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J6 ALIÁS DOMINGO, 17 DE JANEIRO DE 2010

O ESTADO DE S.PAULO

Direitos humanos recicláveis


Conceito deixou de se aplicar a indivíduos reais para exprimir prerrogativas de coletividades imaginadas
WERTHER SANTANA/AE

Demétrio Magnoli
Samuel Pinheiro Guimarães, o
número 2 do Itamaraty feito se-
cretário de Assuntos Estraté-
gicos, renomeou os direitos hu-
manos como “direitos huma- QUINTA, 14 DE JANEIRO
nos ocidentais” e qualificou a
sua defesa como uma política
que dissimula “com sua lingua- Lula não muda
gem humanitária e altruísta as
ações táticas das grandes po- mais plano
tências em defesa de seus pró-
prios interesses estratégicos”. ●●● O Presidente Lula não fará
O ataque frontal aos direitos mais mudanças no PNDH-3, infor-
humanos é ineficaz e desquali- ma sua assessoria. Militares, Igre-
fica o agressor. Os inimigos ja, imprensa e agricultura reagi-
competentes dos direitos hu- ram ao plano de direitos huma-
manos operam de outro modo, nos. Lula recuou no caso de revi-
pela sua usurpação e submis- são da Lei da Anistia, principal
são a programas ideológicos es- ponto de atrito com os militares.
tatais. O Plano Nacional de Di-
reitos Humanos há pouco
anunciado é uma ilustração
acabada dessa estratégia. Des- rios do sistema internacional.
graçadamente, os movimen- Em contrapartida, pagaram o
tos e ONGs que falam em nome preço de uma renúncia jamais
dos direitos humanos não são explicitada, mas nítida e evi-
apenas cúmplices, mas inspira- dente, a fustigar as violações
dores da ofensiva de âmbito in- de direitos humanos pratica-
ternacional. das pelos Estados.
Apolítica internacionalde di- VANNUCHI – Plano reflete a intrincada teia de acordos firmados entre o governo, os chamados movimentos sociais e redes diversas de ONGs A“guerraaoterror”deGeor-
reitos humanos nasceu de fato ge W. Bush, com suas opera-
com a Declaração Universal democráticas, a pena de morte, preenchê-lo. Simultaneamen- ciais ou religiosas. A persegui- realmente esbulhado pela dis- ções encobertas de transferên-
dos Direitos Humanos de 1948. a discriminação oficial contra te,propiciou a aliançae a coope- ção à imprensa independente, criminação racial. O “índio” cia de presos para ditaduras
O texto célebre inscreve-se na imigrantes, o preconceito ra- ração entre as ONGs de direi- nas ditaduras e nos regimes de abstrato, “representado” pelo cruéis, suas prisões off-shore e
tradição da filosofia política cialnossistemasjudiciárioe po- tos humanos e os Estados. caudilho, adquire a forma da Instituto Sócio-Ambiental, se- suas técnicas heterodoxas de
das Luzes, que se organiza ao licial. Nada disso servia para a Sob o amplo guarda-chuva proteção de direitos sociais questrou a voz do grupo indíge- interrogatório, escapou relati-
redor do indivíduo. Ele procla- obtenção de financiamentos de dos direitos “de segunda gera- contra o “poder midiático”. A na concreto que não tem acesso vamente incólume do bombar-
ma direitos das pessoas, não de governos,instituiçõesmultilate- ção”, quase todas as doutrinas introdução de plataformas a remédios ou escolas. O Plano deio das ONGs amestradas. A
coletividades étnicas, sociais rais ou fundações filantrópicas políticas podem ser embrulha- ideológicas no sistema educa- de Direitos Humanos contem- submissão do sistema judicial
ou religiosas. Tais direitos cir- globais. O ramo dos direitos hu- dos no celofane abrangente dos cional é envernizada com a ce- platodas as coletividades fabri- da Rússia de Vladimir Putin às
culam na esfera política, mes- direitos humanos. A reforma ra dos direitos culturais. O mes- conveniênciaspolíticasdoEsta-
mo quando se referenciam no agráriapromotoradaagricultu- mo pretexto propicia um dis- doquasedesapareceudos rada-
mundo do trabalho ou da cultu- OFICIALIZAÇÃO DE UM ra camponesa converte-se num curso legitimador para a im- O ‘ÍNDIO ABSTRATO’ res dos ativistas. A vergonhosa
ra. Por esse motivo, a sua defe- GRUPO VITIMIZADO DÁ direito humano, tanto quanto a plantação de políticas de prefe- OFUSCOU A TRIBO deportação dos boxeadores
sa solicita, sempre e inevitavel- coletivizaçãogeraldaterra,que rências étnicas ou religiosas no cubanos por um governo brasi-
mente, o confronto com o poder PRIVILÉGIOS A SEUS é o seu oposto, segundo a vonta- acesso aos serviços públicos, QUE NÃO TEM ACESSO leiro disposto a violar tratados
político que viola ou nega direi- ‘REPRESENTANTES’ de soberana do poder estatal de ao ensino superior e ao merca- A REMÉDIO OU ESCOLA internacionaisprecisosnãome-
tos. A Declaração de 1948 é, es- turno. O Plano de Direitos Hu- do de trabalho. O Plano de Di- receu uma denúncia no âmbito
sencialmente, um instrumento manos apresentado pelo gover- reitos Humanos contém um daOEA. O fechamento de emis-
de proteção dos indivíduos con- manosnão era umbom negócio. no Lula declara o “neoliberalis- pouco de tudo isso, refletindo a cadaspela “políticade identida- soras de TV e a nova figura dos
tra os Estados. Não é fortuito O giro estratégico começou mo”, rótulo falseador usado co- intrincada teia de acordos fir- des”, inclusive as quebradeiras prisioneiros políticos na Vene-
que seus detratores clássicos há menos de duas décadas, por moreferênciagenéricaàspolíti- mados entre o governo, os cha- decoco.Aoreconhecimento ofi- zuela não merecem manifesta-
sejamos arautos das utopias to- meio de uma reinterpretação cas de seu antecessor, como um mados movimentos sociais e re- cialdecada umadessascoletivi- çõessignificativasdosaltosexe-
talitárias: o fascismo, o comu- fundamentaldosdireitoshuma- atentado aos direitos humanos. des diversas de ONGs. dades vitimizadas correspon- cutivos de direitos humanos. A
nismo, o ultranacionalismo, o nos. As ONGs inventaram a te- As políticas assistenciais de dis- A revisão do significado dos de uma promessa de privilé- agressão recente à blogueira
fundamentalismo religioso. se útil de que os direitos huma- tribuição de dinheiro transfigu- direitos humanos empreendi- gios para seus “representan- cubana Yoani Sánchez não ge-
Na sua fase heroica, as ONGs nos, tal como expressos na De- ram-se em princípios indiscutí- daporiniciativadas ONGsesva- tes”, que são ativistas interna- ra nem mesmo uma protocolar
engajadas na defesa dos direi- claração de 1948, representam veis de direitos humanos. Aqui ziou o sentido original da políti- cionais do próspero negócio nota de protesto das organiza-
tos humanos figuravam na lista apenasdireitos “deprimeirage- ao lado, em nome dos direitos ca internacional de direitos hu- dos direitos humanos. ções que redigiram junto com
de desafetos dos Estados, inclu- ração”. Eles deveriam ser com- “de segunda geração”, Hugo manos. Eles deixaram de expri- Os direitos humanos de “se- Paulo Vannuchi o Plano de Di-
sive das democracias ociden- plementados por direitos eco- Chávezdestróimeticulosamen- mir direitos dos indivíduos gunda geração” e “terceira ge- reitos Humanos. De certo mo-
tais.Elasdenunciavamimplaca- nômicos, “de segunda gera- te aquilo que resta da economia reais para se transfigurarem ração” diluíram os direitos hu- do, Samuel Pinheiro Guima-
velmente a censura, a repres- ção”, e direitos culturais, “de produtiva venezuelana. em direitos de coletividades manos. AsONGs de direitos hu- rães triunfou. ●
sãopolítica,as detençõesilegais terceira geração”. A operação Os direitos“de terceira gera- imaginadas. O“negro”ou “afro- manos incorporaram-se à pai-
e as torturas promovidas pelos de linguagem gerou um oceano ção”,por sua vez, funcionam co- descendente” genérico, supos- sagem geopolítica das institui- *Sociólogo e doutor
regimes tirânicos, mas também de direitos indefinidos, um li- mo curingas dos tiranos e das tamente representado por uma ções multilaterais e seus ativis- em Geografia Humana
as violações cometidas pelos vro vazio a ser preenchido pe- lideranças políticas que fabri- organização política específi- tas ingressaram numa elite pela USP, é colunista
serviços secretos das potências los detentores do poder de cam coletividades étnicas, ra- ca, tomou o lugar do indivíduo pós-moderna de altos funcioná- de O Estado de S. Paulo

da repressão política de 1964 a adoção. Em 2008, a Corte Euro-

O fato é que a sociedade 1985. A jurisprudência interna-


cional reconhece que leis de
anistia violam obrigações no
campo dos direitos humanos. A
peiadeDireitos Humanosinedi-
tamente condenou a França
por afronta à cláusula da igual-
dade e proibição da discrimina-

já discute o PNDH-3
Corte Interamericana conside- ção, ao ter impedido uma pro-
rou que essas leis perpetuam a fessora francesa, que vive com
impunidade, impedem o acesso sua companheira desde 1990,
à Justiça de vítimas e familiares de realizar uma adoção. No dia
e o direito de conhecer a verda- 8 de janeiro, Portugal une-se à
de e de receber a reparação cor- Bélgica, Holanda, Espanha, No-
Segundo jurista, mérito do plano foi alargar debate sobre direitos humanos no País respondente,consistindo numa ruega e Suécia, países que per-
direta afronta à Convenção mitem o matrimônio entre ho-
Americana. Destaca-se o caso mossexuais.
VICTOR RUIZ CABALLERO/REUTERS AlmonacidArellanoversusChi- Sobre a liberdade religiosa, o
Flávia Piovesan* suas diretrizes”. Espelha a pró- le, em que a mesma corte, em PNDH-3 propõe a construção
pria história dos direitos huma- 2006, decidiu pela invalidade de mecanismos para impedir a
O terceiro Programa Nacional nos, que, como lembra Norber- do decreto-lei 2191/78 – que pre- ostentação de símbolos religio-
de Direitos Humanos (PN- to Bobbio, não nascem todos de via anistia aos crimes perpetra- sos em estabelecimentos públi-
DH-3) tem como mérito maior uma vez e nem de uma vez por dos de 1973 a 1978 na era Pino- cos.UmadecisãodaCorteEuro-
lançarapautadedireitos huma- todas. Direito ao meio ambien- chet – por negar justiça às víti- peia de 2009 condenou a Itália a
nos no debate público, como po- te, ao desenvolvimento susten- mas,bemcomocontrariarosde- retirar crucifixos de escolas pú-
lítica de Estado, de ambiciosa tável, à verdade, à livre orienta- veres do Estado de investigar, blicas, em nome do direito à li-
vocação transversal. çãosexual,aosavanços tecnoló- processar, punir e reparar gra- berdadereligiosa.NoEstadolai-
São 521 ações programáti- gicos, direitos dos idosos, entre ves violações de direitos huma- co, todas as religiões merecem
cas, alocadas em seis eixos outros, são temas da agenda nos que constituem crimes de igual consideração e respeito,
orientadores: interação demo- contemporânea de direitos hu- lesa-humanidade. não podendo se converter na
crática entre Estado e socieda- manos. O programa reflete as voz exclusiva da moral de qual-
de civil; desenvolvimento e di- complexidades da realidade quer religião.
reitos humanos; universalizar brasileira, a conjugar uma pau- DIREITOS HUMANOS Senaépocadosregimesdita-
osdireitoshumanosemumcon- ta pré-republicana (por exem- NÃO NASCEM TODOS toriais a agenda dos direitos hu-
texto de desigualdades; segu- plo, o combate e prevenção ao manos era contra o Estado,
rança pública, acesso à Justiça trabalho escravo) com desafios DE UMA VEZ NEM DE com a democratização os direi-
e combate à violência; educa- dapós-modernidade (comoofo- UMA VEZ POR TODAS tos humanos passam a ser tam-
ção e cultura em direitos huma- mentoàstecnologiassocialmen- bém uma agenda do Estado –
nos; e direito à memória e à ver- te inclusivas e ambientalmente que combina a feição híbrida de
dade. O PNDH-3 é fruto da 11ª sustentáveis). Quanto ao aborto, o PNDH-3 agentepromotorde direitoshu-
Conferência Nacional de Direi- O primeiro PNDH, lançado endossa a aprovação de projeto manose,porvezes,agenteviola-
tos Humanos, de dezembro de porFHC, em1996, contemplava deleique descriminalizaoabor- dor de direitos.
2008; um processo aberto e plu- metas em direitos civis e políti- to, em respeito à autonomia das OPNDH-3desdejáprestaes-
ral, contando com a participa- cos. Em 2002, são incluídos os mulheres. A ordem internacio- pecial contribuição ao ampliar
ção da sociedade civil e de ato- direitos econômicos, sociais e nal recomenda aos Estados que e intensificar o debate público
res governamentais, no exercí- culturais. O PNDH-3 atualiza e assumam o aborto ilegal como sobre direitos humanos, ace-
cio democrático marcado por amplia o programa anterior. O uma questão prioritária e se- nando com a ideia de que não há
“tensões, divergências e dispu- novo programa é reflexo da jam revisadas as legislações pu- democracia, tampouco Estado
tas’,comoreconhecidonoprefá- abrangência que os direitos hu- nitivas em relação ao aborto, de Direito, sem que os direitos
cio ao PNDH-3. manos assumem desde a Decla- considerado um grave proble- humanos sejam respeitados. ●
Os diversos ministérios fo- ração Universal. ma de saúde pública.
ram convidados a participar Como noticiado, a mais polê- A respeito das uniões ho- *Professora de Direitos
desse trabalho, contando o PN- mica é a criação da Comissão moafetivas, o PNDH-3 apoia a Humanos; procuradora
DH-3comsuasassinaturas,ten- Nacional da Verdade para exa- união civil entre pessoas do do Estado de São Paulo e
do em vista a “transversalidade minar violações de direitos hu- mesmosexo,assegurando os di- membro do Conselho de Defesa
e a interministerialidade de manos praticadas no período NO CHILE – Museu aberto há dias relembra as vítimas da era Pinochet reitos dela decorrentes, como a dos Direitos da Pessoa Humana
DOMINGO, 17 DE JANEIRO DE 2010
O ESTADO DE S. PAULO
ALIÁS
ALIÁS J7
J7

Até onde ir com a verdade?


Podemos admitir o relativismo, mas é preciso erigir um museu com fatos que permaneçam imunes ao tempo
ARQUIVO/AE–27/9/1979

Renato Lessa*
absolutos estão sujeitos a apli-
cação implacável e automática
Em tempos de lassidão relati- dajustiça por partede vencedo-
vista, algumas experiências tal- res indisputados. Nestas pla-
vez mereçam abrigo em uma gas, quem se habilita a ocupar,
espécie de museu de verdades à vera, tais posições?
imunes ao tempo. Deixo a dis- Melhor seria ter a coragem e
cussão a respeito do que po- ocaráterdetomaraLeida Anis-
dem significar as peças do acer- tia ao pé da letra, e estender a
vo dessa improvável institui- todosos envolvidos seusbenefí-
ção. Contento-me com a reles cios, o que inclui os tais crimes
possibilidade de um depósito conexos.Porém,háumaexigên-
de eventos, a espera da inevitá- cia: é fundamental saber quem
vel incursão dos intérpretes. está a ser anistiado e por qual
De minha parte, agarro-me ao razão. A condição de usufruto
lema: sejamos relativistas, da anistia exige o reconheci-
mas cuidemos domuseu de ver- mento público de algo que, em
dades imunes ao tempo. algum momento foi de fato fei-
Sustento ser fato indisputa- to, com data, hora e lugar.
do que, assim como estou a es- Devem ser anistiados os en-
crever este artigo, em março volvidos com a usurpação de
de 1964 um governo legítimo 1964, os que mataram e tortu-
foi, no Brasil, deposto por um ram e os que os comandavam.
golpe de Estado. Ainda que A ênfase na punição para fins
uma aloprada interpretação re- estritamente penais dá azo à
visionista insista em atribuir a odiosa cultura do veto e da pre-
vítimas do golpe em questão os tensão da tutela dos comandan-
motivos centrais para a sua tes militares sobre a Repúbli-
perpetração, tratou-se este, ca. Mas, a eventual alopração
sim, de uma incursão que des- por parte de um esquerdismo
truiu para sempre o ambiente inócuo e reduzido à simbologia
político e institucional da Repu- ressentida – simpatias chavis-
blica de 1946. Os méritos do dis- tas e acenos ao Hamas y com-
parate pertencem exclusiva- pris – é menos grave do que a
mente aos golpistas, e não a PROTESTO, 1979 – Para se conceder anistia é fundamental reconhecer publicamente que algo ocorreu, quem deve ser anistiado e por que razão (in)disposição militar diante
suas vítimas. Seu sucesso na da questão. A gravidade reside
empreitada, por maioria de ra- Castello Branco, já que segun- praticou-se uma pantomima le- revisionista desqualificar o te- des imunes ao tempo, ao mes- no fato de que mais do que não
zão, exige que consideremos do a Lei da Anistia, de 1979, gitimista que, pela repetição e ma da tortura e da violação dos mo tempo em que fixou sobre o admitir que torturadores e
sua pretensão de governar o além dos atos praticados pelos ausência de alternativas, deu direitos humanos pela suposi- acervo interpretações preci- seus comandantes venham a
país como ilegítima. que se opuseram à ditadura, azo a uma expressão que sem- ção de que os que combateram sas. Com idas e vindas, milita- ser punidos, os chefes milita-
Ilegítimos foram, portanto, “crimes conexos” estariam co- pre me intrigou: a da “institu- o regime de 1964 não seriam de- res genocidas foram reconheci- res recusam a ver seus camara-
os governos e os atos que segui- bertos. Pois bem, a mãe dos cionalização do regime”. Na mocratas legítimos, mas agen- dos pelo que foram. Os feitos das antecessores como anistiá-
ram ao ato inaugural de 31 de tais crimes conexos foi a inten- verdade, aí reside o grande su- tes protototalitários. do capitão Astiz – heroico no veis, pois estão convictos de
março de 1964. Trata-sede tona de 1964. Então não? cesso da empreitada: passar O que hoje está em jogo é assassinato de freiras france- que não há nada no passado re-
uma ilegitimidade com forte de quartelada a regime, e disso saberque lugar ocupará a expe- cente das corporações milita-
componente alucinatório, de- a um “modelo político” pró- riência dos anos da ditadura na res que exija autocrítica e arre-
votada a extrair de dentro de si OS MÉRITOS DO prio, pretensamente institucio- longa duração histórica do CHEFES MILITARES pendimento.
mesmacrenças e rituais de legi- nalizado. Chamemos a isso de país. Em uma camada ainda Que apareçam os corpos dos
timação. Assim, reacionários
DISPARATE DE 1964 “lavagem de regime”. Para co- mais profunda, trata-se de sa-
NÃO VEEM MOTIVOS desaparecidos, que se abram os
empedernidos e saudosos dos PERTENCEM APENAS roar, uma transição para a de- ber do lugar reservado ao es- PARA AUTOCRÍTICA arquivos e que se peça descul-
idos de março de 1964 chegam AOS GOLPISTAS mocracia feita pelas regras do quecimento e ao tabu nas nar- OU ARREPENDIMENTO pas ao País pelo despautério.
às lágrimas ao ressaltar o lega- próprio regime. Como não há rativas a respeito da experiên- Que se mostrem, enfim e para o
lismo (sic) do marechal Cas- notícia de regime que tenha fei- cia histórica da nação. E é aqui devido perdão, os anistiáveis
tello Branco, o primeiro dos Volto ao componente aluci- to regras para que desapare- que se apresenta o maior sari- sas e covarde na Guerra das perpetradoresde“crimescone-
usurpadores. Desde já, adianto natório. O regime – e chamá-lo cesse, algo de incomum deve lho: o modo de inscrever o pas- Malvinas – estão inscritos inde- xos”. Assim, completamos o ci-
que uso o termo “usurpador” assim já constitui um ato inde- ter ocorrido. sado em nossas narrativas de- levelmente na filial portenha clo da anistia. Sem punições a
como substantivo, a designar vido de promoção ontológica – Alguns se opuseram à pre- pende das erráticas condições do museu ao qual aludi. montante, mas sem lacunas no
agente que obtém, sem direito buscou em si mesmo um arse- tensão alucinatória, pelas ar- do presente. Nada, pois, mais Por cá, o enquadramento da acervo do museu de verdades
prévio a isso, algo que não lhe nal de bruxarias institucionais mas ou pela paciente sedimen- distante dos marcadores inego- resposta às questões acima in- imunes ao tempo. ●
foi atribuído segundo devido para apresentar-se de modo tação de uma resistência não ciáveis contidos nas ideias de dicadas foi fixado pela Lei de
procedimento legal. Não falo, limpo e legal. Nada de seme- violenta. Os que caíram nas ma- verdade e justiça. Na Argenti- Anistia, de 1979, e por altera- *Professor titular de filosofia
pois, da alma ou dos sentimen- lhante ocorreu com vizinhos lhas da repressão conheceram na, uma ditadura derrotada ções sucessivas. Imaginar sua política do Instituto Universitário
tos do marechal em questão, do Cone Sul. Por lá, golpistas, o destino que se apresenta aos deu passagem a um regime que revogação, para fins penais, é de Pesquisas do RJ (Iuperj)
mas de seus atos e escolhas pú- quando não cuidavam do exter- humanos quando submetidos nada lhe devia. O momento pós- algo que não combina com a na- e da Universidade Federal
blicas. Penso mesmo que estou mínio de opositores, golpea- de modo absoluto a celerados. autoritário, naquele país, pôde tureza do processo que nos li- Fluminense e presidente do
disposto a anistiar o marechal vam-se mutuamente. Por aqui, Quer um repugnante exercício organizar seu museu de verda- vrou da ditadura. Perdedores Instituto Ciência Hoje

O excitante amor ao diferente


Estudante de direito e filha de professora universitária ajuda namorado, office-boy procurado pela Justiça, a assaltar a própria mãe
FOTOMONTAGEM DE ALEX FREITAS

Jorge Forbes* cia divina, substituída pela


transcendência da razão no Ilu-
Repelente. minismo,alcança-se,na globali-
A filha, ao mesmo tempo que zação, a “transcendência da
se despede da mãe que está in- imanência”. Vale uma explica-
do para a missa, pedindo que ção: ao contrário do que se pode
lhe trouxesse um doce quando SEGUNDA, 11 DE JANEIRO imaginar, os tempos atuais de
voltar,falaaotelefonecom ona- forte individualismo não cami-
morado,passando ascoordena-
dasdosmovimentosdamãe, pa- Roubando nham para o isolacionismo,
mas para a rede social. E é na
ra que o assalto planejado pelo
bando desse namorado seja fei- a mãe rede social, no confronto com o
parceiro,que cada pessoa tem a
to com a melhor precisão. ocasião de perceber o que
De uma só vez essa menina, ●●● Em Nova Iguaçu, RJ, um Freud chamou de “o estranho’,
de cara angelical e voz infantili- grampo telefônico flagrou Lauren “Das Unheimlich”. Quando nos
zada,consegue romper dois dos Mayá Portella, de 19 anos, orien- encontramos com alguém,
principais tabus sociais: mãe e tando o namorado, Marcos Viní- mais claro fica que alguma coi-
religião. Com mãe e Deus não se cius de Almeida, sobre como as- sademimfaltaaoencontro,exa-
brinca,ditavaacartilhadequal- saltar, com sua quadrilha, a mãe tamenteessacoisaestranha,es-
quer meliante. Quando os “into- de Lauren. O casal escapou da sa transcendência da imanên-
cáveis” do laço social começam ação policial para prendê-lo. cia, essa falha na minha intimi-
a desmoronar, com justa razão dade, esse “êxtimo”, como o no-
háumalertageral,eessapeque- meou Lacan. Pois bem, depois
nanotíciaveiculadanessasema- não haveria uma forma de se fa- Seráqueospaispoderiamexpli- cuidado em se pensar que final- tendência da globalização é de do divino e da razão, é essa inti-
na fica incomodando tal qual lar, sem ser condenado por sua car isso a seus filhos e, especial- mente somos todos iguais. Não, sublinhar um novo valor da fa- midade estranha que servirá de
uma espinha, ao lado de tragé- opinião? Vejamos. mente, a si próprios? E mais, ao contrário, o que fica evidente mília, que não é desmentido pe- guia ético para o novo tempo.
dias bem mais retumbantes. Quando pessoas convivem nem sempre o que é explicado é que somos todos diferentes, o lo grande aumento dos divór- Sua estranheza exigirá de cada
A menina é loira, estudante por muito tempo, de duas, uma: tem que ser entendido. Pais não que exige muito mais responsa- cios, se entendermos a lógica. A um duas coisas: invenção e res-
de direito, filha de professora ou elas têm muita coisa a repar- devem temer o mal-entendido; bilidade em qualquer relação. família será o centro da respon- ponsabilidade.Inventarumsen-
universitária e de procurador tir – interesses, valores cultu- Se não for assim, estão abertas sabilidade ética – disse ética, e tido para o que não tem, para o
de Justiça. O menino é moreno, raiseéticos–,ouelas,sendomui- as portas à esculhambação ge- nãomoral – dasociedade. Famí- estranho, e se responsabilizar
office-boy, procurado pela Jus- todiferentes,tentamanularadi- QUE NINGUÉM VENHA neralizada:aoestupro demeno- lia, grosso modo, é do que nos pela sua publicação no mundo.
tiça. Silêncio: cuidado com pen- ferença que as afasta, hipertro- DIZER QUE O MENINO res, ao furto de velhinhas, ao queixamos com mais veemên- Se ontem as famílias esta-
samentos politicamente incor- fiando os prazeres básicos se- roubo de mães. cia e paixão. É o grupo do qual vam a serviço da República,
retos sobre essa união. Que nin- xuais e anulando qualquer ou- É O LOBO MAU DESSA Não houve quem não asso- maisseespera oreconhecimen- mandando seus filhos para a
guém venha falar que o menino tro sistema de laço social que as DOCE CHAPEUZINHO ciasse esse incidente carioca to que nunca chega e a com- guerra, por exemplo, hoje, a
éolobo mau dessadoce chapeu- distancie.Logo, odesastrenão é com o assassinato de um casal preensão impossível de sua República deverá servir às fa-
zinho. Nem a mãe nem o pai da decorrente do fato de um ser su- em São Paulo, com a participa- dor. É na insatisfação da família mílias. É o remédio contra o
meninanadadevem terdito,da- postamente melhor que o outro, nãohá um bompai, ouboa mãe – çãodafilhaigualmenteestudan- que cada um lapida o que lhe que nos repugna: uma filha fi-
da a convivência íntima por mas de que, quanto mais distan- seja o que for que entendamos te de direito. (Nada de conclu- falta, a saber, o seu desejo, pois car de campana para a mãe ser
dois anos, em sua casa. Tem tesforem,maisprimária,nosen- por isso – que já não tenha ouvi- sões precipitadas sobre as estu- não há desejo sem falta. assaltada. ●
muito pai e mãe que não falam tido de menos elaborada, será a do “eu não gosto de você” de um dantes de direito...) Será que a Luc Ferry, em livro recente,
mais nada para seus filhos, hoje relação,necessariamente.Odu- filho. Logo, pais, não recuem família vai desaparecer, como Famílias, Amo Vocês – Política e *Psicanalista, preside o
em dia, amordaçados pela pa- ro, a se acrescentar, é que o quandonãoconcordarem,quan- pensam alguns? Será que a fa- Vida Privada na Era da Globali- Instituto da Psicanálise
trulha do politicamente corre- amor entre os diferentes é mui- do não aceitarem. mília é uma relação como outra zação, defende a ideia de quede- Lacaniana – Ipla e dirige a
to. Se disserem alguma coisa, tas vezes mais excitante do que Nessa sociedade que perdeu qualquer?Contrariando obom- pois da era na qual os humanos Clínica de Psicanálise do Centro
estarão discriminando. Mas a modorrice dos semelhantes. os parâmetros há que se tomar senso, que sempre pensa mal, a se guiavam pela transcendên- do Genoma Humano – USP

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