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Justiça social. Social justice. Justicia social.
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aldeia tem exacto tamanho do mundo para quem
e repouso.
sempre nela viveu) a morte da Justiça...
8 de fevereiro de 1996: à tarde, as dores reco-
A história vivida por Eloísa Moreira de meçam piorando à noite. Às 21h30 min elimino um
Rev Esc Enferm USP
Moraes(2) consta de um diário onde ela registrou a tampão de sangue. Tento um táxi, mas a chuva 2005; 39(4):450-9.
afugenta os motoristas. Apelo para minha irmã levado por dois pediatras sem que eu o veja. (...)
Rosa Maria G. S. Fonseca
que chega às 23 h. Uma hora depois, estamos no informa que ele tem 53 centímetros, 3,5 quilos e
hospital. Só que não há vaga. A minha irmã mora duas voltas do cordão umbilical enroladas no
perto, mas as ruas inundadas dificultam a volta. pescoço. São 13h22min. Já na enfermaria, sou
Em casa, vou para a banheira, na esperança que procurada por (...) [médica]. Ela confirma que
a água morna diminua as dores. Bernardo está mal: teve sofrimento fetal agudo,
duas crises convulsivas. Foi reanimado. Está em
9 de fevereiro de 1996: de madrugada, as do- coma profundo. Vou mandar enfaixar seus seios
res aumentam e, às 2:20hs estamos de volta ao e dar um remédio para inibir a descida do leite.
Fernandes Figueira. A cada reclamação, recei-
tam Buscopan. O dia amanhece e chamo a médi- Segue contando sua revolta, as tentativas de
ca de plantão. Após o exame de toque, ela diz acompanhar o estado de saúde do filho, as denún-
que a dilatação já é suficiente. Vou para a sala de cias da precariedade do atendimento (que vão des-
pré-parto, onde estão quatro médicos residen- de a falta de lavagem das mãos das pessoas que
tes. O residente (...) que comandará o parto, diz
atendem a criança até tentativas de intimidar Eloísa,
que ainda não é hora de Bernardo nascer. En-
pelas suas reações) e culmina com a narrativa emo-
quanto isso, conversa com o colega (...). Os dois
falam sentados na minha cama, gesticulando o
cionada da morte da criança:
tempo todo, como se estivessem numa sala de 5 de julho de 1996: Às 13 horas, os batimentos
estar. A terceira residente (...) faz outro exame cardíacos diminuem, o residente começa a desli-
de toque e alerta (...): ‘a dilatação aumentou, mas gar o monitor. ‘Não toque nele’, falo. Ele explica
o bebê não desce...’ O anestesista (...) não con- que só quer retirar o aparelho. Eu me calo até
segue aplicar o cateter para injetar a primeira que Bernardo desiste. O médico sugere que eu
dose de anestesia. O motivo: a cama balança saia, enquanto aprontam meu filho. Exijo ficar
com a animação da conversa entre (...) [os dois sozinha. Aproximo-me de Bernardo, acaricio seu
médicos] que discutem os planos para o Carna- rostinho e peço desculpas por não ter aceito a
val. O anestesista pede que os dois saiam. Nova sugestão do tio de um hospital particular.
espera. (...) [o primeiro médico] volta e tenta
iniciar o parto. (...)[o segundo médico] manda [O que Eloísa não sabe é que dependendo do
colocar medicação no soro para aumentar as hospital particular, o atendimento poderia ser igual
contrações. Ao mesmo tempo, diz a (...) [médica] ou pior e que somente os hospitais de primeira li-
que ele precisa ir ao banco pagar o Credicard.
nha, destinados à população mais rica, possuem um
(...) sai e volta reclamando que o tal cheque ain-
atendimento compatível com as necessidades da
da está sendo compensado e a gerência não
liberou o pagamento. Mas o Carnaval, daí uma
mãe e do concepto, para prevenir situações como
semana, vai ser mesmo na Bahia. ‘E a escala de esta – observação minha]
plantão? Está tudo certo?’ Comigo não. Peço a
Saio da enfermaria e recuso o calmante. A enfer-
(...) [médica] que consiga mais anestesia, as
meira avisa que é preciso descer com ele, mas
dores são tão fortes. Aplicam a segunda dose.
impeço: ‘Eu levo’. Carrego meu filho no colo, espero
‘Você está com medo de mim?’, pergunta (...) [o
na capela pelo atestado de óbito. Deixo de vez o
primeiro médico] . ‘Você precisa participar’. (...)
hospital, 147 dias depois daquela noite de chuva.
[a médica] sugere que passem para a cesaria-
na. ‘Nos meus últimos plantões só deu cesárea’, Na história de Saramago, não se sabe o que ocor-
desvia (...)[o primeiro médico]. ‘Aposto que este reu depois do camponês conclamar seus patrícios
vai nascer por via baixa’. Nova espera, nova através do dobrar dos sinos. O próprio autor conclui:
sugestão de (...) [médica] para a cesariana.
(...)[outra médica] conversa com (...)[médica]. Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço
(...) [o primeiro médico] não cede: ‘Vai ser nor- popular foi ajudar o camponês a repor as estremas
mal’. Às 12h30, dez horas após o início do traba- nos seus sítios ou se os vizinhos, uma vez que a
lho de parto, (...)[a outra médica] recomenda a Justiça havia sido declarada defunta, regressa-
cesariana. Pela penúltima vez, (...)[o primeiro ram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbi-
médico] insiste no parto normal. Após 20 minu- da à triste vida de todos os dias. É bem certo que
tos, ela descobre que o coração de Bernardo a História nunca nos conta tudo... (...) Nunca mais
parou de bater. De costas para mim, [o primeiro tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia
médico] (...) confere o exame. Ignorando o apelo de Florença, mas a Justiça continuou e continua a
de (...) [médica], diz que vão tentar por mais 10 morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instan-
minutos. Passado o prazo, pressiona a minha te, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa,
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barriga, mas Bernardo não se mexe. A compres- alguém a está matando. De cada vez que morre, é
são dos órgãos me deixa sem ar e recebo oxigê- como se afinal nunca tivesse existido para aque-
nio para retomar a respiração. É feita então uma les que nela tinham confiado, para aqueles que
Rev Esc Enferm USP cesariana, em fração de segundos. No centro dela esperavam o que da Justiça todos temos o
2005; 39(4):450-9. cirúrgico, tudo é rápido. Bernardo não chora. É direito de esperar: Justiça, simplesmente Justiça.
No caso de Eloísa, os sinos teriam que tocar MARIA E JOÃO: EXISTÊNCIAS DIFERENTES,
Eqüidade de gênero e
Finados duplamente: pela morte de Bernardo e pela DIREITOS IGUAISUMA TEORIA TENTA saúde das mulheres
morte da Dignidade da sua mãe. Isso, em se tratan- EXPLICAR VIDA - MORTE, SAÚDE - DOENÇA
do da Justiça... DE MULHERES E HOMENS
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larmos de derrotas, estamos falando de seus opos- cada ser. Desta maneira, há recortes analíticos im-
tos, ou seja, da vitória da Injustiça, da Indignidade, portantes dos quais se pode lançar mão para com-
da Iniqüidade. E não é isso o que temos observado preender os fenômenos sociais e, dentre eles, o pró-
como sendo os determinantes essenciais da situa- prio processo saúde-doença, tais como a raça/ etnia, Rev Esc Enferm USP
ção de saúde das mulheres? Vamos a essa reflexão. a geração e o gênero. A incorporação dessas cate- 2005; 39(4):450-9.
gorias explica-se pelo fato da história da humanida- 3. agudização do peso da tripla carga de trabalho
Rosa Maria G. S. Fonseca
de ter sido androcêntrica, branca e adulta durante a para possibilitar condições de sobrevivência fami-
maior parte do tempo, assim como a maior parte do liar (trabalho produtivo remunerado, trabalho do-
conhecimento construído. méstico de cuidado das crianças e dos trabalhado-
res, trabalho relativo à geração de novos sujeitos
No que tange à estrutura social, a ideologia sociais sem a participação masculina). A essas, so-
neoliberal aponta que o caminho do progresso está mam-se atividades político-participativas, dado o
marcado pelo crescimento produtivo que se expres- crescente número de mulheres dos movimentos po-
sa pelo aumento das taxas de lucro e competitividade pulares e a importância desses movimentos no pro-
nos grandes negócios, obtidos às custas de um cesso de transformação social.
marcado processo de concentração e monopoliza-
ção dos meios de produção, do controle oligopólico 4. agudização da falta de bens de consumo e servi-
do mercado, submetendo os trabalhadores a condi- ços, tanto gerais como específicos para dar suporte
ções de remuneração decrescentes, sem falar na fal- às atividades femininas(6).
ta de controle e melhoria de condições de trabalho
Como resultado, observam-se diferenças mar-
subjacente ao processo de barateamento dos cus-
cantes quando são medidas as desigualdades entre
tos de produção. As mulheres têm sofrido mais tais
mulheres e homens. O IDH (Índice de Desenvolvi-
processos pela subvalorização do seu trabalho, tan-
mento Humano) desenvolvido pelo PNUD (Progra-
to no âmbito do mercado produtivo, quanto no tra-
ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
balho doméstico, historicamente feminino. Na pós-
apresenta de 1 a 3 pontos de diferença quando ajus-
modernidade, têm sido detectados vários proces-
tado ao gênero (IDG), ou seja, a situação das mulhe-
sos destrutivos da vida das mulheres:
res é sempre inferior à dos homens ou à da socieda-
1. aumento na proporção de mulheres chefes de famí- de. A partir do momento em que passaram a ser cal-
lia sem os suportes jurídicos e salariais vigentes para culados os IDG, os Relatórios de Desenvolvimento
os homens. Os dados do Censo de 2001 revelam que Humano (RDH) têm concluído, por exemplo, que:
as famílias comandadas pelas mulheres passaram de
18% em 1990 para 25% em 2001, sendo maior na Nenhuma sociedade trata tão bem suas mulhe-
res como trata seus homens (RDH, 1996, 1997)
Região Nordeste (25,9%). (FIBGE, Censo 2001). Na
cidade de São Paulo, as famílias chefiadas por mu- A igualdade entre os sexos não está neces-
lheres representam 24%, sendo que em alguns bair- sariamente associada a elevado crescimento
ros centrais como o caso da Praça da República econômico (1996)
(região ocupada predominantemente por população
de baixa renda, esta proporção chega a 38,10%)(4). A desigualdade de gênero está fortemente rela-
cionada à pobreza humana (RDH, 1997)(7).
2. agudização do processo de subvalorização do
trabalho feminino (expansão do trabalho feminino No tocante à pobreza medida através destes indi-
de baixa qualificação; feminização e conseqüente cadores, em 2000, o Brasil ocupava a 63ª posição entre
desvalorização social de algumas profissões; falta os 143 países do ranking mundial. No que tange ao
de condições seguras de trabalho para as mulheres IDG, ocupava a 66ª posição. Quando tais índices são
que, mais que os homens, se submetem a condições calculados levando-se em conta outra categoria – raça/
insalubres e deletérias como forma de comple- etnia – a situação mostra-se ainda pior. Em 1999, o
mentação orçamentária familiar em tempos de crise; Brasil, pelo IDG branco ocupava a 48ª posição e pelo
remuneração mais baixa que a dos homens pelas afrodescendente, a 91ª posição. Considerando-se os
mesmas atividades etc). No Brasil, na atualidade, as indicadores de pobreza (renda, escolaridade, expecta-
mulheres representam 44% da População Economi- tiva de vida, condições de trabalho e outros) que
camente Ativa mas recebem remuneração 41,3% medem os padrões de vida da população, as concep-
menor que a dos homens. Isso se dá apesar das ções de pobreza não devem limitar-se à insuficiência
taxas de escolarização delas serem maiores que as de renda. O conceito de pobreza humana introduzido
dos homens (42% das maiores de 15 anos terem no Relatório de Desenvolvimento Humano
concluído o II Grau, contra 26% dos homens). Na
é enfático ao afirmar que a negação de oportuni-
política, em 2001, as mulheres representavam ape-
dades mais fundamentais de desenvolvimento
nas 5,7% dos prefeitos eleitos e 11,61% dos verea- humano, como viver uma vida longa, saudável e
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dores. No Congresso Nacional, a bancada feminina criativa, com liberdade, dignidade, respeito a si e
era composta por 5 senadoras e 34 deputadas fede- aos demais, também significa expor as pessoas
rais. No Supremo Tribunal Federal (STF) pela pri- à situação de pobreza. E esta negação tem sido
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meira vez, uma mulher passou a ocupar uma vaga de a mais comum das realidades para a população
2005; 39(4):450-9. ministra, segundo dados do DIEESE, 2001(5). afro-descendente há várias gerações(7).
Na esfera do trabalho, o RDH de 1995 estimou a vivência de relações sociais racistas, com
Eqüidade de gênero e
que os trabalhos familiar e comunitário representam marcas de gênero e códigos de geração por saúde das mulheres
mais de 16 bilhões de dólares e que as mulheres são sexo, leva tanto à fragmentação da identidade
responsáveis por 11 bilhões desta produção invisí- por referência exclusivas, indirecionais, quanto
à combinações entre identidades, resultando em
vel. Em quase todos os países do mundo, mais de
significados próprios de constructos básicos de
50% das horas trabalhadas correspondem às mulhe-
cada sistema de discriminação(10).
res, sendo que nos países em desenvolvimento esta
proporção é de 53% e nos industrializados de 51%(7). Neste raciocínio está ancorada a alquimia das
relações sociais (raça, gênero e geração) sendo que
A compreensão desses processos e dos seus não ocorreria em um vacum, resultando em um tipo
efeitos sobre a saúde-doença das mulheres se dá de perfil próprio. Seus significados e re-elabora-
com a incorporação de gênero para diferenciar mu- ções, por sujeitos políticos numa trajetória de se
lheres e homens biológica e socialmente e, assim, assumirem como tal, são pautados por práticas so-
romper com a compreensão dicotomizada dos pa- ciais e projetos específicos. Assim, tal alquimia é
péis sociais, abrindo possibilidades de superar a levada a extremos em uma sociedade de classes,
subalternidade feminina. Pressupõe a compreen- onde as desigualdades estão presentes em todas
são das relações entre os sexos, diferenciando o as esferas da vida, naturalizando-se questões de
sexo biológico do social. Enquanto o primeiro re- gênero, raça, geração, filtradas por questões de clas-
fere-se às diferenças anátomo-fisiológicas – bio- se. Diluem-se identidades, percepções e ações crí-
lógicas - existentes entre os homens e as mulhe- ticas às suas lógicas. Diluindo-se as identidades,
res, o segundo diz respeito à maneira que estas dilui-se também a propriedade compreensiva dos
diferenças assumem nas diferentes sociedades, no quadros conceituais próprios a cada sistema de re-
transcorrer da história. O sexo social e historica- lações(11).
mente construído é produto das relações sociais
entre homens e mulheres. Deve ser entendido como Baseado nisto, compreende-se que o processo
elemento cons-titutivo destas relações nas quais saúde doença de Eloísa (e o de seu filho) é determi-
as diferenças são apresentadas como naturais e nado por relações de poder que a subalternizam de
inquestionáveis. A análise aprofundada de tais re- várias maneiras, no contexto social. No emaranha-
lações revela condições desiguais de exercício de do das relações sociais que geram os fatos que vão
poder, com as mulheres vêm ocupando posições compondo a história. Eloísa ocupa um lugar social
subalternas e secundárias. Gênero explica, à luz determinado por múltiplas subalternizações:
das relações de poder, as manifestações sociais
das mulheres, entre elas o processo saúde-doen- • De classe: pertence a uma classe não detentora
ça. No entanto, não pode ser usado isoladamente, dos meios de produção; está desempregada como
sob pena de se incorrer no mesmo erro apontado conseqüência da globalização excludente que
quando se falou do uso da categoria classe social. subalterniza os países do terceiro mundo; tem aces-
Propõe-se a compreensão da realidade alquimizada so a serviços de saúde de qualidade inferior às ne-
pelas diferentes categorias, ressaltando-se umas cessidades do seu momento reprodutivo (no caso,
ou outras ou a junção de várias, dependendo do independentemente de serem públicos ou privados,
fenômeno a ser iluminado(8). ao contrário inclusive do que imaginava); não tem
poder de vocalização suficiente para enfrentar o
As categorias raça, gênero e geração têm em poder instituído que é respaldado em normas
comum, serem atributos naturais, com significa- institucionais que têm a finalidade de defender e
dos políticos, culturais e econômicos, organiza-
justificar os problemas da instituição, ao invés de
dos por hierarquias, privilégios e desigualdades,
garantir a qualidade da assistência prestada aos
amparados por símbolos particulares e
naturalizados (...) A combinação de categorias é
usuários do sistema de saúde. Apesar de ter cons-
de fácil comprovação, já o seu produto leva a ciência do seu direito a uma assistência à saúde de
outros resultados e o seu conhecimento exige qualidade, equivoca-se ao pensar que isto pode ser
saber que se inicia por ruptura com os esquemas conseguido em hospitais que atendem convênios
duais(9). particulares, ao invés de hospitais públicos. Sente-
se culpada por não ter aceito ajuda do irmão, como
O que se quer dizer é que a determinação dos conseqüência deste engano.
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fenômenos sociais subjaz à inter-articulação entre
diferentes categorias, com a emergência ora de uma, • De gênero: assume sozinha o ônus da gestação
ora de outra, de acordo com a subjetividade (sem fazer referência ao pai do concepto), como a
construída. Com relação a isso, é importante notar maior parte das mulheres que engravidam fora de
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que uma relação marital estável; seu corpo encontra-se 2005; 39(4):450-9.
exposto às vontades e desejos masculinos dos mé- tados como sujeitos sociais e cidadãos, ao contrá-
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dicos que supervalorizam o lazer ou o cumprimento rio de meros indivíduos despossuídos. Como ci-
de deveres relacionados à vida material, em detri- dadãos porque, ao contrário dos consumidores,
mento da responsabilidade profissional (carnaval, não podem ser abandonados à própria sorte, às
pagamento de contas etc); suas necessidades rela- próprias possibilidades individuais dadas pelo seu
cionadas à reprodução biológica tida como natural poder aquisitivo e, como sujeitos históricos, por-
(parto e trabalho de parto) são desvalorizadas; seu que suas demandas não são fixas, mas mutáveis
corpo (feminino) é apropriado pela medicina (práti- ao longo do tempo(13).
ca masculina e hegemônica no tecido social – o
status do médico é comparável ao status de um Pressupõe ações orientadas segundo a
semideus - tudo pode porque tudo sabe...). Na situ- alocação equilibrada de recursos, de acordo com o
ação, observam-se relações de poder assimétricas nível de necessidades dos grupos sociais, a serem
dentro da própria equipe médica, com evidente atendidas não só pelo setor saúde, mas por todos
subalternização das mulheres médicas, revelando os demais, articulados, com a finalidade de melho-
dominação de gênero (homens médicos X mulheres rar a qualidade de vida e não atingir, apenas e dire-
médicas e de saber (residente de maior nível X resi- tamente, os níveis de saúde através do
dente de menor nível). No caso de Eloísa, as médi- enfrentamento direto dos agravos.
cas tentam reverter a situação demonstrando, às Mais que estar contida em um programa de go-
vezes, compreender a dor da paciente e a verno, a eqüidade (...) deve ser continuamente
intransigência dos médicos, porém sem sucesso. pensada e posta em prática(14).
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cesso histórico social de cada sociedade (que arti- zas e as oportunidades(15).
cula dialeticamente modo de produção e superes-
trutura jurídico-político e ideológica) e que, ao lon- No campo sanitário, deve-se distinguir eqüida-
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go da história, as classes sociais subalternas con- de em saúde, referente à igualdade nas condições
2005; 39(4):450-9. quistaram o direito de seus integrantes serem tra- de adoecer e morrer, de eqüidade no consumo de
serviços de saúde, referente ao montante de recur- Recentemente, as agências internacionais (OMS,
Eqüidade de gênero e
sos destinados a cada grupo, condição importante, OPS), tanto quanto as nacionais (Ministério, Secre- saúde das mulheres
mas não suficiente para diminuir as desigualdades tarias Estaduais e Municipais de Saúde) vêm reco-
que há entre os grupos, no processo de adoecer e nhecendo as condições de iniqüidade em que vi-
morrer(16). vem as mulheres, como base do seu processo saú-
de-doença, passando a incluir gênero na formula-
No caso das mulheres, a despeito das mudan- ção das políticas sociais. No Brasil, o programa mais
ças sociais e econômicas, nos relacionamentos, na significativo foi o PAISM (Programa de Assistência
vida cotidiana e nas percepções simbólicas do sé- Integral à Saúde da Mulher), de 1983, que rompeu
culo 20 conseqüentes à “revolução feminina” (5), é com a visão de mulher como repro-dutora de corpos
amplamente reconhecido que ocupam um lugar de para o trabalho e cuja função a ser recuperada ou
subalternidade social, tendo como conseqüência preservada pelo setor saúde, deveria ser a
serem ainda cidadãs de segunda categoria, no di- reprodutivo-biológica. Quanto à imple-mentação das
zer de Simone de Beauvoir. Tal condição reflete-se políticas, as conquistas são pouco expressivas, não
diretamente nas condições de adoecer e morrer, tan- redundando em mudanças dos perfis epidemioló-
to quanto no consumo dos serviços de saúde que, gicos dos grupos sociais desprivilegiados ou de
às vezes, são tão deletérios quanto as condições de minoria de poder.
vida que determinam os agravos. Comprovam isto,
os dados acerca de problemas evitáveis no que tan- A indicação da OPS/OMS para os Ministérios
ge às condições de assistência à mãe e ao concepto da Saúde ou órgãos correspondentes dos países
no momento do parto, como Eloísa e Bernardo. Pior membros é de que eqüidade é um conceito ético
que as estatísticas de morbi-mortalidade, é a natura- associado aos princípios de justiça social e de di-
lização disto, materializada no descaso dos setores, reitos humanos. Não é o mesmo que igualdade. A
seja o da saúde, responsável pelas políticas públi- noção de iniqüidade, por sua vez, refere-se às desi-
cas específicas, seja o jurídico, responsável pela gualdades consideradas desnecessárias, evitáveis
punição dos culpados. Já me referi ao andamento e injustas. Em termos operacionais, a eqüidade se
do processo movido por Eloísa junto ao CRM do traduz na minimização de disparidades evitáveis na
Rio de Janeiro que, até agora, não resultou em medi- saúde e seus determinantes – incluindo, porém não
da alguma contra os médicos ou o hospital onde foi se limitando à atenção em saúde – entre grupos de
atendida. pessoas que possuem diferentes níveis de privilé-
gio social(19-21).
Contra isto, a luta das mulheres pela cidadania,
iniciada na França, no século 18, por Olympe de Com base nisto, a eqüidade de gênero implica:
Gouges(17), nos últimos 50 anos incluiu a luta dos
direitos pela saúde, dentre as reivindicações por a) No estado de saúde – eliminação das diferenças
melhores condições, resultantes da compreensão desnecessárias, injustas e evitáveis entre homens e
de que a iniqüidade de gênero leva à feminização da mulheres, em relação às oportunidades de desfrutar
pobreza e à precariedade da vida. a saúde e as probabilidades de adoecer,
descapacitar-se ou morrer por causas preveníveis.
A partir dos anos 90, a pobreza vista no contex-
to das relações de gênero passou a conformar uma b) No acesso e utilização dos serviços de saúde: a
nova análise das experiências de vida das mulheres, alocação de recursos (tecnológicos, financeiros e hu-
que constituem um grupo crescente entre os po- manos), não segundo um sistema de cotas iguais en-
bres das sociedades latinoamericanas. As análises tre mulheres e homens, mas segundo critérios diferen-
qualitativas constataram que as relações de gênero ciais, de acordo com as necessidades de cada sexo.
exacerbam as desigualdades associadas às classes Implica que mulheres e homens não tenham só acesso
sociais e fizeram emergir situações como a distribui- teórico mas que recebam, efetivamente, atenção de
ção desigual de alimentos no interior das famílias, a qualidade, de acordo com suas necessidades.
desvalorização do corpo feminino e a sobrecarga de
c) No financiamento da atenção: que tanto mulhe-
trabalho que incide sobre as mulheres. A precarie-
res como homens contribuam de acordo com sua
dade da situação social das mulheres passou a ser
capacidade econômica e não com suas necessida-
vista como resultante da divisão sexual do trabalho,
des, ou seja, que as mulheres não tenham que con-
de menores oportunidades em termos de educação,
tribuir mais em razão de sua maior necessidade de
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de situações de trabalho instáveis e com menor re-
atenção à saúde.
muneração, de níveis inferiores de saúde e bem-
estar, de reduzida participação nas decisões (tanto d) No balanço entre contribuições e recompensas
no âmbito privado como no público, mas especial- na produção de saúde: que se reconheça, facilite, Rev Esc Enferm USP
mente, neste) e de limitada autonomia pessoal(18). valorize e distribua de maneira justa o trabalho de 2005; 39(4):450-9.
cuidado da saúde, remunerado ou gratuito. Que c) de converter gênero em mais um modismo dentre os
Rosa Maria G. S. Fonseca
mulheres e homens participem igualmente nas deci- que de tempos em tempos permeiam a produção aca-
sões sobre alocação de recursos nas esferas micro dêmica e as políticas dos órgãos responsáveis pela
e macro do sistema de saúde. assistência à saúde da população e que implicam mais
em mudanças de forma (terminologias, conceitos e
Os documentos oficiais contêm as diretrizes para suportes teóricos) que das práticas de saúde, em es-
a incorporação da categoria gênero nas políticas pecial, porque as mudanças ficam restritas aos pensa-
voltadas para a saúde das mulheres valorizando: dores ou às instâncias superiores, sem alcançar os
diretamente responsáveis pelas ações em saúde.
1) criação e uso de indicadores de gênero para a cons-
trução dos perfis de saúde-doença de grupos popu- d) de transformar gênero em mais uma versão bana-
lacionais e monitoramento das condições de saúde; lizada de assistência à saúde das mulheres para torná-
2) estabelecimento de estratégias para o enfren- las cada vez mais dependentes da ciência e da medi-
tamento dos problemas de saúde evitáveis, em es- calização do corpo, principalmente, no que tange aos
pecial os que influenciam na capacidade reprodutiva seus processos fisiológicos, para que não atrapa-
das mulheres; lhem a expansão dos papéis femininos no espaço
público, ainda restrito quase exclusivamente aos
3) criação e uso de indicadores para embasar a homens mas que, quando ocupado por mulheres
destinação de recursos para enfrentar os problemas estas, comprovadamente, o fazem com maior eficiên-
de saúde das mulheres, baseados em medidas pro- cia e qualidade, portanto, com maiores produtivida-
tecionistas ou discriminatórias positivas; de e possibilidade de geração de riqueza.
4) uso de metodologias específicas para embasar a
Adotar a eqüidade de gênero como um concei-
investigação em saúde sob o recorte de gênero, com
to ético associado aos princípios de justiça social
transferência de conhecimento para outros países e
e de direitos humanos não implica em desmerecer
regiões.
ou desvestir de direitos os homens para privilegiar
Porém, alguns riscos parecem ser inerentes à as mulheres. Trata-se de re-olhar, com esmero e cui-
adoção de visões inovadoras e revolucionárias. No dado, a situação de milhares de mulheres que so-
caso de gênero, podem ser citados os riscos: frem iniqüidades no cotidiano, indignar-se com isso
e mover-se para as transformações, sem confundir
a) de contrapor homens e mulheres, beneficiando o direito à assistência digna e respeitável por se-
as últimas em detrimento dos primeiros, estando am- rem, antes de tudo, cidadãs, com o imperativo de tê-
bos em situação de subalternidade de classe e, por- las hígidas e produtivas, por serem geradoras e
tanto, expostos a riscos de adoecer e morrer que os mantenedoras da força de trabalho presente e futu-
assemelham por encontrarem-se em situação de ex- ra, portanto, de quem a sociedade depende para a
clusão, determinada na dimensão mais geral da es- geração de riqueza social. Com os pés calcados na
trutura social (modo de produção e superestrutura), realidade do que as mulheres representam na atua-
pouco afeita a transformações efetivas. lidade, em termos de lócus de exercício de cidada-
b) de camuflar o enfrentamento das questões de nia e de produção e reprodução social, mais que na
gênero, investindo somente no atendimento das idealização inatingível da felicidade individual e co-
necessidades relativas às funções e papéis femini- letiva, descontextualizada e ahistórica, cidadãs-tra-
nos, histórica e socialmente determinados, (neces- balhadoras devem ser atendidas de acordo com as
sidades intrínsecas de gênero) em detrimento de necessidades do seu perfil de saúde-doença, com-
investimentos nas necessidades estratégicas de preendidas à luz da sua condição de gênero, situa-
gênero (relacionadas à revisão e transformação de ção de classe, perfil de geração e outros recortes
papéis e funções), sem mudar a qualidade de vida analíticos, para que os sinos possam finalmente
das mulheres. dobrar em júbilo quando a Justiça voltar a reinar.
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Correspondência:
Rosa Maria G.S. Fonseca
Av. Dr. Enéas de
Carvalho Aguiar, 419
Cerqueira César - São Paulo
CEP - 05403-000- SP
459
Rev Esc Enferm USP
2005; 39(4):450-9.