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Manuel de Castro Nunes

No Limiar de uma História da Medicina em Portugal

A "medicina popular". Contribuição para a identificação de um género.

Évora, 1992
A priori
Qualquer que seja a sua configuração final, este texto comunga com outro*
um inexorável destino. Escrito a juzante e para explicitação de um ensaio que
escrevo há alguns anos e sobre o qual não quis ainda perpetrar a prepotência de lhe
pôr fim, desejo expressamente que participe da sua natureza de esboço, matéria em
amálgama para modelar no exercício de uma prática disciplinar que não visa o
objecto mas tem em horizonte o sujeito. Porque a história da medicina interessa-
me como história do corpo, ou mais radicalmente dos corpos, como história das
práticas históricas e como história das práticas disciplinares.
Um certo carácter ou humor radical que quero que exale entenda-se como
exercício de estética, ou como a forma adequada ao exercício de uma psicanálise
profunda.
Para alicerçar todo o meu trabalho, faço-lhe servir de contexto as
narrativas de alguns casos e em particular aquelas que publico em anexo. O leitor
terá que se dar conta de que, como não podia deixar de ser, o contexto é bem mais
sábio do que todo o meu discurso.

* Uma Disciplina no Eixo das Rupturas. Laudas para um Projecto de Trabalhos


em História da Medicina; entre a História da Medicina, a História das Práticas
Médicas e a História dos Actos Médicos.
I
Preliminares acerca da reputação das medicinas

"La Medicina nadie la conoce; dicese, que hai, pero nadie sabe donde vive.
El Medico es un embuste politico, que solo sirve de engalanar las republicas, no de
curar enfermedades: assiste à los enfermos, pero no los sana; es un testigo de los
triumphos de la naturaleza, los milagros, y las muertes."
"Como le decia Molier à su Boticario V. mds. les escriben a estos sus
villetes en lenguaje mestizo, Griego, Latino, u aun diabolico, y mi Doctor en
Castellano de Castilla; este sentencia a los enfermos en Romance, y V. mds. en
Latin, para que no puedan entenderlo. Mi Medico bien acertaria a llamarle omento
al reda¤o, expuicon a la acci¢n de escupir, excreto a lo que se ensucia, cathartico al
purgante, pus a la materia, el sangre a la sangre, morbo a la enfermedad, bilis a la
colera, pituita a la phlegma, pleuritis a la dolor de costado, singulta al hipo, y asi
de lo dem s; pero quiere hablar en lenguaje de Christianos, y no tiene el empe¤o
que v. mds tienen, pretendendiendo persuadir con estas voces forasteras a la
inteligencia vulgar, que saben v. mds. mucho mas en materia de Medicina, que los
Potreros, y las Comadres de parir."
"Por zahumar a ventosidades las banquetas de un Coche, recoger caxas,
reloges, y fortixas, engalanar la mujer, y engreir los hijos que la hacen, han
encarecido tanto los Medicos, y Boticarios sus Visitas, y Botes, que con solo un
mal de madre que pillen en una melindrosa de las que desmayan de ver un Raton,
tienen elles achaque para desnudar un mayorasgo. Tantos testigos hai de esta
verdad, como enfermos; pues mas pobres, y difuntos ha fabricado la Medicina, que
las pestes, y las epidemias. Lector mio, desenga¤ate, y advierte, que lo que
encierran las redomas, es agua de hinojo, peregil, llant‚n, ruda, y otras verdolagas,
y verzotes. Lo que ocultan aquellos botes rotulados (que si tuvieron assas, mas
parecerian bacines de Monjas) son pepitas, y simientes de melon, calabazas, y
pepinos; ra¡ces de artemila, mejorana, y agenjos; resinas de diferentes le¤os, y
plantas, y todo lo puedes tu recoger mas fresco, y de valde en los campos comunes
adonde lo arroja la naturaleza."
Num célebre artigo(1) que o pôs em contencioso com Ricardo Jorge, Silva
Carvalho recusou-se, sem qualquer justificação, a considerar no horizonte da
literatura médica do século XVI um dos mais insignes vestígios de descrença na
reputação da medicina, o Diálogo da Perfeyçam e partes que sam necssarias ao
bom Medico de Afonso de Miranda, Contador da Fazenda do Reyno e Casa de
Sua Magestade o Rei D. Sebastião(2). Mas ao fazê-lo parecia deixar, com certa
ingenuidade, presumir um critério para a identificação dos objectos disciplinares
da etnografia médica(3).
Os fragmentos em castelhano que abrem este capítulo extraí-os de duas
epístolas e de um prólogo que abrem uma obra de estatuto ainda por definir, mas
cuja genealogia se entende passar por Gil Vicente, Francisco de Villalobos, Pero
Mexia, pelo Dialogo da Perfeyçam, D. Francisco Manuel de Mello e numa outra
dimensão ainda por avaliar por Moliére. Trata-se de Medico para el bolsillo.
Doctor a pie, Hypocrates chiquito. Medicina breve, facil y barata, para mantener
los cuerpos en salud, y curarlos de los achaques mas comunes. Sirve desde estye
presente año, hasta el dia de el Juício particular de cada pobre. Y lo envia desde
Portugal, … unos de valde, y à otros por su diñero el Doctor Don Diego de
Torres Villarroel, Cathedratico de Mathematicas en la Universidad de
Salamanca. Con licencia. En Sevilla, en la Imprensa REAL de Don Diego Lopes
de Haro, en Calle de Genova.
Sem data de edição no rosto, a primeira epístola "dedicatoria, respuesta,
introduccion, y aviso general para todos: que de la tela de mis papeles puedo hacer
el sayo, que me diesse la gana." termina "Hoi estamos a 15 de Noviembre, y io
estoi en Almeida de Portugal; el año es el de 1734.". Intressou-me em particular
que Diego de Torres Villarroel, pícaro ilustrado e sábio castelhano do século
XVIII, que por cá andou alguns anos em exílio indigente e editou alguma da sua
obra jocosa em Coimbra, tenha escrito este panfleto em Portugal(4).
Villarroel era um dos dezassete filhos do proprietário de uma "venda" de
livros em Salamanca, onde cursou matemáticas; estava então umbilicalmente
ligado ao estranho e alucinante mundo da circulação e produção de uma literatura e
cultura específicas, cujo estatuto é o que interessa identificar. Ao longo da década
em que Villarroel escreve o seu Medico para el bolsillo e durante as seguintes,
uma intensa produção de almanaques, prognósticos e jocoserias é protagonizada
por alguns sábios intelectuais portugueses, Victorino José da Costa, António
Correia de Lemos, José Félix Henriques Nogueira, Joaquim Henriques Fradesso da
Silveira, Luís Travassos Valdez(5).
Todos se ocultam sob invocações sinuosas, Pescador, Sarrabal, Cosme e
Damião, em que se surpreende uma tradição jocosa e pícara imemorial que se
passeia na senda dos "cegos" por todo o território hispânico e pela Itália.
Surpreende, em especial, o percurso de trocas detectado no mero registo e seriação
das oficinas editoras; os Lopez de Haro editam ainda na década de cinquenta
muitas das peças de um dos mais preciosos corpus da jocoseria portuguesa, cuja
maioria é composta em oficinas catalãs e sevilhanas; trata-se da desgarrada que se
precipita em torno das festas promovidas pelo Senado de Lisboa, para festejar a
Aclamação do Rei D. José I(6).
Um número apreciável destas jocoserias tem por objecto a medicina e não
são fortuitas as invocações de Cosme e Damião. Os lunários e prognósticos do
"cego" António Pequeno, um dos mais herméticos "cegos" da jocoseria
portuguesa, meros pretextos para assediar a crença e a reputação da medicina e dos
médicos e de outros objectos e sujeitos, foram escritos por Victorino José da
Costa, sábio beneditino, Grão Pescador, Cosme Francês, Sarrabal Saloyo.
Arrumados então na prateleira das jocoserias, rotulados
indiscriminadamente como literatura de cordel, votados à leitura sobranceira dos
etnógrafos, estes textos carregam o destino insufragável dos excluídos; ficaram do
lado de lá das vedações que defendem o espaço sagrado da cultura erudita, ao lado
das facécias e entremezes, nas sacolas surradas dos "cegos".
E ninguém presume que constituem universos literários em que se
surpreende uma unidade difícil de refutar e são imputáveis a autores e a círculos
produtores também da obra erudita. Que para enunciar o socialmente
impronunciável, inventaram as formas da cultura dos excluídos(7).
E ao fazer esta invocação, registo então a unidade indissociável de dois
objectos disciplinares. Quero dizer que a cultura que produziu esse eleito objecto
que nomeou de "literatura popular" é da mesma espécie da que produziu este
retórico e barroco conceito de "medicina popular"(8). Porque a "medicina popular"
nasceu com a história da medicina, em Portugal no ilustrado ambiente de
Maximiano Lemos, cujo comércio com eruditos como Teófilo Braga, Carolina
Michaelis, Adolfo Coelho, me é dispensável explicitar. Neste sentido, a "medicina
popular" é um tema romanesco de Camilo que verte nas preocupações eruditas dos
portuenses.
O carácter dessa "medicina popular" dos eruditos do Século XIX, fica
rigorosamente identificado na reputação que Villarroel confere aos médicos e à
medicina institucional e erudita. Identificada com a magia, os ritos e os milagres,
as fórmulas esconjuratórias de uma linguagem latina estandardizada e a violência
gratuita sobre os corpos, os rituais das posturas e os contenciosos doutrinais -
"Todo lo que se disputa se ignora; casi todo en la Medicina se disputa, luego casi
todo se ignora." -, a medicina erudita parece comungar com os géneros "populares"
de todas as práticas que lhes atribui..
É neste contexto então que se me afigura a distinção entre os dois géneros,
no seu estatuto, Medico para el bolsillo. Doctor a pie; uns a pé e outros bem
montados, ou espreitando esquiva e gravemente por detrás das cortinas de uma
carruagem. Para lá desta distinta forma de locomoção, reputam-se mutuamente das
mesmas práticas. O "médico popular" tem o estatuto desse "cego ambulante"
inventado pelos eruditos para a assumir a autoria do objecto cultural excluído, a
jocoseria, a facécia, o entremez, o prognóstico.
Notas

(1) A Literatura Médica até ao fim do Século XVI, in História da Literatura


Portuguesa Ilustrada, dirigida por Albino Forjaz Trigueiros, III volume, Lisboa,
1932.
(2) Dialogo da Perfeyçam e partes que sam necessarias ao bom medico. Dirigido
ao muyto alto & serenissimo Principe Rey Dom Sebastião, primeiro deste nome.
Nosso Senhor. Em Lixboa Per Joam Alvarez impressor delRey. Anno de MDLXII.
Na dedicatória diz-se: "Achou este dialogo Afonso de Miräda contador do
reyno & casa de V.A. entre os livros & papeis de seus filhos, q estudarä as artes
liberaes & medicina, em Coimbra, & Salamanca, & em outras vniversidades: &
lho fez trasladar de Latim em linguagem (...)"
"O author o nam quiz imprimir em sua vida, por nam tomar tam grave
carga sobre seus hombros, en publicar dialogo contra a medicina deste tempo."
(3) Silva Carvalho, a quem especialmente chamou a atenção o facto de a obra ser
impressa em Castelhano e que perdera já algumas páginas a discorrer sobre o
Leal Conselheiro de D. Duarte como literatura médica, remata a propósito do
Dialogo da Perfeyçam:
"Desta maneira o Dialogo da Perfeyçam que pode interessar à História
da Medicina, näo vale como documento de importância no estudo da Literatura
Médica Portuguesa."
(4) O Século XVIII, mais ainda que o XVII ou XVI, produziu uma literatura e uma
cultura que aplicou o seu génio à invenção dos futuros objectos da "literatura
popular" e de outros géneros de culturas excluídas. Porque não envolveu os
autores que podemos identificar na área pícara castelhana, Calderón, Vega, Tirso
de Molina, Cervantes, Zabaleta e outros, foi votado ao desinteresse pelos
investigadores e o universo é ainda bastante confuso. Mas bastara tomar como
tema o vasto panorama que se reúne em torno da invocaçäo do Grand Piscator
Sarrabal de Milán e de Villarroel, o Grand Piscator Sarrabal de Salamanca, no
que diz respeito à produção de Almanaques e Prognósticos "metafóricos" para
avançar sensivelmente na compreensão desta ocorrência.
Quanto à ocorrência específica de prognósticos e lunários, género que
tenho que associar à divulgação da imagem e reputação de um certo tipo de
médico, posso legitimamente suspeitar de um êxito notável do género em fases
cronológicas bem determinadas. Entre 1605 e 1615, 1645 e 1660, num universo
que mobiliza ilustres editores como os Craesbeck, António Alvarez e João Alvarez
de Leão e curiosos autores como Manoel Gomes Galhano de Lourosa.
Depois no Século XVIII, pelas décadas de quarenta e cinquenta,
mobilizando os autores atrás identificados e num contexto jocoso bem mais
explícito.
(5) O universo da produção destes autores é nebuloso e é com grandes dispêndios
que se organizam conjuntos em torno de cada um. Os bibliófilos e bibliógrafos
dão notícias pouco consistentes, filiadas numa tradição difusa a mor das vezes.
Victorino José da Costa, já identificado por Barbosa e Inocêncio como Cosme
Francês, posso conectá-lo, sem dúvidas, com outros pseudónimos como António
Pequeno e ainda com alguns "cegos" anónimos que intervêm na desgarrada que
cito de seguida. Nunca se sabe, porém, quando outro se apropriou deles, mesmo
só para invocar a continuidade no seio de uma desgarrada, ou de uma porfia.
Inocêncio diz, sem justificação consistente, que o editor António Correia de
Lemos é Damião Francês; eu encontro grande continuidade entre Damião
Francês e Cosme Francês.
Expressamente de Cosme Francês e sobre matéria médica, vale a pena ler
Remedios Stoico Christãos para lograr a srenidade de animo, passar a vida
alegremente, e vencer sustos, medos, e perturbaçoens, e outros accidentes de que
nascem enfermidades incuraveis. Receitados e preparados na Botica Filosofico-
Moral de Cosme Francez, Mathematico, e Boticario, Lisboa OCIDENTAL
MDCCXXXXVII., em notável conjunção com escritos de Villarroel.
(6) Como forma ainda de constituir uma ordem neste universo nebuloso,
proponho a reflexão sobre os critérios com que foi coleccionado nos séculos XVII
e XVIII e incorporado em volumes e miscelâneas. O facto de muitas destas peças
aparecerem de forma reincidente agrupadas em colectâneas, dá-me ensinamentos
insubstituíveis.
Desta desgarrada posso formar uma ideia sintética porque alguém reuniu
os panfletos num volume coevo, Novo Reservado nº 1375 da B.P.E.
(7) Trata-se de uma área de produção erudita dos objectos de uma cultura
excluída; e, à partida, pensar-se-ia identificar aí a forma como a sociedade a
representa. Penso, porém, que se trata de uma forma mediatizada de enunciar
como se representa, para si própria, a cultura erudita. Se quisesse utilizar uma
solução ou nomenclatura fácil e precipitada, trataria de ''crises de descrença'';
agrada-me mais tratar de esconjura.
No ambiente da sociologia histórica francesa, de Bourdieu, Chartier,
Revel, etc., o assunto tem recebido desenvolvimentos que tenho que assinalar, ao
abrigo de um tema a que não reconheço qualquer sentido, "literaturas de grande
circulação"; pelo que não me satisfazem ainda. É a razão por que o esboço de
problematização que tenho em referência é uma comunicação, Littératures de
large circulation au Portugal (XVIe - XVIIIe siècles), de Diogo Ramada Curto in
Imprimés de Large Circulation et Litérature de Col Portage, Março de 1991,
Wolfenbuttel, Alemanha.
(8) - Numa alocução que proferiu no Hospital de Santo António em 26 de
Novembro de 1960, em homenagem a Maximiano Lemos, Luís de Pina retrata
soberbamente o ambiente de comércio intelectual entre os sábios do Porto, à roda
da Sociedade de Instrução. O elenco de nomes que Luís de Pina põe em
conjunção, intervindo num mesmo programa de saber, é por si só lapidar: José
Frutuoso Aires de Gouveia Osório, Joaquim de Vasconcelos, Carolina Michaelis,
Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Pinheiro Chagas, Consiglieri Pedroso, Agostinho
de Sousa, Bento Carqueja, Ricardo Jorge, Hernâni Monteiro, Joaquim Alberto
Pires de Lima. Os objectos culturais deste universo intelectual são património,
também, da história da medicina e da cultura médica portuguesa.
Podemos surpreender a operação de construção disciplinar da "medicina
popular" no conjunto da obra de Maximiano, de Hernâni Monteiro, dos Pires de
Lima, ou de Silva Carvalho como estudioso empreendedor dos ofícios dos
"práticos", barbeiros, sangradores, cirurgiões "ambulantes", parteiras.
Recomendo uma prospecção especialmente atenta no Arquivo de Medicina
Popular, edição do Jornal Médico, Porto, 2 volumes orientados por J.A. Pires de
Lima e Mendes Corrêa, 1944/5. E ainda em Ensaio de Folklore Médico Analítico,
de Luís de Pina, Porto, 1932; Os Remédios Imundos na Medicina Popular, do
mesmo, comunicação ao XV Cngresso de Antropologia e Arqueologia, Lisboa,
1930; Mezinhas e Remédios de Segredo, de Silva Carvalho, Lisboa, 1928; na
apresentação da reedição que este fez de Prodigiosa Lagoa Descuberta Nas
Congonhas do Sabará, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1925; e ainda em
Origens da Cirurgia Portuense, de Hernâni Monteiro, Porto, 1945.
Num outro contexto, de Costa Santos Sobre barbeiros e sangradores no
Hospital Real de Todos os Santos, A. H. M. P., Porto, 1922; e de Silva Carvalho
Os cirurgiões urologistas ambulantes em Portugal e Espanha, Lisboa, 1930.
II
Como os géneros se identificam nas suas intervenções sobre os corpos.

Que testemunho então invocar mais sábio do que os próprios corpos, esses
que, mesmo quando radicalmente estranhos às porfias entre os géneros,
enfrentaram pacificamente como objectos o suplício das práticas?
Tistam da Cunha e Mello, e Athaide, fidalgo muy conhecido neste Reyno
pella illustre ascendencia de seus progenitores, sobindo em hua mula, Domingo
às cinco horas da tarde a vinte e hun de Junho de 1620, se lhe impinou, e
querendo elle saltar della, por se livrar do perigo em que se via, cahio em Terra,
levando diante a mão esquerda, por que sustenteandose nella, livrasse a cabeça e
corpo. E soccedeo por no braço tanta força, que dislocandose o osso do
sangradouro, sahio fora, fazendo hua ferida transversal pella parte de dentro, que
rompeo, e dillacerou veas, arterias, muscullos, tendães, e ligamentos.
Acodirão dous Chirurgiães, e hum algebrista, que acazo se acharão, e
reduzindo o osso, que era o que desce do ombro, cozerão a ferida como convinha;
chegamos a este tempo, e vimos o braço todo contuso, e junto à mão pella parte
de dentro de cor livida. O Algebrista em alta voz disse, que por este lugar tinha
quebrados ambos os ossos (a que os Anathomicos chamão ulna, e radio)
provando esta opinião com o publicar, advertimolhe o contrario com razões, e
demonstrações, que a evidencia fazião verdadeiras, não se dissuadio.
A ferida se curou com hua estopada de clara dovo, forrada com hum
paninho do seu tamanho, e hum sobre panno de vinagre destemperado, e ligadura
retentiva; e junto a mão, na parte que o Algebrista tinha por quebrada, se
puserão duas estopadas da mesma clara, cubertas de pós restrictivos com
sobrepanno, e ligadura, molhado no mesmo vinagre. O enfermo despido se deitou
na cama, e o braço se colocou no sitio que convinha.
Neste tempo estavão ja presentes alguns medicos, dos mais doutos desta
corte. Duvidouse sobre o que tomaria pella boca, a huns pareceo pós contracaso
em agoa de tanchagem, a outros pós de bolo armenico preparado com agoas de
pés de rosas, e xarope de rosas secas misturado, venceose que tomasse assucar
rosado com agoa fria, porque só isto tomaria o enfermo, e não cousa de botica, e
passadas duas horas se sangrasse no braço direito na vea darca, servindolhe de
cea hum doce, e agoa fria, e que este podia ser marmelada, perada, ou assucar
rosado.
O dia seguinte o visitamos, e nos informarão que passara a noite com
grandes dores, e sem quietação algua, queixavase de as ter em todo o braço,
pareceo a todos que se sangrasse, que tomasse hum caldo de galinha, e que se a
cura se não subisse até à tarde se veria; tratarão os seus, se o poderião passar da
casa em que estava pera outra melhor, vimola, pareceonos muy avantajada para a
saude, e viemos na mudança.
Na visita da tarde achamos que depois de se mudar, posto que se tinha
feito com muita cautela, e sem prejuizo, nem dores, tivera hum desmaio, e
passado elle desvariara por vezes, não conhecendo a nenhus que com elle
estavão, e isto lhe duraria hua hora, e passado ficou como dantes, mas muy
inquieto, mudando a cada passo o sitio do corpo, e braço, e não achando em
nenhum quietação, tinha febre, ordenamos curalo estando presentes cinco
medicos, cinco chirurgiães, e hum algebrista, desligarãose as attaduras, e tirados
os pannos, vimos o braço em partes de cor livida, e muito mais na que o
Algebrista tinha por quebrada, que vista por todos se julgou o contrario, a ferida
estava ao parecer unida, e a circumferencia sem tumor, nem inflamação curouse
fomentando o braço com azeite rosado, e de mortinhos morno, e estopadas de
claras dovos, e sobrepannos de vinagre; depois disto nos ajuntamos noutra casa
para se tratar da enfermidade, e do que convinha a ella, e tratouse com muita
ponderação, letras, e prudencia à vista de parentes, e criados do enfermo, o grave
caso que tinhamos entre mãos, e o perigo que prometia não só a parte, mas ao
todo, porque como as arterias são o caminho por donde vinha a vida ao braço, as
veas, o mantimento de que se sustentava, e os nervos, e muscullos, o por onde
vinha o sentimento, e movimento; estando a maior parte disto cortado, e
dillacerado, ficava propinquo o receio de se mortificar o braço, e o perigo que
comsigo trazia a mortificação de hum membro, e tão vezinho do coração. Estando
todos nisto, se ordenou que tomasse hum cristel ordinario, e que depois de se
prover, se sangrasse na vea darca, e comesse dieta, e se fosse caldo de lentilhas,
seria mais proveitoso.
E me perdoe o leitor a necessidade absoluta de enxertar aqui este excerto; e
de o deixar no limiar do suplício lancinante da mortificação e amputação, da
gangrena, das sangrias e purgas em sucessão alucinada. Porque o que me
interessou foi a presença discreta do algebrista, assistindo atónito à teimosia e às
porfias de médicos e cirurgiões.
A Relaçam Chyrurgica de hum cazo grave a que se succedeo mortificarse
hum braço, e cortarse com bom successo, de Francisco Guilherme Casmack, é
uma das obras primas de um género que começa a ocorrer com abundância nos
princípios do Século XVII e impregna já o estilo das Centuriae de Amato(1). A
peça mais eminente, mesmo pelas condições em que ocorre, é Observaçam do
Achaque que Sua Real Magestade Dom João IV teve en Salvaterra, de que livrou
milagrosamente (...), de Francisco Morato Roma(2). Mas o conjunto mais sábio é
o que resulta, no Século XVIII, da porfia entre Bernardo da Silva Moura e José da
Silva d'Azevedo, que transporta para o âmbito do desacato erudito a forma
explícita da jocoseria e, por isso, é obrigado a expor nuamente as práticas e a
descrença na sua legitimidade(3).
O estatuto destas obras, que constituí em género sob a nomenclatura de
"narrações" ou "relações", é múltiplo, abarcando a porfia que se firma na narração
da enfermidade e decorrente diagnóstico, ou proposta de tratamento e narração da
intervenção clínica ou cirúrgica; a relação didáctica com a mesma estrutura
narrativa; ou uma espécie de celebração do êxito clínico, em que é comum a
intervenção de outros factores, mágicos ou milagrosos, como é o caso da
Observaçam do Achaque em que o Rei livra milagrosamente, por interposição das
"velhas" e da Senhora da Conceição. Caso raro, ou talvez único, é o que publico
em anexo e serve de habilitação a uma petição ou pretensão (Anexo 2).
Interessa-me dizer que muitas destas narrações parecem decorrer da prática
hospitalar, espécie de exempla didácticos, que caracterizam uma fase e uma área
específicas da história das práticas médicas. E são patentes do permanente
contencioso entre médicos e cirurgiões e entre eles e os práticos hospitalares,
oficiais da "meia cirurgia", algebristas, parteiras, etc..
De qualquer forma interessam-me como os mais sábios vestígios das
práticas médicas e da dissociação radical e assumida entre a retórica disciplinar e
as práticas. E sobretudo por uma espécie de contradição endémica de que todas
enfermam, porque o contexto que se insinua na narração da enfermidade e dos
sintomas raramente legitima o diagnóstico e a opção pelas práticas clínicas e
cirúrgicas. Para mais, porque entrou em voga o costume das "juntas" ou
"assembleias" compósitas de médicos, cirurgiões, sangradores e algebristas em
torno do enfermo, as práticas sucedem-se em ritmo alucinante de contradição,
conforme a avaliação que os diversos partidos fazem do curso ou mesmo natureza
da enfermidade.
O que ressalta de todas estas narrações é que nada demarca o que narram
das práticas que à medicina são imputadas pelos círculos jocosos, de maneira que
muitas se confundem, no estilo e na forma, com as melhores caricaturas. É
sobretudo nelas que melhor se surpreende o universo dos rituais que legitimam
toda a violência sobre os corpos; a linguagem hermética que, para lá do mais,
distingue os vários corpos intrometidos no caso, médicos e cirurgiões, anatomistas,
sangradores e algebristas; as assembleias de contencioso ou de consenso que
cercam o enfermo numa teia de que jamais se desprende; a precipitação do caso
clínico na sua culminância, que não deixa ao infeliz alternativa, senão a submissão
a mais intervenções clínicas e cirúrgicas. Pois não eram estes os tópicos do libelo
de Villarroel?
A Tristão da Cunha mortificou-se um braço, que depois barbaramente se
amputou com bom sucesso, para não legitimar a sentença de um algebrista que,
renitente, sustentou até ao fim que o rádio e o cúbito estavam quebrados; todo o
texto de Guilherme Casmack é estruturado para atestar aos parentes e criados do
enfermo a irreversibilidade do desfecho.
O "pituitoso" que caíu nas mãos de José da Silva d'Azevedo e dos que com
ele intervieram foi sangrado da cabeça aos pés, purgado em ritmo alucinante e
acabou por livrar depois de manipulado durante vinte e oito dias... e noites, coberto
de escráfulas e antrazes; e depois ainda de uma intervenção cirúrgica a um joelho,
ficou coxo(4). Mas, de verdade, o que Bernardo da Silva Moura queria era ainda
sangrá-lo na veia da salvatela.
Num diagnóstico que José da Rosa Correia, irrequieto médico pacense do
Século XVIII, reuniu a uma valiosa colecção, surpreendi outro caso exemplar,
todavia mais astuto. (Anexo 1).
Foram ainda as preocupações surpreendentes deste quezilento médico de
Beja que me proporcionaram a insubstituível leitura da narração e dos dois
atestados diagnósticos da enfermidade do Beneficiado António Pedro de Andrade
Lima, que reputo como o melhor testemunho e o mais indignado libelo que pude
servir ao leitor (Anexo 2).
E para terminar arrimado aos géneros literários que celebro e quero
celebrar, peço a atenção para a nota nº1 da página 66, do magnífico manual de
Hernâni Monteiro Origens da Cirurgia Portuense; e sobretudo para a credulidade,
que não me parece irónica, com que a inseriu (Anexo 3).
Notas

(1) Relaçam Chyrurgica de hum cazo grave a que succedeo mortificarse hum
braço, e cortarse com bom successo, por Francisco Guilhelme Casmack,
chyrurgião del Rey e do seu Hospital. Impresso em Lisboa por Geraldo da Vinha,
em 1634.
(2) Observaçam do Achaque que Sua Real Magestade Dom João IV teve em
Salvaterra, de que livrou milagrosamente. Em lingoagem para assim os grandes
como os piquenos (...), folheto de 26 páginas sem editor de 1665.
(3) Esta porfia, a que farei referência adiante, pois transporto-a para o
contencioso conspirativo entre médicos, cirurgiões, algebristas e sangradores,
tem como peças axiais Escrupulos Medicos e Reparo Chyrurgico por Narbedo
Sávil sangrador aprovado, a hum Medico intrometido, na Oficina da Congregação
do Oratório, lisboa, 1739; Exposiçäo Delphica, apologetico-critica, em que se
convence uma falsidade, com a verdade declarada, e se propõem varias doutrinas,
pertencentes à Sciencia Medica, por José da Silva d'Azevedo e na Officina de
António Pedro Galrão, 1739; Dissertação Medica ilustrada, ou sangria da
salvatella defendida (...), por Bernardo da Silva Moura, na Oficina da
Congregação do Oratório, 1739.
As intervenções de Bernardo da Silva Moura, médico da Câmara do
Infante D. Afonso, que usa o pseudónimo de Narbedo Sávil e se apresenta como
sangrador, são do domínio da jocoseria mais ilustre e fazem a conotação erudita
com o texto da narração de Azevedo. Note-se ainda que saem dos prelos do
Oratório.
Não posso fazer referência a esta porfia, sem invocar outra em que as
trocas entre o género da narração e o da jocoseria são notáveis. Carta
Apologética, Sobre A Necessidade De Practicar Remédios Purgantes, Em toda a
sorte de Febres Eryzipetelosas; e nas que são biliosas, podres, ou malignas, não só
se devem practicar estes logo no principio, mas algumas vezes antepôr o
vomitório, com as condiçoens que acautelão os Practicos. Escripta a hum Professor
da Arte, amigo do Author. Lisboa, Na Officina de Jozé Aquino de Bulhoens. Anno
de MDCCXXXI.
(4) Não resisto a deixar aqui o testemunho de Narbedo Sávil.
"Porem o certo he, que se então fez ruido a muitos, hoje me parece, que o
faz a todos, pelo prodigio com que este homem se livrou, ainda que coxo se
restituiu: e se não mostre-se, ou individue-se em observação autentica hum doente
muito melancolico, pituitozo, hipocondriaco, com laivos de escorbutico, com
grande apparato viciozo no mesenterio, com humores azedos, austeros, e crassos,
coagulados, turgentes, supernatantes, com muitos soros, com febre lymphatica,
branda, com lingoa grossa sem muito recesso do estado natural; com agoas cruas
e delgadas ate o setteno; em que apparecerão com algum cozimento, o que em dia
nono persistia; sangrado desde o principio 23 vezes, com o sainete de humas
sanguessugas, com dores rheumaticas, com dores vagas sem persistencia;
purgado em decimo dia de manham, e por mal succedido, ainda que ajudado, de
tarde outra vez com o mesmo successo repurgado, tempo em que alem de huma
dor fina nas costellas mendosas, que se refere, estava totalmente impedido de
fazer qualquer movimento; ajudado com ajudas, e algumas laxantes, quasi sem
conto; com exhibiçoens de leite quasi sem fim; e por fim purgado e
tatarapurgado, mas por coxo conhecido; mostre-se, digo, doente que tivesse
semelhante doença e que livrasse della, ainda que coxo, com vida, sendo curado,
como se afirma, "conforme à prática, que em poucas palavras adevertiu
Baglivio". Responde stulto?"
III
Médicos e cirurgiões, sangradores, barbeiros e algebristas.

No Prefácio a uma obra que deixou infelizmente manuscrita, Francisco de


Souza, médico da casa do Bispo de Beja Frei Manuel do Cenáculo e por ele
encarregue de um projecto de extensão dos serviços médicos aos pobres e rurais do
bispado, organizou em estilo eminente o contencioso que me permite ir mais além
na identificação dos objectos da "medicina popular"(1).
"Não podendo ver sem desgosto a falta de secorros, em que as mais das
vezes, nas suas molestias se achão, os disgraçados moradores do Campo; esta
prossão laborioza de Cidadãos, a mais precioza e util à Sociedade; que não
podendo com facil promptidão ser secorridos por Medicos, pelas grandes
distancias, que muitas vezes os separão destes, sendo precizados a procurarem os
seos secorros, em mediocres Cyrurgiões, que faltos da necessaria instrucção de
Medicina, que não aprenderam, confundem esta arte com a experiencia, e esta com
a arte que ignorão, precipitando ordinariamente o doente, com a impricia
aplicassão de remedios, de que igualmente ignorão as qualidades, e as virtudes;
mas que contudo abonão com a experiencia, me determinei a escrever esta pequena
obra, na qual coligi os principios de Medicina pratica, tão essencialmente
necessarios, aos que fazem profissão da arte de curar; os quaes extrahi de alguns
dos melhores Autores; para facilitar a impossibilidade em que os dictos Cyrurgiões
estarão de os poderem ler, ou porque seijão muito diffuzos, ou porque seijão
escriptos em lingoagem estranha, e que não entendão."
Para explicitar as razões deste verberativo pórtico, o Doutor Francisco de
Souza deambulará logo a seguir pelos meandros de uma retórica indeglutível e
difusa, em que os princípios comuns da medicina erudita, no seu estádio galénico,
são despejados numa síntese redutora que se tornou comum quando a enunciação
das doutrinas tradicionais tinha já perdido o suporte de toda uma cultura e
mentalidade que lhe dava contexto.
Nenhum barbeiro seria capaz de daí extrair o que quer que fosse para lhe
servir na prática do ofício cirúrgico, senão que passaria a engalaná-lo com os
artifícios de um discurso pomposo que atribuiria às suas intervenções uma
legitimidade que, afinal, sempre houveram tido.
Ora a questão, a razão do meu interesse por este insignificante episódio, é
que a história da medicina, no que concerne à identificação dos objectos da
"medicina popular", nunca resolveu uma imprecisão estrutural ou ubiquidade. E
transportou, para o próprio universo dos temas que consagrou, essa própria
contradição sem dela assumir a consciência mesmo preliminar.
É que a "medicina popular", tal como a pratica a história da medicina, é
um espaço ambíguo que quer fazer comungar da mesma natureza tanto as atitudes
rituais, mágicas e esconjuratórias, que não são medicina pois não propõem
qualquer intervenção sobre os corpos, com uma série de intervenções de diversa
natureza operativa que uma legião de práticos sem formação escolar institucional
distribuem por uma diversidade de ofícios e são o resultado de um processo de
conhecimento empírico mais ou menos estruturado.
Tornou-se porto de honra da história da medicina em Portugal e em
Espanha um bizarro raciocínio, cuja compreensão nos exige ainda o recenseamento
do contexto em que os médicos do Porto construíram a disciplina(1).
Os médicos historiadores do Porto estavam, com excepção de Ricardo
Jorge, umbilicalmente ligados à cirurgia e à anatomia e invocavam uma genealogia
que os amarrava à Real Escola Cirúrgica do Porto e ao Hospital de Santo António.
O primeiro titular nomeado para a cadeira de História da Medicina, João Monteiro
de Meira era cirurgião e anatomista e foi director da morgue do Porto; faleceu
antes de se prover no lugar e substituíu-o Maximiano Lemos, também anatomista
ex-director da morgue. J. A. Pires de Lima era anatomista e cirurgião, bem como
Hernâni Monteiro. Quando Maximiano Lemos escrevia a História do Ensino
Médico no Porto, era ainda a cirurgia que celebrava.
Do ambiente erudito que se constituíra no Porto sob a égide da herança de
Camilo e dos da geração de setenta, os médicos historiadores haviam recolhido a
estrutura narrativa que daria corpo ao seu discurso ideológico. Era singela; uma
tenebrosa conjunção do estado de antigo regime com a Igreja e a Inquisição
determinara um atraso irreparável da ciência e da prática médicas em Portugal,
quer promovendo toda uma estrutura tradicional de espontâneos no exercício dos
ofícios médicos ou mágicos, quer perseguindo humanistas e cristãos novos,
considerados como os eventuais renovadores da disciplina e do ofício.
Um empreendimento estruturado por parte das camadas dirigentes havia
investido na dissociação crescente entre os intelectuais e as camadas populares, de
forma que torpedeava mesmo a acção educativa e pedagógica que os sábios deviam
ter na formação dos oficiais espontâneos ou sem formação e aptidões
reconhecidas(2).
Denunciava-se a conjura dos Cirurgiões e Físicos mores, que promoviam
exames desqualificados para tornar fácil a integração de barbeiros, sangradores,
algebristas, meios cirurgiões e parteiras no tecido institucional. Mas o que a
História da Medicina não explicita é que a maior parte deles, sobretudo dos
cirurgiões, haviam já sido sangradores ou barbeiros e depois meios cirurgiões(3).
O tema crucial então da história da medicina em Portugal, aquele que
confere objectos específicos à "medicina popular", é o das cartas de exame; é a
análise de um auto ou termo de exame de um sangrador de Guimarães, que serve a
Maximiano Lemos como ''medium'' narrativo para explicitar, em História do
Ensino Médico no Porto, o atraso e o cunho "popular" ou rústico da medicina no
Porto ainda no Século XIX. "Tais exames, tal medicina".
Mas o tema de que os barbeiros, que operam sobre os cadáveres no teatro
anatómico enquanto o mestre papagueia na cátedra regendo a demonstração, sabem
mais de ossos, músculos e orgãos do que qualquer médico ou cirurgião, que é o
quadro legitimador da Fabrica de Vesalio de que a história da medicina se
apropria, contém em si todas as marcas destas ambiguidades e contradições.
A história da medicina decide conforme lhe convém, se este
experimentalismo é um factor de bloqueio à identificação da medicina institucional
como o terreno da afirmação de uma disciplina e uma prática científicas, ou pelo
contrário aquele que promove tenazmente a exclusão dos retóricos dissociados das
intervenções concretas.
É no seio destas indefinições, que se organiza o contencioso surdo e
conspirativo entre médicos e cirurgiões. Na maior parte dos textos que apresento,
quer em anexo, quer em nota, este contencioso é explícito quanto convém(4).
Porque o que me interessa são as operações a que, na crista deste
contencioso, uns e outros, médicos e cirurgiões, se entregam para excluír ou fazer
dele participar, conforme a conjuntura, todos os outros oficiais das artes médicas.
Ocorre-me finalmente citar um mais que sábio raciocínio de J. A. Pires de
Lima em Epítome de História da Medicina Portuguesa.
"Com exagêro, diz Maximiano Lemos: "A Reforma executada em 1772
pelo Marquez de Pombal marca talvez a página mais brilhante da nossa história
literária."
(...) É certo que da Reforma resultaram grandes benefícios, entre os quais
avulta o grandioso Jardim Botânico que, ainda hoje, é uma glória para a
Universidade de Coimbra.
Mas a má escolha do professorado, as agitações políticas, a incompetência
dos governos, o recrudescimento de abuzos fizeram com que falhassem, em grande
parte, as esperanças de levar Portugal à altura das nações mais adiantadas.
Näo foi em Coimbra, com a famosa Reforma Universitária, mas sim no
modesto Curso de Cirurgia do Hospital de Todos-os-Santos, que um simples
barbeiro conseguiu criar, pela primeira vez, uma escola anatómica portuguesa, que
depois irradiou para Coimbra, para o Pôrto, para a Bahia, para o Rio de
Janeiro."(5)

Este simples barbeiro, Manuel Constâncio, a quem Augusto de Castro


chama apropriadamente o ''Pareo Português'', ficou, todavia, do lado dos simples,
acompanhado das velhas, comadres, alveitares, enfim a turba infindável dos
protagonistas silenciosos da "medicina popular"(6)
Notas

(1) Este raciocínio, que confere aos barbeiros, algebristas, sangradores e


parteiras a responsabilidade por todos os bloqueios à afirmação de uma prática
médica "científica" em Portugal e Espanha, intrometeu-se de tal forma nos
critérios e no discurso da história da medicina, que amarra completamente um
estudo que poderia ter sido magistral, Some remarcks on the social and
professional status of phisicians and surgeons in the iberian world, 16th-18th
century, de C.R. Boxer in Revista de História de S. Paulo, Vol.L, tomo 1, 1974.
Para caracterizar este problema, tornam-se ainda indispensáveis as
leituras de Contribuição para a História das Ciências Médicas em Portugal: O
Hospital Real de Todos os Santos, de Alfredo Luís Lopes, Lisboa, 1890; Sobre
Barbeiros e Sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, de Santos Costa in
Arquivo de História da Medicina Portuguesa, XII, 1922; Os Cirurgiões Urologistas
Ambulantes em Portugal e Espanha, de Silva Carvalho, citado; Físicos e
Cirurgiões Quatrocentistas; As Cartas De Exame, de Iria Gonçalves, in Do Tempo
E Da História, Vol. I, 1965.
Transportando a questão para o contexto da facécia, mas particularmente
arguto, Allegação medico-legal sobre a defensa de João Pinheiro Pereira Coutinho
accusado por curar sem ser formado na Universidade de Coimbra, nem pera isso
ter licença do Fysico mor do Reyno, e Casa., anónimo impresso por João
Couceiro de Abreu em Lisboa. 1721.
(2) - A partir do Século XVII, começa a circular uma série de tratados que tentam
ordenar o exercício destes ofícios; porém, ao contrário do que a História da
Medicina faz presumir, a maior parte deles é escrita por oficiais, ou ex-oficiais
dos respectivos ofícios.
É o caso dos manuais para barbeiros e sangradores: de Manuel Leytão,
Practica de Barbeiros, Lisboa, 1604; de Ferreira Roque, Tractado de Phlebotomia,
Évora, 1722; de Leonardo Pristo da Barreyra, Practica de Barbeiros
phlebotomanos, ou Sangradores reformada, Coimbra, 1719; e ainda os de António
Gomes Lourenço e Manuel José da Fonseca. Um elenco semelhante se poderia
citar para os algebristas, parteiras, ou mesmo boticários.
Obras como a Luz da Medicina de Mourato Roma, ainda se podem
considerar destinadas a ilustrar e dar formação médica elementar aos práticos,
do ponto de vista, agora paternalista, dos médicos eruditos. Uma leitura
sistemática da Luz da Medicina, obriga-me a interrogar sobre o que distingue
estes tratados do Thezouro de Prudentes, ou mesmo do Thesaurus Pauperum.
(3)
(4)
(5)
(6)
ANEXO 1
Biblioteca Pública de Évora
Códice CXXXI/2-23

Peça nº 1

Pasta com documentos do espólio do Dr. José Rosa Correia.

Conselho pera D. Brites filha de D. Martins Vargas da villa de Estremoz.


dado em 28 de Janeiro do anno de 1650.

A causa immediata deste achaque he obturação do vaso regio,ou/ bexiga


de fel, que não dá lugar a recolherse este excremento/ no dito receptaculo, o que
he occasião de retroceder às veas, e in/ficionar toda a massa do sangue, e daqui
nace a cor amarela/ dos olhos e do mais corpo.//

O que tambem se vê no excremento da ourina,que será nesta senhora


algun tanto/ açafroado, e não duvido que a camara que fizer seja esbranquiçada,/
e sendo he sinal que ambos os orificios da bexiga do fel estão opilados./ Esta em
summa he a naturesa deste symptoma novo, que como fica dito,/ se chama
jetericia./
A cura delle consiste em abrir, e reserar, e expurgar a dita opilaçao,/ o
que se pudera ter feito, se a senhora d. Luisa (… margem, Brites) se mostrara
mais obediente/ aos senhores Medicos. O tempo presente favorece pouco nosso
intento,/ comtudo a urgencia do achaque, e cuidado com que esta senhora está,
não dá/ largas treguas./
Sou de parecer que esta senhora aceite 2as sangrias, cada huma de 5
onças de/ sangue, primeiramente no pé direito e vea da madre a primeira, e a 2a
no/ pe esquerdo,e em cada huma dellas se proveja a senhora d. Brites de camara/
huma hora antes, ou seja obra da naturesa, ou per via de cristel commum/
purgativo./
ANEXO 4

Biblioteca Pública de Évora


Códice CXXI/2-23

Peça nº 21
1. (Atestado pelo médico Ignacio Tamgnini, da doença do Beneficiado António
Pedro de Andrade Lima.)

Ignacio Tamagnini Medico nesta cidade. Certifico que muitos anos há, eu
fui/ consultado pelo Reverendo Beneficiado Antonio Pedro de Andrade Lima,
rezidente então no/ Convento de Jesus, pera humas queixas antigas, e rebeldes
scorbutico-hipocondriacas, que desde/ a sua mocidade padecia. E propondolhe os
genuinos e efficazes socorros da arte diligente,/ em oppozição ao methodo
meramente humectante, palliativo vulgar, e precario, com que/ fora sempre
preposteramente trattado, encontrei os obstaculos todos invenciveis da
preo/cupação de hum temor pannico, e da ignorancia interessada, a que
forçozamente cedendo fui/ constringido abbandonhalo inteiramente ao seu antigo
desconcerto, e a sua sorte; athe que pas/sados mais alguns annos depois de o
perder de vista, novamente fui instigado a vizi/talo na Rua de S. Jeronimo de
Bellem, aonde o achei entrevado em huma cama, ja tam/bem de annos, com as
extremidades inferiores contrahidas, e calcanhares pegados nos/ lombos; as
articulações erão disformes endurecidas de ankiloses enormes specialmente/ nos
joelhos, o ventre timpanitico, e duro, quanto hé pssivel, inobdiente às suas
excre/sóes, o rostro atrophico, febriculoso, e marasmado deploravelmente nestes
termos lasti/mozos, lembrado elle dos meus anuncios, e asserçoes antigas, e
esperançado eu das/ omissões, impropriedades, e negligencias passadas mais
ainda, do que da apparente/ possibilidade, de reparar já tão grandes dezordens, e
progressos,, entrei rezoluto, e/ compadecido, em huma cura, qual prescrevem os
principios solidos da verdadeira/ sciencia Medica (muito mais fecunda em
successos, e util aos homens do que opina a/ descuriozidade indolente, e a
impericia) e em premio dos mais profiados, e continuos/ esforços obtivemos,
mediante os influxos de hum Ceo propicio: eu o gosto delicado/ que rezulta de
huma boa acção; e o infermo o bem incomparavel da sua saude, resti/tuida a hum
estado de firmeza, que jamais lhe foi concedido, na milhor, ou mais/ vigoroza
parte da sua vida. E por isto tudo ser verdade, passei a prezente certi/dão por me
ser pedida, attestando o seu contheudo, se necessario for de baixo de/ juramento.
Lxª em o 1º de Novembro de 1776./
(ass:) Ignacio Tamagnini.//

2.(relato da doença.)

Rezumo da molestia do/ Benefeciado Antonio Pedro de/ Andrade Lima,


principiada á/ trinta e sinco annos; que fez per/suadido por hum curiozo, amante/
da verdade./
Morando no Campo grande, ha trinta,e sinco anos,/ no dia do Equinocio
do Outono, vim pelo Sol de todo elle,/ do Estoril athe caza; de noite senti no
estomago hua/ pontura vehemente, que a pouco passou, com huns goles/ de agoa
ardente; de tarde fluio hum fluxo de sangue,/emorroidal, sem dor, nem ardor;
Veio o Medico Pacheco/ do Hospital da Luz, mandoume metter em semicupio,e//

sahindo delle com febre ardente, mandoume sangrar; pa/rou o fluxo com a
sangria, ficou febre continua com/ crescimentos agudos; e vindo os Doutores,
Medico Santa Ma/ria, e o Medico Lazeiras, não se forão, sem vir de Lisboa Agoa/
de Inglaterra, que me derão logo, e com tres copos, parou tu/do, tanto os
crescimentos, como a febre./
Dahi a poucos dias me porgarão levemente, e só/ deitei agoas vermelhas,
ou tinturas de sangue, ou da Agoa/ de Inglaterra; dois annos depois me
continuarão a refres/car com poderozos, e continuados Refrescos, e athe tomei os
su/mos de Borrages, e Xicoria com soro de Leite, que tras Ba/glivio. Nos ditos
dois annos me troquei nas cores das mes/mas ervas, recicandome sem a natureza
obrar, cheio de/ muitos assaltos, que parecião mortaes, a cada instante, po/is
erão convulsos, e expasmodicos./
Nestes termos, me mandou o Doutor Falcão para/ os banhos do Mondego,
e o Doutor Santa Maria; e antes/ de hir me mandou Monsenhor Manoel Moreira
de Sou/za falar com petição ao Senhor Rey D. João V. de glorio/za, e saudoza
memoria: deilhe hua petição para a Patriar/chal, tambem para meio dos
despachos de meo Pay, dahi//

a dois mezes deo a molestia no Augusto Senhor, e julguei/ não teria despacho, e
apertandome a queixa, fui para/ os banhos do Mondego na companhia de hum
Reli/giozo o Doutor Fr. Antonio de S. Boaventura Ferrei/ra do Collegio de S.
Jeronimo, que disse em Coimbra/ me tinha levado mais morto,que vivo, em cuja
Cida/de entrei donde tinha sahido formado, e em tempo que/ dobravão os sinos
pela morte do Senhor Infante D. Fran/cisco acrescentada a molestia, com a
imaginação, e re/alidade do que eu via./
Disse Missa em caza à meus Pays, a/ dezasseis de Julho, e dahi por diante
o não pude fa/zer pela molestia, que era tão grande, que para consola/ção de
meos Pays disse Missa, por ir para Coimbra ãos/ banhos, como quem se despedia
delles para sempre./
Os Medicos de Coimbra me mandarão logo abrir fontes,/ o Medico Inglez
Pedro Bruni do Porto, hindo eu para/ lá, me queria curar, e mandoume as
receitas, em que os/ Medicos de Coimbra não consentirão, por que dizião/ erão
activas, mandei fazer Caza de banho no Monde//

go adonde se divide, o Dessa, do Seira, para não serem/ agoas de Linhos. Entrei
a deitar as partes quilozas, que/ parecião bocados de arraias insanguentadas, e
moncos/ intistinaes, e ao mesmo tempo com fome que parecia Ca/nina: em Agosto
seguinte, me fez S. Magestade que Deos tem/ a mercê de despacharme,
mandandome por Joao Pedro/ Ludivisse, que fizesse Acttos grandes, entendendo
tam/bem que estava en Figueiró de Vinhos com meo Thio/ o Mestre Fr. Caetano
de S. Joze Carmelita descalço, e/ que feitos viesse tomar posse do Beneficio
prezente, i/gnorando S. Magestade a molestia que tinha, que ao depois lhe
disserão./
Eu ja dispensava o despacho, por me livrar do/ martirio meyo para elle,
dos Acttos grandes, e em tal estado: e muito mais, porque S. Magestade ja tinha
de sobejo/ para escolher os que melhor lhe paressesem; e não/ vindo em termos,
era mayor o martirio; com a honra/ destes pensamentos, padecia mais o espirito,
e acrescen/tava-se a molestia, que não podia curar-se de repente;/ e querendo os
Medicos, Os primeiros de Coimbra, que me//

vezitavão fora de horas, porme nos termos de tomar ponto,/ arbitrarão que fosse
primeiro à Villa de Carvalho estar/ com o famigerado Prior Ezorcista para ver se
necessitava/ a queixa, daquelle remedio, fui em huma liteira com o meo/
companheiro Antonio Caetano da Rocha, ultimo Bis/po falecido. que foi de
Angra; que me levou mais morto/ que vivo: estive nove dias com o dito Prior, e em
nenhuma/ parte passei peor, regando a terra com sangue immor/roidal, e prometi
a N. Senhora, que deixandome fazer Act/tos grandes, hiria logo outra vez a
pagarlhe a promessa/ da minha devoção. Vim para Coimbra, e só to/mar ponto de
sufficiencia á quatro de dezembro, e fiz o/ Actto com febre, e em huma Litteira, do
mesmo modo fiz/ as concluzoes Magnas, e a sinco de Janeiro tomei ponto/ para
exame privado, e a nove do mesmo mez fui outra/ vez a Carvalho cumprir a
promessa; no dia seguinte par/ti para Lisboa, achei S. Magestade em S. Vicente
na Festa do/ dezagravo, honrou-me em satisfazer-se das minhas car/tas que trazia
de Coimbra, que lhe aprezentarão por virem//

limpas, mandoume logo dar posse do Beneficio, e honroume/ com hum recado,
que me deo o Conde de Unhão, que fazia/ esquecer todos os trabalhos passados./
Recedi quinze dias, e logo com humor que me sahia das/ fontes, de ambas
as pernas; por ser acre, e mordaz fiquei/ aleijado sette mezes com chagas, e
erizipélas repetidas; e Jo/zé Ricol o velho mandava fechar as fontes, e o Fizico
Mór/ Manoel Dias Ortigäo mandava que as tivesse abertas, e/ veio o Medico
Veneziano chamado Carlos Gandini, que a/inda hoje vive em Genova, e me
determinou que as fechasse,/ e curou duas grandes eripizelas em ambas as
pernas, e a/ picada de hum ramo Arterial, que custou a consolidar./
Ouvia todos os Medicos da Corte por escritto se/paradamente seguia o do
dito Medico Veneziano Carlos/ Gandini não só pela experiencia do seu exame, em
que/ lhe argumentou o Doutor Joaquim Pedro de Abreu, Me/dico da Camera, mas
tambem pela experiencia das suas/ curas, e prognosticos na minha molestia que
erão quazi/ infaliveis. Deo-me oleo de Amendoas doces sem fogo por//
muitos tempos, e ás seis onças por cada vez; então tinha/ grandes indegestoes, e
morragias de sangue, e dois anos/ se não recolherão as amorroidas ulceradas, e
chagadas;/ e assim ia à Patriarchal por aliviarme; com accento a/berto na
carruage, e o dito Ricol Velho me curava huma/ chaga interior na parte posterior,
com Caparroza, e Vi/triolo, e Oleo de gemas de Ovos, fresco de todos os dias./
O Cirurgião do Cardeal da Motta, chamado Mano/el Teixeira me pôs o
seo remedio caustico, sem eu saber/ que o era, às Ave Marias; e às duas da noite,
estive à morte/ com a parte quazi cangrenada; assistido de João Bap/tista
Ciceron, e o Cirurgiäo Damião de Ceita Correa, que/ ainda vive, e da Botica de
S. Vicente vinha tanto lauda/no para a parte, que me avizavão o não tomasse;
enten/dendo seria bebido./
Continuou o dito Medico Gandini a deluirme, com/ os oleos, com soros de
Leite de Federico Hofmano, com asu/car de Leite, e com a idea de me coroborar
depois com san/dalos rubros, ou seterinos: não o consentirão os Medicos//

Portugueses, e ficou a cura imperfeita como elle dizia;/ e so fallou no prognostico


de eu durar só dezaseis annos,/ visto não ficar curado; e se me visse no estado a
que cheguei/ despois, poderia dizer com verdade, que era morto, e agora/
ressuscitado, mais pela natureza, que pela arte./
Fui tomar banhos às Alcaçarias, para Beija, pa/ra os ares de Cintra, e
seis annos não pude sahir fora;/ vendo com o mayor martirio entrar, e sahir do
Adro/ da Patriarchal os meos companheiros; pois morava/ em hua caza da
Biscondeça de Barbasena na Cal/çada de S.Francisco, que me tinha dado S.
Magestade por/ intervenção do Marquez de Marialva; em quanto/ as obras se não
fazião, e sahindo dellas, para a Calçada/ do Combro, com o sentido de tornar,
estando acabadas;/ deo-me nellas o trabalho do Terremoto do anno de mil/ e sette
centos, e sincoenta, e sinco, donde sahi nú, e descal/ço, tendo acabado hum banho
de tina; e melhorei em/ taes termos, que pude fazer o remedio dentro da Quin/ta
dos Senhores de Palhavãa, adonde me achei quazi in//

sensivelmente; que era andar quatro legoas por dia a/ Cavallo, com o conselho do
Doutor Ortigão. e o Doutor Mar/tinho Nicolao, para me livrar de hua timpanitis,
porque/ me queria furar a barriga o Cirurgião Excrafeton; e com/ o remedio de
andar a Cavallo, milhorou./
Tive outro insulto, que foi huns desfalecimentos na/ boca do estomago,
que me sentia morrer, e nove mezes ti/ve cursos, sem mos quererem atalhar, e
taes, que comendo,/ ou bebendo, sahia o ultimo que tinha tomado; e com
deli/quios cahia no chão mortal, e sem pulsos, e era tanto o san/gue que deitava
posterior, que o Medico assistente Antonio/ Joze Pestana, de Caza do Conde de
Unhão, sahia desmaya/do de ver a profusão de tanto sangue; e para tornar a
mim,/ era precizo dormitar sobre hum caldo de sustancia; contra/ os pareceres de
muitos Medicos da Junta, e so com o parecer/ do Doutor Alexandre de Souza fui
ás Caldas da Rainha/ N. Senhora que Deos Guarde, e tomando os banhos, vim
alguma coiza/ melhorado destes insultos; e no seguinte mandoume ir o/ Marquez
de Marialva para sua Caza, e não quiz o Orti//

gão que lá se achava com S. Magestade que Deos tem, que eu os/ tomasse por não
estarem as agoas capazes./
Continuei a padecer, morrendo a cada instante,/ mandavão-me sair os
Medicos, ainda que me não tiras/se da carruage, e obrigandome a profunda
melancolia,/ e tristeza, a reduzirme a cadaverico, envergonhandome de/ me ver
disfigurado, e athé que os meos domesticos me vis/sem; e por força da melancolia
dois annos, não sahi fo/ra se não com hum de tres Medicos na Sege, e esta cheia/
de remedios, e sustancias, applicadas pelos mesmos,que/ erão os Doutores Carlos
Gandini, Antonio Joze Pestana,/ e Alexandre de Souza; e ajudandome mais o
discurso,/ continuei a andar com hum Thio meo Religiozo de S./ Jeronimo como
confessor, e do Mosteiro de Penha Longa/ do Termo de Cintra, para cujo
Convento fui, e assestido/ do Medico Gaspar Pereira Soares Cabreira, e
passando/ muito mal com o paladar perdido, não podendo engolir/ mais do que
sucos do que mastigava, sem poder beber agoa, tremolando todo ezofogo, quando
comia, ou be/bia; mandaraome logo para Lisboa a onde me fez san//

grar o Doutor Pedro Esteves Oriol, Medico da Camera, e/ o Doutor Joze de


Santos Maria, e me sangrou Antonio/ Francisco da Costa, hoje Cirurgião da
Familia Real, como/elle o pode dizer. (à margem: que em vinte e oito annos me
remediou os maiores insultos)/
Em tantos, e tão differentes insultos, para o que eräo/ consultados os
Medicos mais famigerados do Fizico/ Mór Pina, Ortigão, Falcão, Carapinho,
Saquete, Corne/lio, que fez hua consulta larga, pedida pelo Turel, meo/ amigo,
Bispo de Lamego, que mo mandou ao Estoril, as/sestido por mais estrangeiros, e
Medicos Quimicos, o Barão/ Garini, outro Lanher, e o Cirurgião Pedro Traves,
hoje da/ Nação Britanica tambem Boticario, de cuja Botica to/mei os ultimos
remedios; este me mandava pendurar/ chumbos nas barrigas das pernas, para
irem tendo alguma/ flexibilidade, pois dizião que estavão os joelhos petrifica/dos,
e que sem ao menos dous anos de Caldas da Rainha N./ Senhora todos os dias,
continuando os banhos, e pondo os lodos/ nas partes, não poderia esperar
melhoras (porem Deos/ ma deo sem lá ir, porque tambem antão não tinha com/
que; e não sei se forão aprezentadas as supplicas que fiz//

para o poder ter./


Entrepoladamente melhorado, e doente, tive outro in/sulto, obrigado a
outra junta sendo assistente o Doutor Joze/ Ignacio Medico da Familia Real, e os
Doutores Saldanha,/ Batalha, e o Fizico Mor Carapinho, e rezultou da junta, que/
tomasse bichas, e fosse para os banhos do Estoril; e o Doutor/ Oriol, que os
tomasse em Janeiro, e em toda a vida; pois de/via viver como pato debaixo da
agoa; finalmente fui em/ dia de S. Miguel, e o ultimo banho foy a quatro de
Dezem/bro; vim com alguma melhora, continuei o ano seguinte, e/ ja não foy
tanta, e a queixa tão augmentada que/ mos não deixava tomar com febres, a que
chamavão me/zentericas, e intermitentes; e cançado de estar doente, e com/ tantos
trabalhos, cuidei só em curar a alma, e ao corpo o que/ bastasse para este fim;
recorri ao meo Excelentissimo Prelado Carde/al Patriarcha; e com seo conselho,
e consentimento, por lhe/ dever à muitos annos affectos de Pay; e fui para o
Conven/to dos Religiozos Terceiros de Jezus por ser o mais perto/ da Patriarchal
da Cotovia, para ir a ella quando pudes/se, sem embargo de estar dispensado, e
não ser contado no coro//

e ter licença para não ir a elle, senão quando pudesse, e foy/ a primeira que deo
com estas circunstancias, o Excelentissimo Cardeal/ Patriarcha Almeida; trazida
pelo Medico Ortigão, por con/sentimento de S. Magestade que Deos tem./
Fui para o sobredito Convento com febre, e a vinte, e/ dois de Janeiro, e
para hua Cella das melhores, e achei mais/ do que merecia, tanto em politica,
como em caridade, doutri/na, e exemplo; logo na Pascoa seguinte fui sangrado
com/ febres ardentes, e pouco milhorado, continuando os insultos,/ que os
prognosticavão mayores; chamei o Doutor Ignacio/ Tamagnini, e applicandome
varias receitas, dizendome que/ tinha accido fixo, por então não pude uzar dellas,
por serem/ contrarias ao sentido dos mais Medicos Portuguezes, que me
ve/zitavão tambem com amizade, e caridade; e eu a todos vene/rava, como devia;
estando no dito Convento, muito contente, e/ satisfeito, dando graças a Deos da
quella boa passage, para/ o ultimo tranzito que ali esperava: tornei no terceiro
anno/ para o Estoril persuadido pelos Medicos, maz desanimado,/ pelo
Tamagnini, porque me dezia que sem me curar, não me//

havião aproveitar os banhos, e assim succedeo, porque vim muito/ peor do que
fui./
E continuando os insultos da queixa no mesmo/ Convento, e na mesma
Cella; à meya noite na vespera do Na/tal seguinte, tomei hua emulação de
pevides, e escorcioneira,/ por cauza de hum grande fluxo; e ainda quente com
esperança/ de suor, passadas duas horas que se actuou no estomago, en/trou este
a estallar, vaporando enxofre, e abrazandome como/ quem morria queimado;
todas as veias e arterias do alto da/ cabeça, athe ós pés estalavão, e parecia que
quebravão, com o corpo/ todo oleado, vaporando enxofre; toda a noite ao outro
dia, ao meyo/ dia, estive neste trabalho, com a lingoa inflamada, que me não/
cabia na boca; depois fiquei tão queimado, e consumido, que o/ mesmo Cirurgião
Antonio Francisco só me pode sangrar no cal/canhar, e não pode continuar;
quatro mezes estive Marasmo,/ e Tabido, e assim mo disse o Medico Pugiol, e
mais Medicos; na/ mesma Cella, e desprezando ja todos, sempre ouvia o Doutor/
Tamagnini, mas sem servirme das suas receitas; passei qua/tro mezes a morrer
sem remedio, mandarão-me às Orvalheiras/ para os ares de Cintra; aonde estive
ultimamente vinte mezes//
muito mal, e não achei melhoramento em parte al/guma, vim para a Rua de S.
Jeronimo em Bellem, sustentar/ dois Irmãos, e pagarlhes caza por lhe ser assim
muito pre/cizo, nestes tempos passei muito mal, e tres annos, e meyo/ de cama, e
sinco de moletas, e carrinho./
O Doutor Ignacio Tamagnini depois de terem/ passado tantos annos, que
tinha desprezado as suas re/ceitas no Convento de Jezus, que forão os que
mediarão a/the me confirmar tolhido, tabido, com Timpanites, e An/quilozes; com
a pele cheia de escamas, e conchas com/ pernas, e pés com chagas que o
Cerurgião Guilherme/ Francisco curava quatorze, em hua perna, com tres castas/
de Unguentos, administrados pelo Cerurgião Antonio Francisco/ da Costa, e
Manoel Joze, e João da Malta, Cirurgião Mor/ do Regimento de Lipes, que me
curou nas costas, hum en/trás acarbunculado, que se tirava com atanás a
materia,/ abrindose praça; com estes trabalhos; e finalmente commun/gando estes
annos, na Pascoella como entrevado, pelo Cura/ de Bellem, vendo que comia, e
não obrava, e o ventre se ele//

vava, cescendo a Timpanitis, chamei o Medico mais vezinho,/ que me confirmou


ser Timpanitis; e ser precizo furala; deome/ duas purgas de maná, que ambas
ficarão, e vendome ja de/ todo como morto, cadaverico, entregueime de todo ao
dito Ta/magnini, o qual me disse, que eu estava de todo arruinado,/ maz que fazia
o possivel; os remedios para este estado forão/ os seguintes./
Sette frascos de Azebre liquido, com sabão, vinho, e Rui/ barbaro,
Tinturas de Ferro continuadas por muito tempo; ba/nhos de tina de sabão, e
esfregaçoes fortes com fumos de Incen/ço, e o Azebre foy liquido, porque então
não podia levar piro/las; bebia as agoas de ferro da Quinta do Jance da Cabeça/
Seca; vizitavame o Tamagnini na Rua de S. Jeronimo mui/tas vezes, observando
os sintomas para applicar as receitas/ que forão muitas e differentes; e cançado
elle de vir; e eu de/ mandar; pois me servio quazi toda a Companhia de An/drade
no Regimento de Lipes, deligenciei os Hospitaes da/ Corte, e os das minhas
ordens terceiras, para que o Tamagnini/ me assestisse, e observasse mais, e mais
de perto; e fui tolhido//

para Lisboa em hua cadeirinha, para as cazas que se achavão/ com escritos mais
perto do mesmo Tamagnini, que forão na/ Rua da Roza das partilhas; adonde o
mesmo Tamagnini me/ vizitava, e entrei a sahir em cadeirinha,tolhido, e pelas
esca/das en huma de roda, em que andava por caza./
Ja me dava por contente, em viver sem andar, e leva/rem me a ouvir
Missa ao Oratorio como prezenciavão os Pa/dres do Convento de Jezus, que ma
hiao dizer, e lembrandome/ da milagroza imagem da Senhora da Saude; Venerada
no Re/al Mosteiro de S. Jeronimo de Penha Longa, no Termo de Cin/tra, e de me
ter feito tres prodigiozos beneficios, de idade de/ sinco anos, sendo o primeiro,
livrarme de cahir na Ribancei/ra, que avia á entrada da porta da Quinta de Pena
Verde/ em Cintra; que então era valado, e não muro; e recuando a/ sege com meo
Pay, e minha May dentro, que se tiravão am/bos, mais eu, pelas portinholas, e
ficando a sege suspensa/ com os corpos dentro, ninguem perigou, e meo Pay não
entrou/ na Quinta, e veio com os da sua companhia, render graças/ à Senhora a
quem deixou hua sacra de Prata para a boca do/ Sacrario, em memoria deste
beneficio.//

O segundo foi na mesma idade sendo offerecido à mes/ma Senhora por


minha May com hum pano nos olhos, como sego,/ por interceção da Senhora
milhorei./
O terceiro foi, estando tolhido de hum reumatismo,/ e assestido na mesma
idade pelo Fizico Mór Bernardes, e com/ o Manto da Senhora tambem milhorei; e
lembrandome destes/ favores; recorri novamente à Senhora com mayor fé, e
esperança;/ e prometti ir levar hum painel à Senhora, que narrasse estes qua/tro
prodigios, e levar juntamente as moletas, e cadeira de Ro/das em que andava; e
que iria de rastos da Porta da Igreja athé/ o seo Altar, deixando em caza hum
painel semelhante, ao que levava, para memoria dos Beneficios, e do meo
agradecimento/ em alumeado todas as vezes, que dizesse Missa em caza, nos/ dias
de N. Senhora./
Tudo compri, e executo, porque passados os quinze di/as de promessa
logo o pude fazer, não parecendo natural aos/ Professores; e jurando algum, que
o não era; e tudo me obrigou/ a pedir nova Rezidencia, como novo homem,
lembrandome/ deste lugar vago, que mereci á mizericordia de Deos, e grandeza,//

e piedade de S. Magestade sem lho eu merecer, dezejando multi/plicarme para dar


graças ao mesmo Senhor, e servilo; e a S./ Magestade que Deos Guarde nos
dezempenhos das minhas obriga/ções, e do meo Beneficio.(1) (à margem: (1) a
todos os Portugueses nomeados devo os maiores disvellos, mas a quem mais
sempre lhe assestio, a tudo forão o Cirurgião Antonio Francisco da Costa,
Cirurgião da Caza Real; e Joao da Matta Cirurgião mór do Regimento de Lipes.)/
Não hé para este lugar os trabalhos temporaes, po/liticos, e sévis de vinte,
e outo annos; só digo que em todos/ elles, paguei cazas a meos Pays, deligenciei
sette Decretos,/ paguei vinte, e sinco mil cruzados, pelos meos rendimentos,/ a
pessoas vivas, e conhecidas, e pela caza; e actualmente as/ estou pagando, e
sustentando a dois Irmãos na Rua de S./ Jeronimo de Bellem, hum de oitenta, e
dois annos, outro de/ pouco menos: Depois de me achar nestes ultimos sette
annos/ de doença, com menos seis centos, e secenta mil reis de renda/ annual,
inculpavelmente. Tudo quanto alego ,provo, com/ Certidoes, e documentos;
esquecendome de calumnias, e ingra/tidoes, para continuar como Deos for
servido, que guarde a/os que me acreditarem,porque/
R. Mª//
3.(Segue-se o certificado seguinte:)

Antonio Francisco da Costa Cavaleiro professo na Ordem de Christo/


Cerurgião do numero da Caza de S. Magestade, que Deos Guarde, e Cerurgião
Mór/ do Regimento de Alcantara/
Certefico q'alguns anos antes do Terremoto, me mandou chamar a
primeira vez/ o Benefeciado Antonio Pedro de Andrade Lima sendo eu então
Cerurgião da Camera do/ Senhor Infante D. Antonio, que Deos haja, e morava
então o dito Benaficiado na descida da/ calçada de S. Francisco da Cidade, e
sendo então a queixa que me mostrou huma intume/cencia hymorrhoidal a que lhe
appliquei alguns remedios analinos, para o effeito de/ lhe mitigar as dores, que
me afirmava o molestavão, e lhe observei hum affecto hy/pocondriaco complicado
com hum viros escorbutico, que se manifestava na rui/na das gengivas, e aballo
nos poucos dentes, que naquelle tempo tinha por se lhe/ ter dezarreigado, os que
faltavão até cahir. A dita agregação de queixas foi/ paliando com diluentes, e
atemperantes, e ante scorbuticos dos mais benignos,/ maz não obstante não
deixava de tempos em tempos ser acometido, de no/vos insultos, ora mais, ora
menos fortes, sendo hum dos maiores poucos tempos/ depois do terramoto
morando então o enfermo na calçada do combro, que se lhe/ erritarão na quella
occazião tanto os liquidos, ofenderão os solidos de sorte/ que não somente lhe
cauzavão fortes movimentos convulsivos, maz tambem/hum frenezim tão furiozo,
que foi precizo para o sangrar ser sugigado por/ pessoas forçosas, cujo sintoma,
lhe durou alguns dias conservando sem/pre huma crispatura tanto interna como
se observava o reciquido, e reten/ção das materias fecaes, e no externo, na
dureza, e sequidão de todo o ven/tre, e mais membros do corpo, que me não
lembro ver com frouxidão, nem/ parte massia com lentura de transpiração, maz
sim tudo duro, tezo, e seco,/ e crespo; porem o beneficio dos alimentos, remedios
humectantes, e anodi/nos serenavão-se por algum tempo os simptomas em cujo
entrevalo//

foi transportado para o sitio do Rio de Mouro, e por ali ser acometido de novo/
insulto (ainda que menos violento) mandoume buscar aonde fui e o sangrei no/
braço, e depois de mitigado o novo ataque retirouse para a Corte, e foi assestir
para o/ Convento de Jesus, e dali me mandou chamar aonde o vzitei alguas vezes
como/ tambem em outras partes, em que morou, e haverá quatro ou sinco annos
foi de mo/rada para Bellem assestir na Rua de S. Jeronimo aonde se lhe alterou a
tão exceci/vo gráo os acrimoniados humores, que lhe cauzavão tal crispatura com
incolhi/mento nas pernas, que tinha os joelhos chegados ao imbigo as mesmas
pernas co/bertas de costras muito parecidas com as que produz o fogo activo; e
em algumas/ partes com chagas, que ficavão da cahida das escaras como tambem
de al/guns tuberculos supurados com algum humor muito corrusivo, todo ambi/to
do corpo coberto de caspas salsuginozas, semelhantes ás escamas de pei/xe
salgado, a elevação que naturalmente há no ventre estava sumida de sorte/ que
parecia estar pegada ao espinhaço, as gengivas ofendidas os poucos den/tes
descarnados, e abalados; em fim viase nele a reprezentação de hum esca/leto
coberto com a péle escamoza por cauza de huma lepra escorbutica;/ o que tudo
prezenciei, e neste ultimo, e o maior de todos os insultos, o prezenciou/ João da
Matta Cirurgião Mór do Regimento de Lipes, que o nomeei para meu/ substituto
nos meus impedimentos, e por assim ser verdade, e esta me ser/ pedida a passei
debaxo de juramento do Abito, que professo Lxª 12 de 9bro de/ 1776// //

ANEXO 5

HERNÂNI MONTEIRO - Origens Da Cirurgia Portuense, Porto, 1932.


Nota nº1 à página 66

(1) É justo que eu refira uma operação de certo vulto praticada no


princípio do século XVIII por um cirurgião natural desta cidade.
Em 1735 foi impressa em Lisboa uma Memória de 40 páginas, intitulada
Observação cirurgica, caso não so raro, mas único de huma Hernia ossea
casualmente descoberta, animosamente extrhida, e felizmente curada, da autoria
de Lourenço Pereira da Rocha, Cirurgião ordinário e do Partido de Sua
Magestade na cidade de Lamego, mas natural do Pôrto, onde nasceu em 1663.
(MAXIMIANO LEMOS - História da Medicina em Portugal, Vol. II, pág. 120.)
Este trabalho, com a respectiva Estampa, foi publicado, em resumo, em
1841 no Tomo XIII do Jornal da Sociedade das Sciencias Médicas de Lisboa.
"João Pereira, official carpinteiro, morador nesta cidade de Lamego, de
idade de 32 annos, robusto e bem organizado, ha dez annos que cazou com
mulher sadia, da qual teve até ao presente cinco filhos, vivazes, e fortes, o ultimo
de dez meses". Três anos depois do casamento "principiou a intumecerse o
escroto da parte esquerda, e junto á verilha", foi diagnosticada uma hérnia
carnosa, e como tal tratada, mas sem alívio.
Em Maio de 1743 foi chamado aquele cirurgião que viu e tacteou "o
grande e duro tumor... Principiava elle por cima da verilha esquerda, no osso
pecten, occupava huma e outra verilha. Todo o escroto estava muito dilatado, e
tumido, cheio de huns contentos tanto, ou mais duros, que pedras, e muito mais,
que scirrhos; mas tão indolentes, que não se ressentião do mais comprimente
tacto. Tinha hum comprimento, de alto a baixo, quasi dois palmos e meio, e
quatro e meio em circunferencia".
Ensaiou-se o mercurio sem resultado; foi picado o tumor com uma agulha
de redenho, e por fim o cirurgião "resolvese a usar de hum meio, ainda que
perigoso, unico, que póde salvar o doente, a operação local". Aberto aquele
tumor, de dentro tiraram, durante alguns dias seguidos, ossos de vários tamanhos
e feitios, em número de vinte e seis pequenos e dois grandes, com o pêso total de 5
arráteis. Pela descrição, parece que um osso seria um occipital e outro um
parietal. Algumas peças, que o autor inclui nos ossos miudos, eram dentes.
Também foi extraída massa encefálica, "carne flacida quasi como miolos", e
ainda "muita carne scirrhosa, que pesaria quatro arrateis.
Para preservar os tecidos da corrupção teve o operador muito trabalho,
"principalmente na verilha, aonde ficou huma grande caverna, por cima do
peritonéo, temendo, que este se rompesse, e sahissem os intestinos, que a uretra se
rasgasse, e o genital membro se demolisse, assim como se perdeo o testiculo
esquerdo corrupto e esfacelado, sem que nelle se achasse osso algum".
Sobrevieram complicações, que foram a pouco e pouco serenando, e a ferida
operatória, "depurando das putridinosas sordices" cicatrizou de tal forma que o
doente ficou "tão sadio e valente, como d'antes era, com todas aquellas partes
muy naturaes, e sem defeito algum, senão o daquella testemunha da virilidade,
que se perdeo; não obstante a qual, se acha cohabitando com sua consorte, e
capacissimo* de suppeditar novas experiencias (em gerações futuras)". A
veracidade do caso foi autenticada por atestação dos Doutores Médicos e
Cirurgiões de Lamego.

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