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Edmundo Colen

O PÂNTANO – 2001
de Lucrecia Martel

Trabalho realizado para a disciplina de


Direção do curso Comunicação Social:
Habilitação em Cinema e Vídeo. (5º
período)

Belo Horizonte, 02 de dezembro de 2009.


O PÂNTANO

“O cinema deve ser regido pela experiência emotiva e


física de alguém”
Lucrecia Martel

Em “O Pântano” a diretora e roteirista Lucrecia Martel foge às regras do cinema


“convencional”: uma narrativa sem o esquema começo, meio e fim, um tom naturalista
nos diálogos e na mise-en-scène, planos com enquadramentos mais “emotivos” e uma
relevância dada ao som muitas vezes em detrimento da imagem propriamente dita,
como ela mesma afirma: “Existe uma caricatura do cineasta que vive atrás das lentes, preocupado
em focar e enquadrar. É como se limitassem o corpo à visão e reduzissem toda a percepção humana ao
olhar. Para mim, o cinema é basicamente uma experiência sonora”1.

A narrativa discorre sobre duas famílias que se encontram por alguns dias, em pleno
verão, num sítio localizado em um povoado próximo à cidade de La Cienaga, uma
região inundada pelo calor e pelas chuvas repentinas que alagam a terra formando
perigosos pântanos. Tomados pela ociosidade, os personagens encontram-se
normalmente deitados nas camas ou próximos à piscina que não é tratada há muito
tempo e por isso, imprópria para banhos e mergulhos.

O que ressalta no filme é a individualização (caracterização) de cada personagem,


tornando-se eles próprios a “história” narrada. A solidão, o isolamento de cada um é a
característica marcante, ainda que estejam, na maioria das vezes, juntos.

OS PERSONAGENS

Mecha (Graciela Borges) é uma mulher amarga que mal dá atenção aos filhos e
despreza o marido. Gregório (Martín Adjemián), marido de Mecha, é alheio ao que
acontece ao seu redor e parece, aparentemente, preocupar-se apenas com os seus
cabelos, os quais tinge, numa perspectiva de manter a jovialidade perdida. Uma
curiosidade é que muito do que se sabe sobre as personagens está contido na fala de um
outro personagem, especialmente através de Tali (Mercedes Morán).

1
In: D’Elia, Renata. “Lucrecia Martel. Um Cinema Físico e Emocional".

2
Tali mantém normalmente a mesma conversa com Mecha, sua prima, sempre assentada
aos pés da cama desta. Elas planejam viajar à Bolívia e Tali usa, como justificativa, ir
comprar material escolar mais barato. Alimentam o desejo de saírem de suas rotinas, de
experimentar uma pequena aventura, mas pouco fazem para realizá-lo. Os diálogos,
realizados de forma naturalista, sofrem, no entanto, com a interferência de ruídos
ambientes (a TV ligada, latidos de cachorro...) que abafam as vozes ou mesmo por
outros personagens que entram e “interferem” na cena.

Tali apesar de se mostrar mais carinhosa com os filhos e marido, é negligente. Seu
mundo interior parece mais “confortável” que o cotidiano em que vive e se apega à
possibilidade da viagem como algo que poderia lhe dar “novo ar”. Seu marido Rafael
(Daniel Valenzuela) tem mais cuidados com os filhos, desempenhando papéis que
socialmente seriam dados à mãe (dar banho nos filhos, por exemplo). Embora seja mais
ativo que Gregório, é também um personagem ausente nos acontecimentos em geral.

O filme, na verdade, abrange mais o universo feminino, através das primas (Mecha e
Tali) e das irmãs Momi (Sofia Bertolotto) e Vero (Leonora Balcarce) além da
empregada Isabel (Andrea López). Momi é a personagem que proporciona o ponto de
vista da narrativa. Apegada à Isabel, ela não somente observa o objeto de seu desejo,
mas a todos na casa. Ela é quem critica, comenta com palavras e olhares as situações
vividas pelos demais personagens.

Alguns jovens se destacam, no entanto. A “alegria” da casa vem com a presença de José
(Juan Cruz Bordeu), filho de Mecha, amante de Mercedes (Silvia Baylé), uma antiga
colega da mãe e de Tali, e é por ela sustentado. José tem desejos por Vero, sua irmã, e é
correspondido, embora o incesto não chegue a ser concretizado.

Em uma cena específica, quando Vero está tomando banho, José se aproxima, urina no
vaso sanitário ao lado do chuveiro, enfia uma das pernas no box e deixa que a água
escorra limpando o barro que escorre pelo ralo. Embora Vero se enrole com a cortina do
box, ela sorri e, de certa forma, se mostra receptiva. José, no entanto, sai e sem que a
câmera o mostre, ouve-se o barulho de uma porta se fechando. Uma das poucas cenas
que Martel finaliza.

3
O filme mantém-se em constante “suspense” quanto aos acontecimentos. A diretora
utiliza-se de sons para evocar algum fato, raramente concluso na própria cena. Assim o
espectador ouve um tiro, quando o pequeno Lucchi (Sebastián Montagna) está à frente
de uma espingarda ao caminhar em direção a uma vaca atolada em um pântano. Aliás,
as armas estão constantemente nas mãos de crianças, especialmente de Joaquin (Diego
Baenas), que sofreu um acidente e tem o olho deformado. Apesar de adolescente,
Joaquin traz consigo uma série de valores não condizentes à sua idade: é dissimulado,
reacionário e discriminador, como o faz em relação a Perro (Fabio Villafane), namorado
de Isabel, e às outras crianças de origem indígena.

A DIREÇÃO E A NARRATIVA

Com a proposição de uma “estética sonora”, Martel parece captar uma intimidade com
as personagens através de sua câmera “invasiva”. Esta, aliás, chega a ser um outro
personagem: observa, acompanha movimentos, aproxima-se tanto das personagens que
se torna uma delas. Na cena em que Momi e Vero observam Isabel conversando com
Perro, a câmera posicionada tão próxima às costas das meninas, se propõe a ser uma
terceira “espectadora” da ação que ocorre do lado de fora da loja. Martel pontua: “por
mais que nos aproximemos há sempre uma esfera de segredo”2.

O filme não tem uma trilha sonora. Martel trabalha com ruídos, sons ambientes, falas
sobrepostas, diálogos abafados por outras vozes, áudios, por vezes, dissociados das
imagens. Consegue assim, um efeito surpreendente em que uma trilha “musical” se
torna desnecessária para a criação de “emoções” e “sentimentos” no espectador.

Ao não seguir uma narrativa linear, Martel entrecorta as cenas, usando raccords pouco
convencionais: um diálogo é interrompido por imagens de cachorros latindo, por
exemplo, para em seguida, mostrar um outro núcleo de ação, deixando o anterior em
“suspensão”, sem, no entanto, retornar a ele, causando incômodo e estranhamento ao
espectador.

2
In: Rebouças, Júlia. “A Tensão Realista de Lucrecia Martel”. 2006.

4
Mas são justamente nestes cortes abruptos que a história se constrói, que se faz entender
as relações entre as personagens e os poucos desfechos dados pela diretora a uma
situação, normalmente, provocativos.

O início do filme é bastante significativo neste aspecto. As imagens iniciais são


entrecortadas, em ritmo bem lento, com alguns créditos. A primeira imagem mostra
pimentões vermelhos. A seguir uma mão enche duas taças de vinho e trêmula parece
anunciar aos demais a bebida servida. Um trovão anuncia a chuva que está por vir. Os
convidados se movem preguiçosamente empurrando as cadeiras, como para sair da
chuva, mas apenas trocam de lugares. São pernas, partes baixas dos corpos, mostrando
serem pessoas de idade. Num quarto escuro, ainda desconhecidas do público, Momi está
abraçada à empregada e agradece a Deus por “ter dado Isabel a ela”.

Todos na casa desfrutam de uma grande ociosidade. Finalmente apresentando as


personagens em primeiro plano, Mecha se preocupa com Joaquim e o próximo plano
mostra as montanhas cobertas de nuvens e depois cachorros e crianças correndo pela
mata com armas na mão. Elas encontram uma vaca atolada em um dos pântanos
formados pelas águas das chuvas. Após alguns cortes que mostram pequenas situações
destas personagens, incluindo a “confissão” de Momi para sua irmã sobre seus
sentimentos em relação à Isabel, nova cena mostra Mecha recolhendo as taças de vinho
das mãos dos convidados. Ela cai e se fere com as taças quebradas. Ninguém se move,
ninguém parece se importar com o acontecimento. Somente Momi, dentro do quarto,
ao ouvir o barulho, corre em direção à mãe. A câmera se posiciona como uma das
personagens: focaliza Mecha, de modo frio e distante, caída atrás das cadeiras sem, no
entanto, mostrá-la diretamente. Gregório simplesmente se aproxima e a manda se
levantar, pois a chuva está para cair e se serve de mais uma taça de vinho.

Um prólogo consonante com toda a estrutura narrativa que está por vir, tanto referente à
direção em seus cortes abruptos e planos indutivos, quanto na relação das personagens.

Estas características são bem demonstradas na estruturação da personagem do pequeno


Luciano. Martel “insinua” um desfecho trágico, a todo momento para o pequeno
Lucchi. A criança, desde o início do filme, está envolvida com algo perigoso para ela. A
primeira cena em que aparece, o coloca ao lado de um coelho morto e uma faca.

5
Logo a seguir, a criança com um corte na perna, está perigosamente assentada sobre a
pia da cozinha tentando lavar o ferimento. Seguem-se cenas esparsas, momentos sempre
envolvendo algum perigo: o estar em frente a uma arma, estar à beira da piscina, estar
em frente à escada. Sugestivamente, a criança tem um dente nascendo no céu da boca e
lhe é contada a história de um “rato do banhado” que tinha duas fileiras de dentes e que
devorava todos os gatos.

Martel evoca pelo som, o medo e a curiosidade da criança: um latido incessante de um


cachorro, nunca visível, atrás do muro de sua casa. Este é um recurso muito usado pela
diretora: os personagens vêem e sentem coisas que não são mostradas diretamente, o
que obriga o espectador a imaginá-las, ou seja, a diretora pontua com os sons o que é
invisível aos olhos. Outro exemplo, já citado anteriormente, é o som do tiro da
espingarda, quando é exibido um plano geral da mata. O plano seguinte mostra outro
núcleo de ação deslocado do anterior.

Como afirma Chiaratti3 em seu artigo sobre o filme: “São acontecimentos pequenos que dizem
muito. Imagens e sons potentes, onipotentes, onipresentes. São personagens tão próximos (com
características comuns e reconhecíveis) e tão complexos, esféricos, imprevisíveis, visíveis. E é a partir da
relação destes, tênue e corpórea, que a obra se constitui”.

A incerteza é uma das características na mise-en-scène criada por Martel. A dubiedade


das personagens, sentimentos contraditórios, conflitos que não se solucionam ou quando
se concretizam, ainda assim, permanecem “suspensos”, dando margens para diferentes
interpretações. Chiaratti reproduz uma fala da diretora sobre este aspecto:

“a incerteza, na minha opinião, é o caminho para a revelação. Não a revelação da


verdade (…) mas da falta de necessidade do que está determinado. Minhas
incertezas rondam coisas como a bondade, o bem supremo, o bom homem, a boa
mulher. Em um sistema de valores como o nosso tudo pode ser uma farsa (…)
quando escrevo, não penso se o personagem é criança, adulto, mulher ou homem.
Penso nele como um tumor.”

3
Chiaratti, Matheus. “Lucrecia Martel em O Pântano, atmosferas do invisível”.

6
Este “tumor” está presente em cada personagem, em cada cena, dentro da atmosfera
claustrofóbica que envolve toda a narrativa. Um “tumor” para o qual não há esperança
de cura.

É neste aspecto que a inserção da notícia de uma menina que viu a virgem em frente a
uma pequena caixa d’água de uma casa humilde, é constantemente mostrada na TV,
interrompendo falas dos personagens, como a comentar a falta de perspectivas de vida
dos mesmos. A religiosidade é colocada como algo distante, provenientes das imagens
veiculadas pela TV.

A idéia de que há uma esperança de vida a que se apegar, é “destruída” ao final do


filme, quando Momi realiza o mesmo gesto de empurrar uma cadeira à beira da piscina,
como fizeram os mais velhos no início. Coloca-a próxima de Vero, que está deitada
sobre uma espreguiçadeira, diz ter ido ver a “Santa” e conclui: “Não vi nada!”.

Um final de grande impacto que remete à descrença, à desesperança, reforçado pela


última imagem que se vê na tela: as montanhas cobertas por nuvens. A mesma imagem
mostrada no início do filme. O ciclo que encerra em si a impossibilidade de mudanças.

7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHIARATTI, Matheus. Lucrecia Martel em O Pântano, atmosferas do invisível.


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Disponível em
<http://www.ufscar.br/rua/site/?p=2015>. Acesso em 21 de novembro de 2009.

D’ELIA, Renata. Lucrecia Martel. Um cinema Físico e Emocional. Faculdade Cásper Líbero:
Diálogos & Entrevistas. Disponível em
<http://www.facasper.com.br/cultura/site/entrevistas.php?tabela=&id=136>. Acesso em 21 de
novembro de 2009.

REBOUÇAS, Júlia. A Tensão Realista de Lucrecia Martel. Revista de Economía Política de las
Tecnologías de la Información y Comunicación. Dossiê Especial Cultura e Pensamento, Vol. II
- Dinâmicas Culturais, Dec. 2006. Disponível em
<http://www.eptic.com.br/arquivos/Dossieespecial/dinamicasculturais/CulturaePensamento_vol2%20-
%20JuliaReboucas.pdf>. Acesso em 21 de novembro de 2009.

OUTROS SÍTIOS:

ADORO CINEMA. O Pântano. Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/pantano>.


Acesso em 22 de novembro de 2009.

IMDB. La Cienaga. Disponível em <http://www.imdb.com/title/tt0240419>. Acesso em 21 de


novembro de 2009.

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