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AS CAUSAS E SEUS EFEITOS

Lewontin, RC. 2001. Biologia como Ideologia. A doutrina do DNA. Capítulo 3. Editora FUNPEC. Ribeirão
Preto. 138pp.

A biologia moderna é caracterizada por inúmeros preconceitos ideológicos que moldam a forma
de suas explanações e a maneira com que suas pesquisas são realizadas. Um desses grandes
preconceitos está relacionado com a natureza das causas. Geralmente olha-se para a causa de
um efeito, ou mesmo se há um número de causas admitidas, supõe-se que há uma causa
principal, enquanto as demais são apenas subsidiárias. E de qual quer modo, essas causas são
separadas umas das outras, estuda das independentemente, e manipuladas e influenciadas de
maneira independente. Além do mais, essas causas são geralmente vistas em termos de
individuo, de gene ou de órgão defeituoso, ou em termos de um ser humano que é o foco das
causas biológicas internas e externas de uma natureza autônoma.

Em nenhum outro lugar essa visão das causas é mais evidente do que em nossas teorias sobre
saúde e doença. Qualquer livro de medicina nos dirá que a causa da tuberculose é o bacilo da
tuberculose, que nos transmite a doença quando nos infecta. A moderna medicina científica
nos diz que o motivo pelo qual não morremos mais de doenças infecciosas é que a medicina
científica, com seus antibióticos, agentes químicos, e métodos de alta-tecnologia de
atendimento ao doente, derrotou a bactéria insidiosa.

Qual é a causa do câncer? A causa é o crescimento descontrolado das células. Esse


crescimento desenfreado, por sua vez, é uma conseqüência da falha de certos genes em
regular a divisão celular. Portanto, temos câncer porque nossos genes não es tão fazendo a
parte deles. As pessoas pensavam que os vírus eram a principal causa de câncer, e um grande
volume de dinheiro e tempo foi gasto sem sucesso na procura das causas virais do câncer em
humanos. A biologia afastou-se do tempo em que os vírus eram todos de grande interesse
para uma época em que os genes são muito mais tendenciosos.

Alternativamente, existem teorias ambientais insultuosas das causas do câncer. Dizem que o
câncer é causado por amianto, PVC ou por uma grande quantidade de substâncias químicas
naturais sobre os quais não temos qualquer controle, e embora

estejam presentes em concentrações muito baixas, somos expostos a elas ao longo de nossas
vidas. Portanto, assim como evitamos morrer de tuberculose ao lidar com o germe que causa
essa doença, evitamos também morrer de câncer ao livrar-nos de substâncias químicas
nocivas existentes no meio-ambiente. Certamente é verdadeiro o fato de que não se pode
contrair tuberculose sem o bacilo da tuberculose e há evidência bastante tentadora de que não
se pode ter mesotelioma sem ter sido ex posto ao amianto ou compostos relacionados. Mas
isso não é o mesmo que dizer que a causa da tuberculose é o bacilo da tuberculose e a causa
do mesotelioma é o amianto. Quais são as conseqüências para nossa saúde ao pensarmos

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dessa maneira? Suponha que a tuberculose fosse uma doença extremamente comum nas
doceiras e fábricas miseráveis do século XIX, embora os índices de tuberculose fossem muito
menores entre as pessoas do campo e das classes mais altas. Então, poderíamos ter uma
desculpa para alegar que a causa da tuberculose é o capitalismo industrial desregulado, e se
livrássemos desse sistema de organização social, não precisaríamos nos preocupar com o
bacilo da tuberculose. Quando olhamos para a história da saúde e da doença na Europa
moderna, tal explanação faz algum sentido quando põe a culpa no pobre bacilo.

Qual é a evidência dos benefícios da moderna medicina científica? Certamente vivemos bem
mais do que nossos ancestrais. Em 1890, a expectativa de vida para uma pessoa branca na
América do Norte era de apenas 45 anos, enquanto hoje a expectativa de vida é de 75 anos,
mas isso não é porque a medicina moderna prolongou a vida de idosos e pessoas doentes,
Uma fração muito grande da mudança na expectativa média de vida é devido à tremenda
redução na mortalidade infantil. Antes da virada do século e especialmente antes do sáculo
XIX, havia uma considerável chance de que uma criança não chegasse ao primeiro ano devida
- em 1860, a taxa de mortalidade infantil nos LUA. era de 13% - portanto, a expectativa média
de vida para a população como um todo foi consideravelmente reduzida por causa dessas
mortes iniciais. As lápides das pessoas que morriam na metade do século XIX indicam um
número extraordinário de óbitos com idade avançada. De fato, a medicina científica pouco tem
feito para acrescentar alguns anos a mais nas vidas das pessoas que já atingiram a
maturidade. Nos últimos 50 anos, apenas cerca de quatro meses foram acrescidos à
expectativa de vida de uma pessoa que já contava com 60 anos de idade.

Como todos nós sabemos, na Europa moderna as mulheres vivem mais do que os homens,
mas isso não acontecia antes. Antes da virada do sáculo, as mulheres geralmente morriam
antes que os homens, e uma explicação comum oferecida pela medicina científica é que a
primeira causa de morte entre elas era a febre do parto que ocorria dias antes do nascimento
do bebê. Segundo essa visão, a moderna medicina e a prática hospitalar anti-sépticas foram os
principais fatores que salvaram a vida de muitas jovens durante o parto. Mas uma olhada nas
estatísticas revela que a febre do parto era uma causa menor de mor te durante o século XIX,
mesmo entre as mulheres em idade fértil, e certamente não foi à causa do excesso de
mortalidade entre elas. Quase todo aquele excesso de mortalidade era uma conseqüência da
tuberculose, e quando a tuberculose parou de ser o principal assassino, as mulheres deixariam
de ter uma vida mais curta do que os homens. Urna importante causa de mortalidade entre as
crianças jovens eram as queimaduras, especialmente entre as meninas porque elas, é claro,
passavam uma boa parte do tempo sob condições perigosas ao redor dos fogões à lenha. Seus
irmãos pequenos passavam boa parte do tempo fora dos domínios do lar, nas oficinas, onde
também não havia condições muito favoráveis de trabalho, mas um tanto menos perigosas do
que uma fornalha.

Retornamos, então, para a tuberculose e outras doenças infecciosas que eram os assassinos
durante o século XIX e início do século XX. Um exame das causas de morte, registradas sis

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tematicamente a partir de 1830 na Inglaterra e um pouco mais tarde na América do Norte,
mostra que muitas pessoas morriam, na verdade, de doenças infecciosas e particularmente de
doenças respiratórias. Elas morriam de tuberculose, difteria, bronquite, pneumonia, e
particularmente entre as crianças, de sarampo e varíola, um assassino eterno. Na medida em
que o século XIX progredia, a taxa de mortalidade envolvendo todas essas doenças diminuía
continuamente. A rubéola foi tratada através de uma avanço médico, mas que mal poderia ser
reclamada pela moderna medicina científica, uma vez que a vacina contra a rubéola foi
descoberta no século XVIII e já era amplamente usada no começo do século XIX. As taxas de
mortalidade envolvendo os principais assassinos como bronquite, pneumonia e tuberculose
caíram de maneira regular durante o século XIX, sem qual quer motivo óbvio, Não havia
qualquer efeito observável na taxa de mortalidade depois que a embrionária teoria da doença
foi anunciada em 1876 por Robert Koch. A taxa de mortalidade dessas doenças infecciosas
simplesmente continuou a cair como se Koch nunca tivesse existido. No começo desse século a
terapia química foi introduzida contra a tuberculose, e mais de 90% da redução na taxa de
mortalidade provocada por essa doença já havia ocorrido.

Um dos casos mais reveladores é o sarampo. Hoje as crianças canadenses e norte-americanas


raramente contraem sarampo por que elas são vacinadas contra a doença, mas numa geração
anterior todas as crianças em idade escolar tinham sarampo, ainda que a morte fosse
extremamente rara. No século XIX, o sarampo era o principal assassino de crianças jovens, e
ainda hoje em muitos países africanos o sarampo permanece sendo a maior causa de morte
infantil. O sarampo era uma doença que todos estavam acostuma dos a contrair, e que
simplesmente parou de ser fatal para as crianças dos paises desenvolvidos.

As progressivas reduções na taxa de mortalidade não foram uma conseqüência, por exemplo,
do moderno saneamento, por que as doenças que eram as principais assassinas durante o
século XIX eram as doenças respiratórias e não as doenças infecciosas transmitidas pela água.
Não está claro se o simples acúmulo de pessoas tinha alguma relação com o processo, uma
vez que algumas partes de nossas cidades são tão populosas quanto em 1850. Até onde
sabemos, a redução nas taxas de mortalidade envolvendo as assassinas infecciosas do século
XIX é uma conseqüência da melhora geral na nutrição e está relacionada com um aumento no
salário real das pessoas. Em países como o Brasil, atualmente, a mortalidade infantil sobe e
desce com as reduções e os aumentos no salário mínimo. A imensa melhora na nutrição
também explica a queda nos índices mais elevados de tuberculose entre as mulheres em
comparação com os homens. No século XIX, e mesmo ao longo do século XX na Inglaterra, os
operários eram bem mais nutridos do que as mulheres. Freqüentemente quando a carne era
colocada na mesa de uma família de classe trabalhadora nas cidades da Inglaterra, ela era
guardada para o homem. Então houve complexas mudanças sociais que resultaram em
aumentos nos salários reais da grande massa de trabalhadores, refletindo, em parte, numa
melhor nutrição, o que realmente fundamenta a nossa maior longevidade e a queda na taxa de
mortalidade envolvendo as doenças infecciosas. Embora possa ser dito que o bacilo da

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tuberculose cause a tuberculose, estamos muito mais perto da verdade quando dize mos que
eram as condições do capitalismo competitivo e desenfreado do século XIX, desregulado pelas
exigências dos sindicatos e do Estado, a real causa da tuberculose. Mas as causas sociais não
estão no âmbito da ciência biológica, portanto os estudantes de medicina continuam a ser
ensinados que a causa da tuberculose é um bacilo.

Nos últimos 20 anos, precisamente por causa do declínio da doença infecciosa como uma
importante causa de mortalidade, outras causas simples têm surgido como cúmplices da
doença. E indubitavelmente verdadeiro que a poluição e os resíduos industriais são as causas
fisiológicas imediatas de vários tipos de câncer, doenças respiratórias e de um grande número
de outras enfermidades. Além do mais, também é indubitavelmente verdadeiro que existem
vestígios de substâncias cancerígenas mesmo nos melhores alimentos e na água despoluída
por causa dos pesticidas e herbicidas que deixam os trabalhadores rurais do entes. Mas daí a
dizer que os pesticidas causam a morte de trabalhadores rurais ou que as fibras de algodão
causam doenças respiratórias nos trabalhadores têxteis é o mesmo que cultuar os objetos
inanimados. Devemos distinguir os agentes das causas. As fibras de amianto e os pesticidas
são agentes de doença e debilidade, mas é ilusório supor que se eliminando esses agentes
irritantes as doenças desaparecerão, unia vez que outros agentes irritantes substituirão os
antigos. Visto que a eficiência, a maximização dos benefícios de produção, ou o preenchimento
das narinas centralizadas de produção sem referência aos meios permanecem sendo as forças
motivadoras das empresas produtivas em todo o mundo, visto que as pessoas são apanhadas
pelas necessidades econômicas ou pelas regulamentações do Estado quando da produção e
consumo de certas coisas, então um agente poluidor continuará a substituir o outro. As
agências reguladoras ou os departamentos de planejamento central calcularão a proporção
entre custo e beneficio ande a miséria humana é custeada cm dólar. O amianto e as fibras de
algodão não são as causas de câncer. Eles são os agentes das causas sociais, das formações
sociais que determinam a natureza de nossas vidas produtivas e consumistas, e no final é
apenas através das mudanças dessas forças sociais que poderemos atingir a raiz dos
problemas da saúde. A transferência da força causal das relações sociais para os agentes
inanimados, que então parecem ter poder e vida própria, é unia das principais mistificações da
ciência e de seus ideólogos.

Assim como a poluição é a versão mais moderna e atualiza da das hostis forças externas do
mundo físico que dizem que devemos enfrentar, os genes, que são simples forças internas, são
agora os responsáveis não apenas pela saúde humana em seu sentido médico normal, mas
também por uma variedade de problemas sociais, tais como alcoolismo, criminalidade,
dependência de drogas e distúrbios mentais. Asseguram-nos que se pudéssemos encontrar
apenas aqueles genes que sustentam o alcoolismo ou os genes que ficam defeituosos quando
temos câncer, então nossos problemas acabariam. A atual manifestação da crença na
importância de nossa herança na determinação da saúde e da doença é o projeto de
seqüenciamento do genoma humano, um programa multibilionário envolvendo biólogos

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americanos e europeus que é destinado a tomar o lugar dos pro gramas espaciais na medida
em que o grande consumo de dinheiro público está voltado para a conquista da natureza.

Nós sabemos muito sobre a constituição dos genes bem como do funcionamento dos mesmos,
especialmente em nível básico. Um gene é uma longa seqüência de elementos chamados
nucleotídeos, dos quais existem apenas quatro tipos, identifica dos pelas letras A, T, C e G.
Cada gene é um longo filamento, algumas vezes contendo milhares ou mesmo dezenas de
milhares desses nucleotídeos A, T, C e G numa determinada ordem:

AATCCGGCATT e assim por diante. Essa longa seqüência serve a duas funções. Primeiro, parte
dela especifica, como um código, exatamente qual será a constituição das moléculas de pro
teína de nosso corpo. Essas proteínas consistem de elementos estruturais dos quais nossos
corpos são feitos, ou seja, os mate riais de nossas células e tecidos e também as enzimas e
hormônios que tornam possível o nosso metabolismo. Correspondendo a uma determinada
seqüência de A, T, C e G, será produzido pela máquina do corpo uma longa molécula, uma
proteína formada de elementos simples, os aminoácidos. Cada gene especifica a formação
molecular de uma diferente proteína. A seqüência particular dos aminoácidos que constituem
uma determinada proteína é determinada pela seqüência dos nucleotídeos dentro do gene. Se
um ou mais nucleotídeos dentro do gene for mudado, um diferente aminoácido pode ser
especificado na proteína, que então pode não mais ser capaz de realizar sua função fisiológica
como antes. Em alguns casos, quando um nucleotídeo diferente é substituído dentro do gene,
pode haver menos produção ou até mesmo nenhuma produção de uma determinada proteína
por que o mecanismo da célula não consegue reconhecer o código da mesma.

Segundo, outras partes do gene, também seqüências de nuelcotídeos, Formam parte do


mecanismo que ativam e desativam a produção de proteínas. Desta forma, embora os mesmos
genes estejam em todas as partes do corpo durante cada momento da vida de um organismo,
as proteínas correspondentes a alguns genes serão produzidas apenas em alguns momentos e
cm algumas partes do corpo. A ativação e desativação da produção dos elementos
constituintes do corpo é por si só sensível às condições externas. Por exemplo, se a lactose for
fornecida para a bactéria coliforme, a presença do açúcar dará um sinal para o mecanismo da
bactéria iniciar a produção de proteína que quebrará a lactose a fim de usá-la como fonte de
energia, O sinal para iniciar a tradução do código genético em proteína é, de fato, detectado
por uma parte do próprio gene. Portanto, as seqüências de nucleotídeos determinam qual o
tipo de proteína que os organismos produzirão. Além disso, os nucleotídeos também fazem
parte do mecanismo de sinalização que controla a produção dessas proteínas em resposta às
condições externas, O sistema sinalizador é um mecanismo pelo qual o ambiente interage com
os genes na criação dos organismos.

Os genes ainda possuem uma outra função, que é servir como modelo para a produção de
outras cópias de si mesmos. Quando as células se dividem e o esperma e o óvulo são
produzidos, cada nova célula possui um conjunto completo de genes que são mais ou menos

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idênticos aos genes das células antigas. Esses genes recém produzidos são copiados
diretamente das moléculas do gene que anteriormente existia. Uma vez que nenhum processo
químico de cópia é perfeito, erros podem ocorrer, ou seja, as chamadas mutações, mas isso
ocorre em cerca de unia cópia em um milhão como regra geral.

A descrição que acabei de dar dos genes como determinantes de certas proteínas que um
organismo pode produzir e como parte do sistema sinalizador que responde ao ambiente para
ativar e desativar as cópias de si mesmos, difere ligeiramente da descrição usual dessas
relações. Geralmente diz-se que os genes produzem proteínas e que os genes são auto-
replicantes, Mas os genes podem não produzir nada. Uma proteína é produzida por um
complexo sistema de produção química envolvendo outras proteínas, usando uma seqüência
particular de nucleotídeos num gene para determinar a fórmula exata para que a proteína seja
produzida. Algumas vezes diz-se que o gene é a “cópia heliográfica” de uma proteína ou a
fonte de “informação” para determinar uma proteína. Como tal, ela é vista como sendo mais
importante do que o mero mecanismo de produção. Contudo, as proteínas não podem ser
produzidas sem ambos, o gene e o restante do mecanismo. Nenhum é mais importante. Isolar
o gene como sendo a “molécula principal” é mais uma leviana promessa ideológica, que coloca
a inteligência acima da força muscular, o trabalho mental acima da mera força física e a
informação acima da ação.

Nem os genes são auto-replicantes. Eles não podem replicar- se além da própria produção de
uma proteína. Os genes são produzidos através de um complexo mecanismo de proteínas que
usa esses mesmos genes como modelos a fim de formar mais deles. Quando nos referimos aos
genes como sendo auto-replieantes, damos a eles um poder misterioso e autônomo que
parece deixá-los acima dos elementos mais comuns do organismo. Contudo, se alguma coisa
no mundo pode ser considerada auto-replicante, essa coisa não é o gene, mas sim o
organismo inteiro como uni sistema complexo.

O projeto de seqüenciamento do genoma humano é um ambicioso plano que visa codificar a


complexa seqüência de nucleotídeos A, T, C e G para todos os genes dos seres humanos. Com
a atual tecnologia, este é um projeto imensamente ambicioso que poderia levar 30 anos e
alocar dezenas ou mesmo centenas de bilhões de dólares. E claro que sempre existe a
promessa de que uma tecnologia mais eficiente tornará possível a redução da magnitude do
trabalho. Mas por que alguém gostaria de conhecer a seqüência completa de nucleotídeos A, T,
C e G que forma todos os genes humanos?

A alegação é que se tivermos uma seqüência de referência de um indivíduo “normal” e a


compararmos pedaço por pedaço com a seqüência de unia pessoa com algum distúrbio, então
poderíamos localizar o defeito genético que causa a doença. Poderíamos então traduzir o
código genético da pessoa doente em urna proteína alterada para ver o que está errado com a
proteína, e isso poderia dizer nos como tratar a doença. Portanto, se as doenças forem
causadas por genes defeituosos alterados e se conhecer mos como é uni gene normal em sua

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forma molecular mais pura, então saberíamos o que fazer para estabelecer a fisiologia
anormal. Nós saberíamos quais proteínas levam ao câncer e poderíamos de algum modo
inventar maneiras de fixá-las. Poderíamos encontrar determinadas proteínas alteradas ou
ausentes em pessoas esquizofrênicas, maníaco-depressivas, alcoólatras ou dependentes de
droga, e com uma medicação apropriada aliviá-las desses terríveis distúrbios. Além do mais,
ao compararmos todos os genes humanos em seus detalhes moleculares com os genes de um
chimpanzé ou gorila, por exemplo, saberíamos por que somos diferentes desses primatas, ou
seja, saberíamos o que é ser um humano.

O que há de errado nessa visão? O primeiro erro está em falar sobre a seqüência de genes
humanos como se todos os seres humanos fossem iguais. Na verdade, existe uma imensa
variação de indivíduo normal para indivíduo normal quanto à seqüência de aminoácidos de
suas proteínas porque uma determinada proteína pode apresentar uma variedade de
composições de aminoácido sem comprometer sua função. Cada um de nós carrega dois genes
para cada proteína, um que veio de nossa mãe e outro que veio de nosso pai. Em média, a
seqüência de aminoácido especificada por nossos genes herdados maternal e paternalmente
diferem-se a cada 12 genes. Além disso, por causa da natureza do código genético, muitas
alterações ocorrem em nível de DNA que não são refletidas nem nas próprias proteínas. Isto é,
existem muitas seqüências diferentes de DNA que cor respondem à mesma proteína. Não
temos boas estimativas para os humanos no momento, mas se os humanos forem como os
animais experimentais, cerca de 1 em cada 500 nucleotídeos diferenciar-se-á quanto ao DNA
tomado de qualquer par de indivíduos escolhidos aleatoriamente. Como existem
aproximadamente 3 bilhões de nucleotídeos nos genes humanos, quaisquer dois seres
humanos diferenciar-se-ão em 600.000 nucleotídeos em média. E num gene médio que tem,
por exemplo, 3.000 nucleotídeos de comprimento diferenciar-se-á em cerca de 20 nucleotídeos
entre dois indivíduos normais. Então, de quem será o genoma que fornecerá a seqüência para
o catálogo de pessoa normal?

Além do mais, toda pessoa normal carrega um grande numero de genes defeituosos herdados
unicamente de um dos pais. Esses genes defeituosos ficam encobertos por uma cópia normal
que eles recebem, por sua vez, de um dos pais. Portanto, qual quer fragmento de DNA a ser
seqüenciado para fins de catalogação terá um certo número de genes defeituosos
desconhecidos. Quando o DNA de uma pessoa com uma doença fosse comparado ao DNA de
uma seqüência normal, seria impossível decidir qual das múltiplas diferenças entre os dois
DNA é responsável pela doença. Seria necessário olhar para uma grande população de pessoas
normais e de pessoas doentes para ver se poderia encontrar alguma diferença comum entre
elas, mas mesmo isso poderia não acontecer se a doença em questão apresentar uma múltipla
causa genética de maneira que pessoas diferentes tenham a mesma doença por diferentes
motivos, mesmo se todos esses motivos forem conseqüência de alterações genéticas. Já
sabemos que isso é possível no caso de uma doença humana chamada talassemia. A
talassemia é um distúrbio sangüíneo onde uma quantidade abaixo do normal de hemoglobina é

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produzida, além disso, muitos asiáticos e europeus do mediterrâneo sofrem dessa doença. A
deficiência é conseqüência de defeitos no gene que codifica a proteína da hemoglobina.
Existem pelo menos 17 defeitos diferentes nas diversas partes do gene da hemoglobina, todas
resultando numa redução na quantidade de hemoglobina produzida. Olharíamos em vão para
um determinado nucleotídeo que seria diferente tanto para uma pessoa com talassemia como
para uma pessoa normal. No caso da talassemia, os extensivos estudos com populações têm
revelado a história correta, mas a posse de uma seqüência normal padronizada do genoma
humano inteiro não foi útil nesse caso, e nem o seria em outro.

O segundo problema do projeto de seqüenciamento do genoma humano é a alegação de que


ao conhecermos também a configuração molecular de nossos genes, saberemos de tudo que é
útil sobre nós. O gene é considerado o fator determinante do indivíduo, e o indivíduo fator
determinante da sociedade. Tal visão propõe isoladamente que o gene alterado é a causa do
câncer, enquanto que, por sua vez, tal alteração gênica pode ter sido causada pela exposição
aos agentes poluidores, que por sua vez foram produzidos por um processo industrial, que por
sua vez era a conseqüência inevitável do dinheiro investido a 6%. Uma vez mais, a
empobrecida noção de causa e efeito que caracteriza a ideologia da biologia moderna, uma
noção que confunde agentes com causas, nos orienta para encontrarmos soluções para nossos
problemas.

Por que, então, tantos cientistas poderosos, famosos, bem sucedidos e extremamente
inteligentes querem seqüenciar o genoma humano? Em parte, por que eles estão tão
devotados à ideologia das simples causas unitárias que eles acreditam na eficácia da pesquisa
e não se dão ao luxo de fazerem perguntas mais complicadas. Mas, em parte, também, porque
é uma resposta confusa. Um projeto de pesquisa multibilionário de 30 a 50 anos de duração
com a participação e controle de milhares de técnicos e cientistas de menor nível é um
extraordinário prospecto que é atraente para um biólogo ambicioso. Grandes carreiras serão
criadas. Prêmios Nobel serão concedidos. Títulos honorários serão oferecidos. Professorados
importantes e imensas facilidades laboratoriais serão colocados à disposição daqueles que
controlam esse projeto e que são bem sucedidos na produção de milhares de CDs contendo a
seqüência do genoma humano. A percepção da existência de recompensas econômicas e
profissionais bastante honestas que aguardam aqueles que participam do projeto tem
originado uma poderosa oposição ao projeto de dentro da própria biologia e de outros que
estão fazendo um tipo diferente de ciência e que vêem suas próprias carreiras e pesquisas
ameaçadas por diversão, dinheiro, energia e consciência pública. Alguns biólogos mais
perspicazes previnem contra a terrível desilusão pública que virá após a conclusão do projeto
de seqüenciamento do genoma humano. O público descobrirá que apesar das inflamadas
alegações dos biólogos moleculares, as pessoas ainda estarão morrendo de câncer, doenças
cardíacas e derrames, que as instituições ainda estarão cheias de esquizofrênicos e maníaco-
depressivos, e que a guerra contra as drogas não foi vencida, O temor entre muitos cientistas
é que ao prometerem demais, a ciência destrua sua imagem pública e as pessoas se tornem

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cínicas, como por exemplo, quanto à guerra contra o câncer e parem de falar da guerra contra
a miséria.

Os pesquisadores estão envolvidos nessa luta não apenas em suas funções como acadêmicos.
Entre os biólogos moleculares que são professores em universidades, uma grande parte
também é formada por cientistas chefes ou acionistas majoritários nas empresas de
biotecnologia. A tecnologia é a principal indústria e fonte de esperança de lucro para o capital
de risco. O projeto de seqüenciamento do genoma humano, até ao ponto em que ele cria
novas tecnologias às custas do dinheiro público, fornecerá ferramentas muito poderosas para
as empresas de biotecnologia na produção de bens de mercado. Além do mais, o sucesso do
projeto dará mais crédito para a biotecnologia produzir produtos mais úteis.

Nem só as biotecnologias são as únicas produtoras de bens que lucram imensamente com o
projeto de seqüenciamento do genoma humano. O projeto consumirá vastas quantidades de
mercadorias químicas e mecânicas. Existem máquinas comerciais que produzem DNA a partir
de pequenas quantidades de material amostrado. Há máquinas que seqüenciam o DNA
automaticamente. Essas máquinas exigem a introdução de uma variedade de materiais
químicos que é vendida pelas empresas que fabricam essas máquinas, proporcionando um
imenso lucro, O projeto de seqüenciamento do genoma humano é um grande negócio. Os
bilhões de dólares a serem gastos no projeto pouco representarão diante dos dividendos
anuais das empresas produtoras.

Vemos no projeto do seqüenciamento do genoma humano um aspecto da ciência biológica que


raramente é falado e que talvez seja o mais mistificado de todos. Aquilo que é dito como
sendo a descoberta fundamental sobre a natureza da vida muitas vezes mascara as simples
relações comerciais que fornecem um poderoso ímpeto para a pesquisa em termos de
orientação e objetivo. O melhor exemplo documentado que temos do interesse puramente
comercial que orienta o que se diz ser uma descoberta fundamental sobre a natureza está na
agricultura. Geral mente nos dizem que a invenção do milho híbrido resultou num imenso
aumento na produtividade agrícola e conseqüentemente na alimentação de centenas de
milhões de pessoas, isso com baixo custo e grande eficiência. Enquanto em 1920 a média de
um acre de milho na América do Norte podia render 35 bushels por acre, hoje o mesmo acre
pode render 125 bushels. Isso é amplamente considerado uni dos maiores triunfos da genética
básica aplicada para o bem-estar do homem. Mas a verdade é mais interessante.

O milho híbrido é produzido pelo cruzamento de duas variedades puras e plantando-se a


semente desse cruzamento. Essas variedades puras são desenvolvidas através de um longo
pro cesso de autopolinização para deixar cada variedade completa mente uniforme
geneticamente. Uma companhia de produção de sementes gastará um certo número de anos
autopolinizando linhagens de milho até conseguir linhagens uniformes, então, venderá para
fazendeiros a semente que vem do cruzamento de duas dessas linhagens. As próprias
linhagens homogêneas produzem bem pouco, enquanto um híbrido é superior em

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produtividade tanto em relação às linhagens puras que lhe deram origem como em relação à
população original de milhos polinizados naturalmente, dos quais vieram às linhagens. Isso
não significa que um cruzamento entre qualquer linhagem homogênea de mi lho produzirá um
híbrido de alta produção. E necessário investigar muitas dessas linhagens homogêneas para
encontrarmos pares que dêem resultado.

O híbrido entre duas linhagens tem uma outra qualidade, da qual não se fala a respeito, que é
o seu valor comercial. Se um fazendeiro tem unia variedade de milho altamente produtiva que
seja resistente à doença, e que tem uma produção altamente comercial em comparação com
os custos dos insumos, a maneira de realizar bem o seu negócio seria economizar algumas das
sementes dessa variedade de alto rendimento e plantá-las no ano seguinte para novamente
alcançar uma elevada produção. Uma vez que o fazendeiro adquirisse a semente dessa
maravilhosa variedade, ele não mais teria de pagar novamente por ela, por que as plantas,
como os demais organismos, se reproduzem. Mas essa auto-reprodução apresenta uni sério
problema para alguém que deseja ganhar dinheiro desenvolvendo novas variedades de
organismos. Como ele terá lucro se no momento em que ele vendeu a semente, sua produção
adicional estará nas mãos da pessoa de quem comprou? Ele terá de vender a semente por
uma única vez, pois ela será distribuída em todos os lugares por nada.

Este é o mesmo problema das cópias piratas que também existe entre os programas de
computador. O programador de computa dor não desejará perder tempo, energia e dinheiro
para desenvolver um novo programa se os primeiros compradores podem copiá-lo e passá-lo
para seus amigos por virtualmente nada. Este sempre foi o problema da reprodução animal ou
vegetal. Os reprodutores que trabalham com plantas e os produtores de sementes nunca
puderam ter um grande lucro porque os fazendeiros, tendo com prado a variedade de alto
rendimento, seja ela animal ou vegetal, produzem eles mesmos as futuras gerações. E claro
que as sementes produzidas na fazenda podem conter uma certa quantidade de semente de
erva daninha e não serem produzidas sob as melhores condições para germinação. Apenas
ocasionalmente os fazendeiros voltam a comprar do produtor de sementes uma nova
linhagem. Na França, por exemplo, os fazendeiros de trigo a cada seis anos renovam o
suplemento de sementes de trigo.

O milho híbrido é diferente. Como se trata de um cruzamento entre duas linhagens


homogêneas autopropagadas, não se pode plantar a semente de milho híbrido e conseguir um
novo híbrido. Os híbridos não são puros. As sementes que são produzidas numa planta híbrida
não são propriamente híbridas, mas formam uma população de plantas com vários graus de
hibridização, uma mistura de variedades homogêneas e heterogêneas. Um fazendeiro que
economizasse sementes de seu milho híbrido e as plantasse no ano seguinte perderia pelo
menos 30 bushels por acre na próxima colheita. Para manter os altos rendimentos, é
necessário que o fazendeiro volte a comprar as sementes a cada ano. Portanto, o produtor de
semente híbrida encontrara um método de proteção contras as cópias. Além do mais, o
produtor de semente híbrida pode cobrar do fazendeiro um preço que é equivalente á

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quantidade que o fazendeiro teria perdido - ou seja, o valor de mercado de 30 bushels por
acre - se este não tivesse retornado até a companhia produtora de sementes para adquirir
mais sementes híbridas. A invenção do milho híbrido foi, de fato, um uso deliberado dos
princípios da genética para criar um produto protegido contra cópia. As melhores autoridades
possíveis, os próprios inventores do milho híbrido, Shull e East, escreveram que os híbridos
são:

“... algo que poderia facilmente ser resgatado pelos semeadores; de fato, é a primeira vez na
história da agricultura que um semeador tem a possibilidade de obter o pleno beneficio de uma
criação desejável de algo que ele adquiriu. O homem que cria urna nova planta que pode ser
de incalculável beneficio para o país inteiro nada consegue - nem mesmo a fama - porque seus
esforços e a planta podem ser propagados por qualquer um... A utilização de híbridos de
primeira geração possibilita que o criador mantenha os tipos parentais e esgote apenas as
sementes cruzadas, que são menos valiosas para uma propagação continuada’.”

A idéia de que o método de hibridação poderia garantir ao inventor lucros imensos resultou na
introdução do híbrido por toda a agricultura. Frangos, tomates, suínos, e na verdade, quase
todos os animais e vegetais comerciais onde é possível introduzir o método de hibridação têm
visto o crescimento dos híbridos ás custas das variedades mais antigas. As principais
companhias de produção de sementes, como a Pioneer Hybrid Seed Company, tem investido
milhões de dólares na tentativa de produzir um trigo híbrido, capturando assim um imenso
mercado ainda não manipulado. Até agora, eles não tiveram sucesso, porque o cus to da
produção da semente híbrida é excessivo.

A própria Pioneer Hybrid Seed Company é conseqüência das atividades de uma única e
importante figura científica e política, Flenry A. Wallace. O pai de Wallace foi nomeado pelo
Presidente Warren Harding secretário da agricultura dos Esta dos Unidos em 1920. O velho
Wallace enviou Flenry para uma viajem até as estações agrícolas experimentais. No seu
retorno, Henry aconselhou seu pai a nomear como chefe de reprodução vegetal um homem
que era dedicado à hibridização. Enquanto isso, o próprio Henry experimentou os híbridos, e
cm 1924 ele vendeu sua primeira semente híbrida de milho tendo um lucro de 740 dólares por
acre. Em 1926, ele fundou a Pioneer Hybrid Seed Company, e em 1932, quando foi nomeado
pelo Presidente Franklin Roosevelt secretário da agricultura, ele fez pressão pela introdução do
milho híbrido nos Estados Unidos, e mais tarde essa semente tomou-se sedutora no Canadá.

Se os híbridos realmente são um método superior de produção agrícola, então sua utilidade
comercial para os produtores de sementes é uma questão secundária. A questão é se os
demais métodos de reprodução vegetal poderiam ter funcionado tão bem ou melhor sem o
fornecimento de proteção dos direitos de propriedade para os produtores de sementes. A
resposta para essa questão depende de algumas interrogativas envolvendo a genética básica
que não estavam resolvidas no começo da história do milho híbrido, de maneira que há 30
anos, poder-se-ia argumentar que a biologia básica da produção de milho era tal que apenas

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os híbridos teriam um rendimento adicional. Contudo, tivemos conhecimento da verdade
durante os últimos 30 anos. As experiências fundamentais foram feitas e nenhum agricultor
discordou delas. A natureza dos genes responsáveis pela influência na produção do milho é tal
que o método alternativo da seleção direta simples das plantas de alto rendimento em cada
geração e a propagação da semente a partir daquelas plantas selecionadas funcionariam.
Através do método da seleção, os agricultores poderiam, de fato, produzir variedades de milho
que renderiam tanto quanto os híbridos modernos, O problema é que nenhum agricultor
comercial passaria por tal investigação e desenvolvi mento porque não há lucro nisso.

Uma das mais interessantes características dessa história é o papel das estações agrícolas
experimentais estaduais nos Esta dos Unidos e no Canadá. Poder-se-ia esperar que essas
instituições desenvolvessem métodos alternativos desde que não estivessem preocupadas com
o lucro e nem estivessem trabalhando às custas do dinheiro público. Contudo, os
Departamentos de Agricultura dos E.U.A. e do Canadá estão entre os mais fortes proponentes
do método híbrido, O interesse puramente comercial tem usado com tanto sucesso as
alegações estritamente científicas que agora as alegações são ensinadas nas faculdades de
agricultura como se fossem uma doutrina científica. Sucessivas gerações de pesquisadores
agrícolas, mesmo aqueles que trabalham em instituições públicas, acreditam que os híbridos

são intrinsecamente superiores ainda que resultados experimentais que contradizem isso
tenham sido publicados em periódicos bem conhecidos por mais de 30 anos. Uma vez mais,
aquilo que surge para nós na forma mística da ciência pura e do conheci mento objetivo sobre
a natureza, revela-se disfarçadamente como uma ideologia política, econômica e social.

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