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Kalinda, a princesa que

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perdeu os cabelos, e

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outras histórias africanas
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Celso Sisto
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2a edição
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Para Thanira Pillar e Jô Remião,
minhas parceiras no desejo de erigir
um Labirinto de Papel...

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C. S.

Copyright do texto e das ilustrações © Celso Sisto, 2016.

N
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta obra, protegida por copyright, pode ser
reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por
algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia e
gravação, ou por qualquer outro sistema de informação, sem prévia

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autorização por escrito da editora.

Consultoria editorial: Anna Rennhack


Preparação de texto: Lilian Jenkino
Revisão: Karina Danza

Impresso em agosto de 2018


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2a edição – 2018

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S636k
2. ed.

Sisto, Celso
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Kalinda, a princesa que perdeu os cabelos, e outras histórias


africanas / [texto e ilustração] Celso Sisto. - 2. ed. - São Paulo :
Escarlate, 2018.
64 p. : il. ; 28 cm.

Inclui DVD
“Suplementado pelo manual do professor”
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ISBN 978-85-8382-066-6 (livro do aluno)


ISBN 978-85-8382-067-3 (livro do professor)

1. Conto infantojuvenil brasileiro. I. Título.

18-51217 CDD: 028.5


CDU: 087.5

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439


17/07/2018 20/07/2018

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direitos reservados para todo o território nacional pela


SDS Editora de Livros Ltda.
Rua Mourato Coelho, 1215 (Fundos)
Vila Madalena – CEP: 05417-012
São Paulo – SP – Brasil – Tel./Fax: (11) 3032-7603
www.brinquebook.com.br/escarlate – edescarlate@edescarlate.com.br
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Sumário

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Algumas palavras sobre essas histórias……………… 4

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Kalinda, a princesa que perdeu os cabelos……………

Alizué e a árvore do esquecimento……………………


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Rafik, o menino do grão de ouro……………………… 31

Messan, o camponês que ouvia a voz da natureza…… 39

Natula, a mulher dos beiços compridos…………… 47

O lugar das histórias…………………………………… 56

O autor e ilustrador…………………………………… 63
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Algumas palavras sobre

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essas histórias...

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D iz um ditado africano, em língua fon, que
“cada um guarda para si seu acaçá”. Podemos
entender isso de muitas formas: cada um guarda para

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si o seu próprio pão (alimento); ou cada um sabe do
que precisa; ou cada um tem o que merece; ou cada
um quer as coisas só para si (o que, neste caso, remete
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a uma visão muito egoísta). Seja como for, a verdade é
que as histórias africanas me fascinam! Para mim são as
histórias populares mais bonitas que existem. Elas são
fortes, têm uma musicalidade, um ritmo, uma visua-
lidade, uma teatralidade que me fazem considerá-las
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completas, verdadeiros espetáculos (ópera?, teatro?, ci-


nema?, performance?). Por isso tenho me dedicado a
lê-las, estudá-las, contá-las, recontá-las e colecioná-las.
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Parece bobagem, mas ao mesmo tempo em que so-


mos modernos, somos cheios de pudores e regras. As
histórias, não! Nelas tudo é possível. Por isso, neste li-
vro, reuni histórias que fogem um pouco do padrão do
final feliz e do “foram felizes para sempre!”.
A violência, a crueldade, a vingança, a desmedida,
a esperteza são práticas negativas e maus exemplos,

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mas fazem parte da vida, e precisamos aprender a

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­lidar com elas.
As histórias africanas não ignoram isso, afinal, con-
tar também é uma maneira de chamar a atenção, de de-

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nunciar, de colocar todo mundo para pensar (e, quem
sabe, debater?). Por isso, gosto ainda mais dessas histó-
rias, que não são como todas as outras.

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“Kalinda, a princesa que perdeu os cabelos” é um
caso de amor à primeira leitura! Desde que li esse con-
to, ainda em inglês, publicado numa coletânea de con-
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tos chamada African Folktales, não parei mais de pensar
na beleza dele.
Durante muito tempo a história me perseguiu,
até que resolvi contá-la do meu jeito. Claro, para
isso empreendi uma grande pesquisa e ouvi e li ou-
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tras versões para essa lenda do povo akamba. Uma


das versões de que mais gosto é a do escritor tanza-
niano Tololwa M. Mollel, que a conta de um modo
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bastante poético.
Esse escritor tem uma vasta obra de contos popula-
res publicados para crianças e uma reconhecida traje-
tória como autor, ator e dramaturgo tanto em seu país
como também no Canadá, na Alemanha e na Suécia.
O que me encantou desde sempre nessa história
foi especialmente a imagem de uma princesa careca e

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a valentia de Muoma, que por amor vai até o fim do
mundo. É claro, essa é uma história de amor, mas não

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é melosa, e tem imagens lindas e um universo de fan-
tasia que me agrada totalmente. As histórias africanas

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quase sempre valorizam as forças da natureza, o respei-
to à tradição e aos antepassados, e trazem experiências
marcantes. Tomara que o leitor goste tanto quanto eu!

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Mas cada escritor tem um modo de contar, de subli-
nhar os episódios, de valorizar as palavras, de construir
os personagens e colocar em sua boca falas que acabam
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por diferenciar um trabalho do outro.
Quando se reconta uma história, existe a questão
do respeito à tradição oral e da liberdade de conduzir
a narrativa de um jeito próprio, sem, contudo, estragar a
essência da história. Mas há também a gratidão aos que
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contaram antes, cada um a seu modo, por isso acho


mais do que necessário que os leitores conheçam as
minhas fontes. Por isso, faço questão de citá-las aqui.
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“Kalinda, a princesa que perdeu os cabelos” é uma


oportunidade maravilhosa para que os leitores brasilei-
ros desconstruam a imagem clássica das princesas eu-
ropeias dos contos de fadas. A história se passa num
reino africano. E os valores são outros. E as referên-
cias culturais são outras, igualmente ricas, cheias de

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encanto e magia (que também vamos encontrar nos
contos maravilhosos que conhecemos há tanto tempo).

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As outras histórias que compõem este livro têm
como fonte principal a obra Los cuentos pasan… le-
yendas e imágenes de la Costa de los Esclavos, de René

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Trautmann, além de pesquisas pessoais.
Tanto “Alizué e a árvore do esquecimento” como

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“Messan, o camponês que ouvia a voz da natureza” são
contos popó, da antiga Costa dos Escravos, atual Benin.
Alizué me encanta porque me lembra a história da
Gata Borralheira e outras tantas que premiam aque-
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les que estão dispostos a se doar e a ajudar os menos
favorecidos. Gosto do nome Alizué, pois tem uma do-
çura e uma bondade que se contrapõem à maldade e
à ganância de Breni e sua mãe; a história tem objetos
mágicos, o famoso calulu (que você vai ficar conhe-
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cendo quando lê-la) e um monte de coisas que tam-


bém fazem parte da nossa alimentação, como o milho,
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a berinjela e o inhame.
Já a história do homem que entendia a lingua-
gem dos animais, “Messan, o camponês que ouvia a
voz da natureza”, é ao mesmo tempo familiar e nova.
Tem um toque de fábula, em que os animais falam e se
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comportam como os homens, mas tem também a força
inexorável do destino e a força de Messan para recome-

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çar sempre. A amizade do cão e a simbologia do número
sete fazem parte da história. Por ali também desfilam
animais tipicamente africanos.

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“Rafik, o menino do grão de ouro” é um conto po-
pular da Argélia. Nessa história me encanta a esperteza

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do menino para sair da enrascada.
“Natula, a mulher dos beiços compridos” é um con-
to popular banto do sudoeste de Angola. Há nele uma
grande carga de brincadeira e humor, mas também um
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toque de terror, que sempre fascina os leitores. E a mim
também! E o Papão que aparece na história tem muitas
semelhanças com o nosso Bicho-Papão.
Os contos populares africanos me devolvem as raí-
zes do mundo. E trazem (imaginariamente) as vozes an-
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cestrais para sussurrarem nos meus ouvidos.


Enfim, com este papo inicial podemos perceber que
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há muitos motivos para alguém se identificar com as


histórias. O importante é que elas nos façam viver as
fantásticas aventuras que cada uma propõe no plano da
fantasia e encham o nosso coração de esperança, mes-
mo que na fantasia de algumas histórias isso não seja
possível. É assim: as histórias africanas me mostram a
diversidade e me fazem um ser humano melhor! Quer

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experimentar também? Então, mãos à obra, ou melhor,

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olhos e tudo o mais na história! Boa viagem! Boa colhei-
ta! Boa safra! Bom apetite! Bom e feliz retorno! Afinal,
precisamos retornar das histórias para a vida sempre, e

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com alegria para espalhá-las pelo mundo!

Celso Sisto

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Kalinda,
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a princesa
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que perdeu
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os cabelos
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A conteceu há muito, muito tempo. O rei tinha

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uma filha chamada Kalinda. E ninguém duvi-
dava que ela fosse a moça mais bonita do mundo. Seu
rosto reluzia como a superfície de um lago banhado

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pela lua. Os olhos faiscavam como o céu estrelado. Mas
eram os seus cabelos que encantavam as pessoas, pois,
além de terem uma cor especial, ainda eram adornados
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com pérolas e diamantes. E tocavam o chão, iluminan-
do o caminho por onde ela passava e espalhando um
suave perfume de madeira.
Além dos presentes que a moça recebia do rei para
enfeitar os cabelos, como flores, cristais, joias e turban-
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tes, todos os dias as ajudantes da princesa a penteavam


com pomadas e óleos aromáticos, enquanto cantavam
alegremente:
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Para crescer forte como uma árvore,


para resistir ao sopro do vento,
para correr como a água do rio
temos as nossas mãos mágicas.

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Tudo era feito na maior alegria. Depois, a princesa
saía a passear pelo reino, só para ser admirada pelos

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súditos, que por vezes diziam: “Kalinda jamais poderia
viver sem esses seus lindos cabelos”.
Numa manhã em que a moça estava na fonte do jar-

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dim, um pássaro surgiu de repente. Era um pássaro de
grande cauda, com a cabeça coroada por uma crista de cor

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esverdeada e com olhos e bico vermelhos, que lhe davam
um aspecto sinistro. Pousou na árvore mais próxima e
disse com toda a suavidade:
— Linda menina, seus cabelos são os mais bonitos
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que já vi. Falam deles em tantos lugares que eu queria
vê-los com os próprios olhos.
Kalinda abriu um sorriso tão lindo quanto as flores
que trazia nas mãos. E respondeu cheia de satisfação:
— Fico contente em ter o mais adorável cabelo de
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todo o reino de meu pai. Aliás, sei que tenho o cabelo


mais belo que alguém poderia ter no mundo! — com-
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pletou a moça, cheia de altivez e com ligeira petulância.


— Sendo assim — continuou o pássaro —, com
tanto cabelo, estou certo de que não lhe faria a menor
falta se me desse um punhado desses finos fios para eu
acabar de construir o meu ninho. Preciso de um lugar
macio para colocar os ovos.
A moça respondeu, indignada:

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— Como se atreve a me fazer um pedido como esse?
Meu cabelo maravilhoso para ser usado num ninho de

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pássaro? Amo os meus cabelos mais do que qualquer
outra coisa nesta vida! Vá embora ou chamarei os sol-
dados de meu pai para prenderem você!

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— Eu posso pagar por seus cabelos, princesa! — in-
sistiu o pássaro.

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A moça ficou ainda mais furiosa.
— Não lhe darei um fio sequer do meu inigualável
cabelo. Fora daqui!
O pássaro sorriu e declarou:
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— Você vai se arrepender, adorável princesa — e
cantou majestosamente a enigmática canção, que mais
parecia um aviso:

Não se esqueça,
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as folhas sempre caem na estação seca


e reaparecem na estação chuvosa,
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mas os cabelos da menina, não.


Se caírem agora, quando voltarão?

Só então o pássaro bateu asas e voou, desaparecendo


rapidamente no ar, deixando Kalinda confusa e com medo.
Não demorou muito para terminar a estação das
chuvas e vir finalmente a estação da seca.

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O vento começou a soprar mais vezes, de todos os
lados, dia e noite, trazendo sons estarrecedores e dei-

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xando rastros de desordem. Do lado de fora dos apo-
sentos da princesa, as árvores logo ficaram nuas e em
pouco tempo as folhas mortas cobriram o chão até se

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perderem de vista.
Com a princesa Kalinda não foi diferente. Seus ca-

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belos começaram a cair e de um dia para o outro não
sobrou um fio sequer no alto da cabeça. Mais do que
nunca ela ia precisar dos seus turbantes coloridos.
Primeiro veio a raiva. Depois a revolta. Por fim, a
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tristeza tomou conta de Kalinda. E por mais que suas
acompanhantes afirmassem: “Não se preocupe, prince-
sa. Eles vão crescer novamente”, ela já não podia acre-
ditar nisso com tanta força.
Durante dias, Kalinda não quis sair dos aposentos
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nem falar com ninguém, tinha perdido a esperança.


Não queria mais comer. Passava horas chorando, mer-
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gulhada em grande arrependimento. Só conseguia dizer


de si para si: “Como estou feia! Sou a princesa mais
horrorosa do mundo!”.
Quando soube do acontecido, o rei veio ver a filha.
Ela lhe contou a aventura com o pássaro em detalhes.
E ele prometeu encontrar uma solução, o mais rápido
possível. Para consolá-la, disse:

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— Fique tranquila! Em breve você terá seus cabelos
e sua beleza de volta, minha filha.

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O rei convocou todos os sábios e magos do reino e
prometeu muitas peças de ouro para quem conseguisse
recuperar os cabelos da princesa. Poções foram enco-

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mendadas, feitiços foram executados, banhos, rituais,
oferendas, tudo foi tentado. Mas nada deu o resultado

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esperado. E a princesa continuava sem cabelos. E cada
vez mais chorosa. E cada vez mais desesperada.
Numa noite de imensa tristeza, Kalinda teve um so-
nho. Viu um jovem dançando e cantando ao redor de
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uma árvore que produzia cabelos. Acordou afoita, agi-
tada, mas com uma pontada de esperança.
O sonho se repetiu uma vez mais. Na noite seguinte,
ela viu novamente em sonho a árvore dos cabelos, o jo-
vem rapaz e as sementes que ele lançava ao chão e que
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cresciam imediatamente, virando uma árvore tão alta


que quase tocava o céu. A árvore, por sua vez, se enchia
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de flores vermelhas que, depressa, se transformavam em


frutos, que logo se abriam, derramando música no ar, e
de onde saíam fios de cabelos que desciam até o chão.
Kalinda acordou mais disposta naquela manhã e pas-
sou o resto do dia pensando no sonho misterioso. E se
fosse um aviso, um sinal? E se realmente existisse aquela
árvore dos cabelos? Ela, então, foi contar tudo ao pai.

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Mais uma vez o rei convocou seus sábios e magos.
Ordenou que descobrissem onde ficava a árvore dos ca-

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belos. Prometeu muito mais ouro que da primeira vez. E
naquele reino não se falava noutra coisa. Mas ninguém
de fato tinha visto nem ouvido falar da tal árvore. Os

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sábios foram os primeiros a desistir da busca; os magos
tentaram toda sorte de magia durante meses a fio; os

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soldados, que costumavam cruzar outras terras em suas
batalhas, não trouxeram nenhuma informação segura.
Nem os contadores de histórias, em seus delírios criati-
vos, puderam imaginar onde estaria enraizada tal árvore.
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Porém, naquele reino havia um jovem rapaz pobre e
solitário, chamado Muoma, que vivia no meio da flores-
ta e conhecia bem a língua dos pássaros, dos animais e
das coisas que brotavam da terra. Quando ficou saben-
do que o rei tinha convocado todos os súditos para pro-
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curar a árvore que produzia cabelos, decidiu ele tam-


bém tentar a sorte grande. Como não tinha nada, nada
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poderia perder.
Foi à presença do rei e lhe prometeu que encontra-
ria a árvore dos cabelos, mas, como era muito pobre,
precisava de provisões para a viagem, que ele não sabia
quanto tempo poderia durar. O rei deu-lhe comida e
água o bastante para uma longa jornada, e ele partiu,
carregando ainda seu arco e suas flechas.

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Muoma andou muito pelo mundo. Esteve nos luga-
res mais distantes, viu árvores de todos os jeitos. Árvores

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que tinham dedos, árvores que tinham olhos, árvores que
corriam atrás daqueles que se aproximavam, árvores que
cantavam, árvores grandes e fortes que serviam de casa

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para elefantes, árvores com asas, até árvores que engo-
liam todos os pássaros que pousavam em seus galhos.

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Durante muitos meses, Muoma conversou com os ani-
mais, falou com os pássaros, perguntou às plantas sobre a
árvore dos cabelos, tudo sem sucesso. Quando finalmente
achou que a tal árvore poderia estar escondida do outro
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lado do vasto mar, fez um barco e partiu pelas águas.
Depois de muitos dias, com o vento soprando para
leste, ele chegou a uma pequena ilha deserta. Nela havia
apenas três árvores, uma de diamante, uma de ouro e
outra de prata. Ele prendeu o bote na margem da ilha,
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desceu e foi caminhando até elas. Subitamente o céu


escureceu, houve uma explosão e a árvore de ouro ardeu
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em chamas. Quando o fogo terminou, ao redor da árvore


surgiu uma infinidade de vagens com feijões vermelhos.
Muoma nem pensou no que estava fazendo, encheu
sua bolsa com aqueles feijões e voltou correndo para o
barco. Alguma coisa lhe dizia que agora estava no cami-
nho certo. E que a árvore dos cabelos deveria estar mui-
to próxima. Soltou a embarcação e deixou que a sorte

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o conduzisse adiante. Não demorou muito e um raio
excessivamente luminoso cruzou o céu. Num instante

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um pássaro de grande cauda, com a cabeça coroada por
uma crista de cor esverdeada e com olhos e bico verme-
lhos despencou no barco e olhou Muoma diretamente

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nos olhos, antes de pedir quase sussurrando:
— Aqueles feijões vermelhos que você pegou na

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ilha... abra uma vagem... e me dê, depressa!
O pássaro comeu e recobrou as forças. Então, disse
mais alto:
— O que você faz aqui tão longe de tudo e de todos?
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Nunca ninguém conseguiu chegar até aqui.
Muoma contou ao pássaro a história da filha do rei,
a perda dos cabelos, o sonho com a árvore mágica que
produzia uma infinidade de cabelos e seu desejo de aju-
dar a moça infeliz.
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O jovem levou tanto tempo contando a história que


nem percebeu que o pássaro estava perdendo as forças
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novamente. Como agora já sabia, abriu mais uma va-


gem de feijões vermelhos e deu-os ao pássaro, que se
aprumou imediatamente, em tempo de revelar:
— A princesa teria sido mais sábia se tivesse sido
generosa e me dado um pouco dos seus cabelos para a
construção do meu ninho... Fui eu que...
O pássaro interrompeu novamente o relato... Suas

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forças iam e vinham, e a cada vez Muoma tinha de lhe
dar mais e mais feijões vermelhos. Por fim, quando ha-

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via apenas um, o pássaro revelou:
— Ainda bem que você trouxe consigo essas vagens.
Do contrário, eu o teria devorado. Agora volte para casa

N
e diga à princesa para plantar esse último feijão em seu
jardim. Só ela pode fazer isso. Só ela pode regar a se-

P
mente com suas lágrimas em noite de lua cheia...
Depois dessas instruções, o pássaro voou e, como
num passe de mágica, desapareceu no céu. Mas não
pense que foi fácil voltar para casa. Muoma teve de an-
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dar por muito mais tempo para encontrar o caminho de
volta. Teve de enfrentar as maiores secas e as mais lon-
gas chuvas. Foi obrigado a transpor montanhas e rios.
Teve de fugir de animais ferozes e grandes pássaros fa-
mintos e por várias vezes quase perdeu o último feijão
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vermelho, que carregava com todo o cuidado. Por fim,


como era um homem generoso e falava a língua dos
G

animais, acabou voltando para a sua terra sob a prote-


ção de búfalos, zebras, gnus e antílopes.
E assim que chegou ao lugar de onde tinha partido,
Muoma foi imediatamente à presença do rei para anun-
ciar que trazia a semente da árvore dos cabelos, que de-
veria ser plantada e regada com as lágrimas da princesa
em noite de lua cheia.

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Tudo aconteceu mais ou menos como no sonho da
princesa. A semente foi colocada na terra. E, quando

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recebeu a primeira lágrima do arrependimento, imedia-
tamente se transformou numa árvore tão alta que quase
tocava o céu. A árvore, por sua vez, se encheu de flores

N
vermelhas que, depressa, se transformaram em frutos,
que logo se abriram derramando música no ar e de onde
saíam fios de cabelos que desciam até o chão.

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Mas foi Muoma quem primeiro se aproximou da ár-
vore, colheu os primeiros fios e os colocou de volta na
princesa Kalinda. E, como se nunca tivesse sido dife-
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rente, os cabelos voltaram a fixar-se na cabeça da moça
e logo, logo estariam brilhando e perfumando aquela
maravilhosa noite.
Em seguida, houve música e dança. Risos e alegria.
O rei e todo o reino festejaram os cabelos da princesa
U

por muitos dias. Muoma recebeu o ouro prometido e


o que ele mais queria secretamente desde que vira Ka-
linda pela primeira vez: o amor da princesa. Casaram e
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viveram felizes por muito e muito tempo. Cercados de


pássaros de todas as cores e tamanhos, que alegravam
ainda mais a vida deles.

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Alizué e
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a árvore do
esquecimento
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M eu conto corre, corre, zuiiin!, até chegar à

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casa de Alizué, a menina doce.
A doce Alizué canta, suave, como os galos depois que
anunciam o amanhecer. A doce Alizué se move com a le-

P
veza do vento quando sopra por entre as folhas das laran-
jeiras. A doce Alizué olha tudo com o mesmo carinho da
pantera, que abraça seus filhotes enquanto os amamen-
IA
ta. E, assim, por onde passa, Alizué ouve: “Aí vai a doce
Alizué, graças!”. É o que sussurram a natureza, as pedras do
caminho, as árvores da floresta, os raios do sol, as águas
do rio. Só para arrancarem de Alizué um pequeno sorriso.
A mãe da moça havia morrido e desde então ela vivia
U

sob os cuidados da tia, mãe da pequena Breni. Mãe e filha


maltratavam Alizué dia e noite, toda vez que era possível.
— Venha carregar o saco de milho, querida! — in-
G

sistia a tia.
— Tenho fome! Vá moer a farinha, sua preguiçosa!
— mandava a prima.
— Depressa, Alizué! Quero agora os pães de acaçá1 —
ordenava a tia.

1
Farinha de milho branco, preparada em forma de bolinho cozido, que se vende enrola-
do em folhas de bananeira.

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— Alizuééééé, traga meu calulu!2 — gritava a pe-
quena Breni.

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A pobre órfã vivia cansada e envolta em panos es-
farrapados. E ainda por cima tinha sempre as mãos ma-
chucadas de tanto pilar, moer, esfregar e amassar.

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Um dia Alizué deixou cair um prato, que se quebrou
em muitos pedaços. A tia ficou furiosa:
— Fora daqui, anda! E só volte quando me trouxer

P
outro prato, igualzinho!
A menina foi posta para fora de casa debaixo de pau-
ladas. E Breni ainda aproveitou para ajudar a mãe com
IA
uns empurrões e uns beliscões.
Desesperada, Alizué primeiro correu para bem lon-
ge dali, sem ver para onde ia; depois caminhou um pou-
co mais devagar, mesmo sem rumo. Por fim, cansada de
tanto chorar, cheia de arranhões e feridas nos pés, sen-
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tou-se embaixo da árvore do esquecimento e cantou:

Minha tia, devias tratar-me com doçura!


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Não me atires no fogo, não me jogues na água!


Se me pedes algo mais,
sempre vou obedecer.
Minha mãe, minha mãe, vem salvar-me!

2
Guisado primitivo composto por carnes, legumes, frutos e raízes.

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Alizué não sabia mais quanto tempo havia passado.
Mais de um dia, certamente, se não mais... Tinha sono,

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fome, medo, frio, mas o perfume doce daquela árvore
encheu-a de esperança.
O vento, então, soprou mais forte, espalhou o chei-

N
ro no ar. A menina sentiu um aroma bem familiar, viu
uma sombra e, quando levantou os olhos, estava na pre-
sença de sua mãezinha, que lhe perguntou:

P
— Por que chora, minha filha?
— Mamãe! Deixei o prato cair. Ele se quebrou e agora
não posso mais voltar para casa, até que consiga outro igual!
IA
A mãe levantou carinhosamente o rosto da filha e
lhe disse:
— Tome, minha filha, tome este pedaço de pau e
bata na terra sempre que precisar! Assim. Dáradára!3
Da terra, apareceu um prato. Igualzinho ao que
U

Alizué havia quebrado. A menina ficou maravilhada. Ia


rir, agradecer, perguntar à mãe por que a tinha abando-
nado, mas a mulher já havia se esfumado. A menina ia
G

começar a chorar novamente, mas o ronco da fome de


dias e a força do sono de noites sem dormir não a dei-
xaram pensar em mais nada.
Segurou firme a vara que a mãe lhe dera, bateu com
força na terra e disse:

3
Muito bom; tudo certo.

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D
— Bastão, me dá dois pratos de berinjela e uma ca-
baça de milho e inhame.

L
Só depois de saciar a fome e dormir um pouco é
que Alizué percebeu que já não vestia mais aqueles tra-
pos e que estava coberta de ornamentos de ouro.

N
Correu de volta para casa. Quando a tia e sua filha
Breni a viram de volta, trazendo na mão um bastão, o

P
prato devido e, ainda por cima, vestida com panos novos
e enfeitada como uma princesa, ficaram impressionadas.
— Quem te deu tudo isso? — perguntou a tia.
— Como foi que conseguiu? — quis saber a peque-
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na Breni.
— Deve ter roubado de alguém! — concluiu a tia.
— Quero saber! Quero saber! — insistiu a prima
invejosa.
A menina não disse nada. A raiva da tia chegou ao
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limite. Bateu com força em Alizué, enquanto arrancava


as joias que ela trazia. Mas, de repente, a mulher in-
G

terrompeu no ar o segundo golpe e adoçou as palavras,


abraçando-a com falso gosto:
— Se te alimento e te corrijo é porque... é minha
sobrinha querida... Mas se não disser...
Alizué contou tudo o que tinha se passado: a apari-
ção da mãe, os presentes recebidos, a fome saciada, o
objeto mágico.

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D
Alguns dias depois, Breni deixou cair um prato, que
se quebrou em pequenos cacos. A mãe logo disse:

L
— Agora é a sua vez, minha filha. Alizué já te disse
como fazer. Vá! E faça a mesma coisa que ela fez. Igual-
zinho! Vá!

N
Breni saiu correndo, parou na árvore indicada, respi-
rou fundo, sentiu o perfume e viu finalmente uma som-

P
bra aparecer. Mas não era uma mulher. Era um homem.
Um bruxo. Mas isso ela não sabia. Ele sorriu para ela,
abraçou-a e lhe ofereceu uma noz mágica, dizendo:
— Quebre-a na presença de sua mãe.
IA
A pequena Breni não quis esperar mais nada. Voltou
correndo para casa. Estava convencida de que dali bro-
tariam mais riquezas do que as que Alizué tinha conse-
guido. Já se imaginava com um rico vestido, mais cola-
res, mais pulseiras, mais anéis.
U

Entrou, apressada, na cozinha. Atirou a noz mági-


ca aos pés da mãe. E já esperava para recolher os ri-
G

cos presentes. Mas o que viu, sssllliiimmm!, foi uma


grande serpente negra que brotou do nada e dos restos
da noz. Rodeando rapidamente mãe e filha, abraçou-as
com seus poderosos anéis. Alizué, que ouviu a barulhei-
ra toda, veio logo atrás. Mas não pôde fazer mais nada.
Não correu. Não gritou. Apenas desejou que aquilo
acabasse logo.

29
D
E lá se vão o conto e a serpente!
Não levante muito os olhos!

L
Não queira mais do que pode açambarcar.
As consequências são grandes!

N
P
IA
U
G

30
D
L
N
P
Rafik, o
IA

menino do
grão de ouro
U
G

31
G

32
U
IA
P
N
L
D
D
L
R afik era um menino bem pequeno. Era doce,

N
era educado, mas tinha um apetite de leão! En-
quanto um garoto do seu tamanho era capaz de comer
apenas uns poucos grãos de bico e algumas ameixas se-

P
cas, ele devorava um cordeiro inteiro. O estômago de
Rafik era, bem se sabia, um saco sem fundo. Mas nem
por isso o menino era pesado ou molenga. Ao contrário,
IA
era leve, prestativo, amável, ágil.
O chato disso tudo é que Rafik não tinha pais. Fora
criado pelos tios, que viviam reclamando que a colher de
Rafik era mais rápida que a dos outros, que a boca
de Rafik era maior do que podia ser, que a barriga de
U

Rafik aguentava mais peso sem sequer pedir ajuda à


preguiça e ao sono. Não havia reserva de comida que
bastasse para a fome daquele menino!
G

Um dia, o tio teve uma ideia:


— Que tal se a gente fizer um cuscuz e comer an-
tes que Rafik volte para casa? Senão ele acaba com
tudo, como sempre! E nós teremos de ficar com as
migalhas.
A tia concordou imediatamente:

33
D
— Claro! Um cuscuz bem gostoso, com fina polen-
ta, legumes frescos e grandes pedaços de frango macio,

L
acompanhados de um molho bem picante! Ai, que delícia!
Puseram-se, então, a trabalhar o tio e a tia. E corta
daqui e mói dali e bate e descasca ligeiro. E põe no pra-

N
to e, pronto, começa a refeição! De repente, ouviram a
voz de Rafik, batendo bem alto na porta.
— Toc! Toc! Toc! Abram logo! Depressa! Venham ver!

vocês estão saboreando…


P
A chuva está tão grossa quanto o molho do cuscuz que

Mas como podia ser? Como ele soube do cuscuz?


IA
Enquanto tentavam entender, os tios abriram a porta
e Rafik, faminto como sempre, correu direto para as
panelas, devorando quase tudo o que havia para comer.
Passado um tempo, o tio teve outra ideia:
— Vamos fazer uns makrout1 antes que Rafik volte
U

para casa.
A tia concordou imediatamente:
— Claro! Uns bolinhos de sêmola bem grandes e
G

gostosos, com amêndoas, recheados com tâmaras, aro-


matizados com água de flor de laranjeira e canela, e
mergulhados em mel. Ai, que maravilha! Já estou com a
boca cheia d’água!
E correram para as panelas. E soca e pila e peneira
1
Bolinhos de sêmola, amêndoas, tâmaras e mel.

34
D
e mistura e enrola e frita. Põe no prato e, pronto, mas-
tigando! Huummmmm! O mel escorrendo, o açúcar bri-

L
lhando e, de repente, a voz de Rafik chamando na porta:
— Depressa! Abram logo! Venham ver as pegadas
dos camelos na areia, são tão grandes quanto o que vo-

N
cês estão mastigando!
Imaginem o susto! E a correria? A tia quase deixou

P
cair o bolinho que estava segurando. O tio pulou para
abrir a porta, não sem antes esconder tudo. Rafik entrou
fungando e, ao ver o filete de mel que escorria no canto
da boca do tio, não teve dúvida do que havia para comer.
IA
— Onde estão os bolinhos que vocês estavam co-
mendo? Estou com tanta fome!
O tio olhou, furioso, para o menino. Ficava intriga-
do com essa história de Rafik adivinhar sempre tudo o
que se queria esconder dele.
U

E, quanto mais o tio e a tia pensavam, mais acha-


vam estranho! E, quanto mais buscavam uma resposta,
G

mais enxergavam uma única solução: mandar o menino


para bem longe dali.
Um dia, Rafik estava brincando fora de casa, reme-
xendo na areia, imaginando-se no deserto, conduzindo
caravanas com imensos tesouros e camelos com uma e
com duas corcovas, e baús abarrotados de mercadorias,
quando viu um raio de sol brilhar bem em cima de um

35
D
grão de ouro. Que sorte! Olhou de todas as maneiras
possíveis, de perto, de longe, com um olho aberto e ou-

L
tro fechado, com os dois olhos abertos, e, convencido
de que era ouro de fato, guardou-o consigo, num saqui-
nho que levava no bolso. Um dia ele seria útil! Ah, seria,

N
sim! E continuava a brincadeira de imaginar-se o chefe
de uma grande expedição, quando o tio o chamou:

P
— Venha, Rafik, venha comigo! Preciso da sua aju-
da para pegar o balde que se soltou e caiu no fundo do
poço. Sem ele, não poderemos mais tirar água.
Rafik sabia que a tia não armazenava água. Cada vez
IA
que era preciso, tiravam o necessário do poço. Portan-
to, devia estar faltando mesmo. E, como a situação era
de urgência, o menino largou tudo que estava fazendo
e seguiu o tio. Mas com eles seguiram também as más
intenções que povoavam a cabeça do homem.
U

Quando chegaram ao poço, o tio foi logo amarrando


Rafik com uma corda e deu ordens para que ele desces-
G

se até o fundo. O menino, ágil como era, pegou rapida-


mente o balde e deu o sinal para que o tio o puxasse de
volta. Mas continuou no mesmo lugar. Nenhum movi-
mento, ninguém o levou para cima. Esperou cinco, dez
minutos, parecia uma eternidade. Chamou pelo tio, gri-
tou… até que Rafik compreendeu que aquilo era uma
armadilha. Que seu tio tinha inventado aquela história

36
D
toda para deixá-lo ali, sozinho, abandonado, no fundo
daquele poço!

L
O tio já ia se afastando, pronto a cumprir o que tinha
imaginado, quando o pequeno Rafik gritou mais forte, em
direção ao alto. Sabia que aquela era sua última chance:

N
— Tio! Tio! Encontrei um tesouro aqui no fundo do
poço! Uma arca cheia de ouro. Precisamos de um saco

P
para levá-la para cima.
O tio, que não estava muito confiante naquela notí-
cia, resolveu testar o sobrinho:
— Então, me deixe ver se é verdade mesmo! Mande um
IA
pouco desse tesouro aqui para cima, para eu ter certeza!
Rafik mandou, amarrado na corda, o saquinho com
aquele grão de ouro que tinha achado e guardado no
bolso da roupa enquanto brincava.
O tio convenceu-se logo. E não só isso! Começou
U

a fazer planos: as ricas roupas que ia vestir, o grande


palácio em que ia morar. E mais do que depressa jogou
G

para Rafik um grande saco.


O menino se escondeu dentro do saco, quase sem
poder segurar o riso, só de imaginar a peça que ia pre-
gar no tio. Finalmente, amarrou-se à corda e deu sinal
para que o homem a puxasse, dizendo:
— Aí vai o tesouro! Puxe-o com cuidado.
O tio mal podia esperar para botar a mão naquela

37
D
arca. Estava muito afobado. Retirou o saco o mais rá-
pido possível, jogou-o nas costas e se afastou correndo,

L
rindo de satisfação, enquanto dizia:
— Agora estou livre daquele traste! Agora teremos
comida de sobra! E, melhor, ainda ganhei um tesouro!

N
Não sabia se caminhava ou se corria. Tinha pressa
de chegar em casa. Queria mostrar à mulher o tesouro,
abri-lo na sua presença, observar sua reação! Dizer a ela

P
que, com tanto ouro, poderiam comprar o que quises-
sem! Comer o que quisessem! Vestir o que quisessem!
De repente, uma voz, saindo do saco do tesouro,
IA
disse, em alto e bom som:
— Querido tio! Meu paizinho! Se estiver cansado,
aproveite e descanse debaixo daquela palmeira! — e,
com isso, ouviu-se também uma gargalhada cavernosa:
— Hahahahaha!
U

O tio, que levou um tremendo susto, soltou um grito


de pavor. Largou o saco e saiu correndo! Sem nem ao
menos olhar para trás. Nem viu o saco se mexer no chão,
G

se arrastar feito cobra, ficar de pé, rir de perder o fôlego!


Dizem que o homem está correndo até hoje, pois
nunca mais ninguém soube dele.
Depois disso, Rafik também não quis mais voltar para
casa. E saiu pelo mundo, para procurar outros tesouros!

38
D
L
N
Messan, o
P
camponês que
IA

ouvia a voz
U

da natureza
G

39
G

40
U
IA
P
N
L
D
D
L
M essan tinha um bom pedaço de terra. Um

N
grande campo de milho. Ao lado de um cam-
po de inhame, que também ficava ao lado de um campo
de batata-doce.

P
O camponês cuidava bem de tudo o que era seu. E
sabia como ninguém ouvir a voz da natureza. Conhecia
a língua dos peixes e dos pássaros, a língua das serpen-
IA
tes e dos leões, a língua dos bois e das hienas.
Também costumava ouvir seu coração batendo
como um tantã, chamando-o para a luta, para a festa
ou para as cerimônias de paz.
E com frequência também era capaz de entender o
U

que lhe dizia Kovi, seu cão mais fiel.


Numa noite em que se armava um grande temporal,
enquanto rolava em sua esteira, Kovi conversou com
G

outro cão que tinha vindo se abrigar ali, bem perto da


janela. Messan ficou ouvindo. O cão forasteiro tinha
acabado de convidar Kovi para um passeio e dizia que
queria aproveitar o cheiro da terra naquele precioso
momento em que o vento remexia tudo que seria lavado
pela água da chuva.

41
D
— Ande, venha beber o vento da noite! Não vê como
ele sopra? — dizia o cão forasteiro. — E como ele can-

L
ta? Não ouviremos de novo esta melodia até que ele
volte por aqui... Mas aí já será outra canção... Venha!
O fiel Kovi apressou-se em dizer:

N
— Não posso nem pensar em me afastar daqui!
Nesta noite a casa de meu dono arderá em chamas e eu

P
preciso estar por perto para ajudá-lo.
Messan levantou-se imediatamente. Tinha ouvido
tudo! Não podia perder um segundo sequer! Correu da-
qui para lá, de lá para cá. Enquanto teve tempo, levou
IA
para o galpão das ferramentas tudo o que conseguiu:
móveis, objetos, comidas, roupas. No momento em que
parou para recuperar as forças, veio a tempestade! Os
trovões rugiram no céu, o vento brigou com as árvores
do caminho, arrastou pedras, e os raios que riscavam
U

a noite também desabaram sobre o telhado da casa de


Messan. O fogo tomou conta da palha e num piscar
G

de olhos destruiu tudo. Fez arder de cima a baixo, de


um lado a outro, tudo que encontrou pelo caminho. O
braseiro devorou a madeira, as cordas, as esteiras, os
bambus, as estacas, os tecidos, as navalhas, tudo. Só
não conseguiu levar vida alguma!
Como era teimoso e trabalhador, Messan construiu
a nova casa no mesmo lugar. Maior, mais bem feita,

42
D
mais resistente. Toda a vizinhança ajudou e durante
muitas semanas não faltou trabalho para quem quises-

L
se. Nem melodia para alegrar os ouvidos:

Um raio lambeu a casa de Messan.

N
Mais forte é Messan,
que sabe construir outra casa...

P
Mais forte somos nós
que temos a casa de Messan...

E, não demorou muito, a tranquilidade veio nova-


IA
mente acompanhar as noites de Messan. E espalhar-se
pelos dias.
Até que Messan surpreendeu Kovi num diálogo com
uma perdiz, o mais sábio dos pássaros, que passava por ali:
— Venha, Kovi, vamos dar um passeio. É época das
U

frutas. E de noite o perfume adocicado das mangas se


espalha no ar. Logo, logo não haverá mais nada nos ga-
G

lhos. Venha, vamos, antes que cheguem os outros pás-


saros e biquem tudo! Eu atiro para você as melhores
frutas! Venha!
E o fiel Kovi apressou-se em dizer:
— Não posso! Não posso mesmo! Nesta noite um
bando de hienas atacará os cordeiros do meu dono.
Preciso estar por perto para ajudá-lo a espantá-las!

43
D
Messan ouviu tudo. Imediatamente correu até o
cercado dos animais. Retirou todos o mais rápido que

L
pôde. Deixou apenas um cordeiro para aplacar a fú-
ria das hienas, que certamente ficariam loucas por
serem tantas e terem de se contentar com tão pouca

N
carne!
Não demorou muito e as risadas assustadoras das

P
hienas encheram as dobras da noite e sobraram na es-
curidão. De sua esteira, Messan acompanhou o movi-
mento, o bater dos dentes, os sons da mastigação, até
que seus olhos se fecharam com o peso do medo.
IA
No dia seguinte, mal amanheceu, Messan foi ver
o que tinha acontecido. O cordeiro estava morto e os
ossos espalhados pelo cercado. Ele não podia mais du-
vidar das predições de seu cão. Cercou a casa, levan-
tou uma barreira para proteger o cercado dos bichos
U

de qualquer outra fera, e desde esse dia não se separou


mais do fiel Kovi.
G

Alguns meses depois, passou por ali um grupo de


gnus. Convidaram Kovi para ir viver com eles. Havia
um mundo imenso a ser desbravado! Correr pelos cam-
pos, levantar o pó e sumir na nuvem de poeira, batendo
as patas no solo como se batessem os tambores.
— Vamos, não prefere a vida livre? — disse o que
parecia ser o chefe do grupo.

44
D
— Anda, essa coleira está ferindo o seu pescoço —
disse outro gnu.

L
— Vem, poderá comer na hora em que quiser! E
quanto quiser!
Mas Kovi, que amava o seu dono mais do que qual-

N
quer outra coisa, disse:
— Agora é que não posso mesmo! Meu dono só tem
sete dias de vida. Não posso abandoná-lo.

P
Os gnus partiram. Messan, que escutou tudo, saiu
de sua choça e foi conversar com o cão. Estava assusta-
do, precisava saber mais.
IA
— Que posso fazer para evitar o destino que você vê
para mim?
— Nada pode ser feito. Já passou o tempo do sa-
crifício!
— Que sacrifício é esse?
U

— Se tivesse deixado sua casa queimar com tudo, se


tivesse deixado as hienas devorarem todos os cordeiros,
você viveria ainda muitos e muitos anos.
G

No sétimo dia, Messan apanhou peixes, pegou ca-


ranguejos, comeu um pastel de frutas e, enfim, morreu.
Assim são as coisas!

45
G
U
IA
P
N
L
D
D
L
N
Natula,
P
a mulher
IA

dos beiços
U

compridos
G

47
G

48
U
IA
P
N
L
D
D
L
A s moças saíram em bando para colher frutos na

N
floresta. Provaram do caju e da goiaba e esta-
vam tão eufóricas com as saborosas risadas e brincadei-
ras que nem notaram a mudança do tempo: escureceu

P
de uma hora para outra, e a chuva estava prestes a se
derramar.
Rápido, se abrigaram na cavidade de um embondei-
IA
ro que encontraram no caminho. E lá dentro as brinca-
deiras continuaram.
— Está proibido soltar ventosidades aqui, ouviram
bem? — disse Dziko, a mais animada de todas as moças.
— Se alguém o fizer, estamos todas perdidas —
U

acrescentou Kianga, que conhecia bem os costumes.


— E o que acontece?! — perguntaram todas de
uma vez.
G

— Querem mesmo saber? Ficaremos trancadas


aqui, porque a árvore se fecha e não nos deixa mais sair
— explicou Kianga.
Mas, apesar do aviso, Natula, que não aguentava
mais e não acreditava nessas coisas, deixou escapar um,
que fez barulho e provocou risos nas outras.

49
D
Quando se viraram para procurar de onde tinha vin-
do, a árvore já tinha se fechado.

L
— Eu não disse?! — exclamou Kianga.
E o medo tomou conta das moças. Sem poder acre-
ditar naquilo que estava de fato acontecendo, elas pri-

N
meiro gritaram até não poder mais. Pediram socorro,
culparam umas às outras, até que, tomadas pelo cansa-

P
ço, fizeram silêncio.
Um viajante que acabava de se acomodar debaixo da-
quela árvore para proteger-se da chuva ouviu as vozes que
vinham de dentro. Imediatamente quis correr dali, pensan-
IA
do ser algum espírito, mas encheu-se de coragem e ficou...
As moças tinham voltado a clamar por socorro. E
Kianga, que sempre sabia das coisas, disse:
— Esperem, acho que tem alguém aí fora nos escu-
tando.
U

Natula nem pensou duas vezes e disse:


— Por favor, quando chegar à aldeia, vá lá na casa
G

de Natula dizer que ela e suas companheiras foram en-


golidas por um embondeiro.
O caminhante fez o que ela pediu e logo os pais
das moças vieram em bando. Tentaram o que puderam
para libertar as filhas, mas nada adiantou. Nem canti-
gas, nem oferendas para os espíritos das árvores, nem
sacrifícios ou cuidados redobrados. Nada.

50
D
Como não havia mais o que fazer e uma rolinha es-
tava pousada nos galhos do embondeiro, a mãe de Na-

L
tula implorou:
— Tire as nossas meninas do oco da árvore, meu
pequeno pássaro!

N
— Não posso, não! — cantou a rolinha.
Então, a mãe se dirigiu ao siripipi, que também es-

P
tava pousado ali.
— Tire as nossas meninas do oco da árvore, mestre
siripipi!
O pássaro respondeu, cantando mais alto:
IA
— Não posso, não! Só sei comer frutinhas e fugir
do gavião. Chamem o pica-pau, que sempre sabe o
que fazer.
As mulheres se espalharam pela floresta. Procura-
ram daqui e dali o pica-pau. Chamaram em todas as ár-
U

vores, revistaram cada galho, embrenharam-se em cada


capão. E ele, finalmente, apareceu, dizendo:
G

— Só na desgraça é que me chamam. O que foi


que aconteceu? Para comer o milho-branco-de-angola
é que não me chamam!
Os pais pediram um tanto. As mães imploraram ain-
da mais. E o pica-pau começou, enfim, seu trabalho de
socorro. Pouco a pouco foi partindo o tronco do em-
bondeiro. Parecia até mágica. Onde seu bico bicava, a

51
D
casca se soltava. Por fim, o tronco se abriu novamente.
E logo se pôde ouvir as vozes cristalinas das moças, de

L
assustadas a envergonhadas, de agradecidas a assanha-
das e, por fim, festivas, saindo uma a uma pela abertura
feita pelo pica-pau.

N
E qual não foi a surpresa de todos quando saiu Na-
tula, aquela que havia duvidado dos poderes do embon-

P
deiro e não fizera caso da recomendação de Kianga...
Seus lábios estavam enormes, arrastando no chão.
Quando a mãe, o pai e todos os outros viram a moça
naquele estado, fugiram para o mato. Ninguém queria
IA
estar perto dela, ninguém mais queria recebê-la. De-
pois de vagar por muito tempo, sem sossego, Natula
­meteu-se pelas estradinhas e capoeiras para ver se en-
contrava alguém que pudesse cortar-lhe o tal beiço.
Em cada aldeia que cruzava, por cada palhota que
U

passava, punha-se a cantar:


G

Quem pode curar a do mau beiço?


Quem pode curar seu lábio roliço?
Só quem não teme esse rebuliço!
Só quem não teme esse rebuliço!

Mas era a moça cantar e todo mundo escapar,


cantando:

52
D
Sai pra lá, Balanga-beiço! Sai pra lá, Balanga-beiço.

L
E a moça foi ficando sem solução para o seu proble-
ma, vagando, escondida, pelas matas. Até que um dia,
ao chegar a uma aldeia muito distante, nos confins do

N
mundo, e ao passar por uma habitação completamente
encoberta pelo matagal, ela cantou, como de costume,
sem saber que havia ali uma casa:

P
Quem pode curar a do mau beiço?
Quem pode curar seu lábio roliço?
IA
Só quem não teme esse rebuliço!
Só quem não teme esse rebuliço!

Pois justo naquela casa morava o Papão, que ao ou-


vir a pergunta respondeu:
U

— Eu posso! Eu posso! Com meu olho grosso, eu


posso!
Natula nem podia acreditar. Foi se aproximando do
G

Papão e, quando estava a um passo de alcançá-lo, ele


quis saber como tinha acontecido aquilo.
Ela contou toda a aventura no oco do embondeiro, até
com certa doçura. O Papão sentiu pena dela e prometeu:
— Tiro agora o teu grande beiço. Mas serei teu ma-
rido para sempre. Se um dia daqui se for, a beiçana
também irá com você, para qualquer lugar!

53
D
A moça aceitou. Não tinha outro jeito. Para se
livrar daquele enorme beiço tornou-se a mulher do

L
Papão. Casou-se e viveu muito tempo assim, confor-
mada, sem a boca grande, mas com um buraco de
saudade no peito.

N
Um dia quis visitar a antiga família. Quis ver o pai.
Quis abraçar a mãe. Quis olhar mais uma vez seus ir-

P
mãos, que agora já deviam estar crescidos. Mas como
não podia se afastar dali, porque sabia que o enorme
beiço nasceria novamente em sua face, primeiro foi
consultar a Mulher do Mato, que conhecia os encanta-
IA
mentos certos para cada coisa deste e dos outros mun-
dos. A mulher ensinou:
— Para que o beiço não apareça mais, descubra onde
o Papão o guardou, cozinhe-o com temperos e ervas e
sirva-o no jantar. Ele vai adorar, mas nunca saberá.
U

Ela seguiu direitinho o que a outra lhe recomendou.


Naquela mesma noite, quando o Papão chegou para
G

jantar, Natula serviu o beiço na refeição, que ele comeu


sem nem desconfiar.
— Hum, que maravilha de iguaria, posso saber o
que é? — elogiou o Papão.
— É carne de golungo, que preparei de um jeito
todo especial para o meu maridinho... — disse ela, dis-
farçando com doçura a voz.

54
D
O Papão esboçou um grunhido e foi deitar-se. No
dia seguinte, saiu bem cedo para devorar todo o gado

L
que tinha acumulado no curral, fruto de suas andanças
pelas estradas nos dias anteriores.
E, já que ele demorou muito a retornar, a mulher

N
aproveitou para juntar seus pertences e fugir em dire-
ção à casa dos parentes. Quando o Papão chegou à casa,
a mulher já estava longe. E, mal deu pela falta dela, ele
pôs-se a correr e a gritar:

P
— Mulher, não se vá! Volta primeiro para o teu bei-
ço levar!
IA
A mulher, embora já estivesse longe, ouviu a fúria
do Papão e pôs-se a correr, enquanto dizia:
— Não volto, não vou voltar, o beiço, bem gostoso,
você comeu ontem no jantar!
E por mais que o Papão corresse e gritasse, a mu-
U

lher conseguiu chegar novinha como era antes, sã e sal-


va na casa dos parentes. Quanto ao Papão, sua raiva foi
em vão, já que agora ele é quem carrega aquele beiço de
G

enorme proporção.

55
D
L
O lugar das histórias

“Kalinda, a princesa que perdeu os cabelos”:

N
lenda akamba

O povo akamba, wakamba ou kamba faz parte do

P
grupo étnico banto e localiza-se no leste da África,
principalmente no Quênia, onde representa 11% da
população. A região onde estão situados seus núcleos
IA
populacionais é semiárida, tem planaltos e está perto
da Linha do Equador. Tais núcleos são mais voltados
para a agricultura e produzem café, chá e sisal. Mas
convivem com zebras, gnus, elefantes, girafas, búfalos,
antílopes, leões, leopardos e hienas. Ora precisam lidar
U

com um grande período de chuvas, ora com um longo


período de seca.
Essa é uma lenda bem conhecida no Quênia, onde
G

a música tem uma enorme importância. Os akambas


são famosos pela habilidade com madeira e arte em ca-
baças. A dança tradicional é bastante acrobática e tudo
o que fazem está associado à música, que tem como
principal característica a alegria.
Dar nomes aos filhos também é um importante

56
D
aspecto do povo akamba, e há regras próprias para sa-

L
tisfazer tanto o lado paterno quanto o materno.

N
“Alizué e a árvore do esquecimento” e “Messan,
o camponês que ouvia a voz da natureza”: contos
popó da antiga Costa dos Escravos, hoje Benin

P
A Costa dos Escravos fica na região litorânea da baía
de Benin, na África Ocidental, que engloba o Togo, Be-
nin e parte da Nigéria. Essa região foi bastante populosa
IA
no período pré-colonial e um importante centro de ex-
portação e comércio de escravos no oceano Atlântico, do
século XVI ao XIX. E claro, por isso, também partiram
dali muitas histórias. Como a região era muito povoada,
U

havia também a presença de muitos povos diferentes. Es-


sas histórias pertencem aos povos que se concentraram
na região do rio Volta. Popó diz respeito a Popó Grande,
G

região do rio Volta. Os povos do Grande Popó (Benin)


usavam a língua hula. Já os povos do Pequeno Popó (no
atual Togo), os ga e os fântis, transformaram a língua
local (hula) na língua gen.
E, claro, as condições de miséria, exploração e po-
breza de alguma forma acabam por se refletir nos contos
que se espalham pela boca do povo.

57
D
O inhame é a base da alimentação de muitos po-
vos africanos, inclusive na região onde essas histórias

L
são contadas. Um dos motivos do grande consumo do
inhame é que sempre se acreditou que esse tubérculo
favorece a fertilidade, por tornar as mulheres fortes e

N
saudáveis para a maternidade. E tem também as joias
e os enfeites que elas usam, que são sempre signos de

P
poder, riqueza e distinção social. Imagine como isso é
importante, um detalhe, mas importante, sobretudo
para as mulheres africanas, que nem sempre são va-
lorizadas em muitos lugares da África.
IA
Os gnus e as hienas também estão na região da
Costa dos Escravos. As hienas são da savana africa-
na. Acho curioso o que dizem os cientistas: por terem
coração grande, o vigor das hienas é notável. Também
acho curioso que as hienas-malhadas se organizem
U

em sociedades lideradas por uma fêmea e, portan-


to, matriarcais. Também acho curioso que, diferen-
G

temente dos outros mamíferos, as hienas nasçam de


olhos abertos. Mas fique de olho, pois as hienas-ma-
lhadas (que me assustam!) são uma espécie ameaça-
da justo na área de onde vêm as nossas histórias. Já
os gnus estão sempre perto dos outros antílopes e das
zebras, andam em grupos, comem ervas e são pacífi-
cos, preferindo fugir quando se sentem ameaçados.

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O coice é o que têm de mais poderoso. Eles vivem na
África do Sul, em Angola, Zâmbia, Moçambique, Bot-

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suana, Zimbábue e Namíbia. Você sabia que há um gnu
chamado de gnu-azul? A palavra “gnu” vem da língua
khoikhoi e se refere ao som que os machos fazem ao

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grunhir, mas em palavras do africano holandês “gnu”
significa “besta selvagem”. Embora sejam mais comuns

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no sul, centro e leste da África, em época de seca eles
migram à procura de água. E essa migração em grupos
numerosíssimos é algo bonito de se ver.
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“Rafik, o menino do grão de ouro”: conto po-
pular da Argélia

A Argélia, situada ao norte e segundo maior país do


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continente africano, também é rica em misturas


do mundo árabe. Os berberes são os povos do norte
da África que falam línguas berberes (sem esquecer
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os tuaregues, nômades do Saara). Há uma enormi-


dade de ovelhas e cabras na região semiárida do país.
Adoro essas histórias que trazem outro jeito de viver,
como o dos pastores de ovelhas e cabras. Outra ma-
gia da Argélia é o deserto do Saara, que cobre mais de
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80% do país e cuja temperatura já atingiu 60,5 oC re-
gistrados! Há comidas deliciosas que aparecem nesse

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conto. Sou comilão, sou guloso, adoro doces e esses
doces árabes são de babar! Embora o cuscuz seja o
prato fundamental da culinária argelina, a influên-

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cia dos berberes, árabes, turcos, romanos, franceses
e espanhóis garante à cozinha do país uma mistu-

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ra de sabores, aromas e texturas muito agradável ao
paladar. E, curiosamente, o cominho, a manjerona,
o coentro e a erva-doce são muito utilizados. Ficou
com água na boca? Então, que tal provar um ghribia,
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um bolinho de açúcar? Ou um baclavá, um pastel
com pasta de nozes, banhado em mel? Hummmmm!
Que delícia!

“Natula, a mulher dos beiços compridos”: con-


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to banto do sudoeste de Angola


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O sudoeste de Angola é rico em contos do conjun-


to de línguas banto. Esse, em especial, tem a presen-
ça das frutas, como caju e goiaba, que conhecemos
bem. Mas em Angola há ainda outras frutas que não
conhecemos: o maboque, o sape-sape, a múcua.
A múcua é o fruto do embondeiro (baobá), a prin-
cipal árvore citada na história, causadora de todo o

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conflito. A árvore é tida como uma das mais grossas

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do mundo em função de seu diâmetro, que pode che-
gar a 10 metros. Também pode alcançar altura ma-
jestosa (excepcionalmente, 30 metros), mas o mais

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intrigante é a sua capacidade de armazenar água den-
tro do tronco, que pode alcançar a marca de 120 mil

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litros. O seu fruto é seco, adocicado e ligeiramente
ácido, e se desfaz na boca como um suspiro.
Dos pássaros da região, conhecemos aqui no Bra-
sil a rolinha, o gavião, o pica-pau, mas não o siripipi,
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que pode ser chamado também de siripipi-de-benguela,
rabo-de-junco-de-rabadilha-vermelha ou rabo-de-junco-
-de-dorso-vermelho. Ele é típico de Angola, mas também
pode ser encontrado no Congo. Alimenta-se de frutas e,
em geral, tem 35 centímetros e pesa de 45 a 60 gramas.
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Sua crista e cauda são duas vezes superiores ao tamanho


do corpo. Suas penas são cor de canela; tem a face negra,
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o peito e a garganta cinzas, o ventre dourado-claro e a ra-


badilha vermelha. Vive nas matas, na beira das florestas
e voa em bandos de 5 a 8 pássaros, mas, curiosamente,
em fila indiana, por causa do comprimento da cauda.
O milho-branco-de-angola citado na história é uma
variedade de milho, também bastante difundida no
Brasil. Aqui é o milho com que se faz canjica. Também

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é usado, em Angola, para fazer o funje, que tem como
principal ingrediente a farinha do milho branco. O fun-

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je é uma espécie de mingau que se come com carne
estufada, calulu de peixe, feijão ou peixe grelhado com
molho de tomates e couves.

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Golungo é um pequeno antílope de pelagem malha-
da. Seu peso pode chegar a 80 quilos. Suas manchas
são brancas e situam-se acima dos cascos, nas orelhas,

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na face e sob a cauda. Também aparecem no flanco al-
gumas listras brancas. Os chifres, nos machos, podem
chegar a 50 centímetros. Esses animais costumam viver
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em matas de vegetação densa e se alimentam de arbus-
tos, folhagens e frutos. Geralmente são solitários.
O Papão é uma variação do Tutu, que é um monstro
devorador de grande voracidade, imensa feiura e bru-
talidade. Suas histórias sempre têm versos para can-
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tar. Também se assemelha ao Quibungo. É ao mesmo


tempo homem e animal. É sobretudo um devorador de
desobedientes.
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O autor e ilustrador

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Nasci no Rio de Janeiro e adoro essa
diversidade cultural e oral revelada pelos
contos. Os contos africanos são os que
mais me atraem. Gosto de tudo: do nome

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dos personagens, do respeito às tradições,
das tramas, dos elementos distintos, en-
fim, de todas as coisas que fazem a África
ser um continente fascinante.
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Neste livro sou também o ilustrador.
E confesso: gostei demais de dar mate-
rialidade para esses personagens que estavam, para mim, apenas
no plano do imaginário! Usei basicamente tinta acrílica na cria-
ção das ilustrações. Mas não resisto às canetas com gel, aos lá-
pis aquareláveis, ao giz pastel e à tinta nanquim, que eu também
adoro! O uso dos pincéis (de verdade) é insubstituível. Por isso
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trabalho de um modo bem artesanal, sem o uso do computador


para desenhar ou pintar.
Sou também professor. Estudei literatura, teatro e artes vi-
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suais. Ainda continuo estudando muito, porque adoro aprender,


ler, conversar sobre as coisas que gosto. O que mais faço é dar
aulas, participar de feiras de livros, contar histórias e encontrar
os leitores dos meus mais de 70 livros publicados.
Para encerrar este nosso papo deixo aqui um provérbio wo-
lof, que revela muito do que penso: “Quem quer mel tem de ter
coragem de enfrentar as abelhas”.
Para saber mais sobre o meu trabalho, consulte o meu site:
www.celsosisto.com.

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“Os contos populares africanos me

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devolvem as raízes do mundo. E trazem
(imaginariamente) as vozes ancestrais
para sussurrarem nos meus ouvidos.”

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Neste surpreendente livro, o renomado autor
e ilustrador Celso Sisto traz diversos contos

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do continente africano, por meio dos quais o
leitor poderá explorar a riqueza da cultura dos
diferentes povos que lá vivem.

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