Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro.
Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade. O índio refletiu alguns momentos e tomou uma resolução definitiva; modificou inteiramente o seu plano. A princípio decidira não atacar os três inimigos de frente, não porque os temesse, mas sim porque receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto, cujo segredo só ele sabia. Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer a este expediente; o tempo corria; de um momento para outro podia o italiano executar a sua trama. O que precisava era achar um meio para, no caso de sucumbir, prevenir a D. Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava; este meio havia já acudido ao pensamento do índio. Foi ter com Álvaro que o esperava. O moço já o tinha esquecido; pensava em Cecília, na sua afeição quebrada, na sua mais doce esperança marcha, e talvez perdida para sempre. Às vezes também apresentava-se ao seu espírito a imagem melancólica de Isabel; lembrava-se que ela também amava, e não era amada. Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca; ambos sofriam pela mesma causa, ambos sentiam o mesmo pesar, e curtiam igual desengano. Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel amava; sem querer repassava na memória as ternas palavras; revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor. Parecia-lhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça, a pressão da cabeça desfalecida em seu ombro, o contato das mãos trêmulas, e o eco das queixas murmuradas pela voz maviosa. O coração lhe palpitava com violência; esquecia-se revendo a bela imagem, de um moreno suave, a que o amor dava reflexos e uma auréola esplêndida. Mas de repente estremecia, como se a moça ainda estivesse perto dele; passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências que o incomodavam; e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas esperanças. Quando Peri se aproximou, Álvaro estava num dos momentos de tédio e desapego da vida, que sucedem às dores profundas. — Dize-me, Peri. Falaste de inimigos? — Sim; respondeu o índio. — Quero conhecê-los. — Para quê? — Para atacá-los. — Mas são três. — Melhor. O índio hesitou: — Não; Peri quer combater só os inimigos de sua senhora; se ele morrer, tu saberás tudo; acaba então o que Peri tiver começado. — Para que este mistério? Não podes dizer já quem são esses inimigos? — Peri pode; mas não quer dizer. — Por quê? — Porque tu és bom e pensas que os outros também são; tu defenderás os maus. — Oh! que não. Fala! — Ouve. Se Peri não aparecer amanhã, tu não tornarás a vê-lo; mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles. — Como? — Tu verás. São três; querem ofender a senhora, matar seu pai, a ti, a todos da casa. Têm outros que os seguem. — Uma revolta!... exclamou Álvaro. — O primeiro deles quer fugir e levar Ceci, que tu amas; mas Peri não deixará. — É impossível! disse o moço surpreendido. — Peri te diz a verdade. — Não creio!... Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D. Antônio, não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal! O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros; nunca durante dez anos que o moço o acompanhava, se tinha dado na banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe; havia faltas de disciplina, rixas entres os companheiros, tentativas de deserção; mas não passava disto. O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se passava; e por isso se obstinava em guardar parte do segredo, receando que o moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros. — Tu duvidas de Peri? — Quem faz uma acusação tal, precisa prová-la. Tu és um amigo, Peri; mas os outros também o são, e têm o direito de se defenderem. — Quando um homem vai morrer, tu julgas que ele mente? perguntou o índio com firmeza. — Que queres dizer com isso? — Peri vai vingar sua senhora; vai se separar de tudo quanto ama; se ele perder a vida, dirás ainda que se engana? Álvaro foi abalado pelas palavras do índio. — Melhor é que fales a D. Antônio de Mariz. — Não; ele e tu servem para combater homens que atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote. — Mas então o que queres de mim? — Que se Peri morrer, acredites no que ele te diz e faças o que ele fez; que salves a senhora! — Assassinar?... Nunca, Peri; nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro! O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas. — Tu não amas Ceci! Álvaro estremeceu. — Se tu a amasses, matarias teu irmão para livrá-la de um perigo. — Peri, talvez não compreendas o que vou dizer-te. Daria a minha vida sem hesitar por Cecília; mas a minha honra pertence a Deus e à memória de meu pai. Os dois homens olharam-se um momento em silêncio; ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos; entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste. Em Álvaro, a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações; não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável, que ele havia traçado, e era a linha do dever. Em Peri a dedicação sobrepujava tudo; viver para sua senhora, criar em torno dela uma espécie de providência humana, era a sua vida; sacrificaria o mundo se possível fosse, contanto que pudesse, como o Noé dos índios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecília. Entretanto essas duas naturezas, uma filha da civilização, a outra filha da liberdade selvagem, embora separadas por distancia imensa, compreendiam-se: a sorte lhes traçara um caminho diferente; mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes sentimentos. Peri conheceu que Álvaro não cederia; Álvaro sabia que Peri apesar de sua recusa, cumpriria exatamente o que tinha resolvido. O índio a princípio parecia impressionado pela obstinação do cavalheiro; porém ergueu a cabeça com um gesto altivo, e batendo com a mão no peito largo e vitorioso, disse em tom de energia: — Peri só, defenderá sua senhora: não precisa de ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascavel o veneno das setas; como o tigre a força do seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira. Só pode morrer uma vez; mas uma vida lhe basta. — Pois bem, amigo, respondeu o cavalheiro com nobreza, vais realizar o teu sacrifício; eu cumprirei o meu dever. Tenho uma vida também, e a minha espada. Farei de uma a sombra de Cecília; com a outra traçarei em torno dela um circulo de ferro. Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo, acharão o meu antes de chegarem à tua senhora. — Tu és grande; podias ter nascido no deserto, e ser o rei das florestas; Peri te chamaria irmão. Apertaram as mãos e dirigiram-se a casa; em caminho Álvaro lembrou-se que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de defender Cecília: perguntou seus nomes; Peri recusou formalmente e prometeu que o cavalheiro saberia, quando fosse tempo. O índio tinha a sua idéia. Chegando à casa os dois separaram-se; Álvaro ganhou o aposento que ocupava; Peri encaminhou-se para o jardim de Cecília. Eram então oito horas da noite; toda a família se achava reunida na ceia; o quarto da menina estava às escuras. Peri examinou os arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego; e sentou-se num banco do jardim. Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto, e a porta abrindo-se deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido. A menina avistando o índio correu para ele. — Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre. — Tu és boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar. — Então não tens queixa de Ceci? disse a menina sorrindo. — O escravo pode ter queixa de sua senhora? tornou o índio simplesmente. — Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; todos os dias te arriscas a morrer por minha causa. O índio sorriu. — Que queres que Peri faça de sua vida, senhora? — Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro. Peri abanou a cabeça. — Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim? — A planta precisa de sol para crescer; a flor precisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver. — Mas tu serás livres; e nobre como meu pai! — Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu. Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência. — Não te zanga, senhora. — Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me deste. E a linda menina, machucando a flor que arrancou dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência. O índio voltou pesaroso à sua cabana. De repente cortou o silêncio da noite voz argentina, que cantava uma antiga xácara portuguesa, com sentimento e expressão arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música. A xácara dizia assim:
“Foi um dia. — Infanção mouro
Deixou Alcáçar de prata e ouro. Montado no seu corcel. Partiu Sem pajem, sem anadel. Do castelo à barbacã Chegou; Viu formosa castelã. Aos pés daquela a quem ama Jurou Ser fiel à sua dama. A gentil dona e senhora Sorriu; Ai! que isenta ela não fora! ‘Tu és mouro; eu sou cristã’: Falou A formosa castelã. ‘Mouro, tens o meu amor; Cristão, Serás meu nobre senhor.’ Sua voz era um encanto, O olhar Quebrado, pedia tanto! ‘Antes de ver-te, senhora, Fui rei; Serei teu escravo agora. Por ti deixo meu alcáçar Fiel; Meus paços d’ouro e de nácar. Por ti deixo o paraíso, Meu céu É teu mimoso sorriso.’ A dona em um doce enleio Tirou Seu lindo colar do seio. As duas almas cristãs, Na cruz Um beijo tornou irmãs.”
A voz suave e meiga perdeu-se no silêncio do ermo; o eco repetiu um momento as