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A VOZ QUE NÃO QUIS SE FAZER OUVIR

AGURMENTO DE MARCELO ASSIS DA SILVA

Luís Eduardo, 60 anos, viúvo, 1,75m, 80 kg, cabelos grisalhos é professor de Literatura
na UFRJ. É considerado por quase todos os alunos o melhor professor da Instituição. É
visível para todos seu amor e profunda paixão pela matéria que leciona. Quando fala aos
alunos seus olhos brilham e parece está em êxtase. Todos são contagiados pela energia
poderosa que emana do mestre. Além disso, ele é muito generoso com os alunos sempre
disposto a ajudá-los e os incentivando a exercitarem sua criatividade e a liberdade de
pensamento.

No entanto, acabando a aula ele se transforma por completo, parece um quarto de século
mais velho. Seus olhos de brilhantes se tornam opacos, sua expressão do êxtase para o
melancólico, sua postura de ereta e confiante para um andar pesado e arrastado. É
visível sua imensa infelicidade

Ninguém entende o que ocorre com o pobre mestre e a razão dele ser tão infeliz. Muito
se especula sobre o seu sofrimento, mas a causa é uma só: Luís queria ser um grande
escritor e sabia que talento não lhe faltava para isso, que era essa sua missão nesse
mundo. Em seu mundo interior criava tantas histórias, cada uma mais fantástica e
original que outra, nada que ficasse devendo aos grandes nomes da literatura que
ensinava com tanto amor a seus alunos. Mas essa riqueza interior se perdia no momento
em que ele tentava realizar a tradução da sua rica linguagem interior para a exterior.
Havia uma ponte faltando, impedindo que tal acontecesse. Toda aquela riqueza com
seus fantásticos tesouros se perdia no vão esforço entre sua enorme energia criativa e
sua incapacidade de transforma suas criações em algo palpável no mundo físico.

Por isso, sentia que vivia pela metade, que era como uma ave que não podia voar a não
ser em sua imaginação, que nunca teria a glória que lhe era devida, que suas belas
histórias nunca seriam conhecidas, que passaria por essa vida sem deixar um filho seu
no mundo. Nem filhos biológicos pode ter, infelizmente, Luís era destes homens que só
conseguem amar uma vez e o objeto desse amor havia falecido há muitos anos atrás.

Era Sílvia, sua esposa, com que fora casado apenas dois anos. Ela era uma mulher, se
não das mais lindas, acima da média, era loira, dona de lindíssimos olhos castanho-
claros, uma pele levemente rosada, baixa, e tinha o corpo bem feito. Era, também, muito
simpática e o amava tanto quanto ele a amava e ambos amavam a Literatura com igual
intensidade. Casaram-se quando ambos se formaram aos 22 anos. Ela não tinha a
vocação do marido, mas acreditava piamente no talento dele e lhe pediu que um dia
escrevesse um livro sobre a linda história de amor dos dois, que se conheciam desde
crianças, mas agiam como inimigos, implicando um com o outro, até que aos 16 anos
resolveram dar o braço a torcer e se renderam ao amor que sentiam um pelo outro, que
contasse da alegria e mistura de sensações do primeiro beijo tão esperado, da imensa
alegria e felicidade que tinham em estar um na presença do outro, das suas conversas
animadas sobre Literatura.

Luís prometeu a esposa que escreveria sobre isso e se dedicou a escrever esse romance e
apesar de não lhe faltar inspiração, não conseguia colocá-la no papel. Então um dia, ele
estava andando em direção a uma livraria, quando por acaso, Silvia passava pelo outro
lado da rua. Ao ver o marido, ela se esqueceu da rua que os separava e foi ao encontro
dele e acabou sendo atropelada por um carro, morrendo na hora.

Luís se sentiu culpado pela morte da esposa, porque acreditava que se não estivesse
passando por ali exatamente naquele exato momento, Silvia não teria morrido e que ela
só havia morrido por amá-lo demais. E o que ele tinha feito em retribuição a todo este
amor? Nada! Nem ao menos havia escrito o romance, só umas 20 páginas, que sabia
ele, não eram lá grande coisa, só uma pálida imagem dos sentimentos que nutria dentro
si, que nem de longe era digna da história de amor dele com a falecida esposa.
Acreditava que ao ser incapaz de escrever a história dos dois, era como se tivesse
matado a esposa outra vez, além de tê-la traído, já que não havia cumprido com a
promessa feita. Ao menos essa história, ele gostaria de ter terminado.

Ele chegou a participar de vários workshops, fez um curso para aprender a usar o
hemisfério direito do cérebro e outro de neurolinguística e teve até sessões de hipnose,
mas nada ajudou, tudo só serviu para aumentar a sua ansiedade e frustração.

Os anos foram passando, ele envelhecendo e um dia, ele entendeu que seu dom nunca
teria vazão, que nunca escreveria nada que prestasse, e foi aí, que parou de tentar, nem
mais a esperança havia para consolá-lo e forçá-lo a ir em frente. Foi aí, que se tornou o
homem triste, velho e cansado que só voltava à vida quando ministrava suas aulas.
Simplesmente desistiu e deixou de tentar.

E assim continuou, até uma certa manhã de maio de 2009. Enquanto tomava o café, de
repente se viu repreendido por Elvira, sua criada, para que parasse com a brincadeira
idiota que estava fazendo, que era ela que teria limpar toda a sujeira. Ele não entendeu e
perguntou do que é que ela estava falando. Então, soube que ao invés de comer sua
salada de fruta, estava jogando-a no chão, apesar de jurar que a estava comendo
normalmente. Percebeu que algo de errado estava ocorrendo no seu cérebro, mas como
o transtorno havia passado não se importou. Até que, três dias depois ao se vestir para o
trabalho teve uma convulsão. Resolveu ir ao médico e descobriu que tinha um tumor
maligno. O tumor era muito agressivo e devido à localização não era aconselhável o
risco da cirurgia, porque ele certamente iria retornar.

Deram-lhe seis meses de vida no máximo, mas isso não o abateu. Não passou pelas
diversas fases anteriores a aceitação da morte, como a raiva e a negação, que antecede a
fase da aceitação que as pessoas nesse tipo situação costumam passar. Foi direto para
aceitação, porque há muito tempo que já estava morto. Além disso, existiam duas
possibilidades, a primeira de não existir vida após a morte, nesse caso, seu tormento
terminaria. Não teria mais que pensar, nem sentir e principalmente criar. A outra era de
existir, aí, ele iria encontrar as pessoas que mais amou: seus pais, seus avós e
principalmente Silvia que deveria está esperando por ele há 35 anos, ansiosa por esse
reencontro que era inevitável. É verdade, que seria triste e embaraçoso reencontrá-la
sem ter cumprido o prometido, mas sem dúvida era o entenderia e o consolaria pelo seu
fracasso, compreendendo, que ao menos ele tentara.

Aceitou a morte, mas o fato de sair desta vida sem ter gerado nenhum filho como se
fosse uma árvore estéril ainda o incomodava. Queria deixar uma marca no mundo, algo
que dissesse: “ei mundo, Luís Eduardo esteve aqui”, então, pegou, numa pasta que
guardava numa gaveta no armário, aquelas poucas páginas que havia escrito há 35 anos
atrás e decidiu que custasse o que custasse iria transformá-las num romance. No
romance que prometera à esposa e que utilizaria suas economias, que a essa altura, não
lhe serviam para nada, para pagar sua publicação. Pelo menos algo dele e de Silvia
ficaria neste mundo e, provavelmente, seus amigos e queridos alunos iam lê-lo, quem
sabe mais gente e quem sabe, ainda, daqui a 500 anos seria lido, como lemos ainda hoje
“Os Lusíadas” de Camões.

Licenciou-se do trabalho e começou a se dedicar exclusivamente a esse projeto, nem as


dores o impediam de tentar. Releu todas as cartas de amor que trocaram ente si, lembrou
cada momento, até mesmo os mais insignificantes, mas não conseguia escrever. Tentou,
melhorar o que já havia escrito na esperança de que assim conseguiria ir em frente, mas
nem isso conseguia.

Porém, não desistiu, ia ter que conseguir, nem que fosse um romance medíocre,
daqueles que qualquer idiota, mesmo sem um mínimo de inspiração, consegue escrever,
mas o esforço parecia ser em vão. Nenhuma linha ao menos, continuava não
conseguindo transformar em palavras a sua rica voz interior, como se ela se recusasse a
ser ouvida numa atitude caprichosa que o consumia.

Então, no dia de finados, quando se preparava para visitar o túmulo de Silvia, percebeu
que não precisava fazê-lo, porque ainda naquele dia, se Deus existisse e permitisse, iria
encontrá-la. Pela segunda vez, entendeu que estava tudo acabado que deveria se render
a sua mediocridade o que fez, apesar de seu desespero.

Naquele mesmo dia, um aluno, que era seu pupilo predileto, foi visitá-lo e trouxe junto
os manuscritos de um romance, que queria que seu mestre examinasse. Explicou que de
tanto ouvir a história de amor de Luís e Silvia narrada pelo mestre, pensou que essa era
uma linda história de amor e que alguém deveria escrever sobre ela e resolveu fazê-lo.
Disse ao mestre que tudo estava lá, nas histórias que ele contava, no amor que ainda
sentia pela falecida esposa, na forma como ele narrada como se fosse um grande
romance, que ele praticamente só teve que transcrever o que ouvira.

Disse, ainda, que havia gostado muito do resultado e que havia trazido para apreciação
do mestre para que esse decidisse sobre a publicação ou não do romance, porque só com
sua permissão ele seria publicado.

Quando o aluno se foi, Luís começou a ler o romance, apesar de não conseguir lê-lo em
sua totalidade, percebeu que estava ali, o romance que queria escrever para esposa e que
era a verdadeira obra de um gênio. Entendeu com pesar, que coube a outro falar por ele
o que seu interior recusava a entregar ao mundo. Algumas horas depois de noite, Luís
expirou.

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