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Fernando Pessoa é, como vimos, um poeta rural sob cuja tutela se reúnem poetas
diversos, assumidamente diferentes de si, criações literárias com vida própria – os
heterónimos. Mas o poeta também foi ele-mesmo e com o seu nome assinou uma
obra também ela com características próprias. É uma obra vasta, a obra de Fernando
Pessoa ortónimo, mas apesar da sua complexidade, poderemos enunciar algumas das
linhas formais e de sentido que caracterizam a sua poesia lírica
Antes de mais, a poesia de Fernando Pessoa ortónimo é uma poesia marcada pela
procura incessante de uma verdade que o poeta sabe impossível de alcançar; a
decifração do enigma do ser. O ser, sabe-o Pessoa, é um mistério indecifrável
desde já porque procurar desvendá-lo é confrontar-se com a sua pluralidade, porque
ele é muitos, e sendo muitos é ninguém. Por isso, o poeta afirma negativamente o
impossível encontro com a sua identidade (“Não sei quem sou”, “Nunca me vi nem
achei”), da mesma forma que afirma negativamente a sua pluralidade (“Não sei
quantas almas tenho”).
A verdade é que o poeta não foge á fragmentação que o confronto com o seu plural
acarreta, antes a procura, como único caminho para o encontro consigo mesmo, já
que “Ser um é cadeia, /Ser eu não é ser”, mas sabe que esse é um caminho sem
retorno e que cada um dos fragmentos ou a totalidade dos fragmentos em que a sua
alma de estilhaçou jamais lhe devolverão a unidade perdida. Como afirma num
poema “Torno-me eles e não eu.” Ou num outro “Partiu-se o espelho mágico em que
me revia idêntico, e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.”.
Além é uma palavra que podemos associar á poesia de Fernando Pessoa ortónimo. É
que, impelindo pela sua permanente inquietação, sente que “tudo é do outro lado”,
tudo está para além do muro ou para além da curva da estrada. Por isso, o sonho é
preciso, é preciso ir ao encontro do jardim encantado ou da ilha do sul, mesmo que
saiba que os “sonhos são dores” e “que não é com ilhas do fim do mundo / que cura a
alma seu mal profundo”. Mesmo que o sonho o afaste da vida e dos outros, o impeça
de viver a vida como ela é ou parece ser. E é muitas vezes com resignação que aceita
o desajuste entre a realidade e o sonho, continuando que interrogar-se se este não
será mais real que aquela.
A criança que foi é como o gato que brinca na rua ou a ceifeira cuja sorte o poeta
inveja, já que sentem alegria e satisfação sem saberem que a sentem, ao contrário
do poeta que já não pode sentir essa alegria sem pensar nela, e consequentemente,
deixa-la de senti-la. “O que em mim esta pensando” afirma tristemente ao ouvir o
canto da ceifeira que “Ondula como um canto de ave”. A dor de pensar, é assim,
outro dos temas da poesia de Pessoa ortónimo, o poeta fingidor que procura escrever
distanciado do sentimento, já que a “composição de um poema lírico deve ser feita
não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela” e, por isso, a
poesia não pode ser a expressão directa de uma emoção vivida, mas a expressão
directa do rasto dessa emoção. Para Pessoa, a poesia é, pois, fingimento poético.