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Anoitecia e esfriava.
Palavras.
Contudo, bem ou mal, delas subsisto. Escrevo. Sou lido,
segundo cartas que recebia nas redações, era até apreciado
por algumas pessoas. Assim, parece coerente o oficio; e
depender de palavras meu tempo de subsistência, uma troca
sensata. Mas não há coerência na vida e nada é tão
insensato quanto o que nos ocupa coerentemente o tempo
sem fazer sentido no final. Como os dias de meu
relacionamento fiel com Blandine.
Entramos.
Um dia, iria querer falar com ela. Era tão diferente das
outras! Sente aqui do meu lado no sofá, fale de seus anseios.
Calava porque nunca soube puxar conversa com estranhos. E
todavia. Sim, familiar. Como um sonho que se repete. O
letreiro ainda estala. Quero dizer o cartaz. Por sobre o
casario. É como a TV no canto da sala, como se a janela, o que
se via, fosse uma sala. Leonard Cohen. Posso ouvir. Sua voz
reencontrada. Suspirei.
Ela costumava levar a comida quando eu e Kleber
trabalhávamos no milho antes da panha. Então ele, o irmão,
pegou o trator. Talvez não goste do cara bonito e rico da
cidade (jovem também, eu diria), o tal Claudius. E demorou o
suficiente. O café esfria na caneca. Deitados na relva, ao lado
da casa desabitada, conversávamos ela e eu sob o sol frio e
baixo do começo de junho. Pergunto sobre seu namorado. Diz
que lhe dá segurança. Sente que o traiu comigo? É que no
interior – O interior está mudando. Gostei de você à primeira
vista, Andrei. Talvez estivesse me amando de verdade. Não
reprimiria o desejo, a não ser que eu não a quisesse.
Eu a queria. Não desejá-la seria não estar ali, o lago ao
lado, os patos, a brisa encrespando as águas em sonhadora
sonata. Não desejá-la seria não existir, meu corpo não
formigar na grama, a vegetação não receber a tarde de
névoa. Contornos. A vida é transitória. Não haveria o cheiro
da terra e a calma do céu, não deseja-la seria ela não estar
ali, a inocência em seus olhos sagazes infiltrada nos traços
que a traduzem, refletindo o lago e a relva, as ressonâncias,
os aromas, a aragem e eu mesmo.
Uma associação.
Blandine anotava antes o pedido, agora se inclina sobre
o balcão. Tão logo ela se apoiou, reluziu. Campos e prados,
elevação bucólica, habitantes harmônicos de montanhas e
pântanos, bandos de pombos escurecendo céus incendiados.
Sob a árvore, o potro relincha. Luzes firmes e redondas na
devotada pedra se refletem. Divisa encrespada. Rompe-se a
região onde constrangimentos impedem o prazer. Sem que
nada pedisse, o atendente a serviu. Ela ali de novo, o futuro
era agora e quem sabe até quando. De perfil. Bien. Olhos
distraídos, de solstício. Sólo diversión. Lagos.
Entretenimiento, no más. Planetas azuis.
Foi aí, nessas ruas e praças, andando por aí, que pensei
pela primeira vez em lar, em como seria minha vida com
Blandine, nosso casamento, nossas alianças de compromisso,
nossos encontros num quarto como parte de nosso encontro
na vida, o amanhecer conversando, o longo dia após o
amanhecer, tanto trabalho e prazer multiplicado pelo afeto
impossível, e a casa – mais non la gourmandise n’est pas un
– enfin surtout passionnés – O que eu estava mesmo
pensando?
Cansado. Você não?
Será possível se cansar em Paris?
É possível, pensei. Estou bem.
Ela estava mais que bem. Estava a se apaixonar.
Não seriam talvez mais românticas, e apaixonantes,
vielas em meio a gente alegre junto a uma baía?
Nápoles? Por quê?
Respondi que gostava da Itália.
Pois iremos a Roma!
Ótimo, sorri. Nápoles... É, na verdade esqueci o Franco.
Claro. Mas tudo bem. Tenho também, disse-me, outros
francos.
Eu já tinha percebido. E ela não era nada econômica.
Mas se não o ama, por que se casou?
Por não ser nada econômica, meu bem.
Polizia!
O quê?
Você não queria um cigarro?
Ah.
Dormiram.
Ela sorriu.
Esqueceu?
Hun?
Mentira!
Era mentira sim... Jogou a bolsa na poltrona e deu três
passos na minha direção.
Si, si...
O arroz!
Todavia...
Agora eu me sentia meio que liberto do encanto, pela
realidade que retirava da imaginação a magia. Com a mesma
proximidade, reapareceram as ninharias que produziam
grandes discussões, palavras ferinas ditas com o fim de
serem esquecidas, ou jamais esquecidas, mas eram
realmente esquecidas até a discussão seguinte. E eis os
ciúmes, a perfeita harmonia fazendo fronteira com
incompreensíveis indelicadezas, representando, além do
amor, certos amores que, por demasiada intensidade,
gastam-se em não muito tempo, quando poderiam, mais
contidos e menos apaixonados, durar a vida inteira.
Milão fervilha.
Ela me viu.
A vida tinha de ser mais que isso, mais que coisas que
se conseguem assim.
Assim como? Meu Deus. Massimo apenas me arranjou
um emprego.
Por que ele te incomoda tanto? Por que ele é rico? Ele é.
Ou por que não gosta de sofrer como você?
Não quero mais sofrer, não quero mais tentar ser pura
num mundo impuro que não precisa de minha respiração. Eu
preciso do ar dele.
Sou um sonho?
Nosso inferno.
Você o ama?
Você sabe.
Tudo bem, ela sabia. Não lhe falei antes porque queria
te poupar.
Não deveria.
Quem?
Burburinho no saloon.
Havia um postal.
Não digitei.
E o tamanho?
Não estávamos.
Somos nós.
O quê?
Fora rompido?
Descansemos.
Nada. Tá pertinho.
Que liberdade?
Oleana?
Como venta!
Pálpebras.
Acordo.
Hei chico!
Escreverei?
O queijo no paladar.
Ele não irá nem para um lado nem para o outro mas
continuará viajando, é como nossa filha. Não chore, amor.
Chama.
Calei.
Sabia.
O sud-express.
Outra vida.
Estremeci.
- Eu tenho.
Não era muito. Mas creio que para isso. Como, não quer
o meu dinheiro? Eu aceitei o teu todo esse tempo! Irritada
ela perguntou por que eu insistia. Não te incomodava tanto a
dependência? Agora eu estava livre, não dependia mais.
Anoitecia e tomei consciência da noite. O vento continuava a
soprar.
Em algum lugar além a circunstancia não me afeta.
Agora, quando atrás da igreja escrevo após a morte de
Nastácia, sinto-me assim. É antes de qualquer coisa um
estado puro de luz, de uma luz que não existe. Fragmentos
de espelhos expostos a essa luz me refletem, não a imagem
de mim mesmo mas de um todo espedaçado, também não o
universo. Nega a relação eu-e-o-mundo sem tornar as duas
coisas uma só. A palavra oculta, ainda palavra, chama a
crase se for o caso.
Sou uma mulher, fui uma menina. Fui filha e sou mãe.
As coisas se deflagraram em minha vida. Não sei se é a
melhor palavra, “deflagraram”. Destino drástico e súbito o
meu destino até ir como um rio volumoso que desce a pedra
num filete, acariciando os últimos anos. Tenho essa filha que
sou eu. Ela frequentemente me espanta com olhos
escandalosos em pálpebras de nuvens e querendo saber do
pai grita ou sussurra. Cheira a jardins, a mato. Está
respingada de primaveras, às vezes transtornada e mentindo
por mentir.
Bruna. Sou eu. É o pai. Deixou através de páginas e
estações o eterno em plena colheita a fim de ser no tempo
algo que de ruptura em ruptura justifique essa náusea.
Falarei.
Para quê?
A fome na saciedade.
Então, o quê?
- Atlântico, Andrei.
É claro.
Passar-se-ão os anos.
Mas.
Ainda me ama?
Escrevo um livro.
Há um descanso vítreo na chuva. Luz do abajur da
cabeceira. Ao olhar minha filhinha recém-nascida, perfeita,
me veio forte uma sensação estranha. A quem deveria
agradecer uma dádiva assim? Não há a menor duvida. Deus
existe e é amor. Deus, obrigado por esse batismo! Deitou de
novo, aconchegando-se ao bebe. Então pegou a carta. Por
que ele insiste? Encostou o papel ao peito, apertou-o. Devia
imaginar que faria algo assim, morar na casa de minha mãe.
E no meu quarto! E assim saber meu endereço aqui.
Um relâmpago.
- Octavio?
Que remédio.
Ela o amava.
Ninguém é perfeito.
Exceto se.
Fim do ritual.
Estava errada.
Adormecendo.
Pedi fogo.
O que, Nastácia?
E todavia um livro.
Maquete. Talcos.
Não sei porque você ficou tão ofendida. Hoje somos nós
que estamos a procurar nova vida em novas terras, como na
Angola em reconstrução. Ela responde que detesta quando
as pessoas falam de si assim, “nós”, quando estão falando
de um povo, ela não é “nós”. Diz: E sequer sou brasileira. E
não dava a mínima para o contexto social ou político. E ele
não podia tê-la beijado daquele jeito. Até porque somos
quase como irmãos.
Chamada.
– Você é a Filomena!
Sou eu.
Shhh. Quietinho.
– E fui.
O livro.
Não durma.
Sem problema.
pontos no pó da estrada
E o universo.