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Norbert Elias A Solidao dos Moribundos seguido de Envelhecer e Morrer ‘Tradugao: ‘ Plinio Denczien & &Y ZAHAR Rio de Janeiro. Peers clesx torizada desta publicagdo, no todo lagdo de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capa: Sérgio Campante Tlustragéo da capa: Leonardo da Vinci, Estudos AnatOmicos ‘Tradugéo de: Uber die Einsarnkeit der Sterbenden ISBN 978-85-7110-616-1 1. Morte ~ Aspectos sociais. 2. Envelhecimento, ‘Titulo: Envelhecer ¢ morrer. DD: 306 1049 CDU: 393 Sumario A solidao dos moribundos 7 Envelhecer € morrer: alguns problemas sociolégicos 79 Indice remissivo 105 ‘em outubro de 1983. Hi varias maneiras de lidar com o fato de que todas as vidas, inclufdas as das pessoas que amiamos, tém um fim. (O fim da vida humana, que chamamos de morte, pode ser mitologizado pela idéia de uma outra vida no Hades ou no Valhalla, no Inferno ow no Paraiso. Essa éa forma mais antiga ecomum de os humanos enfrentarem a finitude da vida. Podemos tentar evitar a idéia da morte afastando-a denés tanto quanto possivel — encobrindo e reprimindo a idéia indesejada — ou assumindo uma crenga inabalé- velem nossa propria imortalidade — “os outros morrem, eu nao”, Hi uma forte tendéncia nesse sentido nas socie- dades avangadas de nossos dias. Finalmente, podemos encarar a morte como um fato de nossa existéncia; pode- mos ajustar nossas vidas, e particularmente nosso com- portamento em relacdo as outras pessoas, & duragao lim tada de cada vida, Podemos considerar parte de nossa tarefa fazer com que o fim, a despedida dos seres huma- nos, quando chegar, seja tao facil e agradavel quanto pos- sivel para os outros e para nés mesmos; e podemos nos 8 Norbert Elias colocar o problema de como realizar essa tarefa. Atual- mente, essa é uma pergunta que s6 é feita de maneira clara por alguns médicos — no debate mais amplo da sociedade, a questao raramente se coloca. E isso nao € sé uma questao do fim efetivo da vida, do atestado de ébito ¢ do caixao. Muitas pessoas morrem gradualmente; adoecem, envethecem. As dltimas horas sao importantes, é claro, Mas muitas vezes a partida co- meca muito antes. A fragilidade dessas pessoas € muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vi- vos. Sua decadéncia as isola. Podem tornar-se menos so- cidveis e seus sentimentos menos calorosos, sem que se extinga sua necessidade dos outros. Isso é 0 mais dificil — 9 isolamento tacito dos velhos e dos moribundos da co- munidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas rela- Oes com pessoas a que eram afeicoados, a separagio em relagdo aos seres humanos em geral, tudo que thes dava nao s6 para os que an a para os que sao ‘eixados s6s. O fato de que, sém que haja especial inten- 40, 0 isolamento precoce dos moribundos ocorra com mais freqiténcia nas sociedades mais avancadas é uma das fraquezas dessas sociedades. £ um testemunho das difi- culdades que muitas pessoas tm em identificar-se com 05 velhos e moribundos. Sem duivida, o espaco de identificacdo € mais amplo que em outras épocas. Nao mais consideramos um entre- tenimento de domingo assistir a enforcamentos, esquar- tejamentos e suplicios na roda. Assistimos ao futebol, e A solidio dos moribundos 9 nao aos gladiadores na arena. Se comparados aos da An- tigitidade, nossa identificagdo com outras pessoas e nosso compartilhamento de seus sofrimentos e morte aumen- taram. Assistir a tigres e ledes famintos devorando pes- soas vivas pedaco a pedaco, ou a gladiadores, por astiicia ¢ engano, mutuamente se ferindo e matando, dificilmen- te constituiria uma diversdo para a qual nos prepararfa- mos com 0 mesmo prazer que os senadores ou 0 povo romano. Tudo indica que nenhum sentimento de identi- dade unia esses espectadores e aqueles que, na arena, luta- vam por suas Vidas. Como sabemos, 0s gladiadores sau- davam o imperador ao entrar com as palavras “Morituri te salutant” (Os que vio morrer te satidam). Alguns dos imperadores sem duvida se acreditavam imortais. De todo mods, teria sido mais apropriado se os gladiadores dissessem “Morituri moriturum salutant” (Os que vio morrer satidam aquele que vai morrer). Porém, numa sociedade em que tivesse sido possivel dizer isso, prova- velmente nao haveria gladiadores ou imperadores. A pos- sibilidade de se dizer isso aos dominadores — alguns dos quais mesmo hoje tém poder de vida e morte sobre um sem-niimero de seus semelhantes — requer uma desmi- tologizagao da morte mais ampla do que a que temos hoje, e uma consciéncia muito mais clara de que a espé- cie humana é uma comunidade de mortais e de que as, pessoas necessitadas s6 podem esperar ajuda de outras pessoas. © problema social da morte ¢ especialmente dificil de resolver porque os vivos acham dificil identi- “ficar-se com os moribundos. 10 A morte é um problema dos vivos. Os mortos nao tém problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na ‘Terra, a morte constitui um problema s6 para os seres humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doen- 4, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrerao; apenas eles podem prever seu proprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precaugées especiais — como indi viduos e como grupos — para proteger-se contra a amea- ada aniquilagao. Durante milénios essa foi uma fungao central de grupos humanos como tribos e Estados, permanecendo uma fungao importante: até nossos dias, No entanto, entre as maiores ameacas aos humanos figuram os pré- prios humanos. Em nome do objetivo de se proteger da destruigao, grupos de pessoas ameagam outros grupos de destruigao. Desde os primeiros dias, sociedades for- madas por seres humanos exibem as duas faces de Janus: pacificagao para dentro, ameasa para fora. Também em outras espécies a importancia da sobrevivéncia das so- ciedades encontrou expresso na formagao de grupos ¢ na adaptacdo dos individuos 8 vida comum como uma caracteristica de sua existéncia. Mas, nesse caso, a adap- tacao a vida do grupo se baseia em formas geneticamen- te predeterminadas de conduta ou, na melhor das hi- péteses, limita-se a pequenas variagoes aprendidas que alteram 0 comportamento inato. No caso dos seres hu- manos, 0 equilibrio entre a adaptagao aprendida ea nao A solidio dos moribundos " aprendida a vida em grupo foi revertido. Disposigdes inatas a uma vida com os outros requerem sua ativagao pelo aprendizado — a disposigao de falar, por exemplo, pelo aprendizado de uma lingua. Os seres humanos nao s6 podem, como devem aprender a regular sua conduta uns em relagao aos outros em termos de limitagoes ou regras especificas 4 comunidade. Sem aprendizado, nao sao capazes de funcionar como individuos e membros do grupo. Em nenhuma outra espécie essa sintonia com a vida coletiva teve tA profunda influéncia sobre a forma e desenvolvimento do individuo como na espéci humana. Nao s6 meios de comunicagao ou padroes de coergao podem diferir de sociedade para sociedade, mas também a experiéncia da morte. Ela é varidvel e espe- cifica segundo os grupos; nao importa quao natural e imutavel possa parecer aos membros de cada sociedade particular: foi aprendida. Na verdade nao ¢ a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas para os seres humanos. Nao devemos nos enganar: a mosca presa entre os dedos de uma pessoa luta t@o convulsivamente quanto um ser hu- mano entre as garras de um assassino, como se soubesse do perigo que corre. Mas 0s movimentos defensivos da mosca quando em perigo mortal sto um dom nao apren- dido de sua espécie. Uma mae macaca pode carregar sua ctia morta durante certo tempo antes de largé-la em al- gum lugar e perdé-la. Nada sabe da morte, da de sua cria ou de sua prépria. Os seres humanos sabem, e assim a morte se tora um problema para eles. 2 Norbert Elias A resposta a pergunta sobre a natureza da morte muda no curso do desenvolvimento social, correspondendo a esta- gios. Em cada estagio, também é especifica segundo os grupos. Idéias da morte e os rituais correspondentes tor- nam-se um aspecto da socializacao. Idéias e ritos comuns unem pessoas; no caso de serem divergentes, separam grupos. Seria interessante fazer um levantamento de to- das as crengas que as pessoas mantiveram ao longo dos séculos para habituar-se ao problema da morte ¢ sua ameaga incessante a suas vidas; e a0 mesmo tempo mos- trar tudo 0 que fizeram umas as outras em nome de uma crenga que prometia que a morte ndo era um fime que os rituais adequados poderiam assegurar-Ihes a vida eterna. Claramente nao ha uma nosao, por mais bizarra que seja, na qual as pessoas nao estejam preparadas para acreditar com devosao profunda, desde que Ihes dé um alivio da consciéncia de que um dia nfo existirao mais, desde que thes dé esperanga numa forma de vida eterna. Sem duivida, nas sociedades avancadas os grupos nao insistem mais tao apaixonadamehite em que apenas sua cfenga sobrenatural e seus rituais podem garantir a seus membros uma vida eterna depois da vida terrena, Na Idade Média, 0s individuos com crengas minoritérias eram muitas vezes perseguidos a ferro e fogo. Numa cru- zada contra os albigenses no sul da Franga no século x! uma comunidade mais forte de crentes destruiu outra mais fraca. Os membros desta foram estigmatizados, ex- A solide des moribundos 3B pulsos de seus lares e queimados as centenas. “Com ale- gria em nossos coragdes presenciamos sua morte no fogo”, disse um dos vencedores. Nenhum sentimento de identidade entre humanos e humanos; crenga e ritual os separavam. Com expulsao, prisio, tortura e fogueira, a Inquisiggo reforgava a campanha dos cruzados contra povos de crengas diferentes. As guerras religiosas do ini- cio da era moderna sdo bem conhecidas. Suas conseqiién- cias sfo sentidas ainda hoje, por exemplo na Irlanda. A recente luta entre sacerdotes e governantes seculares no Ira também nos lembra a apaixonada ferocidade do sen- timento comunitério e a inimizade que sistemas de cren- as sobrenaturais foram capazes de desencadear em so- ciedades medievais, porque propunham a redengio da morte e a vida eterna, Nas sociedades mais desenvolvidas, como disse, a busca de ajuda em sistemas de crengas sobrenaturais con- tra o perigo e a morte se tornou menos apaixonada; em certa medida, transferiu sua base para sistemas seculares de crengas, A necessidade de garantias contra nossa pré- pria transitoriedade diminuiu perceptivelmente em sécu- los recentes, por contraste com a Idade Média, refletindo um estagio diferente da civilizagao. Nos Estados-nagio mais desenvolvidos, a seguranga das pessoas, sua prote- ao contra os golpes mais brutais do destino como a doenga ou a morte repentina, é muito maior que ante- riormente, ¢ talvez maior que em qualquer outro estagio do desenvolvimento da humanidade. Comparada com iores, a vida nessas sociedades se tornou estdgios an| 14 Norbert Elias mais previsivel, ainda que exigindo de cada individuo um grau mais elevado de antecipagdo e controle das paixoes. ‘A expectativa de yida relativamente alta dos individuos nessas sociedades é um reflexo do aumento da seguranga. Entre os cavaleiros do século xiti, um homem de quarenta anos era visto quase como um velho; nas sociedades in- dustriais do século xx, ele é considerado quase jovem — com diferengas especificas de classe. A prevengao ¢ 0 tra- tamento de doengas hoje estéo mais bem organizados que nunca, por mais inadequados que ainda sejam. A pacificagao interna da sociedade, a protecao do individuo contra a violéncia nao sancionada pelo Estado, como contra fome, atingiu um nivel inimaginavel pelos povos de outros tempos. £ claro que, vista mais de perto, a situagdo revela quio ténue ainda é a seguranca do individuo neste mun- do. Ba tendéncia a guerra traz uma ameaga constante as vidas dos individuos. Sé a partir de uma perspectiva de longa duracao, pela comparagéo com épocas passadas, percebemos quanto aumentou nossa seguranga contra os perigos fisicos imprevisiveis e as ameacas imponderave 4 nossa existéncia. Parece que a adesdo a crencas no outro mundo gue prometem protezao metafisica contra os gol- pes do destino, e acima de tudo contra a transitoriedade péssoal, mais apaixonada naquelas classes €. grupos cu- jas vidas so mais incertas e manos controlaveis. Mas, em termos gerais, nas sociedades desenvolvidas os perigos que ameagam as pessoas, particularmente o da morte, sa0 mais previsiveis, ao mesmo tempo em que diminui a ne- Asolidio dos moribundos 1s cessidade de poderes protetores supra-humanos. Nao ha duivida de que, com o aumento da incerteza social e com a diminuigao da capacidade de as pessoas anteciparem e —até certo ponto — controlarem seus préprios destinos por longos periodos, essas necessidades se tornariam ou- tra vez mais fortes. A atitude em relagao & morte ea imagem da morte em nossas sociedades nao podem ser completamente en- tendidas sem referéncia a essa seguranga relativa e a pre visibilidade da vida individual — e a expectativa de vidi cortespondentemente maior. A vida é mais longa, a mor- te 6 adiada. O espetaculo da morte nao é mais corriquei- ro, Ficou mais facil esquecer a morte no curso normal da vida, Diz-se as vezes que a morte é “recalcada”, Um fabri- cante de caixdes norte-americano observou recentemen- te: “A atitude atual em relagao a morte deixa o planeja- mento do funeral, se tanto, para muito tarde na vida’ s Se hoje se diz que a morte é “recalcada’, parece-me que o termo é utilizado num duplo sentido. Pode tratar-se de um “recalcamento” tanto no plano individual como no social. No primeiro caso, 0 termo € utilizado no mesmo sentido de Freud. Refere-se a todo um grupo de mecanis- 1B, Deborah Frazies, “Your coffin as furniture — for now", Inter- national Fferald Tribune, 2 out 1979. 16 Norbert Elias mos psicolégicos de defesa socialmente instilados pelos quais experiéncias de infancia excessivamente dolorosas, sobretudo conflitos na primeira infancia e a culpa ea angtistia a eles associadas, bloqueiam o acesso & memoria. De maneiras indiretas e disfargadas, influenciam os senti- mentos e 0 comportamento da pessoa; mas desaparece- ram da meméria. Experiéncias e fantasias da primeira infancia tam- bém desempenham papel considervel na maneira como as pessoas enfrentam o conhecimento de sua morte pré- xima. Algumas podem olhar para sua morte com sereni- dade, outras com um medo intenso e constante, muitas vezes sem expressi-lo e até mesmo sem capacidade de expressé-lo. Talvez estejam conscientes dele apenas como do medo de voar ou de espacos abertos. Uma maneira familiar de tornar suportaveis as angiistias infantis sem ter que enfrenté-las é imaginar-se imortal. Isso assume muitas formas. Conhego pessoas que nao sao capazes de envolver-se com moribundos porque suas fantasias com- pensatérias de imortalidade, que mantém sob controle seus terriveis medos infantis, seriam perigosamente aba- ladas pela proximidade deles. Esse abalo poderia permitir que seu grande medo da morte — da punicao — pene- rasse sua consciéncia, o que seria insuportével. Aqui encontramos, sob forma extrema, um dos pro- olemas mais gerais de nossa época — nossa incapacidade de dar aos moribundos a ajuda e afeigao de que mais que aunca precisam quando se despedem dos outros homens, :xatamente porque a morte do outro é uma lembranga de A solidio dos moribundos 7 nossa propria morte. A visto de uma pessoa moribunda abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem como uma muralha contra a idéia de sua propria morte, © amor de si sussurra que elas so imortais: 0 contato muito préximo com moribundos ameaga 0 sonho aca- lentado, Por tras da necessidade opressiva de acreditar em nossa propria imortalidade, negando assim o conhec mento prévio de nossa prépria morte, estao fortes senti mentos de culpa recalcados, talvez ligados a desejos de morte em relaao a0 pai, a mae e aos irmaos, como temor de desejos andlogos da parte deles. Nesse caso, a tinica fuga possivel da culpa-angdstia em torno do desejo de morte (especialmente quando dirigido a membros da fa- milia) ¢ da idéia da vinganga deles (o medo da punigao por nossa culpa) é uma crenga particularmente forte em nossa propria imortalidade, ainda que possamos estar parcialmente cientes da fragilidade dessa crenga. A associagao do medo da morte a sentimentos de culpa pode ser encontrada em mitos antigos. No paraiso, Adio e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque Adao, 0 homem, violou 0 mandamento do pai divino. O sentimento de que a morte ¢ uma punicao imposta a mulheres e homens pela figura do pai ou da mae, ou de que depois da morte serio punidos pelo gran- de pai por seus pecados, também desempenhou papel consideravel no medo humano da morte por um longo tempo. Seria certamente possivel tornar a morte mais facil para algumas pessoas se fantasias de culpa desse tipo pudessem ser atenuadas ou suprimidas. 8 Norbert Elias Esses problemas individuais do recalcamento da idéia da morte andam de maos dadas com problemas sociais especificos. Nesse plano, 0 conceito de recalca- mento tem um sentido diferente. No entanto, a peculiari- dade do comportamento em relagao a morte que prevale- ce hoje na sociedade sé ¢ percebida'se comparada 4 de épocas anteriores ou de outras sociedades. $6 entao se poderd situar a mudanga de comportamento em um qua- dro teérico mais amplo, tornando-a assim acessivel & ex- plicagao. Formulando a questao diretamente, a mudanca de comportamento social referida ao falarmos do “recal- camento” da morte nesse sentido é um aspecto do impul- so civilizador mais amplo que examinei com mais deta- Thes em outro lugar.” Em seu curso, todos os aspectos elementares e animais da vida humana, que quase sem excegao significam perigo para a vida comunitaria e para © proprio individuo, sao regulados de maneira mais equi- librada, mais inescapavel e mais diferenciada que antes pelas regras sociais e também pela consciéncia. De atordo com as novas relagdes de poder, associam-se a sentimen- tos de vergonha, repugnancia ou embarago e, em certos casos, especialmente durante o grande impulso europeu de civilizagao, sao banidos para os bastidores ou pelo menos removidos da vida social publica. A mudanga de longa duragao no comportamento das pessoas em rela- . O processo civilizadar, Rio de Janeiro, Jorge Zahat, 2 vols., 1990 e 1993, A solidio dos moribundos 19 go aos moribundos segue a mesma dirego. A morte é um dos grandes perigos biossociais na vida humana Como outros aspectos animais,a morte, tanto como pro- cesso quanto como imagem mnemédnica, é empurrada mai impulso civilizador. Para os préprios moribundos, isso significa que eles também sao empurrados para os basti- dores, sao isolados. © mais para os bastidores da vida social durante 0 4 Philippe Ariés, em seu instigante e bem documentado Histéria da morte no Ocidente, tentou apresentar a seus leitores um retrato vivido das mudangas no comporta- mento ¢ atitudes dos povos ocidentais diante da morte. Mas Ariés entende a hist6ria puramente como descricao. ‘Acumula imagens ¢ mais imagens e assim, em amplas pinceladas, mostra a mudanca total. [sso é bom e estimu- ante, mas nao explica nada. A selecdo de fatos de Arits se baseia numa opiniao preconcebida. Ele tenta transm sua suposigao de que antigamente as pessoas morriam serenas e calmas. E sé no presente, postula, que as coisas sao diferentes. Num espfrito romantico, Ariés olha com desconfianga para o presente inglério em nome de um passado melhor. Embora seu livro seja rico em evidéncias hist6ricas, sua selegio ¢ interpretagao dessas evidéncias deve ser examinada com muito cuidado. E dificil concor- dar com ele quando apresenta os Romans de la Table Ron- 20 Norbert Elias de, a conduta de Isolda e do Arcebispo Turpin, como evidéncia da calma com que os povos medievais espera- vam pela morte, Ele nao diz que esses épicos medievais eram idealizagdes da vida cortesa, imagens seletivas que muitas vezes langam mais luz no que o poeta e seu piibli- co julgavam que deveria ser do que no que realmente era. O mesmo se aplica a outras fontes literarias utilizadas por Aris. Sua conclusao é caracteristica e mostra sua parcia- lidade: Assim [isto é calmamente] morreram as pessoas durante séculos ou milénios ... Essa atitude antiga, para a qual a morte era ao mesmo tempo familiar, proxima ¢ ameniza- da, indiferente, contrasta com a nossa, em que a morte provoca tal medo que nao mais temos coragem de chamé- la por seu nome. E por isso que chamo essa morte familiar de morte domesticada. Nao quero dizer que tenha sido sel- Quero dizer, ao contrario, que se vagem anteriormente. tornou selvagem hoje. Se comparada vida nos Estados-nacao altamente industrializados, a vida nos Estados feudais medievais era — e 6, onde tais Estados ainda existem no presente — apaixonada, violenta e, portanto, incerta, breve e selva- gem. Morrer pode significar tormento e dor. Antigamen- te as pessoas tinham menos possibilidades de aliviar 0 tormento, Nem mesmo hoje a arte da medicina avangou 3. Philippe Ariés, Studien 2ur Geschichte des Todes int Abendlar ‘Munique/ Viena, 1976, p.25. [Ed. fez Histoire de la mort en Occidemt, Seuil, col. Points.) A solidio dos moribundos 2 © suficiente para assegurar a todos uma morte sem dor. Mas avangou o suficiente para permitir um fim mais pa cifico para muitas pessoas que outrora teriam morrido em terrivel agonia. O certo é que a morte era tema mais aberto e fre- qitente nas conversas na Idade Média do que hoje. A lite- ratura popular dé testemunho disso. Mortos, ou a Morte em pessoa, aparece em muitos poemas. Em um deles, trés vivos passam por um timulo aberto ¢ os mortos Thes, dizem: “O que voces sao, nés fomos, O que somos, vocés serdo.” Em outro, a Vida e a Morte discutem, A Vida se queixa de que_a Morte est maltratando seus filhos; a Morte ostenta seu sucesso. Em comparagao com o pre- sente, a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar. Isso néo quer dizer que fosse mais pacifica. Além disso, 0 nivel social do medo da morte nao foi constante nos muitos séculos da Idade Média, tendo se intensificado notavelmente duran- te 0 século XIV. As cidades cresceram. A peste se tornou mais renitente e varria a Europa em grandes ondas. As pessoas temiam a morte ao seu redor. Pregadores e frades mendicantes reforgavam tal medo. Em quadros ¢ escritos surgiu o motivo das dangas da morte, as dancas maca- bras. Morte pacifica no pasado? Que perspectiva hist6ri- ca mais unilateral! Seria interessante comparar 0 nivel social do medo em nossos dias, no contexto da poluigao ambiental e das armas at6micas, com o de estégios ante- riores da civilizag4o, em que havia menor pacificacao in- terna e menor controle de epidemias ¢ outras doengas. 22 Norbert Elias © que as vezes reconfortava os moribundos no passado era a presenca de outras pessoas. Mas isso de- pendia das atitudes. Disseram-nos* que Thomas More, chanceler de Henrique Vili, abragou seu pai moribundo no leito de morte e 0 beijou nos labios — um pai que ele reverenciou e respeitou por toda a vida. Havia casos, no entanto, em que os herdeiros em volta do leito de morte zombavam e escarneciam do velho moribundo. ‘Tudo dependia das pessoas. Considerada um estégio de desenvolvimento social, a [dade Média foi um periodo excessivamente instavel. A violéncia era comum; 0 con- lito, apaixonado; a guerra, muitas vezes a regra; ea paz, excegdo. Epidemias varriam as terras da Eurdsia, milha- res morriam atormentados e abandonados sem ajuda ou conforto. Mas colheitas freqiientemente faziam es- cassear 0 po para os pobres. Multiddes de mendigos e aleijados eram uma caracteristica normal da paisagem medieval. As pessoas eram capazes tanto de grande gen- tileza quanto de crueldade barbara, jibilo pelo tormen- to dos outros e total indiferenga em relacdo a seus sofrimentos. Os contrastes eram mais marcados que os de hoje — entre a satisfagao desenfreada dos apetites ¢ a auto-humilhagdo, 0 ascetismo e a peniténcia também desenfreados sob o peso de um sentido aterrorizante do 4 William Roper, The Life of Sir Thomas More, Londres, 1969. Ver também minhas observagoes criticas sobre a confiabilidade de Roper: “Thomas Morus Staatskritik’, in Utopieforschung, vol.2, Stuttgart, Wilhelm Vosskamp, 1982, p.101-0, esp. 137-44 A solidao dos moribundos 2B pecado, ¢ também entre 0 fausto dos senhores ea mi- séria dos pobres. O medo da punigao depois da morte € a angiistia em relacao a salvagao da alma se apossavam igualmente de ricos e de pobres, sem aviso prévio. Como garantia, os principes sustentavam igrejas e mosteiros; 0s pobres rezavam e se arrependiam, Tanto quanto posso ver, Ariés diz pouco sobre o medo do inferno espalhado pela Igreja. Mas ha quadros medievais que mostram o que, de acordo com as idéias da €poca, esperava pelas pessoas depois da morte. Um exem- plo ainda pode ser encontrado num cemitério famoso do final da Idade Média, em Pisa. Uma figura retrata vivida- mente os terrores que aguardavam as pessoas depois da morte. Mostra 0s anjos conduzindo as almas salvas para a vida sem fim no paraiso, os horriveis deménios que atormentam os condenados ao inferno. Com tais ima- gens aterrorizantes diante dos olhos, uma morte pacifica nao pode ter sido facil. Em resumo, a vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos, menos controlaveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; 0 sentido da culpa e 0 medo da punicéo depois da morte, a doutrina oficial. Porém, em todos os casos, a participagao dos outros na morte de um individuo era muito mais comum. Hoje sabemos como aliviar as dores da morte em alguns casos; angtistias de culpa sto mais plenamente recalcadas ¢ talvez domina- das. Grupos religiosos sto menos capazes de assegurar sua dominagio pelo medo do inferno. Mas 0 envolvi- 24 Norbert Elias mento dos outros na morte de um individuo diminuiu. Como em relagao a outros aspectos do processo civiliza- dor, nao ¢ facil equilibrar custos e beneficios. Mas 0 qua- dro preto e branco pintado com o sentimento do “bom passado, mau presente” nao serve a qualquer propésito. A questao principal é como e por que era assim, e por que se tornou diferente. Uma vez certos das respostas a essas Perguntas, estaremos em condig6es de formar um juizo de valor, No curso de um processo civilizador, mudam os proble- mas enfrentados pelas pessoas, Mas nao mudam de uma maneira desestruturada, caética. Examinando de perto, detectamos uma ordem especifica mesmo na sucessao de problemas sociais humanos que acompanham o proces- 30. Esses problemas também tém formas que sao especifi- :as de seu estdgio particular Assim, por exemplo, as pessoas se tornaram cons- ientes das doengas causadas por virus como um pro- olema independente apenas depois de terem obtido su- ‘esso na explicagao e, até certa medida, no controle das srandes infecgdes por bactérias. O ganho nao foi em 40, pois representou progresso, mas nao foi absoluto, r0is nao encerrou a luta contra os agentes patogénicos. ) mesmo vale para o aumento da populacio. O pro- A.solidio dos moribundos 25 8resso na luta contra a doenga, particularmente o con- trole das grandes epidemias, é parcialmente responsavel Por esse processo cego, nao-planejado e perigoso. Que pensarfamos de alguém que, diante do perigo da explo- so demogrdfica, ansiasse por um retorno ao “bom pasado” com suas restrig6es malthusianas a0 aumento da populagao — peste, guerra, abstinéncia, fome e mor- te precoce? No curso do nitido surto civilizador que teve inicio hd quatrocentos ou quinhentos anos, as atitudes das pes- soas em relacao & morte ea propria maneira de morrer sofreram mudangas, junto com muitas outras coisas. Os contornos e a direcao dessa mudanga sao claros. Podem ser demonstrados por uns poucos exemplos, mesmo num contexto em que nao é possivel fazer justica A com- plexa estrutura dessa mudanga, Em épocas mais antigas, morrer era uma questo muito mais publica do que hoje. E nao poderia ser dife- rente. Primeiro porque era muito menos comum que as Pessoas estivessem sozinhas. Freiras e monges podem ter estado s6s em suas celas, mas as pessoas comuns viviam constantemente juntas. As moradias deixavam pouca es- colha. Nascimento e morte — como outros aspectos ani: mais da vida humana — eram eventos mais ptiblicos, ¢ Portanto mais socidveis, que hoje; eram menos privatiza- dos. Nada é mais caracteristico da atitude atual em rela- 40 4 morte que a relutancia dos adultos diante da fami- liarizagao das criangas com os fatos da morte. Isso é par- ticularmente digno de nota como sintoma de seu recalca- 26 Norbert Elias mento nos planos individual e social. Uma vaga sensagio de que as criangas podem ser prejudicadas leva a se ocul- tar delas os simples fatos.da vida que terao que vir a conhecer e compreender. Mas o perigo para as criangas no esté em que saibam da finitude de cada vida humana, inclusive a de seu pai, de sua mae e de sua propria; de qualquer maneira as fantasias infantis giram em torno desse problema, e 0 medo e a angistia que o cercam sio muitas vezes reforcados pelo poder intenso de sua imagi- nagao. A consciéncia de que normalmente terao uma lon- ga vida pela frente pode ser, em contraste com suas per- turbadoras fantasias, realmente benéfica. A dificuldade esté em como se fala as criangas sobre a morte, e nao no que lhes 6 dito. Os adultos que evitam falar a seus filhos sobre a morte sentem, talvez nao sem razdo, que podem transmitir a eles suas préprias angtistias, Sei de casos em que um dos pais morreu num acidente de automével. As reagdes dos filhos dependem da idade e da estrutura da personalidade, mas o efeito profundamente traumatico que tal experiéncia pode ter neles me faz acreditar que seria salutar para as criangas que tivessem familiaridade com o simples fato da morte, a finitude de suas préprias vidas e a de todos os demais. Sem diivida, a aversto dos adultos de hoje a transmitir as criangas 0s fatos biolégicos da morte é uma peculiaridade do padréo dominante da civilizagdo nesse estagio. Antigamente, as criangas tam- bém estavam presentes quando as pessoas morriam. ‘Onde quase tudo acontece diante dos olhos dos outros, a morte também tem lugar diante das criangas. A solidio dos moribundos 27 6 Nos estagios anteriores de desenvolvimento social, as pes- soas eram menos cerceadas na esfera da vida social, inclu- sive na fala, pensamento e escrita. A censura pessoal, € a dos companheiros, assumia forma diferente. Um poema de periodo relativamente tardio — século xvit — pode ajudar a ilustrar a diferenga. & do poeta silésio Christian Hofmann von Hofmannswaldau e leva o titulo de “Tran- sitoriedade da beleza”. Por fim a morte palida com sua m&o gelada Com o tempo acariciara teus seios; O belo coral de teus labios empalidecera Anneve de teus mornos ombros serd fria areia O doce piscar de teus olhos / 0 vigor de tua mao Por quem caem / cedo desaparecerio ‘Teu cabelo / que agora tem o tom do ouro Os anos fardo cair, uma comum madeixa “Teu bem formado pé /a graga de teus movimentos Serao em parte p6 / em parte nada e vazio. Entao ninguém mais cultuard teu esplendor agora divino Isso e mais que isso por fim teré passado ‘6 teu coragao todo o tempo duraré Porque de diamante o fez.a Natureza, Leitores de nossos dias podem achar a metéfora da morte pélida acariciando 0s seios da bem-amada com sua méo fria um tanto grosseira, talvez de mau gosto. Podem, 28 Norbert Elias ao contririo, ver no poema uma profunda preocupagao com o problema da morte. Mas talvez s6 possamos nos ocupar desse poerna em virtude de um singular surto de informalizacao, que comecou depois de 1918, foi forte- mente revertido em 1933 e ganhou impulso novamente de 1945 em diante. Como muitos poemas barrocos, ofen- de grande mimero de tabus vitorianos e guilherminos. Referir-se com tal detalhe, com t4o pouco romantismo mesmo num tom um tanto jocoso a morte da amada pode, até mesmo hoje, quando prevalece um certo relaxa- mento dos tabus vitorianos, parecer incomum. Até que atentemos para as mudangas civilizatérias que encon- tram expressio no presente, e, portanto, na estrutura de nossa propria personalidade, ficaremos no escuro en- quanto intérpretes, enquanto historiadores hermenéuti- cos do passado. Interpretagoes arbitrérias serdo a norma econclusdes erradas,a regra. O fato de que geracoes ante- riores falassem mais abertamente da morte, da sepultura e dos vermes sera tomado como indicagao de seu interes- se mérbido pela morte; suas francas referéncias as rela- goes fisicas entre homens e mulheres, como signos de lascivia ou frouxidao moral. $6 quando formos capazes de maior distanciamento de nés mesmos, de nosso esté- gio de civilizacio, e nos tornarmos conscientes do carater especifico de nosso proprio limiar de vergonha e repug- nancia, poderemos fazer justiga as agdes e obras de pes- soas em outros estigios. Um poema como esse provavelmente aflorou de ma- ncira muito mais direta do intercurso social de homens e A solidio dos moribundos 29 mulheres do que os poemas mais privados ¢ individuali- zados de nossa época. Nele, seriedade e graga se combi- nam de um modo sem paralelos hoje. Talvez fosse um poema escrito para uma ocasiao particular; pode ter se difundido nos circulos de Hofmannswaldau e causado muito divertimento a seus amigos de ambos os sexos. Falta aqui o tom solene ou sentimental mais tarde muitas vezes associado a lembranga da morte e da sepultura. Que tal adverténcia seja combinada com uma brincadeira mostra a diferenca de atitude de maneira especialmente clara. As pessoas no circulo do poeta deve ter se diverti- do com uma brincadeira que facilmente escapa a um leitor moderno. Hofmannswaldau diz & sua relutante amada que sua beleza desaparecerd na sepultura, seus labios de coral, seus ombros de neve, seus olhos insinuan- tes, todo seu corpo decairé — exceto seu coracao: ele é duro como diamante, p Ios. No registro dos sentimentos contemporaneos dificil- mente encontraremos qualquer coisa que corresponda a essa mistura de funéreo ¢ irreverente, essa descrigdo deta Ihada da decomposic’o humana como manobra de se- dusio. Podemos talvez tomar o poema como invengao indi- vidual do escritor. Do ponto de vista da historia da litera- tura, poderia facilmente ser assim interpretado, Mas, no contexto, como evidéncia da atitude em relacao a morte existente num estagio diferente de civilizacdo, o poema ganha significagao precisamente pelo fato de que seu tema é tudo menos uma invengao individual. E um tema ela nao da ouvidos a seus ape- 30 Norbert Elias comum da poesia barroca européia no sentido mais am- plo, que nos diz alguma coisa sobre 0 modo dos jogos do amor nas sociedades patricias e cortesas do século xvi. Nessas sociedades, havia humerosos poemas sobre o mesmo tema, Apenaso tratamento pottico era individual ¢ varidvel. O mais belo ¢ famoso poema sobre ele é “To his Coy Mistress” [“A sua amada recatada”], de Marvell. Contém a mesma brusca lembranga do que aguarda 0 belo corpo na sepultura, advertindo a mulher de coragao duro a nao fazé-lo esperar tanto. Esse poema também foi desprezado durante séculos. Hoje, alguns de seus versos sio citagoes de antologias: A sepultura é um bom lugar privado, ‘Mas nela, creio, ninguém é amado. Variagdes sobre o mesmo tema so encontradas em Ron- sard, Opitz e outros poetas da época. Representam um iferente do nosso de vergonha e embarago e, por- tanto, uma estrutura diferente de personalidade, que é social e nao individual. Referéncias 4 morte, a sepultura e a todos os detalhes do que acontece aos seres humanos nessa situagdo ndo ram sujeitas a uma censura social estrita. A visio de corpos humanos em decomposigao era lugar-comum. Todos, inclusive as criangas, sabiam como eram esses corpos; e, porque todos sabiam, podiam falar disso com relativa liberdade, na sociedade e na poesia. Hoje as coisas sao diferentes. Nunca antes na histéria da humanidade foram os moribundos afastados de ma- limiar A solidio dos moribundos a” neira tao asséptica para os bastidores da vida social; nun- ca antes os cadaveres humanos foram enviados de manei- ta t4o inodora e com tal perfeigao técnica do Ieito de morte a sepultura, 7 Intimamente ligado em nossos dias, 4 maior exclusao possivel da morte e dos moribundos da vida social, ¢ a ocultagao dos moribundos dos outros, particularmente das criangas, hé um desconforto peculiar sentido pelos vivos na presenga dos moribundos. Muitas vezes nao sa- bem o que dizer. A gama de palavras disponiveis para uso nessas ocasi6es é relativamente exigua. © embaraco blo- queia as palayras. Para os moribundos essa pode ser uma experiéncia amarga. Ainda vivos, ja haviam sido abando- nados. Mas mesmo aqui o problema que a proximidade da morte ¢ a morte colocam para os que ficam nio existe isoladamente. A reticéncia ea falta de espontaneidade na expressdo de sentimentos de simpatia nas situagdes criti- cas de outras pessoas ndo se limitam a presenga de al- guém que est morrendo ou de luto. Em nosso estagio de ivilizagao manifesta-se em muitas ocasides que deman- dam a expressdo de forte participagao emocional sem perda do autocontrole. Algo semelhante ocorre em situa- ges de amor e de ternura, Em todos esses casos é especialmente a geraco mais jovem que, mais que em séculos anteriores, fica entregue 32 Norbert Elias a seus préprios recursos, a sua propria capacidade de invengéo individual, na procura das palavras certas para seus sentimentos. A convengao social fornece as pessoas mas poucas express6es estereotipadas ou formas padro- nizadas de comportamento que podem tornat mais fécil enfrentar as demandas emocionais de tal situagao. Frases, convencionais e rituais ainda estdo em uso, porém mais pessoas do que antigameiite se sentem constrangidas em uusé-las, porque parecem superficiais e gastas. As f6rmulas rituais da velha sociedade, que tornavam mais facil en- frentar situagbes criticas como essa, soam caducas ¢ pouco sinceras para muitos jovens; novos rituais que reflitam 0 padrao corrente dos sentimentos e comporta- mentos, que poderiam tornar a tarefa mais fécil, ainda nao existem. Seria falso sugerir que os problemas especificos do estagio da civilizagao na relagdo dos saudaveis com os moribundos, dos vivos com os mortos, sdo um dado iso- lado. O que surge aqui é um problema parcial, um aspec- to de um problema geral da civilizagao em seu estégio presente. Nesse caso, também, a peculiaridade da situagdo pre- sente pode ser melhor delineada por referéncia a um exemplo do mesmo problema no pasado. No final de ou- tubro de 1758, a margravina de Bayreuth, irma do rei Fre- derico 11 da Prussia, estava A morte. O rei ndo pode viajar para vé-la, mas mandou as pressas seu proprio médico Cothenius, caso ainda pudesse ajudé-la. Mandou também poemas ea seguinte carta, datada de 20 de outubro: a ee Aso ldo dos moribundos 33 ‘Ternamente amada Irma, Recebe com carinho-os versos que te mando. Estou tao cheio de ti, teu risco e minha gratidao, que tua imagem constantemente governa minh’alma e todos os meus pen- samentos, acordado ou sonhando, escrevendo prosa ou poesia, Que o Céu atenda os votos por tua recuperagao que diariamente Ihe dirijo! Cothenius est a caminho; vener4- lo-eise puder preservar a pessoa que éem todoo mundo a mais proxima de meu coragao, que estimo ¢ honro e por quem continuo, até o momento de devolver meu corpo aos elementos, mais ternamente amada irma, teu leal e devota- do irmao e amigo, Frederico O rei nao escreveu essa carta em francés, mas em alemio, o que raramente fazia, Podemos imaginar que a carta serviu de'consolo a moribunda e facilitou sua parti- da do mundo dos vivos — se ainda foi capaz de lé-la. A lingua alema nao é particularmente rica em ex- pressdes nuangadas para ligagdes nao-sexuais entre pes- soas — ndo-sexuais, qualquer que seja sua origem. Fal- tam palavras correspondentes a “afeigao” e “afeicoado”” Zuneigung e zugetan, que sugerem a idéia de “inclinagao”, nao carregam a simpatia comedida do nosso termo, e sao. pouco usadas. A “miais ternamente amada irma” de Fre- derico é, sem chivida, expresso exata de seus sentimen- tos. Seria usada hoje? Sua ligagao com sua irma era prova- velmente o mais forte lago que o prendia a qualquer mu- Iher ou pessoa em sua vida. Podemos supor que o senti- mento verbalizado em sua carta ¢ sincero. A afeigdo entre 34 Norbert Elias irmio e irma era rec{proca. Ele claramente compreendia que uma afirmagao de sua grande afeigao levaria confor- to 4 moribunda. Mas a expressao desses sentimentos fica mais fécil para ele por sua confianga implicita em certas convencées lingilisticas de sua sociedade, que conduzem sua pena. O leitor moderno, com ouvide afinado para detectar os clichés do passado, pode perceber “tua ima- gem” que “constantemente governa minh'alma” como convencional e “o Céu atenda os votos” como teatral- mente barroco, particularmente na boca de um monarca que nao era famoso pela piedade. De fato, Frederico utili- za termos convencionais para exprimir seus sentimentos. Mas € capaz de usé-los de tal maneira que sua sinceridade € visivel, e podemos supor que a irma percebeu essa sin- ceridade. A estrutura das comunicag6es era tal que aque- les a quem eram enderegadas podiam distinguir entre usos sinceros e insinceros de expresses corteses, ao passo que nossos ouvidos nao podem mais distinguir essas nuances de civilidade. Isso,ilumina os contrastes com a situacao presente. breve surto de informalizagao? ainda em progresso nos torna especialmente desconfiados em relacao aos rituais convencionais ¢ as frases “floreadas” de geragbes passa- das. Muitas férmulas socialmente prescritas trazem em 5 Cf. Cas Wouters, “Informalization and the civilizing process’, in Human Figurations. Essays for Norbert Elias, org. Peter R. Gleich- mann, Johan Goudsblom ¢ Hermann Korte, Amsterd, 1977, p.437. 33. Asolidao dos moribundos 35 torno de sia aura de antigos sistemas de dominagao; nao podem mais ser usadas mecanicamente como 0 om mani padme nos circulos de oragao dos monges budistas. Mas a0 mesmo tempo a mudanga que acompanha o estagio presente da civilizacdo produz em muitas pessoas uma indisposicao ¢ muitas vezes uma incapacidade de expri- mir emogées fortes, tanto na vida publica como na vida privada. Elas sé podem ser ventiladas, assim parece, em conflitos politicos e sociais. No século xvi, os homens podiam chorar em ptiblico; isso tornou-se hoje dificil e pouco freqitente, $6 as mulheres ainda sio capazes, so- cialmente livres para fazé-lo — por quanto tempo ainda? Na presenga de pessoas que estdo para morrer — ¢ dos que as pranteiam — vemos, portanto, com particular clareza um dilema caracteristico do presente estagio do processo civilizador. Uma mudanga em diregao a infor- malidade fez com que uma série de padrdes tradicionais de comportamento nas grandes situagées de crise da vida humana, incluindo 0 uso de frases rituais, se tornasse suspeita e embaracosa para muitas pessoas. A tarefa de encontrar a palavra ¢ o gesto certos, portanto, sobra para 0 individuo. A preocupagdo de evitar rituais e frases so- cialmente prescritos aumenta as demandas sobre a capa- cidade de invengao e expresso individual. Essa tarefa, porém, esta muitas vezes fora do alcance das pessoas no estégio corrente da civilizagao. A maneira como as pes- soas vive em conjunto, que é fundamental neste estagio, exige e produz um grau relativamente alto de reserva na expressio de afetos fortes ¢ espontaneos. Muitas vezes, s6 36 Norbert sob pressao excepcional elas so capazes de superar a barreira que bloqueia as aces resultantes de fortes emo- es, ¢ também sua verbalizacao. Assim, a fala espontanea com os moribundos, da qual estes tém especial necessida-, de, torna-se dificil Afenas as rotinas institucionalizadas dos hospitais dao alguma estruturagao social paraa situa- sao de morrer. Essas, no entanto, s4o em sua maioria destituidas de sentimentos e acabam contribuindo para o isdlamento dos moribundos_ {~~ Rituais religiosos de morte podem provocar nos crentes sentimentos de que as pessoas estao pessoalmente preocupadas com eles, o que é sem diivida a fungao real desses rituais. Fora deles, morrer é no presente uma situa- 40 amorfa, uma 4rea varia no mapa social. Os rituais seculares foram esvaziados de sentimento e significado; as formas seculares tradicionais de expressao sao pouco convincentes. Os tabus protbem a excessiva demonstra- ‘ga0 de sentimentos fortes, embora eles possam acontecer. Ea tradicional aura de mistério que cerca a morte, com 0 que permanece dos gestos magicos — abrir as janelas, parar 08 relégios —, torna a morte menos tratavel como problema humano e social que as pessoas devem resolver entre sie para si. No presente, aqueles que sio préximos dos moribundos muitas vezes nao tém capacidade de apoié-los e conforté-los com a prova de sua afeigao ¢ ternura, Acham dificil apertar a mao de um moribundo ou acaricié-lo, proporcionar-Ihe uma sensagio de prote- Gao e pertencimento, ainda. O crescente tabu da civiliza- 40 em relagdo A expressio de sentimentos espontaneos e J Asolidao dos moribundos 37 fortes trava suas linguas e mAos. E 0s viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa ¢ ameacadora; afastam-se involuntariamente dos mori- bundos. Mas, para os intimos que se vao, um gesto de afeicao ¢ talvez a maior ajuda, ao lado do alivio da dor fisica, que os que ficam podem proporcionar. 8 O afastamento dos vivos em relagio aos moribundos eo silencio que gradualmente os envolve continuam depois que chega o fim. Isso pode ser visto, por exemplo, no tratamento dos cadaveres e no ctiidado com as sepultu- ras, As duas atividades sairam das maos da familia, paren- tes e amigos e passaram para especialistas remunerados. A meméria da pessoa morta pode continuar acesa; os corpos mortos ¢ as sepulturas perderam significagio. A Piet de Michelangelo, a mae em prantos com 0 corpo de seu filho, continua compreensivel como obra de arte, mas dificilmente imaginavel como situagao real Uma brochura publicada por jardineiros de cemité- rio mostra quio distante 0 cuidado das sepulturas esta das familias.® Naturalmente, adverte contra concorrentes 6 Friedhof. Griiner Rawn in der Stadt, publicado pela Zentrale Marketinggesellschaft der deutschen Agrarwirtschaft GmbH, em co- laboragao com = Zentralverband Gartenbau. eV. Bundesfachgruppe Friedhofsgartner, 38 Norbert Elias ¢ rivais que podem reduzir a quantidade de flores ador- nando as sepulturas. Podemos supor que a agéncia de marketing adaptou a brochura tanto quanto possivel a mentalidade dos possiveis consumidores. O siléncio so- bre a significagao das sepulturas como lugares onde pes- soas mortas estao enterradas é, em fungao disso, quase total. Compreensivelmente, referéncias explicitas a qual- quer conexao entre a profissdo de jardineiro de cemitério € 0 enterro dos cadaveres estao inteiramente ausentes. Essa ocultacao cuidadosa, que reflete a mentalidade dos clientes potenciais, surge de maneira especialmente clara se lembrarmos o tom dos poemas do século XVII citados acima. A franqueza com que eles falam do que acontece 0 corpo na sepultura ofefece claro contraste A supressdo higiénica de associagbes desagradaveis do material im- presso ¢, sem diivida, da conversa¢io social de nosso tem- po, Que Marvell pudesse esperar ganhar os favores da mulher amada advertindo-a de que os vermes ameaca- riam sua “tao preservada virgindade” e de que sua “singu- lar honra se tornaria p6” na sepultura dé uma indicagao do quanto avangou o limiar de repugnancia desde entdo, no curso de um processo civilizador nao planejado. Lé, mesmo os poetas falam com desembaraco dos vermes da sepultura; aqui, mesmo os jardineiros do cemitério evi- tam qualquer coisa que possa lembrar a conexao entre sepultura e morte. A mera palavra “morte” é evitada sem- pre que possivel; aparece s6 uma vez na brochura — quando sio mencionadas as datas comemorativas dos mortos; ea ma impressio causada pela palavra é imedia- Asolidao dos moribundos 39 tamente equilibrada pela mengao aos dias de casamento — quando também se requerem flores. As perigosas associagoes de cemitério sao neutralizadas apresentando- © simplesmente como um “espaco verde na cidade”: Os jardineiros de cemitério alemaes .. gostatiam de dar 20 cemitério maior relevo na consciéncia publica como uma rea cultural e tradicional, como um lugar de recolhimen- to e como parte da drea verde urbana. Pois uma conscién- cia publica elevada 6a melhor garantia de queo tradicional retrato do cemitério verde e em flor nao sera um diaamea- ado por estranhos costumes de enterro, por restrigoes baseadas em argumentos econémicos, por desmandos de projetos descontrolados ou pelo planejamento tecnocriti- co dos espacos fizndado exclusivamente na racionalizagao. Seria proveitoso discutir em detalhe as taticas da luta contra os varios rivais comerciais, mas ndo aqui. De todo modo, os clientes potenciais sio protegidos, tanto quanto humanamente possivel, da lembranga da morte e de tudo relativo a ela. Para a possivel clientela, a morte se tornou de mau gosto. Mas a atitude evasiva e encobridora, por sua vez, tem um efeito algo desagradavel. Seria muito bom se o lugar de recordagao dos mortos fosse realmente planejado como um parque para os vivos. Essa é a imagem que os jardineiros do cemitério gosta~ riam de transmitir — “uma ilha silenciosa, verde ¢ em flor em meio ao ruido frenético da vida cotidiana”, Se fossem realmente parques para os vivos, onde os adultos pudessem comer'seus sanduiches e as criangas, brincar! 40 Norbert Elias Talvez isso tenha sido possivel outrora, mas ¢ impossivel hoje em fungao da tendéncia a solenidade, a idéia de que a graga € 0 riso sao inadequados na vizinhanga dos mor- tos — sintomas da tentativa semiconsciente dos vivos de istanciar-se dos mortos e de empurrar esse aspecto em- baracoso da animalidade humana para tao longe quanto possivel atrés das cenas da vida normal. Criangas que tentem brincar alegremente entre os ttimulos serao ad- vertidas pelos guardiaes da grama bem aparada e dos canteiros por sua falta de reveréncia e respeito aos mor- tos. Mas quando as pessoas mortem, nada sabem da reve- réncia com que so ou nfo tratadas. E a solenidade com que funerais e tiimulos sio cercados, a idéia de que deve hhaver siléncio em torno deles, de que se deve falar em voz abafada nos cemitérios para evitar perturbar a paz dos mortos — tudo isso sao realmente formas de distanciar 0s vivos dos mortos, meios de manter 4 distancia uma sensagao de ameaca. Sao os vivos que exigem reveréncia pelos mortos, ¢ tém suas raz6es. Essas incluem seu medo da morte e dos mortos; mas muitas vezes também servem como meio de aumentar 0 poder dos vivos. 9 Até 0 modo como € utilizada a expressao “os morto: curioso ¢ revelador. D4 a impressto de que as pessoas mortas em certo sentido ainda existem nao s6 na mem6- ria dos vivos, mas independentemente deles, Os mortos, A solidio dos moribundos a porém, nao existem, Ou sé existem na meméria dos vi- vos, presentes e futuros. £ especialmente para as desco- nhecidas geragées futuras que aqueles que estio agora vivos se voltam com tudo o que é significative em suas tealizagdes e criacdes. Mas nem sempre se dao conta dis- so, O medo de morrer é sem duivida também um medo de perda e destruigao daquilo que os préprios moribundos consideram significativo. Mas s6 0 tribunal daqueles que ainda nao nasceram pode decidir se o que parece signifi- cativo para as geragGes anteriores seré também significa- tivo, para além de suas vidas, para as outras pessoas. Mes- mo as lépides, em sua simplicidade, dirigem-se a esse tribunal — talvez um passante venha a ler na pedra, jul- gada imperecivel, que ali estao enterrados tais pais, tais av6s, tais filhos. O que esta escrito na pedra é uma mensa- gem muda dos mortos para quem quer que esteja vivo — um simbolo de um sentimento talvez ainda nao articula- do de que a tinica maneira pela qual uma pessoa morta vive é na meméria dos vivos. Quando a cadeia da recor- dagdo é rompida, quando a continuidade de uma socie- dade particular ou da prépria sociedade humana termi- na, entdo o sentido de tudo que seu povo fez durante milénios ¢ de tudo o que era significative para ele tam- bém se extingue. Hoje ainda é¢ um tanto dificil dar uma idéia da di- mensio da dependéncia das pessoas em relacio as outras. Que o sentido de tudo o que uma pessoa faz esteja no que ela significa para 0s outros, néo apenas para os que agora estdo vivos, mas também para as geragdes futuras, que ela 42 Norbert Elias seja, portanto, dependente da continuidade da sociedade humana por gerag6es, ¢ certamente uma das mais funda- mentais das muituas dependéncias humanas, daqueles do futuro em relacao aos do passado, daqueles do passado em relagao aos do futuro. Mas uma compreensao dessa dependéncia é particularmente impedida hoje pela recu- sa de enfrentar a finitude da vida individual, inclusive a nossa prépria, e a dissolugao proxima de nossa prépria pessoa, ¢ de incluir esse conhecimento na maneita como vivemos nossa vida —em nosso trabalho, em nosso pra- zer e, acima de tudo, em nosso comportamento em rela- Gao aos outros, Muitas vezes, as pessoas hoje se véem como indivi- duos isolados, totalmente independentes dos outros. Per- seguir os préprios interesses — vistos isoladamente — parece entdo a coisa mais sensata e gratificante que uma pessoa poderia fazer. Nesse caso, a tarefa mais importante da vida parece ser a busca de sentido apenas para si mes- mo, independente das outras pessoas. Nao é de surpreen- der que as pessoas que procuram essa espécie de sentido achem absurdas suas vidas. Raramente, e com dificulda- de, as pessoas podem ver a si mesmas, em sua dependén- cia dos outros — uma dependéncia que pode ser miitua —, como elos limitados na cadeia das geragoes, como ‘quem carrega uma tocha numa corrida de revezamento, ¢ que por fim a passard ao seguinte. No entanto, o recalcamento e 0 encobrimento da finitude da vida humana individual certamente nao é, como as vezes se diz, uma peculiaridade do século xx. £ A solidée dos moribundos 3 provavelmente uma reacdo tao antiga quanto a conscién- cia dessa finitude, quanto o pressentimento da propria morte. No curso da evolugdo biolégica, podemos supor, desenvolveu-se nos seres humanos uma espécie de enten- dimento que Ihes permitiu relacionar o fim que conhe- ciam no caso de outras criaturas — algumas das q Ihes serviam de alimento — a si mesmos. Gragas a um poder de imaginagao exclusivo entre as criaturas vivas, vieram gradualmente a conhecer de antemao o fim como conclusio inevitavel de toda vida humana, Mas junto com essa previsao do proprio fim provavelmente ocor- reu, desde o inicio, uma tentativa de suprimir esse conhe- cimento indesejado ¢ encobri-lo com nogdes mais satis- fatérias. E ai a singular capacidade humana de imagina- 40 veio em sua ajuda. © conhecimento indesejado e as fantasias encobridoras so, portanto, provavelmente fru- to do mesmo estigio de evolugao. Hoje, com imenso acit- mulo de experiéncia, ndo podemos mais deixar de per- guntar-nos se esses sonhos complacentes nao tém, a lon- g0 prazo, consequéncias bem mais indesejaveis e perigo- sas para os seres humanos em sua vida comunal que 0 conhecimento bruto e sem retoques. © encobrimento ¢ o recalcamento da morte, isto da finitude irrepardvel de cada existencia humana, na consciéncia humana, sio muito antigos. Mas 0 modo do encobrimento mudou de maneira especifica como correr do tempo. Em periodos anteriores, fantasias coletivas eram o meio predominante de lidar com a nogo de mor- te, Ainda hoje, ¢ claro, desempenham um importante 44 Norbert Elias papel. O medo de nossa prépria transitoriedade é ameni- zado com ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar. Como a administragao dos medos huma- nos é uma das mais importantes fontes de poder das pessoas sobre as outras, uma profusio de dominios se estabeleceu e continua a se manter sobre essa base, Com a grande escalada da individualizagdo em tempos recentes, fantasias pessoais ¢ relativamente privadas de imortalida- de destacam-se mais frequientemente da matriz coletiva e vém para o primeiro plano.” 7 Tenho a sensagio de que Ariés, a despeito de uma admirdvel cerudigao que se estende as fantasias de imortalidade contemporineas, rio faz justiga & estrutura da mudanga de que nos ocupamos — outra vez porque Ihe faltam os modelos tedricos dos processos de longa duragdo e, assim, 0 conceito de um impulso a individualizagio. Escreve com patente desprezo, quase aversio, sobre. as fantasias de imortalidade dos contemporineos, contrastando-as cruamente com © que acredita tenha sido a atitude tradicional de calma espera pela morte. Cita com aprovasa, fazendo uma critica velada a0s contem: porineos, © Pavilhdo dos canceroses, de Solzhenitsyn: “Eles n&o se rebelaram, nem resistiram, nem afirmaram que nunca morreriam’y escreve sobre as pessoas de concepgdes tradicionais (Studien zur Geschichte, p25), Realmente nao sei se os contemporineos se rebelam mais, A maioria das pessoas com fantasias de imortalidade que comhego esta ciente de que sio fantasias. De todo modo, 0 que esté em questio aqui tem uma estrutura claramente discernivel. Em tempos passados, fantasias coletivas insitucionalizadss que garantiam idade individual tinham a © 0 peso que recebiam da institucionalizacio e das crenga coletiva tornava quase impossivel reconhecer essas nogdes como fantasias. Hoje, o poder dessas ide coletivas sobre as mentes das pessoas diminuiu, de tal forma que fantasias individuais de imortalidade, as vezes reconhecidas como tais, tendem a surgir em primeito plano, Modelos tedricos de pro: cessos de longa duragio, tais como os expressos no conceito de um A solidio dos moribundes 4s Freud sustentava que a instancia psicolégica que cha- “isso”, a camada mais animal da psiqué, mais proxima do estado natural primitivo, que tratava quase como uma pequena pessoa, se acredita imortal. Mas no penso que possamos aceitar tal afirmagao. No ambito do isso uma pessoa nao tem capacidade de prever e, portan- to, nao tem nenhuma nocao antecipada sobre sua propria mortalidade. Sem esse conhecimento, a idéia compensa- toria da imortalidade pessoal néo pode ser explicada: nio teria fungdo. Freud atribui aos impulsos do isso, que esto inteiramente voltados para 0 aqui e agora, um nivel de reflexdo que nao podem atingir. Muitas outras fantasias descobertas por Freud se agrupam em torno da imagem da morte. Jd me referi aos sentimentos de culpa, 2 nogdo da morte como punicao por mas agdes cometidas. E uma questo aberta a ajuda que se pode dar aos moribundos aliviando angiistias pro- fundas referentes a punigdes por ofensas imaginarias — muitas vezes infantis. A instituigao eclesidstica do perdéo mava de impulso de crescente individualizagio, n3o sio dogmas. Com seu ndo € preciso, € nem possivel, violar os dados observiveis. ‘Tais modelos podem ser mudados, dogmas como substitutos de teoria sio inflexivcis. Nao se pode deixar de lamentar, dada a grande riqueza do conhecimento de Ariés. Seria muito bom se ele pudesse se convencer de que dogmas preconcebidos toram os pesquisadores cegos mesmo em relacao a estruturas que sio quase palpavelmente Sbvias, como a da transicao das fantasias de imortalidade de um em que predominam as fantasias coletivas altamente institu- cionalizadas para outro, em que fantasias individuais e relativamente privadas surgem com mais forca 46 Norbert Elias e da absolvigao mostra uma compreensio intuitiva da freqiténcia com que angtistias de culpa se associam ao processo da morte, ¢ Freud foi o primeiro a oferecer uma explicacao cientifica para elas. Nao pode ser minha tarefa aqui abordar todos os Varios motivos fantasisticos associados a idéia de nossa propria morte e ao processo de morrer. Mas nao se pode subestimar o fato de que, tanto no mundo mégico de fantasias dos povos mais simples, quanto nas correspon- dentes fantasias individuais de nossos dias, a imagem da morte est intimamente ligada A de matar. Povos mais simples experimentam as mortes de pessoas socialmente poderosas, pelo menos, como alguma coisa que alguém fez a elas, como uma espécie de assassinato. Os sentimen- tos dos sobreviventes esti envolvidos. Nao colocam a questao mais distante da causa impessoal da morte. Como € sempre o caso quando fortes emogoes estdo en- volvidas, procura-se um culpado. S6 quando sabem quem ele é podem esperar vingar-se e descarregar as pai- x0es despertadas pela morte. Nao podem vingar-se de uma causa impessoal. Impulsos desse tipo, que em socie- dades mais simples guiam diretamente as ages e pensa- mentos das pessoas, também desempenham um papel indiscutivel no comportamento dos adultos em socieda- des mais desenvolvidas. Mas nesse caso nao tém controle direto sobre 0 comportamento. E © caso ainda com as criangas pequenas, mas sua fraqueza fisica normalmente oculta dos adultos a intensidade de seus impulsos afeti- vos. Além disso, as criangas pequenas nao podem distin- Asolidie dos moribundos a7 guir de maneira apropriada entre 0 desejo de agir € 0 ato realizado, entre a fantasia ¢ a realidade. © surgimento espontaneo do édio e dos desejos de morte tém para eles poder mégico; o desejo de matar mata. As criancas em nossa sociedade as vezes ainda sdo capazes de exprimir tais desejos abertamente. “Entao colocaremos o papai na lata de lixo”, disse o filhinho de um amigo com evidente prazer, “e fecharemos a tampa.” Provavelmente se sentiria culpado se seu pai realmente tivesse se ido. A filhinha de outro amigo assegurava a todos os que se dispusessem a ouvir que nao era culpa dela o fato de sua mae estar tao doente e ter que “ser operada”. Encontramos aqui um componente adicional da particular aversao que hoje muitas vezes afeta as pessoas na presenca de um moribundo, ou— é preciso acrescen- tar — da especial atragaio que moribundos, sepulturas ¢ cemitérios exercem sobre algumas pessoas. As fantasias destas iltimas poderiam ser resumidas aproximadamen- te com as palavras: “Eu nao os matei!” Por outro lado, a proximidade de moribundos ou sepulturas as vezes des- perta nas pessoas ndo apenas o medo da prépria morte, mas desejos de morte e anguistias de culpa suprimidos, resumidos na pergunta “Poderia ev ser culpado de sua morte? Desejei ex vé-los mortos por odié-los?”, Mesmo adultos em sociedades industriais mais de- senvolvidas tm niveis magicos de experiéncia que se ‘opoem a explicagbes impessoais objetivas de doencas ¢ mortes. A forsa do choque que a morte de um dos pais produz, nos adultos € um sinal disso. Pode ser parcial- 48 Norbert mente conectada a profunda identificagao entre filhos € pais, ou entre outras pessoas com lagos emocionais pré- ximos: isto é, pode ser conectada a experiéncia de outras pessoas como parte ou extefisdo de nds mesmos. O senti- mento de que um companheiro perdido era “parte de mim” é encontrado em relacdes dos tipos mais diferentes —entre pessoas casadas ha muito tempo, amigos, filhos e filhas. Mas nestes tltimos, a morte de um pai ou de uma mie muitas vezes desperta desejos de morte enterrados e esquecidos, associados a sentimentos de culpa e, em al- guns casos, ao medo da punigao. A aguda intensificagao desses sentimentos pode enfraquecer as fantasias com- pensatorias de imortalidade pessoal. Tais fantasias, como ja disse, tornaram-se mais fre- qiientes em conjungao com a individualizacao mais acen- tuada dos tempos recentes. Entretanto, fantasias coletivas de imortalidade altamente institucionalizadas conti- nuam a existir com vigor apenas ligeiramente menor em, nossas sociedades. Um manual escolar perfeitamente sensato descreve 0 que as pessoas dizem as criangas quan- do uma pessoa morre: “Seu avd estd no céu agora” — “Sua mamae olha para voce 14 do céu” — “Sua irmazinha agora é um anjo’ 2 exemplo mostra qudo firmemente arraigada esté em nossa sociedade a tendéncia a ocultar a finitude irrevoga- Bilder und Worter, org, Hans-Dieter Bastian, Hana Raus- thenberger, Dieter Stoodt e Klaus Wegenast, Dusseldorf, 1974, p.121. A solidio dos moribundos 49 vel da existéncia humana, especialmente das criangas, pelo uso de idéias coletivas acalentadoras, ¢ a assegurar 0 encobrimento por uma rigida censura social estrita. 10 Numa area sociobiolégica diferente, mas também isolada por uma complexa estrutura de normas sociais —a area das relagdes sexuais —, uma mudanga perceptivel teve lugar nos tiltimos anos. Nessa esfera, um bom mimero de barreiras civilizadoras que eram previamente considera- das evidentes ¢ indispenséveis foi desmontado. A aceita- io social de comportamentos previamente sob tabu ab- soluto se tornou possivel, Problemas sexuais podem ser discutidos publicamente num novo patamar de franque- za mesmo com criancas. O segredo sobre as praticas se- xuais ¢ muitas proibigdes em torno delas, que serviam a instituigdes estatais e clericais como instrumentos de do- minagio, deram lugar, num grau inimaginavel na era vi- toriana, a maneiras mais abertas e pragmiticas de com- portamento e fala. A maior exposicao nessa érea levou a novos problemas ¢ a um periodo de experimentacao com novas solucdes, tanto na pritica social quanto na pesqui- sa empirica e tedrica. Isso talvez venha a definir com maior exatidio as fungées das regras sociais na esfera sexual — tanto em relacdo ao desenvolvimento indivi- dual quanto a vida comunitéria. Mas ja esta claro que uma série inteira de regras sexuais tradicionais, que se so Norbert formaram durante o avango nao planejado do proceso . Assist para mim agora que sou mais ve humano neo ode eviti € muito vel Minha espontanea reagao juvenil a visao de um vel € tipica da espécie de sentimentos que a visio dos velhos suscita hoje, ¢ talvez ainda mais em tempos passados, em pessoas saudaveis nos grupos de “i ade norma bem que os velhos, mesmo quando sau eis, muitas ve- zes tém dificuldade em mover-se da mesma maneira que pessoas saudaveis de outra faixa etaria, exceto as criangas pequenas. Sabem disso, mas de maneira remota. Nao po- dem imaginar a situagao em que suas préprias pernas e tronco deixam de obedecer a sua vontade, como seria normal. "Uso deliberadamente a palavra “normal” Que as pes- soas se tornem diferentes quando envelhecem é muitas vezes visto, embora involuntariamente, como um desvio 79 80 Norbere Elias norma soc de nor ‘08,08 grupos de mui S veres dade em se colocar no lugar dos is ve avelhece © que éeom preensivel. F Js pessoas base de expe pa © que tecido muscular endurece men is vezes flacid jecem las celulas se torna mais lenta. Os processos bem conhecidos pela ciéncia e parcial- extensa literatura sobre o tema. Muito menos compreendida, ¢ menos abordada na E um tépico pouco discutido, Nao deixa de ser importante Para o tratamento dos velhos por aqueles que nao 0 sa0 — ow ainda nao 0 sao —, e nao apenas para o tratamento médico, ter uma compreensao maior ¢ mais detalhada da experiéncia do envelhecimento, e também da morte. Mas claramente, como jé disse, ha dificuldades especiais que impedem a empatia. Nao é facil imaginar que nosso pr6- prio corpo, tao cheio de frescor e muitas vezes de sensa- oes agradaveis, pode ficar vagaroso, cansado e desajeita- do. Nao podemos imaginé-lo e, no fundo, nao o quere- mos. Dito de outra maneira, a identificagéo com os ve- lhos ¢ com os moribundos compreensivelmente coloca dificuldades especiais para as pessoas de outras faixas etérias. Consciente ou inconscientemente, elas resistem & idéia de seu proprio envelhecimento e morte tanto quan- literatur. , é a propria experiéncia do envelheciment to possivel. sq ‘cer e morrer 8 Icamento, , por is evidente izer, pel de mei 10s. Mui- lize mo: ncé conse de!” ou “Voce seu modo de vida e raz mente certo de que alcancar a escada na outra ponta da corda, voltar trangiilamente a seu devido t que assistem a isso de baixo sab. > ao chao mpo. Mas as pessoas que ele pode cair qualquer momento e o contempiam excitadas e um tanto assustadas, Lembro outra experiéne exemplo da nao-identi velhos. 2 que pode servir como as30 dos mais jovens com os itante numa universidade alema ¢ fui convidado para jantar por um colega que estava no auge de s ra professor a vida. Serviu-me um aperitivo antes do jantar €me convidou a sentar numa moderna poltrona de lona, muito baixa, Sua mulher nos chamou para a mesa. Le- vantei, ¢ ele me langou um olhar de surpresa, talvez um tanto decepcionado: “Puxa, vocé esté em muito boa for- ma’, disse. “Nao faz muito tempo, o velho Plessner jantou conosco. Sentou na poltrona baixa como vocé, mas nao conseguiu se levantar, por mais esforco que fizesse. Voce precisava ver. No fim, tivemos que ajudé-lo.” E ria que ria: Norbert Elias ‘Hahahaha! Nao conseguia levantar!” Meu anfitriao se sacudia de rir. Evidentemente, também nesse caso, a iden- tificagdo entre os nao-velhos e os velhos causava dificul- dades. A sensagao “talvez eu fique velho um dia” pode estar inteiramente ausente. Tudo o que sobra é 0 goz0 esponta- neo de nossa propria superioridade, e do poder dos jo- vyens em relacao aos velhos. A crueldade que se expressa na zombaria dos velhos desvalidos, e também da feitira de alguns velhos e velhas, era provavelmente maior antiga- mente do que hoje. Mas decerto nao desapareceu. Esta intimamente relacionada a uma mudanga muito caracte- ristica nas relagGes interpessoais, que tem lugar quando as pessoas envelhecem ou estao no leito de morte: quan- do envelhecem ficam potencial ou realmente menos for- tes em relagao aos mais jovens. Ficam visivelmente mais dependentes dos outros. A maneira como as pessoas dio conta, quando envelhecem, de sua maior dependéncia dos outros, da diminuigdo de sua forca potencial, difere amplamente de uma para outra. Depende de todo o curso de suas vidas e, portanto, da estrutura de sua personalida- de. Mas talvez seja titil lembrar que algumas das coisas que os velhos fazem, em particular as coisas estranhas, estdo relacionadas a seu medo de perder a forga ea inde- pendéncia, e especialmente de perder 0 controle de-si mesmos. Uma das formas de adaptagio a essa situagdo é a tegressio ao comportamento infantil. Nao tentarei deci- se isso é simplesmente um sintoma de degeneragéo Envelhecer e morrer 83 fisica ou uma fuga inconsciente da crescente fragilidade desses idosos em diresao aos padroes de comportamento da primeira infancia. De todo modo, também representa uma adaptacao a uma situagao de dependéncia total que tem seu softimento, mas também suas vantagens. Ha pes- soas em muitos asilos hoje que tém que ser alimentadas, Postas no vaso sanitério e limpas como criangas peque- nas, Também enfrentam o poder como criangas. Uma enfermeira noturna que os trata um pouco bruscamente pode ser chamada de hora em hora durante a noite intei- ra, Este € apenas um dos muitos exemplos de como a experiéncia das pessoas que envelhecem nao pode ser entendida a menos que percebamos que o processo de enve- ‘hecer produz uma mudanga fundamental na posigao de uma pessoa na sociedade, e, portanto, em todas as suas relagdes com os outros. O poder e o status das pessoas mudam, répida ou lentamente, mais cedo ou mais tarde, quando elas chegam aos sessenta, aos setenta, oitenta ou noventa anos. 2 O mesmo vale para 0 aspecto afetivo das relacdes das Pessoas que envelhecem e, especialmente, das que esto Prestes a morrer com os outros. Meu tema e o tempo disponivel me obrigam a limitar-me a um aspecto dessa mudanga, o.isolamento dos que envelhecem e.dos mori- bundos que freqitentemente ocorre em nossa sociedade. 84 Norbert Elias Como disse de inicio, ocupo-me nao com o diagnéstico dos sintomas fisicos do envelhecimento e da morte — e as vezes, de maneira pouco apropriada, sio chama- que as a esse entre a posigao dos que env sociedades industriais de {sto é, nas sociedades medievais ou do infcio da industria- lizagao. Nas sociedades pré-industriais, em que a maioria da populacao vive em vilarejos e se ocupa do cultivo da terra e da criacdo de gado, ou seja, em que camponeses e lavradores formam 0 maior grupo ocupacional, quem lida com os que vao envelhecendo ¢ com 0s moribundos ‘a. Isso pode ser feito de maneira amavel ou brutal, mas ha também caracteristicas estruturais que distinguem o envelhecimento e a morte nessas sociedades dos mesmos fenémenos nas sociedades industriais mais avangadas. Atenho-me a duas dessas diferengas. Qs ve- Ihos que vao ficando fisicamente mais fracos em geral permanecem dentro do espaco de vida da familia, ainda que as vezes apés um enfrentamento com os membros mais jovens, e em geral.também morrem dentro desse espaco. Por isso mesmo, tudo o que diz respeito ao enve- Ihecimento ea morte acontece muito mais publicamente Envelhecer e morrer 8s que nas sociedades industriais altamente urbanizacas, sendo ambos os processos formalizados por tradig6es so- cas. O fato de que tudo ocorre de modo mais ens, em alg espe ptiblico dentro do dominio da famili Hoje, nas ge 0 idoso ou 0 moribundo, como qualquer outro cida dao, da violencia fisica 6bvia. Mas ao mesmo tempo as pessoas, quando envelhecem e ficam mais fracas, séo mais e mais isoladas da sociedade e, portanto, do circulo da familia e dos conhecidos. Ha um numero crescente de instituigdes em que apenas pessoas velhas que nao se co- nheceram na juventude vivern juntas. Mesmo com o alto grau de individualizagao que prevalece, a maioria das pessoas em nossa sociedade forma, antes da aposentado- ria, lagos afetivos nao sé com a familia, mas com um circulo maior ou menor de amigos e conhecidos. O enve- Ihecimento geralmente é acompanhado pelo esgarca- mento desses lagos que ultrapassam o circulo familiar mais estreito. Exceto quando se trata de casais velhos, a admisséo em um asilo normalmente significa nao s6 a ruptura definitiva dos velhos lacos afetivos, mas também a vida comunitéria com pessoas com quem o idoso nunca teve relagoes afetivas. O atendimento fisico dos médicos e Norbert Elias penal de enfermagem podem ser excelentes. Mas a0 smo tempo a sepatacéo dos idosos da vida normal ¢ sua reuniao com estranhos significa solidao para o indivi- duo, Nao estou pensando apenas nas necessidades se- xuais, que podem ser muito ativas na extrema velhice, particularmente entre homens, mas também na proxi- midade emocional entre pessoas que gostam de estar juntas, que tém um certo envolvimento mtituo. Rela- Ses desse tipo em geral também diminuem com a transferéncia para um asilo e raramente encontram ai uma substitui¢ado. Muitos asilos sao, portanto, desertos de solidao. 3 A natureza especial da morte nas sociedades industriais desenvolvidas, com o isolamento emocional como uma das caracteristicas preeminentes, surge de modo particu- larmente claro se compararmos os procedimentos e ati- tudes relativos & morte nas sociedades em est4gios mais avangados aos dos paises menos desenvolvidos. Todos estamos familiarizados com pinturas de periodos ante- ores, que retratam familias inteiras — mulheres, ho- € criangas — em torno do leito da matriarca ou do rca moribundo, Pode ser uma idealizagio romanti- igentes, brutais e frias. Quem sabe os ricos nem sem- morreram de maneira suficientemente répida para Envelhecer ¢ morrer seus herdeiros. Os pobres podem ter ficado estendidos sobre sua sujeira ¢ pasado fome. Pode-se dizer que antes do século xx, ou talvez do xix, a maioria das pessoas morria na presenca de outras apenas porque estavam me- os acostumadas a viver ¢ estar s6s. Nao havia muitos cémodos onde uma pessoa pudesse ficar 56. Os moribun- dos e os mortos nao eram tao flagrantemente isolados da vida comunitéria como é geralmente o caso nas socieda- des avangadas. As sociedades como tais eram mais pobres antigamente; néo eram tdo organizadas em termos de higiene como as sociedades posteriores. As grandes epi- demias assolavam freqitentemente os paises europeus; pelo menos desde o século xi, iam e vinham em geral diversas vezes em cada século até 0 século Xx, quando as pessoas finalmente aprenderam a lidar com elas. 4 Geralmente ¢ dificil para as pessoas de épocas recentes colocar-se no lugar de outras que viveram em perfodos anteriores; assim, as pessoas de hoje néo podem entender de maneira apropriada sua propria situacao, ou a si mes- mas. A situagao € que simplesmente 0 estoque social de conhecimentos relativos a doencas e suas causas era, em sociedades antigas, a medieval, por exemplo, nao sé mui- to mais limitado, mas também muito menos seguro do que hoje. Quando as pessoas carecem de um conheci- mento seguro da realidade, também ficam menos segu- 88 Norbert Elias ras; exaltam-se com maior facilidade, entram mais rapi- damente em panico; preenchem as lacunas de seu conhe- cimento realista com conhecimentos fantasiosos e bus- cam aplacar 0 medo de ameacas inexplicdveis por meios igualmente fantasiosos. Assim, as pessoas de outrora ten tavam enfrentar as epidemias recorrentes por meio de amuletos, sactificios, acusagdes contra envenenadores, bruxas e sua propria natureza pecaminosa, como ma. neira de apaziguar seus sentidos alarmados. Mesmo hoje pode acontecer de pessoas atingidas por uma doenga incurdvel, ou que por outras razées se en- contrem as portas da morte, escutarem uma voz interior sussurrando que é culpa de seus parentes ou punigao por seus préprios pecados. Mas hoje tais fantasias privadas tendem a nao se confundir com conhecimento publico factual; sio normalmente percebidas como fantasias pri- vadas. O conhecimento das causas das doengas, do enve- Ihecimento ¢ da morte tornou-se mais seguro e abran- gente. O controle das grandes epidemias fatais é apenas um dos muitos exemplos de como a expansio do conhe- cimento congruente com a realidade desempenhou um papel na mudanga dos sentimentos e comportamentos humanos. 5 Talvez seja um tanto equivocado chamar esse recuo das explicagées emotivas pela via da fantasia ou, para usar a “N Envelhecer e morrer 89 formula emotiva de Max Weber, esse “desencantamento do mundo”, de proceso de racionalizacao. Como quer que o termo seja utilizado, ele sugere que:o que mudou afinal foi a “razdo” humana; parece implicar que as pes- soas se tornaram mais “racionais” ou, em linguagem sim- ples, mais sensatas que em tempos anteriores. E uma au- tovaloragao que dificilmente faz jus aos fatos. Sé se come- gaa entender a mudanga referida pelo canceito de racio- nalizagio, quando se reconhece que uma das mudangas por ele acarretadas € o aumento do conhecimento social orientado para os fatos, conhecimento capaz de conferir uma sensagao de seguranca. A expansio.do conhecimen- to real e a correspondente retracao do conhecimento fan- tasioso andam de maos dadas com 0 aumento do contro- le efetivo dos acontecimentos que podem ser titeis as pes- soas, ou dos perigos que podem ameagé-las. A idade ea morte estdo entre estes tiltimos. Encontramos uma situa- 0 curiosa ao tentar compreender 0 que 0 avango do conhecimento mais realista nessas areas significa em ter- mos das possibilidades de seu controle pela humanidade. O estoque de conhecimentos da sociedade em rela- ‘Ao aos aspectos biolégicos do envelhecimento e da mor- te aumentou muito nos dois iltimos séculos. O préprio conhecimento nessas areas se tornou mais bem funda mentado e mais realista. E nossa capacidade de controle aumentou com o conhecimento. Mas nesse nivel biolégi- co parecemos nos aproximar de uma barreira intranspo- nivel quando tentamos estender ainda mais 0 controle humano sobre os processos de envelhecimento e morte. Norbert © que nos faz lembrar seres humanos em rela: limites. que aqui e ali a capacidade dos 640 a0 universo natural tem seus ___0 Progresso no conhecimento biolégico tomou pos- sivel clevar consideravelmente a expectativa de vide aio individuo, Mas por mais que tentemos, com o auxilio de Progresso médico ¢ a capacidade crescente de prolongara vida do individuo e aliviar as dores do envelhecimento « da agonia, a morte é um dos fatos. que indica que o con- trole humano sobre a natureza tem limites. Sem dtivida a abrangéncia desse controle € em muitas éreas extrema- mente grande. O que nao significa que nao existam limi- tes ao que é realizavel pelos seres humanos em relacao aos fatos da natureza. Tanto quanto se pode ver, isso nao se aplica ao plano social da vida humana. Aqui, nao ha limites ab- solutos ao que pode ser feito, e € pouco provavel que sejam encontrados. Mas, ao ampliar a esfera de seu conhecimento e controle, as pessoas certamente encon- tram obstaculos dificeis, barreiras que podem atrasé-las por séculos ou mesmo milénios, embora nao sejam invenciveis pelo controle humano. Barreiras absolutas existem nos niveis pré-humanos do cosmo, que chama- mos de “Natureza”; mas nos niveis sociais humanos, referidos por palavras como “sociedade” e “individuo”, existem apenas na medida em que também contém e fazem parte dos niveis da natureza. Mencionarei de passagem duas das barreiras que ofe- recem atualmente sérios obstaculos a orienta¢ao humana Envelhecer e morrer on £.a0 controle das pessoas sobre seus préprios afazeres, embora nao sejam de maneira nenhuma intransponiveis, Primeiro, hé a escala de valores vistos comumente como auto-evidentes, pela qual a “Natureza” isto é, 0s aconteci- mentos naturais pré-humanos, compreende uma esfera muito mais valorizada que a “cultura” ¢ a “sociedade’, a rea formada ¢ criada pelos proprios seres humanos. A ordem eterna da “natureza” é contrastada favoravelmente & desordem e mutabilidade do mundo humano. Muitas pessoas adultas continuam a procurar por alguém que as leve pela mao como a uma crianca, uma figura materna ou paterna que Ihes aponte o caminho a seguir. A “Natu- reza” é uma dessas figuras. Supde-se que tudo o que ela faz, tudo o que é “natural”, deva ser bom e salutar para os homens. A harmoniosa regularidade da descrigao da “Natureza” de Newton encontrou expressio na admira- go de Kant pelas leis eternas do céu estrelado que nos cobre, a lei moral dentro de nés mesmos. Mas a bela imagem da “Natureza” de Newton ficou para trés. Esque- cemos facilmente que 0 conceito de “Natureza” é agora sinénimo do que 0s cosmélogos concebem como a evo- lugao do universo, com sua expansio sem propésito, a producao e destruigao de s6is e galaxias incontaveis, e dos “buracos negros” que devoram a luz. Nao faz diferenca que descrevamos 0 processo como “ordem”, “acaso” ou “caos”. Nem faz muito sentido dizer que os fatos naturais so bons para as pessoas, ou tampouco maus. A “Natureza” nao tem intengdes; ndo tem objetivos; nao tem propési- 92 tos, Asiinicas criaturas neste universo que podem estabe- lecer objetivos, que podem criar e dar sentido, si0 os proprios seres humanos. Mas sem dtivida é ainda insu- portavel para muita gente imaginar que Ihes compete a tarefa de decidir os rumos que a humanidade deve seguir €.0s planos ¢ agdes que tém sentido para os homens. Buscam constantemente alguém que as alivie desse peso, alguém que dite as regras pelas quais devem viver e for- mule os objetivos para que suas vidas sejam dignas de serem vividas. © que esperam é um sentido pré-determi- nado vindo de fora; o que é possivel é um sentido criado por elas mesmas e, em ultima aniilise, pelos homens em conjunto, que dé diregao as suas vidas. O.amadurecimento da humanidade é um processo dificil. O periodo de aprendizado € longo, erros graves so inevitiveis e o perigo da autodestruigao, da aniqui- lagdo de nossas proprias condigdes de vida, no curso desse processo de aprendizado, é grande. Mas esse pe- igo s6 tende a crescer, se as pessoas se mantiverem na atitude de criangas para as quais alguém mais faz tudo © que s6 elas podem fazer. A idéia de que a natureza, se deixada por conta prépria, fara o que é certo para os homens, inclusive para sua vida em comum, é um exem- plo. E mostra como decisdes que s6 os seres humanos podem tomar, e a responsabilidade que vem com elas, sdo delegadas a uma figura materna imagindria, a “Na- tureza”” Mas, entregue a si mesma, a natureza é cheia de perigos. Certamente, a exploraao humana da natureza também implica grandes ameacas. Processos naturais “| Envelhecer e morrer 93 extra-humanos sao incapazes de aprendizado. A prépria sociedade humana é um estagio no desenvolvimento da natureza. Mas distingue-se de todos os estagios an:erio- res pelo fato de que os seres humanos podem muder seu comportamento e sentimentos como resultado de expe- éncias comuns ¢ pessoais, isto &, de processos de aprei dizado, numa medida muito maior, ¢ de maneira di rente, que as outras criaturas. Essa capacidade de mudat pode ser de valor extraordinario para os homens. Mas seu desejo de imortalidade constantem atribuir a sinais de imutabilidade — por exemplo, nte os leva “natureza” imaginada como algo que nao muda — um alto do que a si mesmos, ao des comunitaria ¢ a amplitude ol valor muito ma vimento de sua propria vid © ao padrao cambiante de seu controle sobre a za’, sobte a “sociedade” e sobre suas proprias pessoas. Talvez até mesmo ao lermos isso da resistencia & reavaliagao exigida por essa exploragio Esse é um dos obstiiculos a que me refer O segundo obstaculo que apresento como exemplo esti ligado A presente incapacidade das pessoas de reco- nhecer que, dentro da esfera da realidade que formam junto com as outras, mudangas de longa duragio e nfio planejadas, mas que tém uma estrutura e direcio es2e- cificas, estdo acontecendo, e que esses processos, como processos naturais incontrolaveis, as empurram invo- luntariamente para um lado e para o outro. Como nao reconhecem esses processos sociais nao planejados e, portanto, ndo sabem como explicé-los, nao tm meios nature- ntamos um residuo Norbert Elias upropriados para influencia- plo isso & a incapecidade dese ee em os processos nao-planejados f fa ae ee repetidamente a guerra.! VA Paine ‘ ate 8 - Varios Estados atingiram.um estagio de civilizacio em que matar os outros nao daa seus membros um prazer especial, nem sua propria morte na guerra é considerada particularmente honro- sa. Mas as pessoas hoje encontram-se tao expostas ao perigo da guerra como aquelas em estagios anteriores de desenvolvimento estavam sujeitas as cheias incon- trolaveis dos grandes rios, ou as grandes epidemias in- fecciosas que as vezes matavam parte consideravel da populagao do pais. 4 falei da conceitualizacdo da relacdo da natureza extra-humana com esses processos sociais humanos em termos de opostos como “natureza” e “cultura”, com uma valorizagéo decididamente mais alta da primeira. Nem sempre é facil convencer as pessoas do final do século xx de que a “natureza” em estado bruto nao é particular- mente adequada as necessidades humanas. $6 depois que as florestas primevas foram abertas, quando os lobos, ongas, cobras venenosas, escorpiées — em suma, todas as outras criaturas que poderiam ameagar os homens — foram exterminados, sé depois que a “natureza” foi.do- 1 Apenas menciono de passagem que a dinamica figurativa da livre competi¢io entre Estados, a qual discuti em termos de um “meca- nismo monopolistico” no segundo volume de meu Processo civiliza- dor, desempenha um papel decisivo nesse curso para a guerra, Envelhecer e morrer 95 mesticada ¢ fundamentalmente transformada pelos hu- manos é que ela comecou a parecer para populagées que iviam geralmente nas cidades como bela e benigna para a humanidade. Na realidade, os processos naturais se- guem seu curso distribuindo cegamente coisas boas ¢ mis, as alegrias da satide ¢ as terriveis dores da doenga, aos seres humanos. As tinicas criaturas que, quando ne- cessério, podem dominar até certo ponto 0 curso sem sentido da natureza ¢ ajudar-se mutuamente sao 0s pro- prios seres humanos. Os médicos podem fazé-lo; ou pelo menos podem tentar, Mas talvez mesmo cles ainda sejam em parte in- fluenciados pela tudo 0 que importa em seus pacientes. Pode ser, em al- guns casos. Mas nem sempre, Doutrinas rigidas nao aju- dam muito aqui. © que é decisivo ¢ conhecimento nao- dogmatico do que é benigno e do que é maligno na nati- reza, No presente, 0 conhecimento médico é em geral tomado como conhecimento biolégico. Mas é possfvel imaginar que, no futuro, 0 conhecimento da pessoa hu- mana, das relacdes das pessoas entre si, de seus lagos gia de que os processos naturais sio emituos e das pressbes ¢ limitagdes que exercem entre si faca parte do conhecimento médico. £ a esse ramo do conhecimento que pertencem os problemas que estou discutindo. E possivel que 0 aspec- to social das vidas das pessoas, suas relagdes com as outras, tenha importncia especial para as que envelhe- cem e para as que estdo para morrer simplesmente porque processos naturais cegos ¢ incontroléveis ganha- 96 Norbert Elias ram poder sobre clas. Mas a consciéncia de que as pes- soas atingiram 0 limite de seu controle sobre os proces- sos natura qiientemente engendra, nos médicos talvez nos conhecidos ¢ amigos das pessoa Ihecem e se aproximam da morte, uma atitude que esti digdo com as necessidades sociais dessas t que enve- em cont mas. As pessoas parecem se dizer que nio hi nada que possam fazer, dio de ombros ¢ seguem sew caminho com pesar. Os médicos em particular, cuja tareta con- siste em adquirir controle sobre as forgas destrutivas ¢ cegas da natureza, parecem muitas vezes observar estar- recidos como tais forgas quebram a auto-regulacio nor- mal do organismo dos doentes ¢ dos moribundos ¢ avancam sem controle na destruigao do proprio orga- nismo Obviamente nao ¢ facil testemunhar esse processo de decadéncia com equanimidade. Mas talvez as pessoas nessa situago tenham uma necessidade especial de ou- tras pessoas, Sinais de que os lagos ainda nao foram cor- tados, de que aqueles que esto deixando o circulo huma- no ainda sao valorizados dentro dele, sao especialmente importantes, dado que agora estdo fracos e talvez nao passem de uma sombra do que foram. Mas, para alguns moribundos, a solidio talvez seja um beneficio. Talvez sejam capazes de sonhar nao queiram ser perturbados. Devemos sentir do que eles precisam. Morrer ficou mais informal em nossos dias, ea gama de necessidades indivi- duais, quando conhecidas, se ampliou. Envelhecer e morrer 97 morte nao m em relagao aos morib is, Sao pec 0 &, por com ncas podem crescer sem nunca terem Fm esta de cada nteriores de desenvolvimento 0 esp. era muito mais comum. Desde entao, © aumento d pectativa de vida tornou a morte mais distante dos jov © dos vivos em geral. Obviamente, numa sociedade com uma expectativa de vida de trinta e sete ou quarenta anos, aidéia de morte se apresenta muito mais imediatamente, mesmo para os jovens, que numa sociedade com um expectativa de vida proxima dos setenta. E bem possivel que 0 compreensivel horror da guerra atdmica seja refor- sado pelo fato de que os jovens em nossa sociedade po- lem normalmente esperar uma vida mais longa que nun- cca, Senti isso de perto quando um jornalista de vinte anos que me entrevistava, franzindo 0 cenho, perguntou sobre meu livro a respeito da “solidio dos moribundos”: “O que 0 levou a escrever sobre tema tio curioso?” Tudo isso contribui para empurrar a agonia ea mor- te mais que nunca para longe do olhar dos vivos e para os. bastidores da vida normal nas sociedades mais desenvol- 4 esonpert Elias ienicamente como hoje nessas soci condigSes tao propicias solidao, 7 Num livro bem conhecido de B.G. Gl Time for Dying (Chicago, 1968), guinte observacao: laser e A.L. Strauss, Os autores fazem a se- A maioria dos pacientes pertence a uma familia, Se paren- tes ficam ao pé do leito de um membro moribundo da familia durante os ltimos dias, sua presenca pode ocasio- nar problemas sérios para os médicos e a equipe de enfer- magem do hospital, reduzindo inclusive a eficacia dos cui- dados com o paciente (p.151). Essa breve afirmagao aponta para um grave conflito nao-resolvido na institucionalizacao ostensivamente ra- cional da morte — pelo menos nos hospitais norte-ame- ricanos, a que as observagdes de Glaser e Strauss certa~ mente se referem em primeiro lugar. O moribundo recebe o tratamento médico mais avancado e cientifi- camente recomendado disponivel. Mas os contatos com as pessoas a que est ligado, e cuja presenca pode pro- porcionar o maior conforto para aquele que parte, fre- qiientemente sao considerados inconvenientes para 0 tratamento racional do paciente e para a rotina do pessoal. E assim esses contatos séo reduzidos ou impe- eal Envelhecer e morrer 99, didos sempre que possivel. Glaser e Strauss observam Ro mesmo contexto (p.152) que, em algumas regides menos desenvolvidas, pessoas proximas oferecem con- forto ¢ atensa0 aos moribundos por forca da tradicao, Liberam assim a equipe de enfermagem para outras tarefas. E também assumem os cuidados rotineiros de Pacientes em recuperagio. A equipe entdo esta acostu- mada a sua presenca. Os proprios parentes, que preci- sam de consolo, se ajudam mutuamente. Isso é um clare contraste com 0 que, segundo Glaser e Strauss, acontece nos hospitais em paises mais desenvolvidos, onde a equipe gasta parte de seu tempo confortando os paren- tes aflitos. O quadro dessa diferenca é nitido. De um lado, o tipo antigo: 0s membros da familia se retinem em torno da pessoa doente, trazem comida, dao os remédios, limpam ¢lavam o paciente e talvez, trazendo sujeira das ruas para oleito do paciente, cuidam dele sem lavar as maos. Possi- velmente apressam o fim, pois nada disso é muito higié- nico. Possivelmente sua presenga adia a morte, pois pode ser uma das grandes alegrias dos moribundos estarem cercados por parentes ¢ amigos — tiltima prova de amor, Ultimo sinal de que significam alguma coisa para 0s ou- tros. E um grande apoio — encontrar eco dos seus senti- mentos nos outros que se ama e a quem se esté apegado,e cuja presenga faz surgir um sentimento terno de perten- cer a familia humana, Essa afirmagio miitua das pessoas através de seus sentimentos, 0 eco dos sentimentos entre duas ou mais pessoas, desempenha um papel central na 100 Norbert & Nao devemos nos iludir: as familias em Estados me nos desenvolvidos sao muitas vezes tudo, menos armo- ‘osas. Freqiientemente apresentam maior desigualdade de poder entre homens e mulheres ¢ entre jovens e velhos. Seus membros podem amar-se ou odiar-se, talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Pode haver relagdes de citime e desprezo. $6 uma coisa é rara nesse nivel de desenvolvi- mento social, especialmente nos casos em que as mulhe- res, as maes, formam 9 nticleo integrador afetivo da fami- lia: ndo ha neutralidade emocional no quadro da familia extensa, De certa maneira, isso ajuda os moribundos. Despedem-se do mundo publicamente, num circulo de pessoas cuja maioria tem grande valor emocional para os moribundos, e para os quais estes tm 0 mesmo valor. Morrem menos higienicamente, mas nao s6s. Na unidade de terapia intensiva de um hospital moderno, os mori- bundos podem ser tratados de acordo com o mais recente conhecimento biofisico especializado, mas muitas vezes de maneira neutra em termos de sentimentos: podem morrer em total isolamento. ja vida no € 0 unico fator que contribui para 0 iso- Envelhecer ¢ morrer 101 amento dos moribundos em nossos nterna dos Estados expressivo aumento do cia fazem surgir nessas sociedades uma antipatia muda, mas perceptivel, dos viventes em relacao aos moribundos — uma antipatia que muitos membros dessas sociedades ndo conseguem superar mesmo quando nao a aprovam. Morrer, como quer que seja visto, é um ato de violencia. Se as pessoas sio as responséveis ou se é 0 curso cego da natureza que traz a decadéncia repentina ou gradual de um ser humano em tltima anélise nao tem muita impor- tancia para a pessoa afetada. Assim, um nivel mais alto de Pacificagao interna também contribui para a aversio a morte, ou, mais precisamente, aos moribundos. E assim também um nivel mais alto de contencao civilizada, Nao faltam exemplos. A demorada morte de Freud em decor- réncia de um cancer na laringe é um dos mais significati- vos. O avango da doenga gerava um mau cheiro cada vez pior. Mesmo © cio fiel se recusava a aproximar-se do doente. Apenas Anna Freud, forte ¢ inflexivel em seu amor pelo pai moribundo, o ajudou nessas tiltimas sema- nas, impedindo que se sentisse abandonado. Simone de Beauvoir descreveu com assustadora exatidao 0s tiltimos meses de seu companheiro Sartre, que nao era mais capaz \dustriais desenvolvidos ¢ 0 cag jar do embarago face a de controlar o fluxo urinario ¢ era forgado a andar com sacos plisticos amarrados a seu corpo — ¢ 0s 8 vezes transbordavam. A decadéncia do organismo huma- No, © processo a que chamamos morrer, qu acompanhado de mau cheiro, Mas as sociedades desen- empre & Todos esses sto em realidade apenas exemplos de como falhamos ao enfrentar os problemas dos moribun- dos nas sociedades desenvolvidas. © que eu disse aqui é apenas uma pequena contribuicdo para o diagnéstico de problemas que ainda precisam ser resolvidos. Esse diag- néstico, me parece, deve ser desenvolvido. Em termos amplos, ainda nfo estamos plenamente conscientes de que morrer nas sociedades mais desenvolvidas é acompa- nhado de problemas especificos que devem ser enfrenta- Gos como tals Os problemas que levantei sio, como se pode ver problemas de sociologia medica, As precaugdes medicas Ge hoje dizem resp © principalmente a aspectos indivi- duais do funcionamento fisiolégico de uma pessoa — 0 coracdo, a bexiga, as artérias e assim por diante —; quan- to a isso, a técnica médica para preservar e prolongar a vida estd sem diivida mais avancada que nunca. Mas con- centrar-se em corrigir medicamente 6rgios isolados que funcionam cada vez pior s6 vale a pena em beneficio da pessoa dentro da qual esses componentes esto integra- dos. E se os problemas dos componentes individuais nos levam a esquecer os da pessoa que os integra, realmente desvalorizamos o que fazemos para os préprios compo- nentes. Hoje a decadéncia das pessoas, a que chamamos de envelhecimento e morte, coloca para os outros seres humanos, ai incluidos os médicos, certo ntimero de tare- fas nao-realizadas e geralmente ndo-reconhecidas. As ta~ Envelhecer e morrer 103 refas que tenho em mente ficam ocultas se a pessoa indi- vidual € considerada e tratada como se existisse apenas para si mesma, independente de todas as outras. Nao estou seguro de até que ponto os proprios médicos sabem que as relagdes de uma pessoa com as outras tm uma influéncia co-determinante tanto na génese dos ntomas patolégicos quanto no curso tomado pela doenga. Levan- tei aqui o problema da relagao das pessoas com os mori- bundos. Assume, como mos, uma forma especial na sociedades mais desenvolvidas, porque nelas o pro de morrer esti isolado da vida social normal numa medi- da maior que antigamente. Um resultado desse isolamen- to é que a expe ncia de envelhecer e agonizar, que nas sociedades antigas era organizada por instituigdes e fan- tasias publicas tradicionais, tende a ser ofuscada pelo constrangimento nas sociedades posteriores. Talvez, 20 apontar para a solidao dos moribundos, fique mais facil reconhecer, nas sociedades desenvolvidas, um nucleo de tarefas que continuam por fazer. Estou ciente de que os médicos tém pouco tempo. ‘Também sei que as pessoas e seu circulo de relagdes rece- bem deles mais aten¢ao hoje do que antes. O que fazer se sabemos que uma pessoa preferiria morrer em casa a morrer no hospital, e se também sabemos que em casa ela morreré mais rapidamente? Mas talvez seja exatamente isso 0 que ela quer. Talvez nao seja supérfluo dizer que o cuidado com as pessoas as vezes fica muito defasado em relacdo ao cuidado com seus érgaos. Indice remissivo Arits, Philippe, 19-20, 23, 44n, 7in asilos para idosos, 85-6 assassinato, morte como, 46-7 atitudes em relagao a morte, mudancas nas, 24-31, 43-4, 52-4,96 Beauvoir, Simone de, 101 cadaveres, tratamento dos, 23- 4,37-8 comportamento infantil dos idosos, 82-3 comportamento sexual, elimi- nagio de tabus sobre 0, 49- Sa conhecimento: da prépria morte, 11, 16, 43, 46; maior da realidade, 55-6, 87-8, 95- 6 constrangimento: dos mori- bundos, 68; em presenca dos moribundos, 31-2, 35- 6, 60-1, 77 crengas: seculares, 13, 77; so- brenaturais, 12-5, 44n,77 criangas: € 0 desejo de morte, 46-7; e fatos da morte, 25-6, 30,97 culpa, 17, 23-4, 45-6; e desejo de morte, 17-8, 47-8 dependéncia miitua, 41-2 desejo de morte ver culpa dor, 23, 76-7; controle médico da, 20-1, 37, 74, 89-90 envelhecimento, nao-identifi- cago com 0, 8-9, 79-83 Estado como protetor dos ido- 0s e moribundos, 85-6 estdgios especificos, idéias ca morte segundo, 12, 28-32, 53-5 expectativa de vida, 14-5, 54-5, 90,97 expresso dos sentimentos, 31- 7, 60-1, 68 familia, envolvimento da, 37-8, 74, 84-5, 98-100 Frederico II da Prissia, 32-4 Freud, Anna, 101 Freud, Sigmund, 15-6, 45-6, 101 Gilgamesh, 69 105 a a, 6, BG. e Strauss A.L,, 98-9 Hofmannswaldau, Christian Hofmann von, 27-9 hospitais, rotinas instituciona- izadas dos, 36, 74-5, 98-9, 102-3 ieias de morte para grupos ‘olamento: da morte ¢ do mo- ribundo, 8, 19, 23, 30-1, 37- 8, 52, 60, 67-8, 70, 83-6, 97- 8, 101, 102-3; dos vivos, 42, 61-3, 66-8, 70 inguagem: impropriedade da, 31-4; e sentido, 63-5 Andrew, 30, 38 medicina, 95-6;e adiamento da morte, 55-6, 100-3 medo da morte, 16-7, 41, 76-7; na Idade Média, 19-23, meméria, mortos vivendo da, 40-1,77 mitologizacao da morte, 7, 17 More, Thomas, 22 morte serena, 19-22, 33,57, 59, 7 natureza piiblica da morte no Passado, 23-4, 25.6, 84-5, 86-7, 100 Opitz, Martin, 30, 68-9 Pai, morte do, 47-8 0 a0 idoso, $3- 9 da tabus sobre a morte, 18-9, 52-4 problema social, morte como, 8-11, 18, 35-7 rocesso natural, morte como fim do, 55-6, 57, 95-6 puni¢ao: depois da morte, idéia de, 23; idéia da morte como, 16-8, 45-6, 88 recalcamento da idéia de mor- te, 7, 15-6, 37-43, 47-9 recalcamento: do envelheci- mento, 80-2; da morte, 7, 15-9, 23, 26, 42-3, 52-4, 60- 1, 77,97, 103 rituais: necessidade de, 32, 34- 5; religiosos, 12-3, 36; secu- lares, 36 Indice remissive 107 Sartre, Jean-Paul, 101 ‘Tolstoi, L., 70-2 Seguranca relativa da vida, 13-4 ttimulos,cuidado com os, 37-40 sentido: para os moribundos, 68, 72-3, 74, 76, 99, 102-3; da vida individual, 41-2,62- 3, 64-7, 71-7, 91-2; natureza social do, 63-6 solidao, conceito de, 67, 75-6, 85, 103 Solzhet vida apés a morte, idéias de,7, 12-3,4 violénci 101 morte por, 87-61, ee

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