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Público • Sexta-feira 16 Julho 2010 • 39

Como os demagogos que instrumentalizam o medo, defensores do Estado providência apostam na ignorância do cidadão

A salvação do Estado social está no Estado garantia

A
ENRIC VIVES-RUBIO
ignorância é o terreno onde medra a de-
magogia dos políticos. E são os medos
que a ignorância propícia que abrem ca-
minho ao populismo. Ora, em tempos de
crise, não há medo maior do que o de
perder os poucos apoios sociais de que se dispõe.
Não admira por isso que, a par com a “história de
José Carochinha” do neoliberalismo – esse monstro que
Manuel ninguém sabe sequer definir o que é –, tenha agora
Fernandes surgido o papão do fim do Estado social. Nas últi-
mas Jornadas Parlamentares do PS, sem nada para
Extremo oferecer de substancial a um bando de deputados
ocidental desorientados, Augusto Santos Silva e José Sócra-
tes investiram contra a ideia do “Estado garantia”.
Explorando a ignorância reinante – em especial a
ignorância dos jornalistas, apenas atentos ao sound
byte –, o inimitável Silva chegou a dizer que a ideia
de um “Estado garantia” por oposição ao seu “ama-
do” Estado providência era “um verdadeiro monu-
mento que vai marcar o pensamento político nas
próximas décadas”.
Qual é o objectivo deste tipo de discurso? Primei-
ro, criar a ideia de que qualquer mudança nas regras
de funcionamento do nosso Estado social corres-
ponderá sempre à sua destruição ou amputação.
Depois, limitar qualquer debate aos parâmetros O analfabetismo e o mar de um crescimento económico forma burocrática e por imposição superior, quer
pré-definidos pelos que “amam” o Estado provi- mais vigoroso, ao mesmo tempo os projectos educativos adaptados às realidades lo-
dência. Contudo, se houvesse um pouco mais de preconceito que marcam que recuava o peso do Estado na cais, quer toda e qualquer racionalidade de gestão,
curiosidade intelectual e menos preguiça mental, o debate político em economia. A Suécia não deixou de ao criarem-se os mega-agrupamentos. E é verificar
estes ataques à ideia de um Estado garantia não ser um Estado social – e um Estado como, apesar de circunstâncias económicas que não
teriam passado sem um mínimo de escrutínio pú- Portugal permite que social muito mais generoso e eficaz são muito favoráveis, aumenta a percentagem dos
blico e mediático. Até porque, ao contrário desse que o português –, mas passou a jovens que frequenta escolas privadas: só no ensino
molusco indefinível que dá pelo nome de neolibe-
políticos à beira de respeitar mais a liberdade dos seus secundário o peso do sector privado passou de 7,2
ralismo, existe abundante literatura sobre o Estado um ataque de nervos cidadãos, ao mesmo tempo que para 13,5 por cento nos últimos 15 anos. Ou seja, a
garantia. Mais: o conceito já foi objecto de vários salvava os mecanismos essenciais forma como todos os que podem têm vindo a reagir
debates públicos em Portugal, incluindo um ciclo instrumentalizem a quer do crescimento económico, à degradação de uma parte muito importante das
em 2006/2007 (as Conferências dos Jerónimos) em ignorância e os medos e quer da solidariedade social. escolas públicas – fugindo delas – agrava a dualidade

A
que participou, que eu tivesse notado, pelo menos social e mina o princípio da igualdade de oportu-
um membro do actual Governo, assim como nas saquem da pistola sempre forma analfabeta e pre- nidades. Mais: a falsa gratuitidade e universalidade
jornadas da hospitalização privada de Outubro de conceituosa como os dos serviços públicos de saúde e educação ou dos
2009, que José Sócrates aceitou abrir e onde Maria
que um incauto fala em debates políticos decor- sistemas de apoio social tem-se traduzido numa pri-
de Belém foi oradora (estive lá). instituições privadas rem em Portugal permi- são que impede a liberdade de escolha por parte dos
Na verdade, de que se fala quando se fala de Esta- te que políticos à beira cidadãos, o que viola a sua dignidade enquanto ho-
do garantia? Em primeiro lugar, de um Estado social de um ataque de nervos tentem instrumentalizar mens livres. Nenhuma propaganda, nem nenhuma
que recupera os seus valores iniciais – “garantir a a ignorância e os medos e saquem da pistola sem- política pontual são ou serão capazes de mascarar
todos os cidadãos aquele mínimo de liberdade de pre que um incauto fala em instituições privadas. este caminho para níveis de serviços sociais cada
escolha que concretiza a dignidade humana e, por- É uma retórica duplamente criminosa: primeiro, vez mais insatisfatórios e desiguais.
tanto, a igualdade de oportunidades no exercício porque insistir no monopólio público dos serviços Ao entrincheirarem-se em posições que só o
dos direitos sociais”, como escreveu Fernando Adão do Estado social é condená-los à morte lenta por dogmatismo ideológico suporta, alguns dos nossos
da Fonseca – e recusa os modelos monopolistas que falta de recursos, por via da multiplicação no futuro demagogos podem obter efeitos políticos de curto
tornaram ineficientes, burocráticas e centraliza- dos “cortes” do presente; depois, porque acentua prazo ao explorarem a ignorância dominante, mas
doras as agências públicas encarregues de prestar as clivagens sociais, ao condenar os mais pobres a ao mesmo tempo enterram a cabeça na areia. Ao
serviços sociais. Em segundo lugar, de um Estado serviços degradados, ao mesmo tempo que os me- recusarem-se a ver que só fazendo regressar o Es-
social que devolve aos cidadãos e à sociedade pro- nos pobres escapam, sempre que podem, para o tado social à nobreza original do Estado garantia se
tagonismo e responsabilidade, na linha do velho sector privado. pode salvar, em última análise, uma sociedade que
e bom princípio da subsidiariedade. Ou, como es- A realidade é muito dura e não há como fugir dela. garanta a todos os cidadãos um mínimo de dignida-
creveu já em 2005, no PÚBLICO, Mário Pinto, de É ver, por exemplo, como em nome da “racionali- de, recusam-se a admitir que a Terra se move. E pur
“um Estado social subsidiário, em vez de um Estado zação” da rede de escolas públicas se atropelam, de si muove! Jornalista (www.twitter/jmf1957)
social-burocrático de direcção central”.
É fácil percebermos aquilo de que estamos a falar,
se estudarmos as reformas que tiveram lugar na Su-
écia ao longo dos últimos 20 anos, realizadas curio-
Há criminosos mais criminosos que outros
samente por governos sociais-democratas. Nesse
país, após se ter verificado que os graus de cobertura a Um homem poderoso convida novas”. Novinhas mesmo, de aplausos e festejos pelo fim do
do seu Estado social eram não só economicamente uma miúda de 13 anos para a casa preferência com 13 anos, supõe-se. “dramático desenvolvimento”.
incomportáveis, como estavam a limitar o desen- de um amigo famoso. Prometendo Um monstro, dir-se-ia. Não. A crer Se este homem poderoso fosse
volvimento económico, acabou-se com o monopó- fazer dela uma estrela, pede-lhe que nos relatos da imprensa portuguesa um bispo, nunca teria sido tratado
lio público no fornecimento de serviços sociais e se dispa para lhe tirar fotografias. este homem poderoso, quando foi com esta complacência, para não
desregulou-se também este sector. Em áreas como Isto depois de lhe dar champanhe a confrontado com a hipótese de vir dizer com esta cumplicidade. Mas o
a assistência aos idosos, o sistema educativo ou a beber e a fazer experimentar drogas. a ser castigado pelos crimes, algo homem poderoso chamava-se Roman
rede de jardins-de-infância, passou a ser possível Mas antes de a violar e sodomizar. descrito como uma “saga legal”, Polanski, é um homem “de cultura”,
a concorrência entre instituições públicas e entre Quando confrontado com a justiça, viveu “um pesadelo”. Quando um e mais uma vez se provou que há
estas e instituições privadas. O Estado não deixou de esse homem poderoso confessou os tribunal, invocando uma falha técnica criminosos e criminosos. E que os
assegurar o financiamento de todos os serviços, mas seus crimes – o que não o impediu no processo judicial, mas não o crimes de pedofilia só são crimes,
os cidadãos e as famílias passaram a ter liberdade de comentar, mais tarde, que “todos libertando da culpa, o deixou sair quando são perpetrados pelos
de escolha. O resultado destas reformas foi o reto- sonham em ter sexo com raparigas em liberdade total, logo se ouviram criminosos “certos”.

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