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CATALOGAGAO NA FONTE, Bo. DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO. Hild Habermas, Sirgen, 1929- Direitoe democraca: entre facticidadee validade, volume I [ingen Habermas; traduo: Flivio Beno Siebeneichler. ~ Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, 354p. em. Biblioteca Tempo University 101) ISBN 85-282.0091-4 Inclui bibliografia 1. Sociologia juridica. 2. Direito - Metodologia. 3. Comunicagéo. I Titulo. H. Série. DD - 340.115 Jiirgen Habermas DIREITO E DEMOCRACIA Entre facticidade e validade Volume 1 Tradugao: FLAVIO BENO SIEBENEICHLER - UGF TEMPO BRASILEIRO Rio de Janeiro - RJ - 1997 BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO, 101 Colegio dgida por EDUARDO PORTELLA Professor da Universidade Federal do Ro de Janciro ‘Traduzido do original alemio: Faktzitdr und Geltung. Beitrdige zur Diskurstheorie des Rechits und des demokratische Rechistaats. # edi ‘io revista e complementada por um pésficio e ums lista bibliogifica, Frankfury(M, Ed, Subrkamp, (1992) 1994 Caps: ‘Antdnio Dias com montagem de VIDA Informsitiea (sta de Frankfurt, s margens do Main) Revisio: Daniel Camatinha da Silva Copyright Subkamp Verlag Frankfurt am Main 1992 (Todas os direitos reservados) Exe livro fi traduzido da 4 edigio revista e complemented por um posticio e uma lista bibliogrifics, Dircitas reservados is [EDIGOES TEMPO BRASILEIRO Rus Gago Coutinho, 61 ~ Laraneiras ‘Tel: (021) 205-5949 Fax: (021) 225.9382, Caixa Postal 16099 - CEP 2221-070 Rio de Janeiro - RI - Brasil NOTA DO TRADUTOR © presente trabalho de Sirgen Habermas constitu sem divida um dos momentos mais interessantes de seus exercicios de azo ccomunicativa, Noles entrelagam elementos da filsofia, do direi- toe das cincias sociais,capazes de provocar discusses fecundas acerca das ingentes questoes de integragio socal, aserem enfren- tadas pelo homem neste final de mil Tal construgio levanta verdadeiros desafios a uma versio do {idioma alemo para 0 portugués, agravadios pelo fato de Habermas slizar como pano de fundo a radigio jurdicaalemieanglo-saxa, ‘A fim de enfrentar esta tare, a tradugio contou com 0 apoio e as sugestdes valiosas dos Profs. Vieente Barreto e Ubiratan B, Macedo, da pés-graduagio em filesofia da Universidade Gama Filho. do Prof. Ricardo Lobo Torres, dapos-graduacioem direito, dda mesma universidade. Por razéeseditorias, a tradugéo aparece dividida em dois volu- res. Foram mantidas em inglés as citagées passagens que 0 proprio Habermas prefer apresentar desta maneira. No final do segundo volume haverd uma lista bibliografiea completa dos au- tores citados no texto. SUMARIO PREFACIO.... 1. 0 DIREITO COMO CATEGORIA DA MEDIACAO SOCIAL ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE..000-17 I. Significado e verdade: sobre a tensio entre facticidade e validade no interior da linguagem. 26 IL Transcendéneia a partir de dentro: superagio da risco de dissenso a nivel arcaico e do mundo da Vidaverneu-35 IIL Dimensées da validade do direito 48 II, CONCEITOS DA SOCIOLOGIA DO DIREITO EDA FILOSOFIA DA JUSTICA 65 1. O desencantamento do direfto por obra das eigneias sociais.. 66 1, Retorno do dtetoracional eimpaténcia do dever-ser 83, ML Parsons ves Weber: fungi soc inegradom do direito... 94 IIL PARA A RECONSTRUCAO DO DIREITO. 0 SISTEMA DOS DIREITOS 113 L._Autonomia privada e piblica, direitos humanos © soberania do povo. TL. Normas morats ejuridicas: Sobre a relagio de ‘complementaridade entre moral racional e diteito positivo.. — Tl, Fundamentagio dos diteits basicos pelo eaminho da teoria do discurso: prinefpio do diseurso, forma do diteito e prineipio da democracia ure TV. PARA A RECONSTRUCAO DO DIREITO (2) (OS PRINCIPIOS DO ESTADO DE DIREITO. L.A relago interna entre dieitoe politica IL Poder comunicativo e formagio legitima do direto. Tl Prinepios do Estado dedi igica da dvsio dos poderes.. . V. INDETERMINACAO DO DIREITO E RACIONALIDADE DA JURISDICAO.... L Hermenéutica realsmo e psitvismo. 245 Tl. Dworkin e a teoria dos direitos. TL. Sobre a teoria do diseuso juridico. VL JUSTIGA E LEGISLACAO. SOBRE O PAPEL E A LEGITIMIDADE DA JURISDICAO. CONSTITUCIONAL. I. Dissolugao do paradigma liberal do direito. IL Normas versus valores: Critica a uma ‘autocompreensio metodologica falsa do controle da constitucionalidade. IHL O papel da jurisdigto constitucional na visio da politica liberal, republicana e procedimental.. 314 330 PREFACIO Na Alemanha, a filosofia do direito no € mais tarefa exclusiva dos fldsofos. No presente trabalho quase nao cito o nome de Hegel © ‘me apsio muito mais na doutrina kantiana do direito: essa attude & fro da timidez perante um modelo cujos padres nio conseguimes nas atingir. Eo fato de afilosofia do direito - quando ainda busca © contato com a realidade social - ter emigrado para as faculdades de direito¢ bastante sugestvo!. Entretanto, evito eair no lado opasto, ou sej, nfo pretend limitar-me a uma filosofia do direito especialzada juridicamente, que tem o seu ponto forte na discussio des fundamen tos do direto penal. O que antigamente pia ser mantdo coeso era conceites da filosofia hegeliana exige hoje um pluralism de proce- dimentos metodologicas que incluias prspectivasdateoria do direito, da sociologia do direitoe da histéra do dreto, da teria moral e da teoria da sociedade. Talestado de coisas é bem-vindo, uma vez que permite focalizar ‘uma facetapluralista da teoria do agir comunicativo, freqientemente ignorada. Os concetos bisicos da filosoia nao formam uma lingua- ‘gem propria ou, pelo menos, nio consttuem mais um sistema capaz de tcl incorporar eles no passam de simples mes para a apropria- ‘io teconstrutiva de conhecimentas cientifics. Eo singular poliglo- tismo da filosofia, que deriva de sua competéncia em tomar 1 HASSEMER, W. “Rectispilcophic, Reciswisersetaft, Rechtspli- {ein Archie fr Rechs~u. Seealpilosophie, Su. 4, 1991, 130-14, 2K. Gilnther esboga a contribuiggo da teoria do discurso para esse {ecma, Cf, Id. "Moplichkeiten einer diskursethischen Begrindung, des Straftechts", in: JUNG, H. et al. (Bas). Recht und Moral. Baden-Baden, 1991, 205-207. ‘ransparentes os conceitos fundamentals, permitethe descobrir ‘oeréncias surpreondentes a nivel metatesrio. Por conseguinte, as propasigées fundamentais da teoria do agir comunicativo ramifi- cam-se em diferentes universes de discurso e contextos de argu rmentagio nos quais elas tém que comprovat-se. primero capitulo enfoca alguns pontos da relago entre fact- cidade © validade, envolvendo aspectos bisicos da teoria do agit ‘omunicatvo. E esse problema, abordado no titulo, necessitari, sem divide alguma, de um esclarecimento mais detaihado, 0 que no poder ser feito, infelizmente. O segundo capituloesboga um principio extremamente amplo, capaz de incorporar as teoras filossficas da Justga e as teorias sociolopicas do direito. Os dois captulos subse- aitenies procuram levar a termo a reconstrugao de partes do direto racional essico no quad de uma teoria do direito apoiada numa teoria do diseurso. E, ness operagio, sirvo-me de pineipios da ética do discus, desenvolvides alhures®. Convém notar, todavia, que _atvalmente eunéo determino maisa tela complementar entre moral « direito seguindo a linha tragada nas Tanner Lectures. No capitulo uinto e no sexto, tento comprovar 0 principio da teoria do diseurso em temas centras da teoria do direto, Refio-me a discusses atuais na Repiiblica Federal da Alemanha e nos EUA, dada minha mai familiaridade com essas duas tradigdesjurdicas: No capitis «no oitavo, esclarego o conceito normatvo de politica deiberativa © cxamino, na perspectva sociolégica,condigées para una regulamen- ‘ago juridica da ciculagio do poder em sociedades complexas. E, neste ponto, prefiro abordar a teoria da democracia sob aspectos dt legitimacio. O limo captulotentareconduziras consideragbessobre 3. HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt M., 1983; Id. Erlduterungen zur Diskursethik, Frankfurt /M., 1991 4 Nomeu entender, o acessoescolhido por K. O. Apel ¢ por demais rnormativista. Cf. “Diskursethik vor det Problematik von Recht und Politik, in: APEL, K.., KETTNER, M. Eds.) Zur Anwendung der Diskursethik in Poliik, Recht und Wissenschaft. Prankfurt ‘M,, 1992, 29-61. teoria do ditto © sobre teora da sovidade a uma unidade, servindo-se do paradigma procedimentalista do direito. Pretendo mostrar, pot este camino, que a teria do agi comunicatvo, a0 conttio do que se afirma mult vezes, Mio € cega para a realidade das insituigges® nem implica anarqui®. to, disposto a garantir efetivamenteliberdades subjetivas iguai traz em seu bojo certos germes anarquicos. ‘Apesar de leigo no assunto, tive que me deter em discusses juriicas especializadas, muito mais do que eu imaginara no inicio. E, esse meio tempo, cresceu meu respeito ante a signifiestivas realiza” ‘goes constrtivas dessa dsciptina. As sugestées para clarficagio da ‘compreensdo paradigmtica que serve de pano de fundo ao direito e 4 moral deveriam ser vistas como uma contibuigso a discussio que ‘se dirige contra oceticismo cada vez mais difundido entre colegas da ‘rea do direito - especialmente contra 0 que eu denomino de falso realism, que subestima aeficcia socal dos pressupostas normativos das pritias juridica existentes. Nas controvérsias sobre a constitu ‘fo juriea da comunidade politica, iniciadasj no século XVI, articula-se uma autocompreensio prtico-moral da modemidade to- ‘mada em seu todo. Ela também se expressa nos testemunhos de uma consciéncia moral universalista e nas instituigées lives do Estado democritico de direto, O sentido normative préprio da teoria do discurso procura reconstrur essa aifocompreensio de maneira a afirmar-se contra redugdescientificists” contra assimlagesestéti- cast, As trésdimensSes de validade, nas qais a autocompreensio da 5. EsaaopiniodeR Bubner rcitradacrnseurvoete live: Antike Themen und ihre modeme Verwendung, Frakfiat yM, 1992, 188-202, «spcialmde ro capt intial "Das sprachiche Matium der Pst” HOFFE, O. Poliische Gerechtigkeit. Prankfurt/M., 1987, 193ss. LUHMANN, N, Beohachtungen der Moderne. Coli, 1992. DERRIDA. J. Gesereestraft. Der ‘mystsche Grund der Aworitd’ Frankfurt JM., 1991 rmodemidade se diferencia, no podem entrar em colapso. Apés tum século que, como nenhum out, nos ensinow os horrores da 1o-razo existente, os tims resquicis da confianga numa 13280 cessencialista evaporaram-se. E a modemidade, uma vez consciente de suas contingéncias, cada vez mais fiea dependente de uma raz80 pprocedimental, isto é, de uma razo que cond um processo contra si mesma, Ors, a critica da tazio é obra dela propria: tal ambigii- dade kantiana’ resulta de uma idéia radicalmente antiplatnica, segundo a qual nio exist algo mais elevado ou mais profundo 0 qual possaznos apelar, uma vez que, 20 chegarmos, descobrimos due nossas vidas ja estavam estruturadas lingisticamente, Ha trés décadas critiquei a tentativa de Marx em trazer a filosofia hegeliana do direito para um filosofia da histéria mate- alist, utlizando as seguintes palavras: “Coma eritica ao Estado de direito burgués... Marx desacre- ditou de tal maneira a idéia da juridicidade e a intenglo do direito natural enquanto tal, dissolvendo sociologicamente a base dos direitos naturais, que o lame entre revolugao e direito natural se ‘desfez. Os partidos de uma guerra civil interacionalizada dividi- amo legado de modo desastroso: um dos lados assumiu a heranga da revolugao, 0 outro a ideologia do direito natural” (0 colapso do socialismo de Estado eo final da “guerra civil mundial” colocaram em evidéneia a falha teérica do partido fra- cassado: descobriu-se que ele confundirao projeto socialista com .esbogo - ea imposigao forcada -de uma forma de vida conereta. Todavia, se entendermos “socialismo” como protétipo de condi- .g6es necessrias para formas de vida emancipadas, sobre as quais 0s prdprios partcipantes precisam entender-se prliminarmente, nio é difieil verificar que a auto-organizagio demoeritia de urna ‘comunidade jurdica forma 0 micleo normativo desse projeto. De ‘outro lado, © partido que se considera vitorioso nao pode come- rmorar 0 seu triunfo. Pois, no momento em que poderia assumir a 9 As conferéncias sobre “Dircito natural e revolugo",proeridas em ‘outubro de 1962, foram publicadas in: HABERMAS, J. Theorie und Praxis. Frankfurt JM, 1971, 89-127, agui of Cap, Ill, Sogo heranga indivisa da autocompreensio pritico-moral da modemi- dade, ele desanima perante a tarefa ingente de levar adiante a domesticagao social e ecoldgica do capitalisme no ambito de uma sociedade mundial ameagada. Ecerto que ele se apressa a respeitar © sentido sistémico proprio de uma economia orientada pelos mercados; ¢ pelo menos esti protegido contra uma dilatagao ‘exagerada do medium do poder de burocracias estatais, Entretanto, falta-Ihe uma sensibilidade semelhante para a fonte que propria ‘mente esti ameagada ~ uma solidariedade social a ser recuperada conservada em estruturas juridicas. Nas atuais sociedades ocidentai, a politica perde sua autocons- ‘igneiae a orientagao perante o desafio iminente de uma delimitago ‘ecol6gica iminente do crescimento econémico e da disparidade cres- ccente entre as condigdes de vida no Norte e no Sul; perante a tarefa historicamente peculiar da reorganizagio de sociedades onde impera- ‘va socialismo de Estado; perante a pressio das correntes migratrias oriundas das regides empobrecidas do Sul e do Oriente; perante os riscos de novas guetras éinicas, nacionais e religiosas, de chantagens atémicas e de lutas intemacionais de parila. Aquém dos floteios retdricos, predomina a pusilanimidade. Nas proprias democracias cestabelecidas, as instituigdes existentes da liberdade nio sio mais ‘nataciveis, mesmo que a democracia aparentemente continue sendo © ideal das populagées. Suponho, todavia, que a inquietagio possul ‘uma razao mais profunda: ela deriva do pressentimentode que, numa época de politica interamente secularizada, mio se pode ter nem ‘manger um Estado de diteto sem democracia radical. A. presente pesquisa pretende transformar esse pressentimento num saber expli cito. Finalmente, convém ter em mente que os sujeitas juridicas privados nao podem chegarao gozo das mesmnasliberdadessubjetivas, seeles mesmos -noexereicio comum de sua autonomnia politica ~ io tiverem clareza sobre interesses e padres justficadose nao chegarem. ‘um consenso sobre aspectos relevantes, sob os quais © que € igual deve ser trtado como igual e o que é diferente deve ser tratado como diferente. ‘Nao me iludo sobre os problemas e os estados de pprovocados por nossa situagéo, Todavia, estados de animo ~ e filesofias de estados de dnimo melanediicos ~ no conseguem n Justificar o abandono derrotista dos conteiidos radicais do Estado “democritico de diteto; eu proponho, inclusive, um novo modo de ler esses conteiidos, mais apropriado as circunstincias de uma sociedade complexa. Caso contriti, eu deveria escolher um outro género literirio - talvez 0 do diitio de um eseritor helenista, ppreocupado apenas em documentar para a posteridade as promes- sas nio cumpridas de sua cultura decadente. Emanexo aparecem dois trabalhos, publicados anteriormente ‘em alemio, O primeiro introduz 0 conceito procedimental de ‘democracia num contexto histérico mais amplo; 0 outro esclarece trés aspectes diferentes do conceito de patrictismo constitucional, uase sempre mal interpretado. As Tanner Lectures, ministradas eis anos, na Harvard University, foram publicadas em inglés, holandés e italiano. Elas nasceram em Frankfurt, durante 0 ano académico de 1985/86, de prelegdes sobre filosofia do direito. "Na mesina época, 0 “Programa-Leibniz”, da Comunidade Ale- ‘ma de Pesquisa (Deutsche Forschungsgemeinschaft), surpreendeu- ‘me com a possbilidade de escolher e de executar um projeto de ‘pesquisa com a duragio de cinco anos. Tal casualidade propicia ensejou a instauragéo de uma comunidade de trabalho voltada para a teoria do dieito, Ela constituiu o contexto excepcionalmente estinn- lantee instrtivo, no qual consegui desenvolvera linha entao iniciada, ‘Senti essa cooperagiio como excepcionalmente feliz'®; dela resultaram ‘muitas publicages e uma série de monografiss. Sem o auxilio produ- tivo de colaboradores competentes, eu no teria tido a coragem de assumir © projeto de uma filosofia do direitos nem teria conseguido apropriar-me dos conhecimentas e argumentos necessérios para sua cexecugio, Além disso, sou grato aos membros permanentes do grupo de trabalho: Inge Maus, Rainer Forst, Ginter Frankenberg, Klaus 10 GONTHER, K. Der Sinn fir Angemessenheit. Frankfurt a/M. 1991; PETERS, B. Rational, Recht und Geselischaft. Frankfurt a/M.. 1991; MAUS, L Zur Aufkldrung der Demokratietheorie. Frankfurt M., 1992; PETERS, B. Die Integration moderner Gesellschaften. Frankfurt yM., 1993; WINGERT, L. Gemeinsinn lund Moral. Frankfurt afM., 1983; FORST, R. Konexte der Gerechtigkeit, Frankfurt M., 1994. Giinther, Bemhard Peters ¢ Lutz Wingert, por seus comentirios valiosos as primeiras versées de meu manuscrito. Também agra dego a Thomas A. MacCarthy por sugestées. Devo tantos ensina- :mentos a pericia jurdica de Klaus Giinther, que quase hesitaria em eximi-lo, como também os outros, da responsebilidade pelos meus ertos ~ © que, no entanto, fago expressamente, Frankfurt, julho de 1992. I. 0 DIREITO COMO CATEGORIA DA MEDIACAO SOCIAL ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE ‘A modernidade inventou 0 eonecito de razio pritica como faculdade subjetiva. Transpondo conceitos aristotéicos par. je missas da filosofia do sujeito, ela produziu um desenraizamento dda razio pritica, desligando-a de suas enearagoes nas formas de vida culturais e nas ordens da vida politica. Isso tomou possivel referir a razio pritica a felicidade, entendida de modo individua- lista e & autonomia do individio, moralmente agudizada - liberdade do homem tido como um sujeito privado, que também pode assumir os papeis de um memiro da sociedade civil, do Estado e do mundo. No papel de cidadio do mundo, o individuo confunde-se com o do homem em gral - passando a ser simulta- neamente um eu singular e geral. O século XIX acrescenta a esse repertério de conceitos, oriundo do séeulo XVIM, a dimensio histérica: © sujeito singular comega a ser valotizado em sua histéria de Vida, ¢ os Estados - enquanto sujeitos do direito internacional - passam a ser considerados na tessitura da hist6ria, das nagdes. Coctente com essa linha, Hegel constréi o conceito “espirito objetivo”. Sem divida, tanto Hegel como Aristoteles estio convencids de que asociedade encontra sua unidade na vida politica na organizagéo do Estado; a filosofia pritica da moder- nidade parte da idéia de que os individuos pertencem a sociedade ‘como os membros a uma coletividade ou como as partes urn todo ‘que se constitu através da igagio de suas partes. Entrementes, as sociedades modemas tomaram-se tio com- plexas, ao ponto de essas duas figuras de pensamento ~ a de uma sociedade centtada no Estado ¢ a da sociedade composta de 7 individuos ~ nao poderem mais ser utlizadas indistintamente. A propria eoria marxista da sociedade convencera-se da necessidade de renunciar a uma teoria normativa do Estado. Aqui, no entanto, tazio pritica deixa seus vestigios filoséfico-histéricos no con- ceito de uma sociedade que se administra democraticamente a si ‘mestna, na qual o poder burocritico do Estado deve fundir-se com ‘a economia capitalista. O enfogue sistémico, no entanto, renun~ ‘iando.a qualquer tipo de contetido normativo da razio pratica, nao ‘repida em apagar até esses derradeiros vestigios. O Estado passa ‘a formar um subsistema ao lado de outros subsistemas sociais funcionalmente especificados; estes, por sua vez, encontr ‘numa relagio configurada como “sistema-mundo circundante”, © ‘mesmo acontecendo com as pessoas ¢ sua sociedade. Partindo da idéia hobbesiana da auto-afirmagio naturalista dos individuos, Luhmann elimina conseqiientemente a razio pritica através da ‘autopoiesis de sistemas dirigidos auto-referencialmente. E tudo Teva a crer que os esforgos de reabilitagdo e as formas empiristas retraidas nao conseguem devolver ao conceito de razio pritica a forga explanatéria que ele tivera no ambito da ética e da politica, do direito racional e da teoria moral, da filosofia da histéria e da teoria da sociedade. 'A filosofia da historia pode decifrar, é verdade, elementos de racionalidade nos processos histéricos, porém, somente os que el ‘mesma neles introduzira, servindo-se de conceitos teleologicos; tampouco é possivel extrair da constituigao histérica e natural do hhomem imperatives normativos para uma conduta racional da vida, Nao menos que a filosofia da historia, uma antropologia nos moldes de Scheler ou de Gehlen ¢alvo da critica das ciéncias que ‘ antropologia tenta em vo tomar a seu servigo - as fraquezas de ‘uma so simétricas em relaglo as da outra. A reniincia contextua~ lista fundamentagéo também no convence, uma vez que se limita a responder as fracassadas tentativas de fundamentagao da “antropologiae da filosofia da histéra, eimando em invocara forga normativa do fitico. A enaltecida linha de desenvolvimento do Estado democritico de direito do Atlintico Norte” certamente nos proporcionou resultados que merecem ser preservados; todavia, os {que castalmente ndo se encontram entre os felizes herdeiros dos fundadores da consttuigao americana no conseguem encontrar, em sua propria tradigio, boas razbes que aconselhem a separar 0 que € digno de ser conservado daquilo que merece critica (Os vestigios do normativismo do direito racional perdem-se, pois, no trilema: apes a implosio da figura da razao prtica pela filosofia do sujeit, nao tems mais condigées de fundamentar os seus contetdos na teleologia dahistria,na constituigao do homem, ‘ou no fundo casual de tradigdes bern-sucedidas. Isso explica os arativos da tinica opgio que ainda parece estar aberta: a do desmentido intrépido da razao em geral nas formas dramaticas de uma critica da razio pés-nictascheana, ou & maneira sSbria do funcionalismo das cfgneias sociais, que neutraiza qualquer cle- mento de obrigatoriedade ou de significado na perspectiva dos participantes. Ora, todo pesquisador na drea das cigncias sociais ue nio deseja apostar tudo em algo contra-intuitivo, no sera atraido por tal solugio. Por esta ra2io, eu resolvi encetar um ceaminho diferente, langando mao da teoria do agir comunicativo: substituo a razio pritica pela comunicativa. E tal mudanga vai ‘muito além de uma simples troca de etiqueta. [Nas tradigses culturas da velha Europe, havia uma ligagao demasiado direta entre razao priticae pritica Social. Isso fez.com ‘que essa iltima fasse abordada unicamente pelo angulo de ques- ‘onamentos normatives ou criptonorma:ivos- filtrados através de uma filosofia da historia. Ate Hegel, a razac pritica pretendia otientaro individuo em seu agir, eo direito natural devie configu rar normativamente a tinica e ‘correta ordem politica ¢ social. Todavia, se transportarmos 0 conceito de razao para o medium lingtistico e o aliviarmos da ligagio exclusiva com o elemento moral, ele adquiriré outros contornos teéricos, podendo servir aos objetives descritivos da reconstrugio de estrturas da competéncia da consciéncia, além de possibilitar a conexio com modos de ver funcionais e com explicagdes empiricas' 9 ‘A razio comunicativa distingue-se da razio pritica por no estar adscrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sociopolitico. © que toma a razio comunicativa possivel ¢ 0 ‘medium lingiistico, através do qual as interagbes se interligam © 1s formas de vida se estruturam. Tal racionalidade esta inseita no ‘clos lingiistico do entendimento, formando um ensemble de condigdes possibilitadoras e, o mesmo tempo, limitadoras. Qual- quer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de enten- der-se com un destinatirio sobre algo no mundo, vé-se forgado a adotar um enfoque performativo e a aceitar determinados pressu- postos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reservas seus fins Hlocucionsrios,Higam seu consenso ao reconhecimento intersubje~ tivo de pretenses de validade eriticdveis, evelando a disposigao de aceitar obrigatoriedades relevantes para as conseqiiéncias da interago € que resultam de um consenso. E o que esté embutido na base de validade da fla também se comunica as formas de vida reproduzidas pela via do agir comunicativo. A racionalidade co- ‘munjeativa manifesta-se num contexto descentrado de condigoes {ue impregnam ¢ formam estruturas, transeendentalmente possi- bilitadoras; porém, ela propria no pode ser vista como uma ‘eapacidade subjetiva capaz de dizer aos atores o que devem fazer. ‘Arazio comunicativa, 20 contrivio da figura clssica da razao pritica, nio é uma fonte de normasdo agi. Ela possui um contetido rormativo, porém somente na medida em que o que age comnuni- cativamente 6 obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmiticos de tipo contrafactual. Ou sea, ele ¢ obrigado a empreender idea zagées, por exemplo, a atrbuir significado idéntico a enunciados, a levantar uma pretensio de validade em relagao aos proferimentos © a considerar os destinatirios imputiveis, isto é, auténomos € vverazes consigo mesmos e com os outros. B, ao fazer isso, © que age comunicativamente nao'se defronta com. “ter que” prescitivo de uina regra de agio e, sim, com o “ter que de uma eoergio transcendental fraca ~ derivado da validade deoniolégica de um ‘mandamento moral, da validade axioldgica de uma constelagio de Valores preferidos ou da eficdcia empirica de uma regra técnica Um leque de idealizagées inevitiveis forma a base contrafactual 20 de uma pritica de entendimento factual, a qual pode voltar-se criticamente contra seus proprios resultados, ou transcender-se a propria facticidade de formas de vida estrturadas lingisticamen- te. Os pressupostos idealizadores sobrecarregam, sem dvida, a pritica comunicativa cotidiana porém, sem essa transcendéncia {nttamundana, nio pode haver processos de aprendizagem. ‘A razio comunicativa possibilita, pois, uma orientagdo na base de pretensies de validade; no entanto, ela mesma nao fornece rnenhum tipo de indicagio conereta para o desempenho de tarefas priticas, pois nao é informativa, nem imediatamente pritica. De tum lado, ela abrange todo o espectro de pretensdes de validade da verdade’proposicional, da veracidade subjetiva e da corregio normativa, indo além do imbito exclusivamente moral e pritico. De outro lado, ela se refere apenas as inteleegdes e assergdes criticveise abertas a um esclarecimento argumentativo ~ perma- necendo neste sentido aquém de uma razio pritiea, que visa a motivagio e & condugio da vontade. A normatividade no sentido da orientagio obrigaoria do agir no coincide com a racionalidade {do agirorientado pelo entendimento em seu todo. Nommatividade ‘etacionalidade crizant-se no campo da fundamentagao de intelec- {98es mors, obtidas num enfoque hipottico, as quais detém uma ‘era forga de motivagio raconal, ndo sendo eapazes, no entanto, de garantir por si mesma a transposigo das idéas para um agit motivado?. E preciso levar em conta tais diferengas, ao considerar 0 conceito de razo comunicativa, que sito no ambito de uma teoria reconstrutiva da soiedade. Nesse contexto moifieado,o proprio conceit tradicional de razao pritica adquire um novo valor heu- istic, Nio funeiona mais como orientagao dieta para una teoria ‘normativa do direitoe da moral. Mesino assim, ele se transforma num fio condutor para a reconstrugio do emaraihado de discursos formadores da opiniso e preparadores da decisio, na qual est embutido 0 poder democrtico exercitado conform 0 direito 2 Id, Erldwcerungen zur Diskursethik, Frankfurt s/M., 1991 (a). a [Nessa perspectiva, as formas de comunicagio da formagao poli- tica da vontade no Estado de direto, da legislagio e da jurispra~ dncia, aparecem como partes de um proceso mais amplo de tacionalizagio dos mundes da vida de sociedades modemas pressionadas pelos imperatives sistémicos. Tal reconstrugo co Joca-nos nas maos uma medida critica que permite julgar as praticas de uma realidade constitucional intransparente. distancia em relagio aos conceitos tradicionais da razio pritica, nao é trivial constatar que uma teoria contem- porinea do direito ¢ da democracia continua buscando um engate na coneeituagio clissica. Ela toma como ponto de par- tida a forga social integradora de processos de entendimento nio violentos, racionalmente motivadores, eapazes de salva- guardar distancias e diferengas reconhecidas, na base da manu- tengio de uma comunhao de conviegdes. Ha muitos fildsofos da moral e do diteito conduzindo seus discursos normativos nesta diregao, de uma forma até mais animada do que anti- gamente. Ao se especializarem em questdes de validade normativa, no enfoque performativo de participantes e atin- sridos, eles caem certamente na tentagio de permanecer no interior do horizonte limitado de mundos da vida ha muito tempo exoreizado pelos observadores das ci i Teorias notmativas expdem-se & suspeita de néo levarem na devida conta os duros fatos que desmentiram, faz tempo, a autocompreensio do moderno Estado de direito, inspirada no diteito racional. Pelo angulo da objetivizagao das ciéncias sociais, uma conceituagao filoséfica que insiste em operar com a alternativa: ordem estabilizada através da forga © cordem legitimada racionalmente, remonta a seméntica de iransigéo da baixa modernidade, que se tornou obsoleta a partir do momento em que se passou de uma sociedade estratificada para sociedades funcionalmente diferenciadas. Ea propria estratégia tedrica que privilegia um conceito comu- nicativo capaz de substituir a “razio pritica” é obrigada a sublinhar uma forma especialmente e

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