepadeiras,
moribundos. Tem de acreditar que é melhor assim. Melhor. Tem de ser.
Fignan gira as suas rodas em falso. Não há para onde ir. O cavalo
relincha. Sacode a crina, que desce ao longo do pescoço grosso. Um animal
gigantesco com um coração gigantesco. Pressia não lhes contou de onde o
cavalo veio, nem das pessoas que viu no monte sagrado. Kelly está ali e
está vivo. Eles não estão sozinhos. Contudo, parece que estão
completamente sozinhos naquela terra, isolados.
Ela ouve o seu próprio coração a ressoar-lhe nos ouvidos: o seu
coração esfarrapado, selvagem, pulsante. É o mesmo som que ouviu
debaixo de água, quando estava a afogar-se, as batidas de um baixo
profundo, o resto do mundo quase silencioso. Faltou à palavra dada a uma
pessoa que ama.
Ela ama Bradwell.
Aí está. A verdade das coisas. Não é uma fraqueza e não é preciso
coragem. O seu amor por ele simplesmente é. Não tinham morrido juntos
no chão da floresta, com os corpos cobertos de gelo. Ela não podia deixá-lo
morrer aqui, sem ela. Isso será um amor egoísta? Se for, ela é culpada. Não
consegue pedir desculpa por o ter salvado, por o ter transformado naquela
criatura com três aves de asas gigantes nas costas.
Inclina-se para Bradwell, agarrando com firmeza o último frasco que
ainda resta, com a fórmula ainda guardada no fundo do bolso, e sussurra:
— Ainda és Puro. É só o interior que conta. Ensinaste-me isso.
Ela salvou-o, quer ele quisesse ser salvo, quer não. Já houve demasiada
perda.
Ele está vivo. Sedge, não. O seu avô, não. A sua mãe, não. O que lhe
diria a sua mãe? É impossível conhecê-la. O que diria o seu avô? Nada.
Limitar-se-ia a apertá-la nos braços, como fizera desde o princípio, quando
ela ainda era apenas uma estranha para ele, uma rapariguinha perdida que
nem sequer falava inglês. Itchy knee sun she go.
Pensa em Partridge. Onde estará agora? Alguma vez acreditara que ela
pudesse ir tão longe? Será que ela vai conseguir regressar?
Por alguma razão que não pode explicar, ela sabe que vão voltar. Há
algo que a chama a casa.
Talvez seja Wilda e todos os outros como ela. Pressia talvez ainda
possa salvá-los.
Pressia já não acredita unicamente neste mundo. É um mito. É um
sonho. E Newgrange é um lugar tocado por outro mundo. Talvez aqui ainda
existam pirilampos; talvez existam algures borboletas azuis, verdadeiras.
Talvez um dia ela veja o seu pai e ele a abrace e ela ouça as batidas do
verdadeiro coração dele. Não está sozinha. Faz parte de uma constelação.
Almas dispersas, almas iluminadas a brilhar intensamente.
— Itchy knee — diz ela para Bradwell.
Os lábios dele tremem. Ele sussurra:
— Sun, she go.

FIM DO LIVRO DOIS


Agradecimentos

Tantas pessoas participaram na tarefa brutal desta criação. Quero


agradecer aos meus fiéis agentes Nat Sobel, Judith Weber — toda a sua
equipa — e Justin Manask. Estou profundamente grata à Hachette — Jaime
Levine, Jaime Raab, Beth Deguzman, Selina McLemore, e o brilhante
departamento de arte — bem como à Hachette Reino Unido, em particular
Hannah Sheppard e Ben Willis, e a todos os meus dedicados editores
estrangeiros. Obrigada, Karen Rosenfelt, Rodney Ferrell, e Emmy Castlen
por acreditar nas possibilidades cinematográficas. Estou incrivelmente grata
por Heather Whitaker, que talvez um dia me deixe ler o seu trabalho.
Estou grata pelo trabalho de Andrew Collins, em particular o seu livro
The Cygnus Mystery: Unlocking the Ancient Secret of Life’s Origins in the
Cosmos. Mais uma vez, gostaria de agradecer a Charles Pellegrino pelo seu
livro Last Train From Hiroshima, que ainda não está disponível, mas espero
que chegue uma edição revista às livrarias em breve. Obrigada, Cheryl
Fitch por me ter convidado para uma visita à Molecular Cloning Facility da
Universidade Estadual da Florida. Ao guia turístico de Newgrange que nos
conduziu e ao rapaz que saltava para cima e para baixo na câmara escura,
ativando os seus ténis luminosos (Irlanda, a minha alma vacila.) Um
agradecimento especial a Rick Wilber. Estou grata pela vasta coleção de
colegas da Universidade Estadual da Florida — a amplitude e a
profundidade do seu trabalho é inspiradora. E, curiosamente, quero
agradecer à St. Andrew’s School. Já lá vai muito tempo, mas continua tudo
lá.
A minha família. Vocês, crianças. Dave. Amo-te com ternura. Quando
estou cansada, lembro-me que estou a construir isto para vocês.
E, novamente, a Trilogia Puros é algo que não existiria sem o meu pai,
Bill Baggott — demasiado gentil para os lobos, é o homem mais sábio que
conheço. Ensinou-me a ser curiosa, crítica e corajosa. Continua a ser o meu
dançarino interpretativo favorito e o melhor modelo que conheço de como
viver com o coração. Estou em profunda dívida para consigo, por tudo.
Paz
Sobre a Autora

Julianna Baggott, aclamada pela crítica, autora campeã de vendas que


também escreve sob os pseudónimos Bridget Asher e N.E. Bode, publicou
dezoito livros, incluindo romances para adultos, leitores mais jovens, e
compilações de poesia. O seu trabalho apareceu no New York Times,
Washington Post, Boston Globe, Best American Poetry, Best
CreativeNonfiction, Real Simple e na NPR.org, e foi lido no Talk of the
Nation da NPR e no Here and Now. Os seus romances têm integrado as
seleções de livros para o verão da revista People, foram livro da semana do
Washington Post, selecionados pela Booksense, pelo Clube de Livros do
Boston Herald e incluídos nas listas de Melhores Livros do Ano da Kirkus
Reviews. Os seus romances foram objeto de mais de cinquenta edições
estrangeiras. É professora da Faculdade de Artes Cinematográficas da
Universidade Estadual da Florida e fundadora da organização não lucrativa
Kids in Need — Books in Deed.

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