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ESTUDO TEÓRICO

Rosa Maria G. S. Fonseca

Eqüidade de gênero e saúde das mulheres*

GENDER EQUALITY AND WOMEN’S HEALTH

EQUIDAD DE GÉNERO Y SALUD DE LAS MUJERES

Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca1

* Conferência apresentada RESUMO ABSTRACT RESUMEN


no 3º Congresso Brasileiro Inicialmente são contadas duas Two stories are told: one that IInicialmente se cuentan dos
de Obstetrizes e Enfer-
meira(o)s Obstetras e histórias: uma ocorrida na Idade took place in the Middle Ages in historias: una ocurrida en la Edad
Neonatalogistas, Salvador, Média, em Florença, Itália, e outra Florence, Italy, the other in the Media, en Florencia-Italia, y otra
18 de julho de 2002. en la década del 90, en Rio de
1 Enfermeira. Professora
na década de 90, do século 90s in Rio de Janeiro, Brazil. Both
Titular do Departamento de passado, no Rio de Janeiro, Brasil. refer to the principle of Justice, Janeiro, Brasil. Ambas se refieren
Enfermagem em Saúde Ambas referem-se ao princípio da the ethical pillar of Equality. al principio de Justicia, el pilar
Coletiva da Escola de
Enfermagem da
Justiça, o pilar ético da Eqüidade. From them is developed a gender ético de la Equidad. A partir de
Universidade de São Paulo A partir daí é feita uma análise de analysis of the women’s health ahí se realiza un análisis de género
(EEUSP) Pesquisadora 1B gênero da situação de saúde das situation and how much it reflects de la situación de salud de las
do CNPq. Líder do Grupo
de Pesquisa Gênero, Saúde mulheres e o quanto ela reflete as the iniquities that result from the mujeres y lo que ella refleja en
e Enfermagem, inscrito no iniqüidades advindas das conditions of social inequality to cuanto a las inequidades adve-
Diretório de Grupos de condições de desigualdade social which they are subjected. The nidas de las condiciones de
Pesquisa do Brasil
Ref. USP 0497. a que estão submetidas. Conclui conclusion is that the adoption desigualdad social a que están
rmgsfon@usp.br que adotar a eqüidade de gênero of gender equality as an ethical sometidas. Concluye que adoptar
como conceito ético associado aos concept associated with the la equidad de género como
princípios de justiça social e principles of social justice and concepto ético asociado a los
direitos humanos significa re-olhar human rights means to look over principios de justicia social y
o cotidiano de milhares de the daily life of thousands of derechos humanos significa
mulheres, indignar-se com o women, to be indignant with the volver a mirar el cotidiano de
sofrimento e provocar transfor- suffering and to bring about millares de mujeres, indignarse
mações, sem confundir o direito à transformation, without mixing con el sufrimiento y provocar
assistência digna e respeitável por the right for dignified and transformaciones, sin confundir
serem, antes de tudo, cidadãs, com respectable assistance because el derecho a la asistencia digna y
o imperativo de tê-las hígidas e they are being, before anything, respetable por ser, antes de todo,
produtivas, por serem geradoras citizens, with the need to be ciudadanas, con el imperativo de
e mantenedoras da força de healthy and productive, for being tenerlas productivas, al ser
trabalho presente e futura, de generators and maintainers of the generadoras y manutensoras de
quem a sociedade depende para a present and future work force, of la fuerza de trabajo presente y
geração da riqueza social. whom society depends for futura, de quien la sociedad
generating social wealth. depende para la generación de la
riqueza social.

DESCRITORES KEY WORDS DESCRIPTORES


Eqüidade. Equity. Equidad.
Identidade de gênero. Gender identity. Identidad de género.
Saúde da mulher. Women’s health. Salud de las mujeres.

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Justiça social. Social justice. Justicia social.

Rev Esc Enferm USP Recebido: 24/11/2003


2005; 39(4):450-9. Aprovado: 26/05/2004
UMA PONTE SOBRE O RIO seqüência de fatos que marcaram sua gravidez e os
Eqüidade de gênero e
DO TEMPO UNE DUAS cinco meses em que o filho sobreviveu em um hos- saúde das mulheres
HISTÓRIAS. SEU NOME: INJUSTIÇA! pital público do Rio de Janeiro. A reportagem reve-
la a sucessão de erros que teriam sido cometidos
Inicío com duas histórias: uma ocorrida na Ida- do parto à morte da criança. Reproduzo alguns tre-
de Média, em Florença, na Itália, e outra no Rio de chos, mesmo considerando ser uma revista não es-
Janeiro, em 1996. A primeira consta de um texto de pecializada em saúde e, por conta disto, cometer
José Saramago apresentado no encerramento do pecados em relação à análise dos fatos. Seu valor
Fórum Social Mundial 2002, em Porto Alegre(1). A está em expor a nu e, em detalhes, o triste caminho
segunda, publicada numa revista popular, retrata percorrido por uma das inúmeras mulheres brasi-
um fato corriqueiro entre nós. Ambas referem-se ao leiras que sofrem à procura de assistência para si e
princípio da Justiça, pilar ético da Eqüidade. Man- para seus filhos. Tais caminhos permeiam o cotidi-
tenho os textos originais para não perder a riqueza ano assistencial e não raro culminam com mortes
de detalhes e em Saramago a beleza do vernáculo: ou seqüelas evitáveis. Inicia assim o texto que in-
troduz o diário:
Estavam os habitantes nas suas casas ou a tra-
balhar nos cultivos, entregue cada um aos seus Depois de perder o emprego de administradora
afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu em uma agência de seguros, Eloísa Moreira de
soar o sino da Igreja. Naqueles piedosos tempos Moraes descobriu estar grávida. Como era sol-
(estamos a falar de algo sucedido no século XVI) teira e não tinha mais plano de saúde, o irmão
os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia e ofereceu-se para arcar com as despesas do
por esse lado não deveria haver motivo de es- parto. Eloísa preferiu procurar o Instituto
tranheza, porém, aquele sino dobrava melanco- Fernandes Figueira - um hospital público do Rio
licamente a finados e isso, sim, era surpreen- de Janeiro - considerado modelo para casos de
dente, uma vez que não constava que alguém gravidez de risco. Ela estava com 39 anos. O
na aldeia se encontrasse em vias de passamento. filho de Eloísa morreu em julho de 1996, após uma
Saíram, portanto, as mulheres à rua, juntaram- agonia que durou cinco meses. Causa mortis:
se as crianças, deixaram os homens a lavoura e ‘pneumonia; paralisia cerebral; asfixia peri-natal’,
os mesteres e, em pouco tempo, estavam todos segundo a certidão de óbito (...). Bernardo so-
reunidos no adro da igreja, à espera que lhes freu asfixia durante o parto – que teria sido
dissessem a quem deveriam chorar. O sino ain- provocada pela insistência do médico residente
da tocou por alguns minutos mais, finalmente em realizar um parto normal. A cesariana foi feita,
calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um mas com atraso.
camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo
Um impressionante percentual de 40% das acu-
este o homem encarregado de tocar habitual-
sações feitas ao Conselho Regional de Medicina
mente o sino, compreende-se que os vizinhos
do Rio de Janeiro (Cremerj) é referente a bebês
lhe tenham perguntado onde se encontrava o
que morreram ou ficaram com seqüelas por pro-
sineiro e quem era o morto. ‘O sineiro não está
blemas durante o parto. A maior parte das mães
aqui, eu é que toquei o sino’, foi a resposta do
tem em comum o perfil social: pobres, com pouca
camponês. ‘Mas então não morreu ninguém?’,
instrução e sem acesso à rede particular de saú-
tomaram os vizinhos, e o camponês respondeu:
de. Em carta enviada a Eloísa, (...)presidenta da
‘Ninguém que tivesse nome e figura de gente,
Associação das Vítimas de Erros Médicos, afir-
toquei a finados pela Justiça porque a Justiça
ma que o maior índice de erros ocorre por ‘péssi-
está morta’. Que acontecera? Acontecera que o
mo atendimento na hora do parto’. Diz mais: ‘60%
ganancioso senhor do lugar (algum conde ou
dos portadores de paralisia cerebral são assim
marquês sem escrúpulos) andava desde há tem-
por terem passado da hora de nascer.
pos a mudar de sítio os marcos das estremas de
(a)
suas terras, metendo-se para dentro da peque- Para efeito desse
Eloísa inicia o relato em junho de 1995, primeira artigo, os nomes dos
na parcela do camponês, mais e mais reduzida a
consulta pré-natal. Não refere intercorrências e en- médicos e médicas
cada avançada. O lesado tinha começado por foram suprimidos,
tra em trabalho de parto em fevereiro de 96. Começa apesar de constarem
protestar e reclamar, depois implorou compaixão
e, finalmente, resolveu queixar-se às autorida-
o drama(a): da reportagem.

des e acolher-se à proteção da justiça. Tudo


7 de fevereiro de 1996: As dores começam.
sem resultado, a expoliação continuou. Então,
Estou entrando na 42ª semana de gestação. No
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma
Instituto Fernandes Figueira, receitam Buscopan

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aldeia tem exacto tamanho do mundo para quem
e repouso.
sempre nela viveu) a morte da Justiça...
8 de fevereiro de 1996: à tarde, as dores reco-
A história vivida por Eloísa Moreira de meçam piorando à noite. Às 21h30 min elimino um
Rev Esc Enferm USP
Moraes(2) consta de um diário onde ela registrou a tampão de sangue. Tento um táxi, mas a chuva 2005; 39(4):450-9.
afugenta os motoristas. Apelo para minha irmã levado por dois pediatras sem que eu o veja. (...)
Rosa Maria G. S. Fonseca
que chega às 23 h. Uma hora depois, estamos no informa que ele tem 53 centímetros, 3,5 quilos e
hospital. Só que não há vaga. A minha irmã mora duas voltas do cordão umbilical enroladas no
perto, mas as ruas inundadas dificultam a volta. pescoço. São 13h22min. Já na enfermaria, sou
Em casa, vou para a banheira, na esperança que procurada por (...) [médica]. Ela confirma que
a água morna diminua as dores. Bernardo está mal: teve sofrimento fetal agudo,
duas crises convulsivas. Foi reanimado. Está em
9 de fevereiro de 1996: de madrugada, as do- coma profundo. Vou mandar enfaixar seus seios
res aumentam e, às 2:20hs estamos de volta ao e dar um remédio para inibir a descida do leite.
Fernandes Figueira. A cada reclamação, recei-
tam Buscopan. O dia amanhece e chamo a médi- Segue contando sua revolta, as tentativas de
ca de plantão. Após o exame de toque, ela diz acompanhar o estado de saúde do filho, as denún-
que a dilatação já é suficiente. Vou para a sala de cias da precariedade do atendimento (que vão des-
pré-parto, onde estão quatro médicos residen- de a falta de lavagem das mãos das pessoas que
tes. O residente (...) que comandará o parto, diz
atendem a criança até tentativas de intimidar Eloísa,
que ainda não é hora de Bernardo nascer. En-
pelas suas reações) e culmina com a narrativa emo-
quanto isso, conversa com o colega (...). Os dois
falam sentados na minha cama, gesticulando o
cionada da morte da criança:
tempo todo, como se estivessem numa sala de 5 de julho de 1996: Às 13 horas, os batimentos
estar. A terceira residente (...) faz outro exame cardíacos diminuem, o residente começa a desli-
de toque e alerta (...): ‘a dilatação aumentou, mas gar o monitor. ‘Não toque nele’, falo. Ele explica
o bebê não desce...’ O anestesista (...) não con- que só quer retirar o aparelho. Eu me calo até
segue aplicar o cateter para injetar a primeira que Bernardo desiste. O médico sugere que eu
dose de anestesia. O motivo: a cama balança saia, enquanto aprontam meu filho. Exijo ficar
com a animação da conversa entre (...) [os dois sozinha. Aproximo-me de Bernardo, acaricio seu
médicos] que discutem os planos para o Carna- rostinho e peço desculpas por não ter aceito a
val. O anestesista pede que os dois saiam. Nova sugestão do tio de um hospital particular.
espera. (...) [o primeiro médico] volta e tenta
iniciar o parto. (...)[o segundo médico] manda [O que Eloísa não sabe é que dependendo do
colocar medicação no soro para aumentar as hospital particular, o atendimento poderia ser igual
contrações. Ao mesmo tempo, diz a (...) [médica] ou pior e que somente os hospitais de primeira li-
que ele precisa ir ao banco pagar o Credicard.
nha, destinados à população mais rica, possuem um
(...) sai e volta reclamando que o tal cheque ain-
atendimento compatível com as necessidades da
da está sendo compensado e a gerência não
liberou o pagamento. Mas o Carnaval, daí uma
mãe e do concepto, para prevenir situações como
semana, vai ser mesmo na Bahia. ‘E a escala de esta – observação minha]
plantão? Está tudo certo?’ Comigo não. Peço a
Saio da enfermaria e recuso o calmante. A enfer-
(...) [médica] que consiga mais anestesia, as
meira avisa que é preciso descer com ele, mas
dores são tão fortes. Aplicam a segunda dose.
impeço: ‘Eu levo’. Carrego meu filho no colo, espero
‘Você está com medo de mim?’, pergunta (...) [o
na capela pelo atestado de óbito. Deixo de vez o
primeiro médico] . ‘Você precisa participar’. (...)
hospital, 147 dias depois daquela noite de chuva.
[a médica] sugere que passem para a cesaria-
na. ‘Nos meus últimos plantões só deu cesárea’, Na história de Saramago, não se sabe o que ocor-
desvia (...)[o primeiro médico]. ‘Aposto que este reu depois do camponês conclamar seus patrícios
vai nascer por via baixa’. Nova espera, nova através do dobrar dos sinos. O próprio autor conclui:
sugestão de (...) [médica] para a cesariana.
(...)[outra médica] conversa com (...)[médica]. Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço
(...) [o primeiro médico] não cede: ‘Vai ser nor- popular foi ajudar o camponês a repor as estremas
mal’. Às 12h30, dez horas após o início do traba- nos seus sítios ou se os vizinhos, uma vez que a
lho de parto, (...)[a outra médica] recomenda a Justiça havia sido declarada defunta, regressa-
cesariana. Pela penúltima vez, (...)[o primeiro ram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbi-
médico] insiste no parto normal. Após 20 minu- da à triste vida de todos os dias. É bem certo que
tos, ela descobre que o coração de Bernardo a História nunca nos conta tudo... (...) Nunca mais
parou de bater. De costas para mim, [o primeiro tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia
médico] (...) confere o exame. Ignorando o apelo de Florença, mas a Justiça continuou e continua a
de (...) [médica], diz que vão tentar por mais 10 morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instan-
minutos. Passado o prazo, pressiona a minha te, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa,

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barriga, mas Bernardo não se mexe. A compres- alguém a está matando. De cada vez que morre, é
são dos órgãos me deixa sem ar e recebo oxigê- como se afinal nunca tivesse existido para aque-
nio para retomar a respiração. É feita então uma les que nela tinham confiado, para aqueles que
Rev Esc Enferm USP cesariana, em fração de segundos. No centro dela esperavam o que da Justiça todos temos o
2005; 39(4):450-9. cirúrgico, tudo é rápido. Bernardo não chora. É direito de esperar: Justiça, simplesmente Justiça.
No caso de Eloísa, os sinos teriam que tocar MARIA E JOÃO: EXISTÊNCIAS DIFERENTES,
Eqüidade de gênero e
Finados duplamente: pela morte de Bernardo e pela DIREITOS IGUAISUMA TEORIA TENTA saúde das mulheres
morte da Dignidade da sua mãe. Isso, em se tratan- EXPLICAR VIDA - MORTE, SAÚDE - DOENÇA
do da Justiça... DE MULHERES E HOMENS

...companheira quotidiana dos homens, uma jus-


tiça para quem o justo seria o mais exacto sinôni- Segundo a teoria da determinação social do pro-
mo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão cesso saúde-doença, saúde e doença são expres-
indispensável à felicidade do espírito como indis- sões de um mesmo processo, no seu duplo caráter:
pensável a vida e o alimento do corpo. Uma justi- biológico e social porque apesar de ter lastro bioló-
ça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre gico, a natureza humana revela-se a partir da vida
que a isso determinasse a lei, mas também, e em sociedade. Assim, a determinação social pres-
sobretudo, uma justiça que fosse a emanação supõe a relação dialética entre fenômenos não
espontânea da própria sociedade em açcão, uma reproduzíveis igualmente em diferentes condições.
justiça em que se manifestasse, como um impe-
Englobando a etiologia, trabalha com a dialética da
rativo moral, o respeito pelo direito a ser que a
externalidade e da internalidade dos fenômenos.
cada ser humano assiste(1).
Pressupõe a realidade em um movimento sujeito a
Quanto à justiça dos tribunais, Eloísa apresen- leis, estabelecendo relação entre geral, particular e
tou queixa ao Conselho Regional de Medicina do singular. No processo saúde-doença, relaciona as
Rio de Janeiro. Tentei pela Internet saber o resulta- formas de organização social, representada pela es-
do. Consegui localizar apenas um artigo no Jornal trutura das forças produtivas e das relações de pro-
do Commércio de 18/11/2001, do jornalista José Pi- dução, com o processo de reprodução social de cada
nheiro Júnior, a respeito de erro médico e citando o grupo humano, conformado pelos processos de pro-
caso(3). Diz ele: dução e de consumo, articulados às condições es-
pecíficas das pessoas no cotidiano.
Eloísa fez queixa crime contra toda a equipe que
a atendeu e também deu entrada em um proces- A organização social é o determinante funda-
so requerendo uma reparação financeira. ‘Que- mental desse processo e se evidencia com manifes-
ro a cassação do registro profissional destes
tação da qualidade de vida dos sujeitos sociais que,
senhores que cometeram tantas negligências. Já
por sua vez, é determinada pelos processos de re-
que não posso, a princípio, por estas pessoas
na cadeia, pois não há provas de dolo, terei pelo
produção social. Cada sociedade, e nela, cada gru-
menos como vê-los fora da Medicina. Que eles po social, cria padrões de desgaste e poten-
não prejudiquem mais ninguém’ - afirma Eloísa. cialidades, manifestos através de condições negati-
vas (riscos de adoecer ou morrer) ou positivas (pos-
De outubro de 1993 a setembro de 2001 houve sibilidades de sobrevivência).
um total de 5.056 denúncias contra médicos fei-
tas ao Cremerj. Muitas eram inconsistentes, coi- Classicamente, classe social foi a categoria-
sas como atraso do médico ou incompatibilidade chave para a compreensão do processo saúde-
de gênios. Deste número, 2.380 processos pre-
doença por ser capaz de expressar as diferencia-
liminares foram instalados e 425 médicos foram
ções existentes na sociedade a partir da posição
julgados. Dezenove tiveram registros cassados
e 38 suspensos do exercício profissional por 30 do sujeito na produção da vida material. Leva a
dias... um perfil de consumo, onde adquire importância a
relação dialética entre a base e a superestrutura so-
Duas histórias, duas tragédias, dois tempos. Uma cial (locus privilegiado de formulação e veiculação
ponte os une: a da Injustiça. Por que me baseio nis- da ideologia), como fundamento para a compreen-
so para falar sobre Eqüidade? Em primeiro lugar, pelo são das necessidades humanas, agora socialmente
fato da Justiça ser um dos pilares nos quais determinadas.
dialeticamente assenta-se a Eqüidade. Em segundo,
porque a sua morte leva à derrota de Dignidade, Porém, a posição do ser na sociedade resulta da
Confiança, Responsabilidade, Auto-estima e tantos interação entre diferentes categorias, advindas,
outros valores que deveriam nortear a nossa vida. muitas vezes, de atributos biológicos que, por ex-
Creio que, como na matemática, neste caso, a ordem pressarem uma condição de desigualdade no espa-
dos fatores não altera o produto, porquanto ao fa- ço social, também determinam o “lugar social” de

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larmos de derrotas, estamos falando de seus opos- cada ser. Desta maneira, há recortes analíticos im-
tos, ou seja, da vitória da Injustiça, da Indignidade, portantes dos quais se pode lançar mão para com-
da Iniqüidade. E não é isso o que temos observado preender os fenômenos sociais e, dentre eles, o pró-
como sendo os determinantes essenciais da situa- prio processo saúde-doença, tais como a raça/ etnia, Rev Esc Enferm USP
ção de saúde das mulheres? Vamos a essa reflexão. a geração e o gênero. A incorporação dessas cate- 2005; 39(4):450-9.
gorias explica-se pelo fato da história da humanida- 3. agudização do peso da tripla carga de trabalho
Rosa Maria G. S. Fonseca
de ter sido androcêntrica, branca e adulta durante a para possibilitar condições de sobrevivência fami-
maior parte do tempo, assim como a maior parte do liar (trabalho produtivo remunerado, trabalho do-
conhecimento construído. méstico de cuidado das crianças e dos trabalhado-
res, trabalho relativo à geração de novos sujeitos
No que tange à estrutura social, a ideologia sociais sem a participação masculina). A essas, so-
neoliberal aponta que o caminho do progresso está mam-se atividades político-participativas, dado o
marcado pelo crescimento produtivo que se expres- crescente número de mulheres dos movimentos po-
sa pelo aumento das taxas de lucro e competitividade pulares e a importância desses movimentos no pro-
nos grandes negócios, obtidos às custas de um cesso de transformação social.
marcado processo de concentração e monopoliza-
ção dos meios de produção, do controle oligopólico 4. agudização da falta de bens de consumo e servi-
do mercado, submetendo os trabalhadores a condi- ços, tanto gerais como específicos para dar suporte
ções de remuneração decrescentes, sem falar na fal- às atividades femininas(6).
ta de controle e melhoria de condições de trabalho
Como resultado, observam-se diferenças mar-
subjacente ao processo de barateamento dos cus-
cantes quando são medidas as desigualdades entre
tos de produção. As mulheres têm sofrido mais tais
mulheres e homens. O IDH (Índice de Desenvolvi-
processos pela subvalorização do seu trabalho, tan-
mento Humano) desenvolvido pelo PNUD (Progra-
to no âmbito do mercado produtivo, quanto no tra-
ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
balho doméstico, historicamente feminino. Na pós-
apresenta de 1 a 3 pontos de diferença quando ajus-
modernidade, têm sido detectados vários proces-
tado ao gênero (IDG), ou seja, a situação das mulhe-
sos destrutivos da vida das mulheres:
res é sempre inferior à dos homens ou à da socieda-
1. aumento na proporção de mulheres chefes de famí- de. A partir do momento em que passaram a ser cal-
lia sem os suportes jurídicos e salariais vigentes para culados os IDG, os Relatórios de Desenvolvimento
os homens. Os dados do Censo de 2001 revelam que Humano (RDH) têm concluído, por exemplo, que:
as famílias comandadas pelas mulheres passaram de
18% em 1990 para 25% em 2001, sendo maior na Nenhuma sociedade trata tão bem suas mulhe-
res como trata seus homens (RDH, 1996, 1997)
Região Nordeste (25,9%). (FIBGE, Censo 2001). Na
cidade de São Paulo, as famílias chefiadas por mu- A igualdade entre os sexos não está neces-
lheres representam 24%, sendo que em alguns bair- sariamente associada a elevado crescimento
ros centrais como o caso da Praça da República econômico (1996)
(região ocupada predominantemente por população
de baixa renda, esta proporção chega a 38,10%)(4). A desigualdade de gênero está fortemente rela-
cionada à pobreza humana (RDH, 1997)(7).
2. agudização do processo de subvalorização do
trabalho feminino (expansão do trabalho feminino No tocante à pobreza medida através destes indi-
de baixa qualificação; feminização e conseqüente cadores, em 2000, o Brasil ocupava a 63ª posição entre
desvalorização social de algumas profissões; falta os 143 países do ranking mundial. No que tange ao
de condições seguras de trabalho para as mulheres IDG, ocupava a 66ª posição. Quando tais índices são
que, mais que os homens, se submetem a condições calculados levando-se em conta outra categoria – raça/
insalubres e deletérias como forma de comple- etnia – a situação mostra-se ainda pior. Em 1999, o
mentação orçamentária familiar em tempos de crise; Brasil, pelo IDG branco ocupava a 48ª posição e pelo
remuneração mais baixa que a dos homens pelas afrodescendente, a 91ª posição. Considerando-se os
mesmas atividades etc). No Brasil, na atualidade, as indicadores de pobreza (renda, escolaridade, expecta-
mulheres representam 44% da População Economi- tiva de vida, condições de trabalho e outros) que
camente Ativa mas recebem remuneração 41,3% medem os padrões de vida da população, as concep-
menor que a dos homens. Isso se dá apesar das ções de pobreza não devem limitar-se à insuficiência
taxas de escolarização delas serem maiores que as de renda. O conceito de pobreza humana introduzido
dos homens (42% das maiores de 15 anos terem no Relatório de Desenvolvimento Humano
concluído o II Grau, contra 26% dos homens). Na
é enfático ao afirmar que a negação de oportuni-
política, em 2001, as mulheres representavam ape-
dades mais fundamentais de desenvolvimento
nas 5,7% dos prefeitos eleitos e 11,61% dos verea- humano, como viver uma vida longa, saudável e

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dores. No Congresso Nacional, a bancada feminina criativa, com liberdade, dignidade, respeito a si e
era composta por 5 senadoras e 34 deputadas fede- aos demais, também significa expor as pessoas
rais. No Supremo Tribunal Federal (STF) pela pri- à situação de pobreza. E esta negação tem sido
Rev Esc Enferm USP
meira vez, uma mulher passou a ocupar uma vaga de a mais comum das realidades para a população
2005; 39(4):450-9. ministra, segundo dados do DIEESE, 2001(5). afro-descendente há várias gerações(7).
Na esfera do trabalho, o RDH de 1995 estimou a vivência de relações sociais racistas, com
Eqüidade de gênero e
que os trabalhos familiar e comunitário representam marcas de gênero e códigos de geração por saúde das mulheres
mais de 16 bilhões de dólares e que as mulheres são sexo, leva tanto à fragmentação da identidade
responsáveis por 11 bilhões desta produção invisí- por referência exclusivas, indirecionais, quanto
à combinações entre identidades, resultando em
vel. Em quase todos os países do mundo, mais de
significados próprios de constructos básicos de
50% das horas trabalhadas correspondem às mulhe-
cada sistema de discriminação(10).
res, sendo que nos países em desenvolvimento esta
proporção é de 53% e nos industrializados de 51%(7). Neste raciocínio está ancorada a alquimia das
relações sociais (raça, gênero e geração) sendo que
A compreensão desses processos e dos seus não ocorreria em um vacum, resultando em um tipo
efeitos sobre a saúde-doença das mulheres se dá de perfil próprio. Seus significados e re-elabora-
com a incorporação de gênero para diferenciar mu- ções, por sujeitos políticos numa trajetória de se
lheres e homens biológica e socialmente e, assim, assumirem como tal, são pautados por práticas so-
romper com a compreensão dicotomizada dos pa- ciais e projetos específicos. Assim, tal alquimia é
péis sociais, abrindo possibilidades de superar a levada a extremos em uma sociedade de classes,
subalternidade feminina. Pressupõe a compreen- onde as desigualdades estão presentes em todas
são das relações entre os sexos, diferenciando o as esferas da vida, naturalizando-se questões de
sexo biológico do social. Enquanto o primeiro re- gênero, raça, geração, filtradas por questões de clas-
fere-se às diferenças anátomo-fisiológicas – bio- se. Diluem-se identidades, percepções e ações crí-
lógicas - existentes entre os homens e as mulhe- ticas às suas lógicas. Diluindo-se as identidades,
res, o segundo diz respeito à maneira que estas dilui-se também a propriedade compreensiva dos
diferenças assumem nas diferentes sociedades, no quadros conceituais próprios a cada sistema de re-
transcorrer da história. O sexo social e historica- lações(11).
mente construído é produto das relações sociais
entre homens e mulheres. Deve ser entendido como Baseado nisto, compreende-se que o processo
elemento cons-titutivo destas relações nas quais saúde doença de Eloísa (e o de seu filho) é determi-
as diferenças são apresentadas como naturais e nado por relações de poder que a subalternizam de
inquestionáveis. A análise aprofundada de tais re- várias maneiras, no contexto social. No emaranha-
lações revela condições desiguais de exercício de do das relações sociais que geram os fatos que vão
poder, com as mulheres vêm ocupando posições compondo a história. Eloísa ocupa um lugar social
subalternas e secundárias. Gênero explica, à luz determinado por múltiplas subalternizações:
das relações de poder, as manifestações sociais
das mulheres, entre elas o processo saúde-doen- • De classe: pertence a uma classe não detentora
ça. No entanto, não pode ser usado isoladamente, dos meios de produção; está desempregada como
sob pena de se incorrer no mesmo erro apontado conseqüência da globalização excludente que
quando se falou do uso da categoria classe social. subalterniza os países do terceiro mundo; tem aces-
Propõe-se a compreensão da realidade alquimizada so a serviços de saúde de qualidade inferior às ne-
pelas diferentes categorias, ressaltando-se umas cessidades do seu momento reprodutivo (no caso,
ou outras ou a junção de várias, dependendo do independentemente de serem públicos ou privados,
fenômeno a ser iluminado(8). ao contrário inclusive do que imaginava); não tem
poder de vocalização suficiente para enfrentar o
As categorias raça, gênero e geração têm em poder instituído que é respaldado em normas
comum, serem atributos naturais, com significa- institucionais que têm a finalidade de defender e
dos políticos, culturais e econômicos, organiza-
justificar os problemas da instituição, ao invés de
dos por hierarquias, privilégios e desigualdades,
garantir a qualidade da assistência prestada aos
amparados por símbolos particulares e
naturalizados (...) A combinação de categorias é
usuários do sistema de saúde. Apesar de ter cons-
de fácil comprovação, já o seu produto leva a ciência do seu direito a uma assistência à saúde de
outros resultados e o seu conhecimento exige qualidade, equivoca-se ao pensar que isto pode ser
saber que se inicia por ruptura com os esquemas conseguido em hospitais que atendem convênios
duais(9). particulares, ao invés de hospitais públicos. Sente-
se culpada por não ter aceito ajuda do irmão, como
O que se quer dizer é que a determinação dos conseqüência deste engano.

455
fenômenos sociais subjaz à inter-articulação entre
diferentes categorias, com a emergência ora de uma, • De gênero: assume sozinha o ônus da gestação
ora de outra, de acordo com a subjetividade (sem fazer referência ao pai do concepto), como a
construída. Com relação a isso, é importante notar maior parte das mulheres que engravidam fora de
Rev Esc Enferm USP
que uma relação marital estável; seu corpo encontra-se 2005; 39(4):450-9.
exposto às vontades e desejos masculinos dos mé- tados como sujeitos sociais e cidadãos, ao contrá-
Rosa Maria G. S. Fonseca
dicos que supervalorizam o lazer ou o cumprimento rio de meros indivíduos despossuídos. Como ci-
de deveres relacionados à vida material, em detri- dadãos porque, ao contrário dos consumidores,
mento da responsabilidade profissional (carnaval, não podem ser abandonados à própria sorte, às
pagamento de contas etc); suas necessidades rela- próprias possibilidades individuais dadas pelo seu
cionadas à reprodução biológica tida como natural poder aquisitivo e, como sujeitos históricos, por-
(parto e trabalho de parto) são desvalorizadas; seu que suas demandas não são fixas, mas mutáveis
corpo (feminino) é apropriado pela medicina (práti- ao longo do tempo(13).
ca masculina e hegemônica no tecido social – o
status do médico é comparável ao status de um Pressupõe ações orientadas segundo a
semideus - tudo pode porque tudo sabe...). Na situ- alocação equilibrada de recursos, de acordo com o
ação, observam-se relações de poder assimétricas nível de necessidades dos grupos sociais, a serem
dentro da própria equipe médica, com evidente atendidas não só pelo setor saúde, mas por todos
subalternização das mulheres médicas, revelando os demais, articulados, com a finalidade de melho-
dominação de gênero (homens médicos X mulheres rar a qualidade de vida e não atingir, apenas e dire-
médicas e de saber (residente de maior nível X resi- tamente, os níveis de saúde através do
dente de menor nível). No caso de Eloísa, as médi- enfrentamento direto dos agravos.
cas tentam reverter a situação demonstrando, às Mais que estar contida em um programa de go-
vezes, compreender a dor da paciente e a verno, a eqüidade (...) deve ser continuamente
intransigência dos médicos, porém sem sucesso. pensada e posta em prática(14).

• De saber/fazer: por deter um saber/fazer Realista, no entanto, Laura Tavares Soares(15)


empírico, não científico, sobre o corpo e seus pro- afirma:
cessos, suas observações são desvalorizadas bem
como as sugestões e solicitações de assistência Existe uma submissão dos princípios de eqüi-
que são suplantadas pelas observações, determi- dade e universalidade às chamadas ‘restrições
econômicas’. Esses princípios têm sido siste-
nações e decisões médicas, baseadas no conhe-
maticamente desqualificados como ‘utópicos’ ou
cimento científico. A subalternidade de saber re-
‘irrealizáveis’. Esta postura é exatamente aque-
flete relações de poder hierárquica e assime- la que reduz as políticas sociais a algo emer-
tricamente situadas entre profissionais e não pro- gencial, tópico e residual, sempre priorizando
fissionais, saber científico e popular, práticas de as chamadas ‘inovações gerenciais’ e ‘racio-
saúde aceitáveis e não aceitáveis, válidas e não nalização dos custos’, quase sempre associa-
válidas, verdadeiras e não verdadeiras. A partici- das a estratégias que têm resultado na
pação solicitada refere-se unicamente a aceitar o privatização e na redução da oferta de servi-
que está sendo feito sem reclamar. ços e benefícios públicos. É claro que isto tem
sido justificado em nome das possibilidades eco-
nômicas, as quais, na realidade, são também
O PRINCÍPIO DA EQÜIDADE E
produto de políticas deliberadas, cujas
O RESGATE DA ESPERANÇA pretensas conseqüências benéficas são sem-
pre postergadas para um futuro remoto (...).
O quadro é de uma intensa e profunda desigual- Universalidade e eqüidade significam dar
dade. Por si só, clama por Justiça. O estado da arte garantia de acesso aos bens e serviços públi-
do conhecimento em saúde aponta para a supera- cos essenciais e oportunidades de ter condi-
ção pela via da eqüidade. Para tanto, questiona-se: ções dignas de vida àqueles excluídos da pos-
eqüidade em saúde, eqüidade de gênero em saú- sibilidade de adquirir esses bens e serviços
pelo mercado(15).
de: o que é isto? Eqüidade em saúde é entendida
como a superação das desigualdades que, num con- Para ela, o elo entre universalidade e eqüidade
texto histórico e social, são evitáveis e considera- seria o direito que todos os cidadãos têm, pelo
das injustas, implicando que necessidades diferen- simples fato de serem cidadãos, de receberem se-
ciadas da população sejam atendidas por meio de gundo suas necessidades e de contribuírem segun-
ações governamentais diferenciadas(12). Este con- do suas possibilidades. Respeitar o princípio da
ceito apóia-se no entendimento de que as desigual- eqüidade significa que os que têm mais devem con-
dades não são naturais, mas determinadas pelo pro- tribuir mais para que sejam redistribuídas as rique-

456
cesso histórico social de cada sociedade (que arti- zas e as oportunidades(15).
cula dialeticamente modo de produção e superes-
trutura jurídico-político e ideológica) e que, ao lon- No campo sanitário, deve-se distinguir eqüida-
Rev Esc Enferm USP
go da história, as classes sociais subalternas con- de em saúde, referente à igualdade nas condições
2005; 39(4):450-9. quistaram o direito de seus integrantes serem tra- de adoecer e morrer, de eqüidade no consumo de
serviços de saúde, referente ao montante de recur- Recentemente, as agências internacionais (OMS,
Eqüidade de gênero e
sos destinados a cada grupo, condição importante, OPS), tanto quanto as nacionais (Ministério, Secre- saúde das mulheres
mas não suficiente para diminuir as desigualdades tarias Estaduais e Municipais de Saúde) vêm reco-
que há entre os grupos, no processo de adoecer e nhecendo as condições de iniqüidade em que vi-
morrer(16). vem as mulheres, como base do seu processo saú-
de-doença, passando a incluir gênero na formula-
No caso das mulheres, a despeito das mudan- ção das políticas sociais. No Brasil, o programa mais
ças sociais e econômicas, nos relacionamentos, na significativo foi o PAISM (Programa de Assistência
vida cotidiana e nas percepções simbólicas do sé- Integral à Saúde da Mulher), de 1983, que rompeu
culo 20 conseqüentes à “revolução feminina” (5), é com a visão de mulher como repro-dutora de corpos
amplamente reconhecido que ocupam um lugar de para o trabalho e cuja função a ser recuperada ou
subalternidade social, tendo como conseqüência preservada pelo setor saúde, deveria ser a
serem ainda cidadãs de segunda categoria, no di- reprodutivo-biológica. Quanto à imple-mentação das
zer de Simone de Beauvoir. Tal condição reflete-se políticas, as conquistas são pouco expressivas, não
diretamente nas condições de adoecer e morrer, tan- redundando em mudanças dos perfis epidemioló-
to quanto no consumo dos serviços de saúde que, gicos dos grupos sociais desprivilegiados ou de
às vezes, são tão deletérios quanto as condições de minoria de poder.
vida que determinam os agravos. Comprovam isto,
os dados acerca de problemas evitáveis no que tan- A indicação da OPS/OMS para os Ministérios
ge às condições de assistência à mãe e ao concepto da Saúde ou órgãos correspondentes dos países
no momento do parto, como Eloísa e Bernardo. Pior membros é de que eqüidade é um conceito ético
que as estatísticas de morbi-mortalidade, é a natura- associado aos princípios de justiça social e de di-
lização disto, materializada no descaso dos setores, reitos humanos. Não é o mesmo que igualdade. A
seja o da saúde, responsável pelas políticas públi- noção de iniqüidade, por sua vez, refere-se às desi-
cas específicas, seja o jurídico, responsável pela gualdades consideradas desnecessárias, evitáveis
punição dos culpados. Já me referi ao andamento e injustas. Em termos operacionais, a eqüidade se
do processo movido por Eloísa junto ao CRM do traduz na minimização de disparidades evitáveis na
Rio de Janeiro que, até agora, não resultou em medi- saúde e seus determinantes – incluindo, porém não
da alguma contra os médicos ou o hospital onde foi se limitando à atenção em saúde – entre grupos de
atendida. pessoas que possuem diferentes níveis de privilé-
gio social(19-21).
Contra isto, a luta das mulheres pela cidadania,
iniciada na França, no século 18, por Olympe de Com base nisto, a eqüidade de gênero implica:
Gouges(17), nos últimos 50 anos incluiu a luta dos
direitos pela saúde, dentre as reivindicações por a) No estado de saúde – eliminação das diferenças
melhores condições, resultantes da compreensão desnecessárias, injustas e evitáveis entre homens e
de que a iniqüidade de gênero leva à feminização da mulheres, em relação às oportunidades de desfrutar
pobreza e à precariedade da vida. a saúde e as probabilidades de adoecer,
descapacitar-se ou morrer por causas preveníveis.
A partir dos anos 90, a pobreza vista no contex-
to das relações de gênero passou a conformar uma b) No acesso e utilização dos serviços de saúde: a
nova análise das experiências de vida das mulheres, alocação de recursos (tecnológicos, financeiros e hu-
que constituem um grupo crescente entre os po- manos), não segundo um sistema de cotas iguais en-
bres das sociedades latinoamericanas. As análises tre mulheres e homens, mas segundo critérios diferen-
qualitativas constataram que as relações de gênero ciais, de acordo com as necessidades de cada sexo.
exacerbam as desigualdades associadas às classes Implica que mulheres e homens não tenham só acesso
sociais e fizeram emergir situações como a distribui- teórico mas que recebam, efetivamente, atenção de
ção desigual de alimentos no interior das famílias, a qualidade, de acordo com suas necessidades.
desvalorização do corpo feminino e a sobrecarga de
c) No financiamento da atenção: que tanto mulhe-
trabalho que incide sobre as mulheres. A precarie-
res como homens contribuam de acordo com sua
dade da situação social das mulheres passou a ser
capacidade econômica e não com suas necessida-
vista como resultante da divisão sexual do trabalho,
des, ou seja, que as mulheres não tenham que con-
de menores oportunidades em termos de educação,
tribuir mais em razão de sua maior necessidade de

457
de situações de trabalho instáveis e com menor re-
atenção à saúde.
muneração, de níveis inferiores de saúde e bem-
estar, de reduzida participação nas decisões (tanto d) No balanço entre contribuições e recompensas
no âmbito privado como no público, mas especial- na produção de saúde: que se reconheça, facilite, Rev Esc Enferm USP
mente, neste) e de limitada autonomia pessoal(18). valorize e distribua de maneira justa o trabalho de 2005; 39(4):450-9.
cuidado da saúde, remunerado ou gratuito. Que c) de converter gênero em mais um modismo dentre os
Rosa Maria G. S. Fonseca
mulheres e homens participem igualmente nas deci- que de tempos em tempos permeiam a produção aca-
sões sobre alocação de recursos nas esferas micro dêmica e as políticas dos órgãos responsáveis pela
e macro do sistema de saúde. assistência à saúde da população e que implicam mais
em mudanças de forma (terminologias, conceitos e
Os documentos oficiais contêm as diretrizes para suportes teóricos) que das práticas de saúde, em es-
a incorporação da categoria gênero nas políticas pecial, porque as mudanças ficam restritas aos pensa-
voltadas para a saúde das mulheres valorizando: dores ou às instâncias superiores, sem alcançar os
diretamente responsáveis pelas ações em saúde.
1) criação e uso de indicadores de gênero para a cons-
trução dos perfis de saúde-doença de grupos popu- d) de transformar gênero em mais uma versão bana-
lacionais e monitoramento das condições de saúde; lizada de assistência à saúde das mulheres para torná-
2) estabelecimento de estratégias para o enfren- las cada vez mais dependentes da ciência e da medi-
tamento dos problemas de saúde evitáveis, em es- calização do corpo, principalmente, no que tange aos
pecial os que influenciam na capacidade reprodutiva seus processos fisiológicos, para que não atrapa-
das mulheres; lhem a expansão dos papéis femininos no espaço
público, ainda restrito quase exclusivamente aos
3) criação e uso de indicadores para embasar a homens mas que, quando ocupado por mulheres
destinação de recursos para enfrentar os problemas estas, comprovadamente, o fazem com maior eficiên-
de saúde das mulheres, baseados em medidas pro- cia e qualidade, portanto, com maiores produtivida-
tecionistas ou discriminatórias positivas; de e possibilidade de geração de riqueza.
4) uso de metodologias específicas para embasar a
Adotar a eqüidade de gênero como um concei-
investigação em saúde sob o recorte de gênero, com
to ético associado aos princípios de justiça social
transferência de conhecimento para outros países e
e de direitos humanos não implica em desmerecer
regiões.
ou desvestir de direitos os homens para privilegiar
Porém, alguns riscos parecem ser inerentes à as mulheres. Trata-se de re-olhar, com esmero e cui-
adoção de visões inovadoras e revolucionárias. No dado, a situação de milhares de mulheres que so-
caso de gênero, podem ser citados os riscos: frem iniqüidades no cotidiano, indignar-se com isso
e mover-se para as transformações, sem confundir
a) de contrapor homens e mulheres, beneficiando o direito à assistência digna e respeitável por se-
as últimas em detrimento dos primeiros, estando am- rem, antes de tudo, cidadãs, com o imperativo de tê-
bos em situação de subalternidade de classe e, por- las hígidas e produtivas, por serem geradoras e
tanto, expostos a riscos de adoecer e morrer que os mantenedoras da força de trabalho presente e futu-
assemelham por encontrarem-se em situação de ex- ra, portanto, de quem a sociedade depende para a
clusão, determinada na dimensão mais geral da es- geração de riqueza social. Com os pés calcados na
trutura social (modo de produção e superestrutura), realidade do que as mulheres representam na atua-
pouco afeita a transformações efetivas. lidade, em termos de lócus de exercício de cidada-
b) de camuflar o enfrentamento das questões de nia e de produção e reprodução social, mais que na
gênero, investindo somente no atendimento das idealização inatingível da felicidade individual e co-
necessidades relativas às funções e papéis femini- letiva, descontextualizada e ahistórica, cidadãs-tra-
nos, histórica e socialmente determinados, (neces- balhadoras devem ser atendidas de acordo com as
sidades intrínsecas de gênero) em detrimento de necessidades do seu perfil de saúde-doença, com-
investimentos nas necessidades estratégicas de preendidas à luz da sua condição de gênero, situa-
gênero (relacionadas à revisão e transformação de ção de classe, perfil de geração e outros recortes
papéis e funções), sem mudar a qualidade de vida analíticos, para que os sinos possam finalmente
das mulheres. dobrar em júbilo quando a Justiça voltar a reinar.

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Correspondência:
Rosa Maria G.S. Fonseca
Av. Dr. Enéas de
Carvalho Aguiar, 419
Cerqueira César - São Paulo
CEP - 05403-000- SP

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