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Realista e idealista I Nise se pode entender a importancia histérica de Platdo sem considerar primeiro o impacto de Sécrates, seu memter. Como Sécrates n4o nos legou nenhuma colegio de textos e coma quase sempre estrela o sdbio supremo nos Didlogos de Plat&o,\ é dificil discernir onde acaba Sécrates e onde comeca Plata. Séerates, o “critico de Atenas”, nasceu em 470 a.C. Ele cres- ceu durante os anos dourados da cultura grega, periodo que testemunhou 0 génio de Euripides e Séfocles na literatura, a influéncia de Péricles na politica e a edificagdo do Partenon. A guerra com a Pérsia era coisa do passado, e Atenas emergia vitoriosa como poténcia naval. Os anos dourados de Atenas, no entanto, duraram pouco. O brilho do dourado foi sendo ofuscado pelo peso dos impostos arrecadados por Péricles. Isso causou a guerra do Peloponeso em 431, que terminou em 404 com a derrota de Atenas. En- quanto isso, a forte politizacéo da educacao, da economia, do direito e das obras publicas levou ao declinio tanto do pensa- mento substantive quanto das virtudes civicas, ambas inimi- gas de todo empreendimento democratico empenhado a fazer concessées relativizando a ética. Cinismo e ceticismo sangra- ram a cultura grega da sua grandeza. A antiga busca da arché, a realidade fundamental, dera lugar a um nove tipo de ceti- cismo e pragmatismo. Essa nova postura foi encarnada pelos sofistas do quinto século a.C. 30 Filosofia para iniciantes Os sofistas Dos sofistas da Antigiiidade derivam termos como “sofis- ma”, “sofomania” (mania de passar por sabio) e “sofisticado” em seu sentido pejorativo. Os trés lideres mais famosos desse movimento foram Gérgias, Protégoras e Trasimaco. Gérgias é conhecido por introduzir o ceticismo radical. Ele deu as costas a filosofia e dedicou-se 4 retérica. Essa disciplina enfocava a arte da persuasdo no discurso publico. O objetivo da retérica ndo era proclamar a verdade, mas atingir objetivos por meio da persuasao. Gérgias negou que houvesse qualquer verdade. “Todas as afirmagées s4o falsas”, ele declarou. Nao pareceu incomeda-lo que, se todas as afirmacdes sao falsas, a afirmacao “todas as afirmagées sao falsas” também 6, o que significa que pelo menos algumas afirmagées tém de ser verdadeiras. Suas idéias no sio muito diferentes das dos relativistas de hoje, que procla- mam que nao ha absolutos {a nao ser 0 absoluto de que nao ha absolutos!). Ele baseia seu axioma na premissa de que nada existe. Todavia, ele deixa a porta entreaberta ao dizer que, se algo existe, é incognoscivel e incompreensivel. E, mesmo que exista e seja cognoscivel, é incomunicavel. As posigées de Gorgias e outros serviram para despertar Socrates do seu sono dogmatico, assim como o ceticismo de David Hume acordaria Immanuel Kant séculos mais tarde. Sécrates entendeu que a morte da verdade significaria a morte da virtude, e que a morte da virtude seria 0 beijo da morte da civilizagao. Sem verdade e virtude, o dnico resultado possivel é a barbérie. Trasimaco, que contrasta com Platao na Repéblica,2foi um sofista que atacou a busca dejustiga. Segundo Trasimaco, longe de ser uma pessoa imoral, o impio, ao constatar que o crime compensa, é uma pessoa superior com intelecto superior. ‘Trasimaco antecipou assim o Ubermensch (“super-homem”) de Friedrich Nietzsche. A justica, diz Trasimaco, é um conceito para as pessoas de mente debilitada, as quais falta a determi- nagdo de se afirmar. Os que sobem ao nivel dos verdadeiros mestres sao os que preferem a injustiga. Aqui temos a filosofia Wario: realise tdeaista 000 da “lei do mais forte” em seu grau maximo, a filosofia da bar- barie. Antecipando Karl Marx, Trasimaco vé a lei como uma simples manifestago dos interesses das classes dominantes. Protdgoras, provavelmente o sofista mais influente em Atenas, ¢ quase sempre chamado “pai do antigo humanismo” pelos historiadores modernos. Sua famosa maxima, “homo mensana”, declara que “o homem é a medida de todas as coisas”, da existéncia das coisas que sic e da ndo-existéncia das coisas que néo sao. De uma perspectiva bfblica, é claro, a honra de ser 0 pri- meiro humanista nfo pertence a Protdgoras. Na verdade, ela é atribufda ndo a uma pessoa, mas a uma serpente, cuja maxima era “sicut erat Dei”, “sereis como Deus” (Gn 3.5). Para Protagoras, o conhecimento comeca e termina com 0 ser humano. Todo conhecimento humano restringe-se as nos- sas percepgées, e as percepcées diferem de pessoa para pessoa. A verdade possivel nfo é nem possfvel nem desejavel. Em ulti- ma anilise (se é que existe uma ultima andlise), nao ha dife- renga perceptivel entre aparéncia e realidade. Percepgao é rea- lidade, Dessa forma, algo pode ser verdadeiro para uma pessoa e falso para outra. Isso 6 correto, com certeza, com respeito a preferéncias. Posso preferir sorvete de chocolate e vocé de baunilha, Proté- goras, porém, vai além do aspecto subjetivo da preferéncia, passando a reduzir toda a realidade a uma questao de preferén- ia. Isso torna o conhecimento cientifico manifestamente im- possivel, pois n&o existem padrées ou normas para distinguir a verdade do erro. Se vocé prefere crer que dois mais dois sie cinco, para vocé sao. Protagoras argumenta que a ética ¢ igualmente apenas uma questo de preferéncia. As regras morais expressam meros ¢os- tumes ou convencées, que na verdade nunca sao certos nem errados. A distingdo entre defeito e virtude esta nas prefe- réncias de dada sociedade. O romano Séneca diria que, quando os defeitos se tornam um hdbito ou convengao aceitos pela so- eiedade, eles sio praticamente impossiveis de elimina Protdgoras t¢m a mesma opinido a respeito da metafisica e da teologia. Apesar de reconhecer que algumas pessoas 32 Filosofia para iniciantes Tabela 2.1 Os sofistas Século|Nasc.—|Lugar de | Domieilio| Obra principal {a.C.) |morte | nascimento (aprox,) ‘Sobre ontio-ser ‘Veja repiiblica, de Plato, livro 1 Protagoras | V 490-420 | Abdera ‘Veja Protdgoras, de Platéio “preferem” a religido e que isso é bom para elas, ele diz: “Quanto aos deuses, nfo tenho condicées de saber se eles exis- tem ou ndo, nem que forma téme; os fatores que impedem o conhecimento séo muitos: a obscuridade do tema e a brevidade da vida humana”. Sdcrates Sécrattes levantou-se nesse cendrio de sofismas. Ele néo tinka nenhuma disposicéo de abandonar a busca da verdade, e muito menos de ficar olhando a civilizagao desmoromax. H4 quem diga que, em sua época, Sécrates foi o salvador da civilizacdo ociden- tal. Ele percebeu que conhecimento e virtude sdo inseparavels— tanto que a virtude poderia ser definida como o conhecimento correto, Pensar e agir corretamente podem ser distinguidos um do outro, mas jamais separados um do outro. O método para descobrir a verdade atribuido a Sécrates é 0 didlogo. Nos primeiros didlogos escritos por Plato, Sécrates 6 0 protagonista. Os estudiosos debatem se a pessoa retratada nesses didlogos 6 0 Sécrates real e histérico ou apenas uma per- ‘Piatdo: realista e idealista 53 sonagem apreciada por intermédio de quem Platdo expressa suas préprias idéias. Qualquer que seja 0 caso, restam poucas ddvidas de que Sécrates inventou o chamado “métode socré- tico”. O método socratico de discernir a verdade é fazer perguntas desafladoras. As pressuposigées s4o questionadas, 4 medida que cada perganta aprofunda o tema em vista. Sécrates estava con- vencido de que, para adquirir conhecimento, é preciso primeiro admitir a prépria ignorancia. Esse reconhecimento é o princé- pio do conhecimento, mas de forma alguma seu objetivo ou fim. E uma condigéo necesséria para aprender. Para Sécrates, porém, ao contrario dos céticos, o conhecimento é possivel, por meio do aprendizado. Séerates foi persistente em sua busca de definigdes exatas, essenciais ao verdadeiro aprendizado e & comunicagio precisa. Por exemplo, ele acreditava que havia uma coisa chamada fustica, apesar de ser dificil definir justia com preciséa. Ante- cipando-se ao Iluminismo, Sécrates usou um método analitico pelo qual examinava a légica dos fatos. Para ele, légica 6 0 que sobra depois que se esgotam os fatos. “A beleza permanece depois que a rosa murcha”, ele dizia. Ele procurava os univer- sais que se vislumbram do estudo dos particulares. Sécrates foi um martir da causa da filosofia. O fato de ele questionar incessantemente os atenienses, concentrando-se em temas de moral e costumes, fez com que suspeitassem das suas intengdes. Em parte os que desconfiavam de Sécrates podem ter tido razdo, pois ele desafiou a conduta dos jovens da classe dos patricios. Um dos alunos de Sécrates, um homem chamado Alcibiades, traiu os atenienses entregando segredos deles aos espartanos. Em conseqiléncia disso, Sécrates foi considerado mentor de traidores e levado a julgamento. Foi acusado de nao adorar os deuses do estado, de introduzir praticas religiosas estranhas e de corromper os jovens da cidade. O promoter pediu que se lhe aplicasse a pena de morte. Sécrates rejeitou ceder em suas posigées para escapar da morte, preferindo beber cicuta, o veneno escolhido para a execugéo. Sua morte dramé- tica é relatada por Platdo no didlogo Fédon,3 34 Filosofia para iniciantes Platdo, aluno de Sécrates Plato nasceu em Atenas em 428 a.C. e morreu com oltenta anos de idade. Uma tradigdo reza que seu nome significa “ombros largos®, apelido que recebeu quando jovem, por evi- denciar talento como lutader. Antes de conhecer Sécrates, Platao se interessava por poesia, interesse que manteve e que pode ser visto em seu estilo literario. Estudou com Sécrates quando j4 tinha mais de vinte anos. Depois da morte do sew menter, Platdo deixou Atenas e foi viajar pelo mundo. Na Sici- lia, conheceu os pitagéricos (seguidores de Pit4goras). Durante essa viagem, diz a lenda, ele foi seqitestrado, colocado 4 venda como escravo, resgatado por um amigo e enviado de volta a Atenas. Aos quarenta anos fundou a Academia, pela qual ficou famoso. Membro da aristocracia ateniense, o pai de Plat&o descendia dos primeiros reis de Atenas. A Academia recebeu esse nome porque Platao havia obtido um pedaco de terra nos arredores de Atenas de um benfeitor chamado Academos. A Academia, situada num jardim de oliveiras, deu origem a expressdo “os jardins de Academes”. Uma placa colocada na entrada da Academia dizia: “So- mente para geémetras”. Para o observador moderno essa placa quer dizer que a escola ensinava apenas matemAties. A verda- deira paixio de Platao, porém, era a filosofia. A relac&o com a geometria é a seguinte: tanto a matematica como a filosofia podem ser consideradas ciéncias formais (relativas a forma ou esséncia), em distingao das ciéncias fisicas ou materiais. Platéo sempre teve grande interesse pela matemitica e sua relagdo com as formas abstratas, tema central em seu pensamento. No centro da complexa teoria filoséfica de Platéo estava seu desejo de “salvar os fenémenos”. “Fenémenos” refere-se as coisas evidentes ou manifestas aos nossos sentidos. A tarefa da ciéncia, em termos simples, é explicar a realidade. Os paradig- mas cientificos mudam enquanto buscam explicagdes mais exatas e abrangentes para a realidade que se observa. Assim, “salvar os fendmenos” significa construir uma teoria que explica a realidade com um minimo de anomalias. Anomalia é Paatdo: realista ¢ idealista 35 ‘um dado que no se encaixa no padrio ou no pode ser explicado pelo modelo ou paradigma do momento; o paradigma é obrigado ‘a mudar quando as anomalias se tornam muito fortes ou nu- merosas. A paixdo de Platdo por “salvar os fendmenos” ajudou a edificar os fundamentos filoséficos da ciéncia. Q paradigma de Platao tinha o propésito de resolver a tensto entre Parménides e Heraclito, a tenséo entre movimento e per- manéncia, entre ser e vir a ser. Usando os termos hegelianos posteriores da dialética, podemos dizer que o pensamento de Herdclito (vir a ser, movimento) era uma tese, e o pensamento de Parménides (ser, permanéncia) era sua antitese; Platéo procurou uma sintese que explicasse tanto mudanga como permanéncia, que incorporasse ser e vir a ser, como pélos de uma dialética que parece ser exigida por uma visio abrangente da realidade. A teovia das idéias As vezes os estudantes ficam confusos ao ver Platao ser des- crito tanto como realista quanto como idealista. Na nomen- clatura moderna, esses termos sio usados como anténimos. ‘Um idealista tende a ver o mundo através de éculos cor-de-rosa, ignorando 0 lado duro da realidade. Inversamente, um realista tem uma atitude cética em relacdo aos ideais elevados e prefere concentrar-se nas chagas e nédoas da vida. Quando os termos idealista e realista sio ambos aplicados a Plato, pretende-se algo diferente. Ele era um idealista por causa do significado central que atribuia as Idéias (Com “i” maitisculo). E era realista porque argumentava que as idéias nao séo meros construtos mentais ou nomes (nomina), mas entidades reais. Platao imaginou dois “mundos” diferentes. O mundo ou esfera da realidade principal é o mundo das idéias. Esse lugar metafisico esta além ou por tras da esfera das coisas materiais. Para Platdo, o mundo das idéias nao apenas é real, mas também “mais real” do que o mundo dos objetos fisicos. Para Platao, o mundo das idéias é a esfera do verdadeiro conhecimento. O mundo dos objetos materiais é a esfera da 36 Filosofia para iniciantes Figura 2.1 A sintese de Platio Stntese: Ser e vir a ser, permanéncia e movimento (Platéo) Tese: vir a sere movimento (Heréclito) mera opinido. Sua famosa analogia das cavernas ilustra isso. Em A repiblica, Platao conta a histéria imagindria de pessoas que viveram como prisioneiras em uma caverna desde a infan- cia. Est4o acorrentadas e imobilizadas. Seu campo de visao res- tringe-se a um muro que estd imediatamente A sua frente. Por tras delas h4 uma 4rea mais alta por onde passam outras pes- soas, earregando objetos feitos de madeira, pedra e outros mate- riais. A luz de uma fogueira langa as sombras das pessoas sobre © muro que 0s prisioneiros conseguem ver. Eles ouvem a voz daquelas pessoas e concluem que as vozes vém das sombras. De fato, a unica percepcdo que eles tém da realidade vem dessas sombras. Platao, entao, pergunta o que aconteceria se um dos prisio- neiros fosse solto e autorizado a andar em diregao ao fogo. Imo- bilizado por tantos anos, andar lhe seria doloroso. O brilho da fogueira ofuscaria seus olhos. Como olhar para objetos de ver- dade exige mais esforco do que olhar para sombras, ele estaria inclinado a retornar a sua posicao de antes e limitaria seu olhar 4s sombras com que est4 acostumada. Pintio: realista e idealista 37 Agora imagine que esse prisioneiro fosse arrastado da caverna para 0 sol do meio dia. A dor nos seus olhos seria muito maior. Logo, porém, seus olhos se acostumariam com a luz, e ele poderia ver as coisas claramente. Para ele isso seria uma grande revelac&o. Se, depos, ele fosse obrigado a retornar & caverna e tentasse explicar sua nova compreensio da realidade, ele seria ridicularizado. “Se aquelas outras pessoas pudessem pér as maos naquele homem que estava tentamdo libert4-las e lev4-las para fora, elas o matariam”, disse Platdo, referindo-se talvez ao destino de Sécrates, seu amado mentex. Para Platao, o conhecimento que se restringe ao mundo material, na melhor das hipéteses, ¢ mera opiniao, e, na pior, ignorancia. A tarefa da educagao é conduzir as pessoas da escuridao para a luz, da caverna com suas sombras para o sol do meio dia. O termo latino educare descreve esse processo. Seu significado literal é “conduzir para fora”, pois a raiz ducare significa “conduzir”. Lembremo-nos de que Benito Mussolini usava o titulo 1 Duce, que significa “o lider”. Platao dizia que as pessoas vivem em dois mundos dife- rentes: o mundo das idéias e o mundo dos objetos fisicos. Ele chamava os objetos materiais de “receptaculos” s-aoisas que recebem ou contém outras coisas. O objeto fisico contém sua idéia ou forma. A forma é distinta do objeto. A forma causa a esséncia de uma coisa. Nesse sentido, 0 objeto material participa da sua forma ideal ou a imita. Mas nao passa de uma cépia da forma ideal, além disso imperfeita. Esse conceito da relacéo entre forma e matéria, idéia e receptaculo, esta no centro da nogao grega da imperfeicdo inerente a todas as coisas materiais, 0 que levou inevitavel- mente ao desprezo pelas coisas fisicas. Essa visio negativa da realidade fisica influenciou muitas teologias cristas. A teovia da recandiagiio A ontologia de Platao (sua teoria da natureza do ser) teve uma influéncia importante sobre sua epistemologia (sua teoria da natureza do conhecimento). A teoria da recordagao é fre- 38 Filosofia para iniciantes qiientemente chamada teoria da reminiscéncia. Tanto recor- dagdo quanto reminiscéncia pressupéem o ato de lembrar. Para entender essa idéia, facamos a seguinte pergunta: quando vocé pensa em uma cadeira, que idéia ou conceito vem: A sua mente? Uma cadeira de madeira com encosto e assento de eouro? Uma cadeira de metal, dobrdvel? Uma cadeira estofada, na sala? Ou talvez uma cadeira de balango? Esses sho apenas alguns exemplos de uma grande variedade de objetos chamados “cadeira”. Como definirfamos as caracteristicas comuns ou a Sesséncia® de uma cadeira? Podemos dizer simplesmente que cadeira é “um objeto em que se senta”? Isso no seria adequado. Sentamos em objetos que nSo chamamos de cadeiras. H4 diferenca entre cadeira e sofa, cadeira e banco, cadeira e ban- queta. Podemos dizer que uma cadeira tem quatro pernas, mas algumas tém trés e outras tém mais, e cadeiras de balanga nao tém pernas. Mesmo Platao as vezes teve dificuldades para definir as coisas com exatidao. Ao procurar uma definicdo para ser humano, ele se deteve por algum tempo na definicéo “bipede sem penas”, até que um dos seus alunos, de detras de um muro, jogou uma galinha depenada portando um cartaz que dizia: “O homem segundo Platao”. Platéo argumentou que no munde ideal existe uma idéia perfeita de cadeira ou “cadeiridade”. Nossa alma vem do mundo ideal j4 com o conhecimento da cadeira ideal. Esse conheci- mento é obscurecido mas ndo apagado pelo corpo, que ¢ a prisao da alma. O corpo é a caverna em que a alma ou mente é mantida presa. As cadeiras que vemos no mundo fisico s4o sombras ou cépias imperfeitas da cadeira real, ideal. Reconhecemos as ca- deiras como tais & medida que se aproximam da idéia perfeita de “cadeiridade” que é inata 4 nossa mente. Lembro-me da tentativa da Suprema Corte dos Estados Unidos de definir pornografia. “Posso nao ser capaz de definir pornografia, mas eu sei quando a vejo”, disse um dos juizes. Do mesmo modo, podemos nao ser capazes de definir a cadeira de modo preciso ou exaustivo, mas sabemos quando vemos. uma. Platao explicaria isso dizendo que nosso encontre com Piutdo: realista e idealist 38 uma cadeira fisica, que é receptaculo ou cépia imperfeita da cadeira ideal ou da idéia de “cadeiridade”, estimuia nossa meméria da idéia perfeita de cadeira. Por isso a chamamos cadeira. Plat&o desenvolveu esse tema em diversos didlogos. Em Meno,4Sécrates leva um jovem escravo sem instrugio a pro: nunciar 0 teorema de Pitagoras. Fazendo as perguntas certas ao rapaz, Sécrates o leva a recordar a verdade formal desde o# recénditos mais profundos da sua alma ou mente. Para Plato, 0 eonhecimento nao vem pela experiéncia (a posteriori), mas pela razdo (a priori). As idélas fundamentais s&o inatas e nao descobertas pela experiéncia. A melhor coisa que os sentidos podem fazer é despertar a consciéneia para o que ela ja sabe. No pior das hipéteses, os sentidos podem iludir a mente. Ensinar é, de certa forma, o trabalho de uma parteira, em que o professor apenas ajuda o aluno a dar A luz uma idéia que ja esta all. Plato colocava a mente em primeiro lugar. Nao é de admi- rar que ele tenha colocado a placa “somente para gedmetras”. A mente ou alma tem trés partes, de acordo com Platée: raziio, espirito e apetite. Razao diz respeito a percepgfo de um valor ou objetivo. Espirito é 0 que pressiona para a ago, sob im- pulso da razao. Apetite é o desejo por coisas fisicas. Experi- mentamos conflito moral quando o espirite sofre a oposigho do apetite. Eles sio como cavalos que nos puxam em dire¢bes opostas, A vida correta ou virtuosa é dominada pela razéo contemplativa. O verdadeiro fildsofo nao pode satisfazer-se com o conheci- mento empfrico ou sensorial, que nao é o conhecimento ideal, mas o conhecimento nebulose da opinido - o “conhecimento” da caverna. O verdadeiro filésofo busca a esséncia das coisas, o# ideais, Isso Ihe permite elevar-se acima da superficialidade do sofisma e do ceticismo dos materialistas. Ele busca 0 univer- sal @ n&o se satisfaz com uma lista de particulares. Depois de discernir que determinado objeto é belo ou virtuoso, ele vai além daquele particular para descobrir a prépria esséncia da beleza e da virtude. Algo s6 é bom se participa ou imita a idéia perfeita do bem, e esse ideal era 0 deus de Platao. 40 Filosofia para Iniciantes Desde Platao, a filosofia jamais deixou de lutar com a po- sicdo metafisica das idéias, a relagao entre o formal e 0 material e a relacao entre a mente e os sentidos. Notas 1. PLATAO, Dialogues. Eric H. WARMINGTON e Philip Rouse (eds.), Nova lorque, Mentor/Penguin, 1956 (em portugués, Didlagas). 2. PLATAO, The republic. Nova lorque, Oxford University Press, 1998 (em portugués, A repiiblica). 3. PLATAO, Phaedo. Nova lorque, Oxford University Press, 1999 (em portugués, Fédon). 4. PLATAO, “Meno”, em Protégoras e Meno. Nova lorque, Penguin, 1957 (em portugués, Menon).

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