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IMPRENSA EM QUESTÃO

CASO FELIPE E LIANA


E se fossem Maria e João?
Túlio Lima Vianna (*)

O homicídio dos adolescentes Liana e Felipe, tão alardeado


pela mídia na última semana, não passaria de uma tragédia
particular como tantas outras registradas cotidianamente em
nossas delegacias de polícia não fossem as circunstâncias nas
quais ocorreu. Não me refiro ao grau de crueldade na
execução do crime, pois dezenas de Marias e Joões são mortos
todo dia em situações tão ou mais bárbaras, e não são objeto
sequer de uma nota nos jornais de primeiro escalão. O que
difere este homicídio daqueles que já não vendem mais jornais
é a posição ocupada pelas vítimas na sociedade. Na balança
da mídia e de seus consumidores de tragédias pessoais, a vida
de um adolescente de classe média vale muito mais do que a
de João e Maria...

O que choca nas mortes de Liana e Felipe não são as


circunstâncias da execução, mas a transferência que o
leitor-telespectador-consumidor faz, colocando seus próprios
filhos na situação das vítimas de fato. As mortes das Marias e
dos Joões não chocam, pois se dão nas favelas, na periferia,
em suma, em lugares demasiadamente distantes e "perigosos"
– as aspas aqui são imprescindíveis – para a maioria dos filhos
da classe média.

Estudo e assistência

Liana e Felipe, em sua sede de aventura, foram vítimas da


desigualdade brutal que tanto os distanciavam de Champinha,
seu suposto algoz e atual personificação do demônio, segundo
a mídia-urubu que a cada dia mais infesta nossos noticiários.
Liana e Felipe criam que sua passagem por aquelas terras se
daria de forma quase imperceptível – tal como ocorreria num
shopping –, esquecendo-se de que a desigualdade social é
demasiadamente visível e cruel àqueles que olham de baixo.

O trágico fim da história todos conhecem, tal como foi contado


pela mídia em versão para adolescentes da velha fábula de
João e Maria, aprisionados pela perversa bruxa da floresta.

E como em todo velho conto de fadas a mídia não podia deixar


de buscar uma moral na história: os adolescentes rebeldes de
classe média devem doravante obedecer a seus pais, e os
garotos pobres deverão ser encarcerados a partir dos 16 anos,
para a proteção dos primeiros.

Se o garoto Champinha tivesse estudado nos mesmos colégios


de Liana e Felipe teria se tornado tão "violento"? Se o Estado
tivesse proporcionado a Champinha um tratamento adequado
às convulsões que passou a ter a partir dos 14 anos, teria ele
tamanho desprezo pela vida humana?

Consumidores de carniça

Violento é Champinha, e não o Estado, que lhe negou uma


infância minimamente digna, e a mídia, que só enxerga
crianças e adolescentes miseráveis para mostrar a seus
consumidores o quanto eles são "perigosos" e com que frieza
eliminam uma vida.

Quanto vale uma vida humana? As de Liana e Felipe,


certamente valiam muito, não só pelo amor de suas famílias,
mas também de um ponto de vista exclusivamente econômico,
pelos investimentos que foram feitos em alimentação,
educação, saúde e tantos outros. Valem tanto que vendem
jornais e dão audiência.

A de Champinha não vale nada. Pouco ou quase nada foi


investido nele: alimentação, educação, saúde e lazer, para ele,
não são mais do que palavras impressas em nossa
Constituição Federal, que ele dificilmente consegue ler.

Como então exigir de Champinha que respeitasse a vida de


Liana e Felipe, se o Estado e a sociedade nunca respeitaram a
sua?

A mídia-urubu e seus consumidores de carniça impressa e


gravada clamam por justiça, em nome de Liana e Felipe, que
tiveram a infeliz idéia de acampar no lugar errado, num misto
de desafio e coragem.

Mais exclusão

Reduzir a menoridade penal é a forma mais simples e


irracional de se resolver um problema complexo: lugar de
criança e de adolescente é na escola, e não trabalhando como
tantos de nossos jovens, que perdem suas infâncias e
adolescências para ajudar no sustento de seus lares.

Antes de cogitarmos em reduzir a menoridade penal temos a


obrigação constitucionalmente consagrada de colocar todas as
nossas crianças na escola e – principalmente – garantir-lhes
que possam permanecer estudando, dando às suas famílias o
mínimo de condições de subsistência. Assim fazendo
certamente estaremos evitando tragédias como esta.

Do contrário, a redução da menoridade penal será mais uma


nova lei que marginalizará ainda mais os filhos da miséria com
o fim único de amenizar os ânimos dos
leitores-telespectadores indignados com a violência e calar o
choro da mídia carpideira.

(*) Professor de Direito Penal da PUC-Minas <www.tuliovianna.org>

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