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© SIGNIFICADO DO GNOSTICISMO—UMA TENTATIVA DE INTERPRETAGAO FILOSOFICA 1—Dificuldades e perspectivas de interpretagdo da correntes gndstica A mais recente e decisiva fonte histérica no estudo do pensamento gnéstico é constituida pelo conjunto de antigos manuscritos coptas, transmissores de quase todos os documentos originais, descobertos no Alto Egipto', e, que tém dado lugar nos tltimos anos as mais aturadas investigagdes nos dominios teolégico e filosdfico e, mais modernamente ainda, nos campos relativos ao estudo das concepgées miticas. Do ponto de vista interpretativo, a descoberta de Nag- -HamAdi constitui um alargamento de perspectivas herme- néuticas que, até cerca de 1948, se restringiam praticamente & visio monolitica do valentinismo (a partir dos dados * Jean Doresee, Les textes gnostiques de Haute Egypte et les idées philosophiques et religieuses de leur temps, Paris, Cercle Ernest Renan, 1960, no 27, pags. 1-24 ¢ Henri-Charles Puech, Découverte d'une bibliothtque gnostique en Haute-Bgypte, Encyclopédie Frangaise, vol. XIX, Paris, Societé Nouvelle de I'Bncyclopédie Frangaise, 1957, pAgs. 19-42-4 a 19-42-13. ‘Apesar das principais investigagBes da corrente gnéstica terem ocorrido nos tltimos anos (e, sobretudo, a partir de 1948, data da descoberta de Nag-Hamidi), 08 primeiros. manuscritos descobertos so também de data relativamente recente {1769 ¢ 1785). 252 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOFIA fornecidos por S. Ireneu?), No entanto, o desconhecimento de informagées mais amplas*, que os manuscritos des- cobertos revelaram, nao foi o principal responsavel pelas hesitagdes ou pelas meras solucdes opinativas de muitos autores. Outras razdes pesaram na dificil abordagem de tais areas histéricas, mercé, sobretudo, do complexo sistema metédico utilizado. De facto, do ponto de vista metodologico, surgiram as mais sérias dificuldades quanto ao estabelecimento de vias de investigacdo, dada a pluraridade de terrenos por onde © gnosticismo se desdobra. Desde a metodologia dos histo- tiadores de religides, até as perspectivas filolégicas, ao chamado velho comparatismo e as concepgdes da escola «religionsgeschichtlich», assistimos as consequentes vicis- situdes de quem se defronta com um fenémeno multimodo ou com o estatuto menos definido do que se considera um historico e concreto objecto‘. Tais dificuldades reflectem-se também na oscilagao da terminologia ou na menos clareza de certas concepgées (a principal das quais teré sido a distingdo entre gnose e S. Ireneu, Adversus haereses, I, 11, 11, Para além de observagées criticas ja explicitadas (merc da inter- pretagio de alguns manuscritos), destaquemos © seguinte comentétio de Henti-Charles Puech, in op. cit, pégs. 19-42-11, relativamente a descoberta do Nag-Hamadi; . * Ugo Bianchi, Le probltme des origines du gnost Origini dello gnosticismo» (Colloquio di Messina 13-18 Aprile 1966), Leinden, EA. Briel, 1967, pée. 1; Hans Jonas, Gnosis und spétantiker Geist, t. 1 e Il, Gottingen, 1934, 1954; Simone Pétrement, Le dualisme chez Platon, les Bnostiques et les manichéens, Paris, P. U. F,, 1947; Henti-Charles Puech, La Gnose et le temps in Eranos-Jahrbuch, t. XX, Zutich, 1952. ime in «Le O SIGNIFICADO DO GNOSTICISMO 253 gnosticismo’). O problema central de interpretacdo (pelo menos em alguns sectores de pesquisa) residiu no estatuto definidor da chamada corrente gnéstica, dado 0 contexto em que surgiu. Numa formulacao mais concreta, os autores interrogavam-se se seria a gnose um puro movimento de salvagio (embora a evolucéo histérica ulterior tenha, por vezes, superado o exclusivo terreno salvacionista) ou se um movimento hermético-mistico, onde a dimensao privilegiada da gnose estaria aparentada com terrenos especificamente filos6ficos. Para tentarmos esclarecer o problema (0 que se nos afigura praticamente impossivel de momento) ou para pro- pormos um outro enfoque de solucdo, dever-nos-emos per- guntar se 0 movimento gnédstico privilegia o conhecimento por motivos estritamente religiosos ou se, para além destes, no haverd razdes caracteristicamente filoséficas. 2—0 problema das influéncias Inicialmente designado como um conjunto de heresias cristés (que tiveram o seu maior desenvolvimento, sobre- tudo, nos séculos II e III), a que se ligavam ou 0 nome de mestres conhecidos ou o de seitas e personalidades ocultas, o gnosticismo aparecia como um movimento nascido do contacto com as concepgées cristas e de que se afastara por formulacées heterodoxas. No entanto, determinado mimero de autores (Kessler, Reitzenstein, Bousset, etc.), a0 afirmarem hoje a presenca dos esquemas categoriais gnés- * Quanto & terminologia de gnose ¢ gnosticismo, lembremos as conclu- ses do Congresso de Messina de 1966: «Pour éviter un usage indifférencié des termes gnose et gnosticisme, ‘I semble quill y ait tout intérét a identifier par la coopération des méthodes historique et typologique un fait déterminé, le “gnosticisme”, en partant méthodologiquement d'un certain groupe de systtmes du Me sitcle ap. J-Chr. que tout le monde s'accorde & dénommer ainsi. On concevrait au contraire la “gnose” comme connaissance des mysttres divins réservée & une éliter (Cfr. op. cit, pég. XXIID, 254 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOFIA ticos em correntes nio cristas, consideram-no um sincretismo de nogées filosdficas gregas e de elementos da mistica oriental. As heresias teriam nascido do contacto do cristia- nismo com esse fundo eclético j4 existente‘. Nesta linha interpretativa, a gnose ultrapassaria os exclusivos quadros do pensamento cristéo para se apresentar como um conjunto de nogées e de elementos representativos de escritos her- méticos (como, por exemplo, os ordculos caldeus). Seria, inclusivamente, uma corrente mistica de pensamento, dife. renciada do sistema cristao e de concretos sistemas filo- s6ficos (como, por exemplo, do neo-platonismo), 9 que nao invalidaria as influéncias recebidas dum e doutro dominios. Com as descobertas de Nag-Hamadi todos estes pro- blemas ganharam uma outra clareza’, Dado que muitos documentos encontrados parecem ser pouco reveladores duma exclusiva influéncia crista, 0 gnosticismo explicar-se-ia pelos seus contactos com determinados movimentos judaicos marginalizados, pelo contributo, em algumas das suas cor- rentes, da especulacao filosdfica grega (sobretudo as do platonismo nas correntes valentinianas), e, pela infiltracao das congeminagées de tipo oriental *, * Simone Pétrement, La gnose, Encyclopédie Frangaise, t. XIX, Paris, Société Nouvelle de "Encyclopédie Frangaise, 1957, pégs. 19-34-7; W. Bousset, Hautprobleme der Gnosis, Gottingen, 1907; Henri-Charles Puech, Phénomé. nologie de la gnose (résumé d'un cours) in «Annuaire du Collége de Frances, 53° année, pag. 166 e Ou en est le probléme du gnosticisme in «Revue de l'Université de Bruxelles», t. XXXIX, 1934-35. * Henri-Charles Puech, Découverte d'une biblioth¢que gnostique en Haute-Fgypte, in Encyclopédie Francaise, op. cit., pégs. 19-42-12, * Ugo Bianchi, op. cit., pag. 15. A. propésito da _permeabilidade das corrente gnésticas as ideias domi- nantes da sistematizago judaica, as perspectivas contemporineas de inves- tigagao insistem, duma forma particular, em dois elementos prospectivos: a) a pesquisa das motivagdes sécio-ideolégicas que terio conduzido ©s representantes de algumas vias gnésticas a romper com a tradig&o judaica, S. nul texte juif, ou judéo-chrétien, pas méme I'Ascension d'lsaie, ne pourra étre assimilé, du point de vue de la typologie et de V’histoire religicuses, au gnosticisme (le cas du livre de Baruch de Justin le gnostique (Hipp. Ref, V, 26, 1 ss) est différent et pour cause); ni les similitudes ‘thématiques et les identités (ou les dérivations) terminologiques et onomasti- O SIGNIFICADO DO GNOSTICISMO 255 Aceite ou nao como tese geral (a partir das opcgées interpretativas) a existéncia duma sistematizacdo gndstica independente das correntes judaicas e de algumas peculia- res correntes cristas (consequentemente ter-se-ia que garantir, do ponto de vista histérico, a existéncia de tais prévias concepgées numa fase anterior a 70 D.C.°), alguns dados existem j4 no plano documental, de cuja andlise se poderao inferir algumas propostas de hipotéticas solugdes, que, duma forma metédica, deverfo concorrer para a dilucidacao de to complexo problema, Tentemos, pois, a reflexio critica em alguns dos niveis desta questao. a) A partir da referéncia de Porfirio™, os chamados gnésticos cristaos, que parece tratarem-se de setianos ou arcénticos", teriam tido jus a esse denominacdo enquanto intérpretes erréneos de alguns principios da filosofia antiga ”. Tratar-se-ia, pois, nao duma heresia cristi, mas, ao contrério, duma heterodoxia filoséfica °. Por outro lado, Porfirio alude a algumas obras des- cobertas junto de Nag-HamAdi (provavelmente pertencentes ques juives ne sauratient cexpliquer> (cerklirens) le gnosticismes. Ugo Bianchi, Op. Cit pag. 16. B) 0 estudo de ambientes religiosos afins, em ordem a investigar as possiveis identidade ou dissemelhanga dos seus contextos ideolégico € psicol6gico com os do gnosticismo. Cfr. «Le Origini dello gnosticismo» (Colloquio di Messina 13-18 Aprile 1966), op. cit., pég. XXVI. > Bneyelopédie Francaise, op. cit, pag. 19-34-7. Vita Plotini, 16. ™ Henri-Charles Puech, Plotin et les gnostiques in eLes Sources de Plotins, Vandoeuvres-Gentve, 1957, pags. 173-174. = ‘gle ctois, pour ma part... que Porphyre distingue ici, parmi la masse des chrétiens, un groupe particulier de gens qui, a la différence des croyants ordinaires, sinspiraient de 1a «philosophie antiques, tant en 'inter- prétant & leur maniére ou en usant de fagon personnelle et quelque peu singuliére. II s'agirait donc bien 1A de gnostiques chrétiens, tels que W'étaient, & cdté de beaucoup d'autres, Valentin et ses disciples». Henri-Charles Puech, Plotin et les gnostiques in op. cit, pag. 163. Plotino, Enéadas, If, 9, 6. 256 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOFIA a um grupo de gnédsticos cristaos), e, onde se encontram, a par de escritos de indole mistérica™, algumas outras de nitido desvio da revelacdo crist e que autores eclesidsticos referem como heréticas ¥. Podera, pois, ter ocorrido, nesse dominio, um caracte- ristico fenémeno de desmembramento (e de que essas obras seriam reflexo, num e noutro tom): enquanto alguns cris- téos seriam gnésticos pelo desvio do pensamento filoséfico, outros classificar-se-iam, desse modo, pela incluso de teses opostas no seio do pensamento teoldgico ™, b) Parece ter sido possivel o contacto havido entre Numénio de Apameia e Valentim e, de tal forma, que a recusa dos gnésticos por Plotino podé-lo-ia também incluir ”. Apesar da ruptura de Valentim com as instituicdes eclesids- ticas", (cujos motivos levantam ainda hoje as maiores dificuldades de interpretacdo) e das presumiveis influéncias das comunidades gnésticas, a fisionomia do seu pensamento 6 mais a dum filésofo do que a dum teurgo®. O préprio nome com que ficou conhecido (Platonicus) talvez mani- feste a fonte principal das influéncias recebidas, e, nao é, impunemente, que 0 consideramos como um dos gnésticos mais proximos da doutrina neo-platénica da emanacio. As suas heresias” seriam, portanto, heteredoxias filosé- ficas, de preferéncia a heresias crists, 0 que nao tera impe- dido 0 acesso posterior dos seus discipulos a algumas perspectivas da teologia crista. “| Henri-Charles Puech, Les nouveaux écrits gnostiques découverts en Haute-Bgypte in «Coptic Studies in Honor of Walter Ewing Crum», Boston, pags. 108-109. * S. Clemente de Alexandria, Stromata, 1, C. XV, 69, 6. Cfr. Jean Doresse, op. cit, pag. 8. " Plotino, Enéadas, Il, 9. Jacques Lacarriére, Les Guostiques, Paris, Gallimard, 1973, pag. 79. Henri-Charles Puech, Plotin et les gnostiques, op. cit. pég. 179. * S. Treneu, Adversus Haereses, Il, 7; S. Clemente de Alexandria, Stromata, IV, 13, 89. O SIGNIFICADO DO GNOSTICISMO 257 Quanto a Numénio, visado por Plotino” e incorporado nas mesmas criticas dirigidas contra os gnésticos”, verifica-se que a terminologia plotiniana de ruptura é idéntica ou sinénima da utilizada pelos autores cristéos em igual con- texto. No entanto, esta identidade de argumentacao e de nomenclatura parece nao contradizer algumas conclusées interpretativas apresentadas, j4 que a critica dos chamados heresidlogos as doutrinas de alguns gnésticos nao se reduz a um terreno explicito da doutrinacio crista. As refutacdes dos heresiélogos incidiam sobre determinados princtpios filo- séficos (como, por exemplo, as perspectivas teogénicas e 0 desenvolvimento mitico das hipéstases), que entravam em oposicio com os princfpios da teologia crista*. A este propésito levanta-se o problema de saber se os gndsticos combatidos por Plotino em Roma teriam sido cris- tHos ou pagaos*. Mesmo na hipétese duma filiacio valen- tiniana, ou poderdo ter sofrido a influéncia de seu mestre (mais filésofo do que tedlogo, mercé do concurso de Numénio*) ou teréo sido os continuadores ou sucessores directos do pensamento de Numénio™. Ora é indiscutivel que foi através deles (e, portanto, das suas concepcées filoséficas) que Plotino teve consciéncia do perigo que entdo corriam algumas «concepedes dogmaticas» do pensamento helénico. ™ Enéadas, II, 9, 1 ¢ HI, 9, 1. * «... I think we agree that Numenius was very Gnostics. Dods in «Les Sources de Plotiny, op. cit. pag. 185; cfr. Doresse, op. cit, pag. 8. ™ Cfr. Henri-Charles Puech, Numenius d’Apamée et les théologies orientales au second sitcle in «Mélanges Bidez», IT (Bruxelas, 1934), pag. 766. ™ Henri-Charles Puech, Plotin et les gnostiques, op. cit, pag. 177. * Independentemente das concepgies filossficas de Numénio, presentes na doutrina valentiniana, ter-se-4 que remontar (na perspectiva teolégica des- tacada) a estruturas doutrinais mais remotas, de que, por ex. a figura de Sophia, talvez seja tributdria. ™ Richard Harder, Plotins Schrift die Gnostiker, citado in Henri- -Charles Puech, Numenius d’Apamée et les théologies orientales au second sidcle in «Mélanges Bidez», II (Bruxelas, 1934), pdg. 778. £ muito possivel, inclusivamente, que o «Apocalipse de Zoroastros dos gudsticos de Roma esteja relacionado com o comentério astrol6gico do mito do éter do X Livro da Republica de Plat&o, redigido por Numénio. 258 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS — FILOSOFIA Além disso, 9 terreno comum a Numénio e a estes gnésticos ¢ a figura de Platdo (recordemos que, se por um lado, o objectivo principal de Numénio estava centrado na sistematizagio do pensamento platénico, a partir da Carta IT e do Parménides e na busca duma hierarquia das hipés- tases”, por outro, os gnésticos serviam-se dele para o adaptar as suas congeminagées ou para as expressar em termos do Mestre da Academia). Mercé destes contactos, chega a falar-se da sua escola e irradiagaéo como da «ala gnéstica» do platonismo no século II#. Mas, apesar da influéncia mitigada® do pensamento gnéstico sobre a escola platénica e do espirito gndstico de Numénio, parece nio poder concluirse pela existéncia dos seus contactos pes- soais com as corporagdes gnésticas e, consequentemente, pela inspiragdo doutrinal em algumas das suas concepcées. A conexao de Numénio e dos gnésticos com um elemento comum platénico talvez se explique, no caso do 1°, pela elaborac’o dum sistema ecléctico, cujos elementos’ inte- grantes seriam influéncias do tipo oriental e nogées platd- nicas, e nos 2, pela tentativa de traduzir em linguagem platénica as suas concepcées originais (umas, provenientes de Numénio, de forma directa ou indirecta, outras, remon- tando a doutrinacéio bfblica) mas visando o desenfeudamento da Academia ®, Dever-se-4, pois concluir que, em referéncia aos gnés- ticos e ao sistema de Numénio de Apameia, as principais objeccdes surgidas respeitam mais a inovacio de posigoes filos6ficas, que as distorcées (indiscutivelmente formuladas) dos principios aceites por um seu histérico e contemporaneo sistema religioso. * Thedinga, De Numenio philosopho platonico, Bonn, 1875. * Heinrich Dérrie in «Le Néoplatonismes, Colloques Internationaux du Centre National de la Recherche Scientifique, Ed, du C. N. RS, Paris, 1971, pag. 31. * Heinrich Dorrie, in op. cit., pag. 31. “ Heinrich Dérrie, Die Erneuerung des Platonismus in Ersten Jabrhun- dert vor Christus in op. cit, pégs. 17-18; E. Vacherot, Histoire Critique de I'Bcole d’Alexandrie, t. I, Paris, 1846, pég. 223. O SIGNIFICADO DO GNOSTICISMO 259 c) Nao hd ditivida que a literatura bfblica serviu de modelo para os escritores gnésticos. Por isso, muitos autores tentam defender a intercomunicac&o cultural entre o gnos- ticismo e o judaismo, fundamentando-se na presenga dum conjunto de elementos caracteristicos de judaismo biblico nos textos gndsticos*. Mas relativamente a qualidade desse contributo, deveremos atender as seguintes observagées: —hA correntes gnésticas que se opdem a nocdo dum Deus Criador, como nos € descrito na literatura bfblica; —as semelhangas tematicas e as identidades termino- légicas e onomésticas judaicas nao podem explicar © gnosticismo. E nitida a diferenca entre o dualismo antropolégico dos textos de Qumran e da literatura rabinica tardia (que nao invalida as perspectivas monotefsta e criacionista) e o dualismo anti-césmico do gnosticismo *; — quanto a concepgao dum pecado antecedente parece nao tratar-se sé duma influéncia da literatura judaica, pois que é uma ideia tipica de algumas correntes mistérico-sdficas da Grécia e cuja formulacio nos surge jé em Pitdgoras e em Plato; —o demiurgo nfo nos surge em todas as expressdes do gnosticismo® ¢, quando presente, nem sempre desempenha a funcio modeladora do chamado mundo inferior. Por outro lado, a sua concepedo é, por vezes, ambivalentte, dada a personificacao antitética sob que reaparece em algumas versées. ™ Jean Daniélou e Henri-Marrou, Nouvelle Histoire de I’Bglise, Paris, Ed. du Seuil, 1963, p4gs. 88-98; Deresse, op. cit. pags. 13-13. = Cfr. Ugo Bianchi, op. cit, pigs. 16-17; Jean Daniélou, Aspects du judéo-christianisme, Paris, 1965. ™ Nos textos mais gnésticos dos «Hermeticas, por ex, nfo reaparece a perspectiva demitingica. O demiurgo caracteriza, sobretudo, © gnosticismo mais judaizante (0 mais representado em Nag-Hamédi). 260 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS — FILOSOFIA d) Apesar das oscilagdes ou direccdes contrapostas da doutrina gnéstica, é incontestavel que a perspectiva anti- “somatica constitui o seu elemento essencial. Tal posicéo remete-nos as origens destas nogdes no pensamento grego, sobretudo, as congeminagées soficas. B nas suas concepcdes de antroposia-cosmofosia e do dualismo-monismo que as linhas centrais do gnosticismo (o antisomatismo e a antro- posia dualista), nao explicaveis pelo pensamento biblico, encontram fundamento. A posicio do demiurgo inferior de algumas seitas gnésti implicita no orfismo, é anun- ciada explicitamente na funcdo da Discérdia em Empédocles ou dos Tités no mito de Diénisos. Mesmo quanto & nocao dum Deus modelador do mundo, derivada, com certeza, da tradicéo judaica, 0 gnosticismo tera encontrado a sua maior fonte inspiradora a partir das controvérsias desencadeadas no mundo elenistico. Se, incontestavelmente muitas das seitas gndésticas se prendem aos temas de origem biblica (contetidos estes que nao explicam o essencial do sistema gnéstico), outras, como verificamos, nfo coincidem com muitas das suas for. mulagées teolégicas, aproximando-se muito mais do parti- cularismo de algumas das especulacées da filosofia ou mis- tagogia gregas, e, assumindo uma certa direccio reflexiva relativamente ao contetido da Revelacao. 3—As consideragaes filoséficas do gnosticismo Quer na hipotese de se definir como sistema filoséfico (consideracdo esta jamais advogada por qualquer dos seus tedricos e investigadores; quando muito, retenhamos a insis téncia de alguns cultores da chamada fenomenologia reli- giosa” quanto & possivel reducdo dos seus miltiplos “ Hans Jonas, Gnosis und Spitantiker Geist, t. I e TI, Gottingen, 1934 ¢ 1954; Henri-Charles Puech, La gnose et le temps in «EranosJahrbuch», t. XX, Zurich, 192 e Phénomenologie de Ia Gnose, «Annuaire du Collége de France», 53° année, Paris, 1953, pags. 163-169; 54° année, 1954, pags. 191-195; 55* année, 1955, pags. 169-176; 56* année, 1956, pags, 186-199; Jacques Lacarritre, Les Gnostiques, Paris, Gallimard, 1973, pags. 141-150. O SIGNIFICADO DO GNOSTICISMO 261 esquemas & unidade duma atitude existencial, muito ligada A perspectiva comum duma filosofia de salvagéo*), quer na tentativa de se reduzir a configuracdo extrema de varias expressées de religiosidade (o que, mesmo neste terreno, nao deixa de criar uma série de obstaculos a uma sistema- tizacio rigorosa™), o gnosticismo formulou-se sempre como uma corrrente integrada por varios grupos ou comunidades de tipo salvifico e cuja caracteristica comum consistia na aceitagio da gnose como conhecimento dos mistérios divinos reservados a uma élite”. FE a partir da andlise do conceito da gnose que nos é possivel estabelecer determinados problemas de teor filoséfico e destacar algumas observacées dentro dos objec- tivos que nos propusemos. Interessa-nos dilucidar o seu sentido e consequentes implicacgées, que, por sua vez, nos possibilitardo esclarecer, de forma mais clara, as suas pers- pectivas filoséficas. Se comegamos por aceitar a inevitabilidade da capa- cidade gnosiolégica, dever-nos-emos interrogar sobre as razées da sua eficdcia e infalibilidade (como nos sao propostas), e sobre a sua reducdo instrumental a um pequeno grupo™. Por outras palavras, se se afirma que uma determinada via de conhecimento é elemento seguro de acesso a0 Absoluto, torna-se necessdério destacar os fundamentos que a tornam possivel como faculdade especificamente radical no ambito dum grupo gnosiologicamente selectivo. Explicitadas as raizes dum concreto e histérico reducionismo cognoscitivo, compreender-se-4, pelo menos logicamente, como sejam pos- siveis, em tais quadros, a imediatidade gnosiolégica e a captagdo do seu mais inaborddvel objecto. * Jean Trouillard, Le probleme du Salut in Encyclopédie Frangaise, t. XIX, Paris, Société Nouvelle de I'Encyclopédie Frangaise, 1957, pags. 19-40-6 a 19-40-10. ™ Jean Doresse, Les Livres secrets des gnostiques d’Egypte, t. I, Paris, Pion, 1958, pag. 42. ™ S. Ireneu, Adversus Haereses, I, 24, 6. “ R. Bultmann, Le christianisme primitif dans le cadre des religions antiques, Paris, Payot, 1969, pégs. 179-180. 6 262 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOFIA Como resposta a estas prévias questGes, determinamos 0s seguintes niveis no pensamento gnéstico: @) Nivel ontolégico As concepcdes ontolégicas, quer de origem revelada quer de inspiracdo mistérica, séo um ponto de partida privilegiado para as consequéncias mais especificas das suas especulacdes. Por aceitagiio nao racional, desempenham, pois, a iniludivel funcdo dum sistema de crencas, de que tudo € possivel inferir em ordem ao estabelecimento duma con- cepgao globalmente sistemitica. Do ponto de vista ontoldgico, e tendo bem presente as tensdes metafisicas da época alexandrina e o seu reflexo na instabilidade dum clima mental um Ppouco mais tardio®, as correntes gnésticas assumem a «vexata questio» do seu tempo, propondo, ainda que em ambivaléncia, as solucdes monista e dualista, Por um lado, parece nao existir distanciamento entre © Ser © o Mundo: a vinculacdo ontoldgica entre o mundo supremo e inferior tem o seu fundamento na projeccdo das «sphragides» ®. Por outro, é acentuada essa diferenca. Na linha de determinadas solucées, as formas superiores nao se identificam totalmente com a materia, e, na chamada «apocatastasis», reintegram-se nas camadas de origem. Sinal desta mediatidade entre o ser e o mundo e da consequente desvalorizacdo das entidades inferiores é todo um conjunto de nogées de tipo mitoldégico (relacionadas também com algumas anotagées de indole bfblica) e que se condensam na chamada «Sophia», entidade pleromatica enquanto expresséio da realidade superior (isto é, em muitas versdes * E.R. Dodds, Pagan and Christian in an Age of Anxiety, Cam- bridge, 1965 ¢ P. Brown, Approaches to the Religious Crisis of the Third Century, English Historical Review, LXXXUI, 1968; Richard Robinson, Essays in Greek Philosophy, Clarendon Press: Oxford University Press, 1969. * S, Irineu, Adversus Haereses, I, 30; 1-14, “Esta concepeio, se caracteristica do valentinismo (Cf, Enéadas, II, 9), Parece manifestar-se jd numa gnose mais arcaizante, Cir, Henri-Chatles Puech, Plotin et les gnostiques, op. cit, pags. 179-180.

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