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A África de dona Biá

Fábio Gonçalves Ferreira

Na mais bonita casa de minha rua de infância, morava uma família muito grande e bastante
divertida. Em casa, nós dizíamos que eram “Os Santos”.
Lá moravam pais, mães, irmãos, tios, crianças de sobra e uma senhora muito velhinha,
muito mesmo. Tanto que seus cabelos pareciam nuvens enroladinhas pelo vento.
Seu nome era dona Biá, pelo menos era assim que a conhecíamos. Tinha um sorriso
iluminado de sol e sua pele era negra como a noite.
Eu tinha medo dela. Não sei bem por que, mas acho que era por causa de uma história que
os meninos contavam de que ela era africana. Diziam que na África as pessoas passavam
fome, viviam em guerra, eram pobres como nunca e não trabalhavam. Diziam até que
castigavam crianças por qualquer coisinha. Por isso, quando dona Biá estava na varanda, eu
atravessava a rua de tanto medo dela.
Mas um dia, vindo distraída da escola, esqueci meus medos e dei de cara com dona Biá no
portão de sua casa. Ela abriu um sorriso tão lindo, como quando o sol aparece de pois de
muita chuva, pintando de dourado tudo que tem na terra. E me disse, com voz doce como o
mel:
– Aprendeu muita coisa hoje na escola, menina Ana?
Fiquei tão envergonhada, tão descontrolada, que só consegui dizer:
– É verdade que a senhora passou fome na África?
Ela soltou uma risada daquelas de avó, do tipo que acalma qualquer pessoa. E disse, ainda
rindo um pouco:
– Verdade mesmo é que fui menina, como você, lá na África. Nasci em Angola e vim para o
Brasil ainda moça.
– A África é um continente imenso e cheio de coisas lindas que pouca gente conhece. Terra
de reinos poderosos, como o Egito, o Zimbabuê, o Daomé, o reino do Mali e tantos outros,
como minha terra Angola.
– Lugar de reis e de rainhas, de sábios e de poderosos. Em minha terra mesmo, houve uma
rainha sábia e corajosa que protegeu seu povo contra muitas invasões. O nome dela era Zinga.
– Mas e tudo que falam sobre lá? Que está tudo destruído... – Perguntei morrendo de
curiosidade.
– Muita coisa se perdeu com o tempo e com várias invasões de povos estrangeiros. Mas as
pessoas não conhecem nossa cultura e, quando não conhecem algo, falam sempre besteiras...
... Não sabem, por exemplo, que na África há construções tão bonitas e tão grandiosas
quanto em qualquer outro lugar do mundo.
– Muita gente nunca ouviu falar das igrejas de Lalibela, cavadas por anos na rocha pura, ou
das ruínas de Zimbábue com seus paredões imensos, ou ainda da enorme mesquita de
Tombuctu, toda feita de barro e de madeira, que foi uma das primeiras escolas do mundo. Até
as pirâmides do Egito as pessoas esquecem de que ficam na África!
Eu, já sem nenhuma vergonha, perguntei:
– Mas e as pessoas que vivem lá? É verdade que não gostam de trabalhar?
Dona Biá soltou novamente aquela risada de sol.
– Quanta bobeira contaram pra você, Aninha. Saiba que os povos africanos foram
inventores de muitas coisas maravilhosas. Desenvolveram técnicas de agricultura e de
pecuária. Desvendaram o céu e até descobriram estrelas bem distantes, muito antes de todos
os outros povos. Foram os primeiros a criar maneiras de tirar da terra o cobre, os diamantes, o
ferro e o ouro...
– Ouro! – Eu disse espantada.
– Sim. Ouro. E muito. Há séculos os africanos fabricam pulseiras, colares, estátuas e muitos
outros objetos de ouro. Contam que no reino do Mali havia tanto ouro que as pessoas da
corte amarravam seus cavalos em pedras brutas.
– Então, por que tudo isso acabou?
– Não acabou, não. A África está inteirinha viva nas pessoas do mundo todo. Em mim, em
você, em todo o brasil. Na música, nas danças, nas festas, no jeito de a gente se vestir, na
forma de viver em família, de cantar, de rezar, enfim, Ana, o Brasil é um pedacinho da África
também. Preste atenção às coisas e às pessoas que existem a seu lado e você aprenderá que
esta terra e esta gente são tão parecidas com a África como você é parecida com sua mãe, ou
sua avó.
Nunca mais me esqueci das coisas que dona Biá me ensinou. Nem, muito menos, me
esqueci dela e de seu sorriso de sol e cabelos de nuvens. Mesmo hoje, quando ensino história
para meus alunos, faço questão de mostrar o quanto o Brasil é parecido com a África. Assim
como netas e avós.

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