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VIRTUAL E ATUAL: DELEUZE & GUATTARI E A FILOSOFIA DO

DIREITO*

VIRTUAL AND ACTUAL: DELEUZE & GUATTARI AND LAW'S


PHILOSOPHY

Belmiro Jorge Patto

RESUMO

O presente trabalha trata da crise do positivismo, contrapondo-se a ela a idéia de dois


autores da filosofia, quais sejam, Gilles Deleuze e Félix Guattari que propõem uma
filosofia da ontologia e da diferença. Avalia as transformações da epistemologia das
ciências em geral, e como se dá esta transformação quando aplicada ao Direito. Ressalta
a importância da postulação do problema como ponto de partida para a otimização de
possíveis soluções. Trata ainda do aspecto lingüístico do Direito como uma dimensão
importante para estabelecer a hipótese de que o que está positivado não é o direito, mas,
a virtualidade do Direito. Isto porque o que importa não é a lei positivada, mas o
processo de constituição que antecede a própria lei, seus agenciamentos, seu conteúdo,
sua expressão e a determinação que as máquinas abstratas são capazes de relacionar e
atualizar. O processo passa a ser então a interface de atualização do virtual. Descarta-se
a idéia da atuação concreta da lei. A conceituação de virtual e atual é vista não como
distinção, mas como problematização dessa relação ininterrupta das duas dimensões.

PALAVRAS-CHAVES: POSITIVISMO; CRISE; DELEUZE; GUATTARI;


ONTOLOGIA; EPISTEMOLOGIA; DIREITO; PROCESSO, ATUAL; VIRTUAL.

ABSTRACT

This work deals with the crisis of positivism, in contrast to it the idea of two authors of
philosophy, namely, Gilles Deleuze and Félix Guattari propose that a philosophy of
ontology and difference. Assesses the changes in epistemology of science in general,
and how is this transformation when applied to law. Emphasizes the importance of
positing the problem as a starting point for the optimization of possible solutions. This
is still the language aspect of the law as an important dimension to establish the
hypothesis that what is enacted is not right, but virtuality of the law. This is because
what matters is not the law positively valued, but the process of formation before the
law itself, its connections, its content, its expression and the determination that the
abstract machines are able to connect and actualize. The process then becomes the
interface to actualize the virtual. Discard the idea of concrete actions of the law. The
concept of virtual and actual is seen not as a distinction, but as a continuous questioning
of the relationship of two dimensions.

KEYWORDS: POSITIVISM; CRISIS; DELEUZE; GUATTARI; ONTOLOGY;


EPISTEMOLOGY; LAW; PROCESS; ACTUAL; VIRTUAL

*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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INTRODUÇÃO

A crise por que atravessa o positivismo parece inconteste. A crise da autoridade,


os problemas de corrupção, as novas ordens econômicas, suas crises, suas
conseqüências sociais, já não podem mais ficar ao largo do mundo jurídico, nem
tampouco ser subestimado por ele.

De outro lado o pensamento científico também está passando por constantes


renovações epistemológicas, colocando em xeque vários dos pressupostos até bem
pouco tempo assumidos como verdadeiros pela ciência jurídica.

O presente trabalho trata de algumas questões relativas a tais problemas da


perspectiva filosófica da diferença e da ontologia, instituídas a partir das obras dos
filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari. Como se observará, não somente as
idéias mas também a linguagem e a forma da escrita desses autores muitas vezes geram
estranhamentos no universo jurídico, acostumado ao formalismo quase cartesiano do
pensamento positivista e iluminista que perpassou por muito tempo a filosofia do
Direito.

Inicia-se o trabalho pela localização no plano epistemológico do que seria a


filosofia e a filosofia da ontologia e da diferença, para então começar a tratar
especificamente do positivismo e seu núcleo central, qual seja, a idéia de direito
material.

Demonstra-se a partir de uma teoria da linguagem ontológica a impossibilidade


de tal concepção, contrapondo-se a ela as noções de agenciamento, conteúdo,
expressão, territorialização, desterritorialização e máquina abstrata.

Num segundo momento, e como conseqüência da referida contraposição, a idéia


de instrumentalidade do processo também é revisitada a partir dessa ontologia,
demonstrando que não se trata de dois mundos distintos, mas de uma mesma interação
entre o virtual e o atual, no conceito de processo como interface.

Por fim, são evidenciados os conceitos de atual e virtual e suas conseqüências


para o Direito, demonstrando-se que tais conceitos são mais adequados aos fenômenos
jurídicos contemporâneos, por isso aptos a solução de alguns problemas que até então
vêm demonstrando sua persistência na comunidade jurídica, até porque, como indicado
no texto, a questão é também de formulação do próprio problema que pode levar a
soluções inadequadas.

1. PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS

Antes de mais nada é importante destacar que os pensadores Gilles Deleuze e Félix
Guattari instituiram uma filosofia da ontologia, que num primeiro momento passou
despercebida e depois, com alguns eventos, ela foi se tornando mais clara e apreensível.
Os fluxos e as dinâmicas que atualizam o virtual são os objetos de suas observações.[1]

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Por isso as idéias conceituais, esparsas em todas suas obras, muitas vezes parece não
fazer sentido. Quando falam nos movimentos de placas tectônicas, não estão se
referindo a metáforas, mas, justamente aos movimentos vivos do planeta, que acabam
por determinar os destinos de uma dada civilização. Seja no plano de expressão global,
seja no plano de intensão local.

Quando pensam o virtual e o atual, estão-se referindo não a uma dualidade, mas a uma
integral/diferencial. Curvas, linhas de fuga que são capazes de desterritorializar
estruturas territorializadas. Uma máquina abstrata e seus agenciamentos. Novas
territorializações que estabilizam os fluxos binários do sistema, virtualizando novas
potências.

Poderia se pensar o ordenamento jurídico nas mesmas categorias virtualidade/atualidade


a partir dessas premissas filosóficas. Assim cabe primeiramente identificar os conceitos
centrais que muitas vezes impedem a construção de uma filosofia do Direito, sem os
vícios da representação positivista.

Não seria função de uma filosofia a construção de conceitos? [2] Assim, seria possível
uma filosofia do Direito, mais que uma filosofia geral aplicada ao Direito, uma vez que
tais conceitos pertencem a determinado campo de enunciação, muitas vezes gerando
mal-entendidos quando aplicados a campos distintos.

Assim, antes da formulação de novos conceitos, é preciso verificar se os postulados das


filosofias que tentam explicar o jurídico ainda subsistem aos fatos e às dinâmicas da
vida atual.

2. DIREITO MATERIAL?

A pergunta que se faz é se é possível falar-se em Direito material ainda hoje, depois de
tantas revoluções científicas.[3] Na verdade já se deveria assumir de uma vez que o
Direito é produzido não na Lei, mas a partir das interpretações dos textos de lei. Mesmo
naquelas situações onde se parece estar diante de critérios objetivos, tais como a
capacidade civil que se perfaz aos 18 (dezoito) anos de idade, no nosso sistema, não se
poderia deixar de observar que, em verdade, trata-se de uma presunção legal. A não ser
desse modo, se estaria admitindo a inexistência de qualquer objeção ao próprio critério.
Dessa forma, basta a dúvida razoável para que o critério caia por terra enquanto
materialidade e necessite de declaração judicial para que possa ser validado no mundo
fático.

Veja-se que a distinção é importante para esclarecer que, mesmo nos casos onde não há
qualquer questionamento, a certeza da capacidade é mediada pela presunção e não
diretamente do texto de lei.

Este fato é muitas vezes obnubilado pela idéia do direito material que faria crer na
eficácia da lei antes mesmo do pacto social, que é, este sim, o que efetivamente lhe
garante aquele atributo, ou seja, não há falar-se em eficácia da lei, mas sim do consenso
de que a sociedade se obriga, no pacto social, a cumprir a lei.[4]

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No Brasil, temos a curiosa hipótese da lei que não pega, a demonstrar a fragilidade da
idéia de direito material.

Então, seria possível a afirmação de um direito material naquele nível, do pacto social?
Ainda nos parece que a resposta deve ser negativa, uma vez que a norma é perpassada
por conceitos jurisdicizantes que não estão escritos no próprio texto, tais como as idéias
de sistema, proporcionalidade, razão, justiça, etc.

Nesse sentido, confira-se o seguinte trecho de Acórdão proferido pelo Supremo


Tribunal Federal:

Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da


administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de
fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e
prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em
geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias
individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito
constitucional. - A administração tributária, por isso mesmo, embora podendo muito,
não pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, "respeitados os direitos
individuais e nos termos da lei" (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sobretudo, e para esse
específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela
Lei Fundamental, cuja eficácia - que prepondera sobre todos os órgãos e agentes
fazendários - restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos,
especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República,
que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal
razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do
Estado.[5]

Como se observa na maioria das vezes, o texto de lei não é suficiente para
apreender o sentido da norma e, mesmo do Direito, sendo necessária a interpretação que
aparece como parte integrante do processo de atualização do próprio direito. Tal
afirmação é bastante diferente daquela comum entre os processualistas no sentido de
que a função do processo seria a concretização, pela decisão, do direito material.[6]

O que se afirma aqui é a hipótese de que o que se encontra no ordenamento


jurídico positivado não é o Direito, mas a virtualidade do direito que obrigatoriamente
necessita da atualização de seu conteúdo significante pela expressão da decisão judicial,
não como dois mundos dicotômicos, mas como uma mesma dimensão que não cessa de
agenciar a máquina abstrata da produção jurídica.[7]

Cabem aqui alguns esclarecimentos conceituais.

Quando Deleuze e Guattari tratam do problema da linguagem afirmam que "não


existe significância independente das significações dominantes nem subjetivação
independente de uma ordem estabelecida de sujeição. Ambas dependem da natureza e
da transmissão das palavras de ordem em um campo social dado".[8]

Por sua vez, conceituam:

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"Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos
(por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer
enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no
enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem,
então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por
uma 'obrigação social'. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou
indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem. A linguagem só
pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos
de fala que percorrem uma língua em um dado momento".[9]

Como se observa, há sempre uma relação entre o significado e "um dado


momento" que está configurado na atualidade do mundo, por isso é possível aos autores
a afirmação da relação entre linguagem e poder, mas não como se a linguagem portasse
algo de instituinte nessa relação. "Não se trata de uma origem da linguagem, já que a
palavra de ordem é apenas uma função-linguagem, uma função coextensiva à
linguagem".[10]

Quanto ao que vimos afirmando sobre a possibilidade do direito material, os


autores nos dão o exemplo que parece ser conclusivo:

"Quando Drucot se pergunta em que consiste um ato, ele chega precisamente ao


agenciamento jurídico, e dá com exemplo a sentença do magistrado, que transforma o
acusado em condenado. Na verdade, o que se passa antes - o crime pelo qual se acusa
alguém - e o que se passa depois - a execução da pena do condenado - são ações-
paixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vítima, corpo do
condenado, corpo da prisão); mas a transformação do acusado em condenado é um puro
ato instantâneo ou um atributo incorpóreo, que é o expresso da sentença do magistrado.
(...) As palavras de ordem ou os agenciamentos de enunciação em uma sociedade dada -
em suma, o ilocutório - designam essa relação instatânea dos enunciados com as
transformações incorpóreos ou atributos não corpóreos que eles expressam".

No horizonte de uma filosofia do Direito que busca a construção de conceitos


dessa área de conhecimento, não é mais possível deixar passar ao largo tais hipóteses,
pois válidas até que sejam falseadas a ponto de não resistirem no confronto com a
atualidade dos mesmos conceitos.[11] O que parece impossível é a afirmação da
existência do direito material como queriam os positivistas, como se o Direito fosse
capaz de descrever a realidade dos fatos e instituí-los como verdades independentes
somente porque inscritos no texto de lei.

Quando se afirma, por sua vez, que há um agenciamento da máquina abstrata


que produz o Direito, tais conceitos também necessitam uma melhor apreensão. Os
autores trabalham tais relações a partir da idéia de diagrama, com eixos horizontais e
verticais, deixando entrever, no entanto, não existir um primado do conteúdo sobre a
expressão, mas como afirmado, seriam duas dimensões que interagem mutuamente, que
se pressupõem mutuamente. Assim:

"Mas quando empregamos essa palavra vaga 'intervir', quando dizemos que as
expressões intervêm ou se inserem nos conteúdos, isso não é ainda um tipo de idealismo
no qual a palavra de ordem vem do céu, instantaneamente? Seria preciso determinar não
uma origem, mas os pontos de intervenção, de interseção,e isso no quadro da

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pressuposição recíproca das duas formas. Ora, as formas, tanto de conteúdo quanto de
expressão, tanto de expressão quanto de conteúdo, não são separáveis de um movimento
de desterritorialização que as arrebata. Expressão e conteúdo, cada um deles é mais ou
menos desterritorializado, relativamente desterritorializado segundo o estado de sua
forma. A esse respeito, não se pode postular um primado da expressão sobre o
conteúdo, ou o inverso".[12]

Se aplicado ao que dissemos, pode-se afirmar que aquilo que acontece na


positivação da lei e na decisão judicial são os agenciamentos maquínicos dos conteúdos
e das expressões, numa relação contínua de várias dimensões no movimento daquilo
que se atualiza como Direito.

Falta ainda explicar o que é esse agenciamento maquínico, e como ele é capaz
de atualizar a produção do direito, e quais as conseqüências de tal afirmação. Mais uma
vez, os autores nos socorrem:

"Podem-se tirar daí conclusões gerais acerca da natureza dos Agenciamentos. Segundo
um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos: um de
conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento maquínico de corpos,
de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; por outro lado,
agenciamentos coletivos de enunciação, de atos e de enunciados, transformações
incorpóreas sendo atribuídas aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o
agenciamento tem, de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o
estabilizam e, de outra parte, picos de desterritorialização que os arrebatam".

Resta claro, então, que a lei positivada não é um conteúdo fechado que não
dependa de um campo de enunciação social, com toda a sua dinâmica e complexidade.
Por isso mesmo se fala de um processo legislativo. Ao mesmo tempo, a decisão judicial,
por sua vez, não faz as transformações incorpóreas surgirem de per se, mas são fruto de
territorializações daqueles picos de desterritorializações dos regimes de signos jurídicos
e, por isso é possível falar de mudança de sentido jurisprudencial.

No limite, o Direito se atualiza para se virtualizar imediatamente após, num


eterno movimento, talvez naquilo que Nietzsche chamou de eterno retorno, retorno não
ao igual, mas justamente retorno à diferença.

"Desse ponto de vista, a interpenetração da língua com o campo social e com os


problemas políticos encontra-se no âmago da máquina abstrata, e não na superfície. A
máquina abstrata enquanto relacionada ao diagrama do agenciamento nunca é
linguagem pura, exceto por erro de abstração. É a linguagem que depende da máquina
abstrata, e não o inverso. No máximo é possível distinguir, nela, dois estados de
diagrama: um no qual as variáveis de conteúdo e de expressão se distribuem segunda
sua forma heterogênea em pressuposição recíproca em um plano de consistência; outro,
no qual não se pode nem mesmo distingui-las, porque a variabilidade do mesmo plano
fez com que este predominasse precisamente sobre a dualidade das formas, tornando-as
'indiscerníveis'. (No primeiro estado remeteria a movimentos de desterritorialização
ainda relativos, ao passo que o segundo teria alcançado um limiar absoluto de
desterritorialização)".[13]

E, adiante concluem:

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"Eis por que é necessário chegar, no própria agenciamento, a algo que é ainda mais
profundo do que essa faces, e que dá conta ao mesmo tempo das duas formas em
pressuposição: formas de expressão ou regimes de signos (sistemas semióticos), formas
de conteúdo ou regimes de corpos (sistemas físicos). É o que denominamos máquina
abstrata, sendo que esta constitui e conjuga todas os picos de desterritorialização do
agenciamento. E é acerca da máquina abstrata que se deve dizer: ela é necessariamente
'muito mais' do que a linguagem. (...) Uma verdadeira máquina abstrata não possui
qualquer meio de distinguir por si mesma um plano de expressão e um plano de
conteúdo, porque traça um só e mesmo plano de consistência, que irá formalizar os
conteúdos e as expressões segundo os estratos ou as reterritorializações. Mas,
desestratificada, desterritorializada por si mesma, a máquina abstrata não tem forma em
si mesma (muito menos substância) e não distingue em si conteúdo e expressão, ainda
que presida fora de si a essa distinção e a distribua nos estratos, nos domínios e
territórios. Uma máquina abstrata em si não é mais física ou corpórea do que semiótica,
ela é diagramática (ignora ainda mais a distinção do artificial e do natural). Opera por
matéria, e não por substância; por função, e não por forma. As substâncias, as formas,
são de expressão 'ou' de conteúdo. Mas as funções não estão já formadas
'semioticamente', e as matérias não estão ainda 'fisicamente' formadas. A máquina
abstrata é pura Função-Matéria - o diagrama, independentemente das formas e das
substâncias, das expressões e dos conteúdos que irá repartir".[14]

Por isso o Direito é tão complexo e de tão difícil definição. Mesmo sua função já
não é pacífica no sentido de regular a vida em sociedade, até porque se não se explicitar
o que se entende por "regular", "vida" e "sociedade" não é possível vencer o impasse da
tautologia do significante/significado da própria função.

Assim, o direito não está posto na lei positivada. Muito ao contrário, o Direito é
constante atualização/virtualidade dos agenciamentos maquínicos com todas as suas
dimensões diagramáticas, nesse sentido é que se pode dizer direito vivo. É nesse sentido
que se poderá escapar ao impasse da constante representação jurídica positivista que
aprisiona a existência impossibilitando as linhas de fuga da dinâmica social, num
suposto status quo que não passa da redução grosseira da complexidade dos devires da
singularidade dos eventos.

3. DA FUNÇÃO ATUALIZANTE DO PROCESSO

Insiste-se em avaliar o mundo de maneira mecânica, no sentido newtoniano da física.


Tal fato acaba contaminando as diversas ciências de forma a distorcer algumas de suas
mais importantes conclusões, obscurecendo muitas vezes o próprio objeto de estudo.
Não é diferente, pensa-se, na ciência do Direito. Por muito tempo se tem usado a
metáfora da "ferramenta" processual, como um dos meios de solução para os problemas
da concretude e da efetividade do Direito.

Tal visão pressupõe a completude de conteúdos da norma de direito material. Mas,


caberia perguntar:

Como se dá o processo legislativo, ou seja, as pressões sociais são os sintomas do


"Direito em ebulição" já preexistentes, ou o objeto "Direito" somente surge quando,

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virtualizado na norma positivada em sistema é então sujeitado a um processo de
interpretação/aplicação?

A última hipótese parece hoje a mais plausível, não porque se estaria revisitando
Kelsen, mas sim porque o que constitui o objeto Direito apresenta sempre conteúdos
significantes problemáticos que necessitam de interpretação, justamente pelo fato de
estarem positivados em sistema. Assim, o que pareceria uma objeção torna-se a razão
mesma da interpretação. Ou seja, o que está em jogo não é a positividade, mas a
atualização da virtualidade da norma positivada em sistema.

O Direito surge, então, a partir do processo que o atualiza. Atual aqui tem não só o
significado temporal do presente, mas também a dimensão espacial do estar presente.
Ou seja, é somente a partir da decisão judicial que o Direito virtualizado na norma se
atualiza no tempo/espaço.

O que se quer dizer é que a lei só ganhará atualidade quando interpretada, ainda que à
luz dos princípios e, não quando positivada no processo legislativo.

Quanto ao fato social, ele é um dos fatores que põem em movimento o processo
legislativo, mas definitivamente, não é seu motor principal: os anseios sociais passam
pela interface legislativa do Estado, de modo a atualizar-se somente após todo o trâmite
procedimental - nele estão presentes as ações dos "lobbies", das bancadas, dos interesses
nem sempre públicos dos parlamentares e de seus "assessores", além da ação do próprio
tempo.

As pressões sociais, no entanto, têm o condão de impedir a eficácia ou mesmo o início


do processo legislativo. São duas as maneiras em que isso se dá: primeiro, os projetos
podem ser "engavetados" onde hibernarem por longo período; segundo, os projetos
sofrem "emendas" e se modificam no sentido de "aplacar" os ânimos. Muito raras são,
nesses casos, as hipóteses de consensos e, mesmo quando existentes, isto, no entanto,
não corrobora a metáfora fisiológica do "Direito vivo".

Em verdade o que ocorre aí é o fato social que, embora tenha alguma potência de
agenciamento da máquina abstrata, não é muitas vezes relevante para a atualização da
norma a ser positivada. Isto porque é desinfluente naquilo que virá a ser a virtualidade
da norma positivada em sistema. O que se quer dizer é que uma vez que adentra ao
sistema, a norma passa a exigir sua interpretação para ganhar atualidade.

Veja-se, de outro lado, que os únicos meios de retirar uma norma do sistema são as
ações que controlam a constitucionalidade da mesma, portanto devem ser objeto de
análise interpretativa. O "desuso" é caso típico em que a regra deixa, não de ser
observada, mas, de ser objeto de interpretação porque não representa qualquer influxo
no sistema. Mas, ainda que se queira fazer uso de tal norma, deverá a mesma ser
interpretada.

Assim, não há falar-se, deve-se repisar, em Direito material a ser confirmado pelo
processo, nem em Direito como dado social preexistente. No primeiro caso, não há a
dicotomia substantivo/adjetivo, mas a atualização daquilo que é virtual. No segundo,
são os agenciamentos maquínicos que possibilitam as "escolhas" dos conteúdos das
normas.

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Ora, mesmo a liberdade só existe diante do "princípio da legalidade". Um interessante
paradoxo. A liberdade deveria ser o território da anomia, onde o que não é proibido é
permitido. Justamente o contrário da visão do princípio da legalidade. Ali não deveria
haver incidência de nenhum Direito: a liberdade seria um valor e não um Direito. Por
isso ela só poderia existir fora do Direito. Ou seja, aquilo sobre que o Direito se
debruçaria seria a coerção, a diminuição da liberdade, ainda que de forma "reparadora".

Mas hoje é inconteste o caráter legal da liberdade e das garantias a ela inerentes.

Este fato é importante para se compreender a idéia de Justiça. Nosso olhar permanece
no campo da mecânica, no ponto de referência. A Justiça enquanto idéia, está sim fora
do Direito, mas quando se diz fora não se quer dizer alheia como objetivo a ser
alcançado em perspectiva. Não! A Justiça é um código semiótico para a atualização do
sistema.

No entanto, ao atualizá-lo, se presentifica na decisão, que passa a ser novo código para
outras decisões e assim sucessivamente. Ou seja, no momento mesmo em que se
atualiza, torna-se virtualidade positivada em sistema. E aqui também não há mais se
negar o caráter normativo da jurisprudência. Então se percebe que se deve abandonar a
metáfora mecânica do ponto de referência (fim a ser alcançado), para entender a Justiça
como código semiótico de interpretação (agenciamento maquínico).

Dessa forma, ocorre uma abertura do sistema para a complexidade da vida social. O
processo, então, passa a ser uma interface onde os dados semióticos da norma virtual
positivada em sistema serão agenciados, não de maneira mecânica, mas de maneira
informacional/comunicacional, atualizando-o em Direito.

Disso decorrem algumas conseqüências importantes. A primeira delas é a imanência


entre Direito e processo, e não mais mera representação do "direito material" pelo
"direito processual". A segunda, é que os pontos de partida epistemológicos do Direito e
do processo carecem de revisão.

Portanto o percurso do processo é fundamental no agenciamento do Direito, porque não


é uma ferramenta que possibilita concretizar o direito posto, mas é interface que faz
comunicar a virtualidade e a atualidade. Tem uma função completamente diferente,
porque informa os dados apresentados com conteúdos próprios, internalizando na
virtualidade do sistema positivado a interpretação atualizadora.

"Em seu aspecto material ou maquínico, um agenciamento não nos parece remeter a
uma produção de bens, mas a um estado preciso de mistura de corpos em uma
sociedade, compreendendo todas as atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as
alterações, as alianças, as penetrações e expansões que afetam os corpos de todos os
tipos, uns em relação aos outros. Um regime alimentar, um regime sexual regulam,
antes de tudo, misturas de corpos obrigatórias, necessárias ou permitidas. Até mesmo a
tecnologia erra ao considerar as ferramentas nelas mesmas: estas só existem em relação
às misturas que tornam possíveis ou que as tornam possíveis. O estribo engendra uma
nova simbiose homem-cavalo, que engendra, ao mesmo tempo, novas armas e novos
instrumentos. As ferramentas não são separáveis das simbioses ou amálgamas que
definem um agenciamento maquínico Natureza-Sociedade. Pressupõem uma máquina
social que as selecione e as tome em seu phylum:uma sociedade se define por seus

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amálgamas e não por suas ferramentas. E, da mesma forma, em seu aspecto coletivo ou
semiótico, o agenciamento não remete a uma produtividade de linguagem, mas a
regimes de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam os usos da
língua. Esses elementos, assim como as ferramentas, não valem por eles mesmos. Há o
primado de um agenciamento maquínico dos corpos sobre as ferramentas e sobre os
bens, primado de um agenciamento coletivo de enunciação sobre a língua e sobre as
palavras".[15]

Como se costumava dizer: a vida social é dinâmica e o direito não consegue


acompanhar essa dinâmica. Isto porque a epistemologia jurídica partia dos pressupostos
positivistas do direito material e do processo como instrumento de concretização
daquele direito. Tudo isso parece inadequado na filosofia da ontologia que ora se
propõe, uma vez que toma o resultado pela causa e a representação pela diferença.

4. O VIRTUAL E O ATUAL

A contraposição entre virtual e atual é bastante complexa e do ponto de vista filosófico


não se confunde com o possível e o real. Como são conceitos fundamentais para o
presente trabalho, a perspectiva que se adota é a da filosofia da diferença que tem como
busca a ontologia e não a representação.

Para Pierre Lévy, "o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao
possível, estático já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de
tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou
uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização. Esse
complexo problemático pertence à entidade considerada e constitui inclusive uma de
suas dimensões maiores". E, conclui o autor:

"O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual:


responde-lhe".[16]

Como se observa, e não se deve confundir com a utilização freqüente do termo "virtual"
por força das tecnologias da informação, o sentido que se quer aqui utilizar é totalmente
inovador e funda uma nova perspectiva para o Direito e os problemas de sua
interpretação e aplicação.

Sendo a virtualidade uma instância de problematização que, por sua vez, não se alheia à
solução dada na atualização, infere-se que a relação existente entre processo e Direito
não pode ser aquela que pretende a visão da instrumentalidade, que estaria muito mais
afeita aos conceitos de possível e real onde o processo atua apenas como representação
última do "direito material".

Sendo, ainda, o Direito linguagem, as questões que estão envolvidas em seu processo de
interpretação e aplicação são muito mais condizentes com os conceitos de virtual e
atual, do que aos conceitos de possível e real, uma vez que a linguagem é ela em si
mesma uma virtualidade.

Ainda com Pierre Lévy:

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"A partir da invenção da linguagem, nós, humanos, passamos a habitar um espaço
virtual, o fluxo temporal tomado como um todo, que o imediato presente atualiza apenas
parcialmente, fugazmente. Nós existimos".[17](Op. Cit., p. 71).

Disso se observa que as questões hermenêuticas que surgem dessa perspectiva tendem a
ganhar novos contornos, uma vez que a interpretação sempre se deu a partir do
pressuposto da "concretude" dos conteúdos da norma positivada, como se já houvesse
um sentido estático preexistente no sistema. Mesmo as normas de calibração do sistema
que são vistas como prontas e acabadas, apenas esperando seu momento de aplicação.
Ora, tal visão não se coaduna com a dinâmica da vida social e muito menos com as
questões aqui levantadas, uma vez que estando virtualmente positivadas no sistema,
deverão também ser objeto de constante atualização.

Por isso a função hermenêutica não seria a de "descobrir" os sentidos ocultos já contidos
previamente na norma, mas como acima afirmado, a atualização é uma das respostas à
virtualização, que leva em conta todos os agenciamentos maquínicos e as condições
atuais de resolução do problema posto. Não custa repisar, a postulação do problema
pode por si só levar a diferentes resultados.

Uma decisão não seria tão-somente uma decisão para resolver um caso concreto, mas
no momento de seu surgimento, ela passaria a integrar a virtualidade do sistema,
tornando-se ao mesmo tempo uma resposta e uma nova problematização, o que
demonstra quão erroneamente tem sido considerada a questão da pacificação social
através da decisão judicial.

Somente para ilustrar, imagine-se que duas pessoas tenham pactuado um contrato de
locação, e instrumentalizaram o pacto através daqueles formulários prontos. Suponha-se
que o referido formulário já traga disposto um determinado índice de correção. Pois
bem, pode ocorrer que esses dois sujeitos levem a efeito as obrigações ali contraídas
sem qualquer discussão ou conflito.

Agora, suponha-se que outras duas pessoas avençaram as mesmas condições e no


momento da correção o locatário tenha achado injusto o índice de correção de seu
instrumento e tenha buscado a redução do índice pela via judicial. Na hipótese de obter
sucesso, poderá tal solução judicial estar criando conflitos naquelas relações que
aparentemente estavam pacificadas porque as partes estavam interpretando a norma
diferentemente da interpretação autorizada do Poder Judiciário.

É fácil observar no exemplo exposto o quão frágil é o dogma de que a função do


processo é a pacificação social através da aplicação dos conteúdos concretos do direito
material. Em verdade a dinâmica é totalmente outra, muito mais afeita à lógica do
virtual e do atual do que do possível e do real, uma vez que aquela decisão judicial
passa a integrar o sistema como novo código semiótico para a interpretação e aplicação
da norma virtualizada em sistema.

Pode-se então concluir que o processo é uma singularidade complexa capaz de atualizar
o Direito, capaz de agenciar o próprio Direito, pois somente através da
interpretação/aplicação é que exsurge o conteúdo efetivo da virtualidade da norma
positivada em sistema. Tal conteúdo, no entretanto, não é estático, uma vez que a partir
dele se possibilitam novas interpretações de todo o sistema positivado, demonstrando a

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dinâmica com que deve ser entendida a atividade de interpretação e atualização do
Direito pelo processo, num movimento que jamais se fecha em si mesmo mas, pelo
contrário, está em constante movimento de abertura para novas virtualidades e novas
interpretações atualizadoras.

Quanto ao Direito, sua atualização é capaz de gerar significados novos, podendo-se


considerar tais significados como verdadeira produção de novos conteúdos normativos.
Assim, quando o Direito é positivado em sistema, a Jurisprudência alcança um nível de
importância radicalmente diferente daquele considerado corriqueiramente pela doutrina
e mesmo pelo Poder Judiciário, uma vez que é a partir da interpretação que se expressa
o que é o Direito.

Dessa perspectiva se conclui que o acesso à Justiça possibilitado pelo processo,


reafirma a complexidade das sociedades atuais [18], com seus fluxos, velocidades, em
constante movimento de desterritorialização/reterritorialização, sendo impossível falar-
se de certeza ou mesmo de concretude da norma, uma vez que os conteúdos e as
expressões integram aquilo que se denomina a máquina abstrata do Direito.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o exposto, é possível afirmar pela inexistência do direito material, não


porque seja uma idéia ruim, mas porque inadequada para a solução das
problematizações que hoje se põem à filosofia do Direito.

Não é mais possível trabalhar os absolutos: sociedade, humano, lei, sistema, etc.
sem levar em consideração os agenciamentos que conduzem a tais formações, que são
sempre dinâmicas, provisórias, relacionais. Ora, se estes são os objetos que constituem
os estudos de uma filosofia do Direito, nada mais consentâneo que a apreensão de
conceitos elaborados para trabalhar com tais características.

As idéias de agenciamento, conteúdo, expressão, territorialização,


desterritorialização, máquina abstrata, é uma hipótese viável para se verificar se há
correta problematização dos fenômenos que o jurídico deve responder, por isso
submetê-los à lógica da falseabilidade parece ser a melhor epistemologia.

O Direito, por sua vez, não se explica mais pela idéia de direito positivo, nem o
processo como instrumento de atuação da vontade concreta da lei. Assim, os conceitos
de interface, atual e virtual parecem ser os que melhor explicam muitos do problemas e
problematizações que hoje são postas à solução por uma possível filosofia ontológica e
da diferença do Direito.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2001, 246 p.

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DeLANDA, Manuel. Intgnsive science and virtual philosophy. London: Continuum,
2002, 223 p.

DELEUZE, Gilles. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. v. 2, Gilles Deleuze e Félix


Guattari; trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995, 107 p.

___________. O que é a filosofia? Gilles Deleuze, Félix Guattari, trad. Bento Prado Jr.
e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001

DINAMARCO, Cândido Rangel. et.al. Teoria geral do processo. 15 ed., São Paulo:
Malheiros, 1999, 351 p.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicsa. 5 ed., São Paulo: Perspectiva,
2000, 257 p.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996, 160 p.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 9 ed., São Paulo: Pensamento, 1993,
527 p.

[1] Manuel DeLanda referindo-se à epistemologia de Deleuze afirma: "The role of the
thinker is not so much to utter truths or stablish facts, but to distinguish among the large
population of true facts those that are important and relevant from those that are not.
Importance and relevance, not truth, are the key concepts in Deleuze's epistemology,
the task of realism being to ground these concepts preventing them from being reduced
to sujbective evaluations or social conventions. This point can be made clearer IF we
contrast Deleuze's position not with the linguistic version of correspondence theory but
with the mathematical one. In this case a relation of correspondence is postulated to
exist between the state of a physical object and the solution to mathematical models
capturing the essence of that object. By contrast, Deleuze stresses the role of correctly
posed problems, rather than their true solutions, a problem being well posed IF it
captures an objective destribution of the important and unimportant, or more
mathematically, of the singular and the ordinary". DeLANDA, Manuel. Intgnsive
science and virtual philosophy. London: Continuum, 2002, p. 7. Em tradução livre: O
papel do pensador não é a verdade absoluta ou estabelecer fatos, mas distinguir entre
uma grande quantidade de ocorrências aquelas que são importantes e relevantes das que
não são. Importância e relevância, não verdade, são conceitos centrais na epistemologia
de Deleuze, sendo tarefa do realismo o estabelecimento desses conceitos, evitando-se
sejam reduzidos a considerações subjetivas ou convenções sociais. Este ponto fica claro
se nós compararmos a posição de Deleuze, não com a versão lingüística da teoria da
correspondência, mas com a matemática. Neste caso, a relação de correspondência é
postulada como ocorrência entre os estados de um objeto físico e as soluções do modelo
matemático que captura a essência daqueles objetos. Diferentemente, Deleuze sublinha
o papel da correção na formulação dos problemas, mas do que em suas soluções, o

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problema sendo bem posto se capta a distribuição objetiva daquilo que é importante ou
não, ou matematicamente falando, do singular e do ordinário.

[2] "Simplesmente chegou a hora, para nós, de perguntar o que é a filosofia. Nunca
havíamos deixado de fazê-lo, e já tínhamos a resposta que não variou: a filosofia é a arte
de formar, de inventar, de fabricar conceitos". DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia?
Gilles Deleuze, Félix Guattari, trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 2001, p. 10.

[3] "Algumas vezes um problema comum, que deveria ser resolvido por meio de regras
e procedimentos conhecidos, resiste ao ataque violento e reiterado dos membros mais
hábeis do grupo em cuja área de competência ele ocorre. Em outras ocasiões, uma peça
de equipamento, projetada e construída para fins de pesquisa normal, não funciona
segundo a maneira antecipada, revelando uma anomalia que não pode ser ajustada às
expectativas profissionais, não obstante esforços repetidos. Desta e de outras maneiras,
a ciência normal desorienta-se seguidamente. E quando isto ocorre - isto é, quando os
membros da profissão não podem mais esquivar-se das anomalias que subvertem a
tradição existente da prática científica - então começam as investigações extraordinárias
que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma
nova base para a prática da ciência. Neste ensaio, são denominados de revoluções
científicas os episódios extraordinários nos quais ocorre essa alteração de compromissos
profissionais. As revoluções científicas são os complementos desintegradores da
tradição à qual a ciência normal está ligada". KUHN, Thomas S. A estrutura das
revoluções científicsa. 5 ed., São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 24-25.

[4] Não desenvolveremos aqui estas idéias do consenso, do pacto, etc., elas mesmas
problemáticas. Nossa intenção é tão-somente deixar patente que sempre há algo
dinâmico que está para além daquilo que diz o texto de lei.

[5] STF - HC 93050/RJ - rel. Min. Celso de Mello - 2ª Turma - j. 10.06.08; p.700.

[6] "O processo é indispensável à função jurisdicional exercida com vistas ao objetivo
de eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta da lei".
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DIINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 15 ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 275.

[7] Para Karl Popper, a "partir de uma idéia nova, formulada conjecturalmente e ainda
não justificada de algum modo - antecipação, hipótese, sistema teórico ou algo análogo
- podem-se tirar conclusões por meio de dedução lógica. Essas conclusões são em
seguida comparadas entre si e com outros enunciados pertinentes, de modo a descobrir-
se que relações lógicas (equivalência, dedutibilidade, compatibilidade ou
incompatibilidade) existem no caso". POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 9
ed., São Paulo: Pensamento, 1993. p. 33.

[8] DELEUZE, Gilles. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. v. 2, Gilles Deleuze e


Félix Guattari; trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1995.p. 17.

[9] Idem, p. 16.

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[10] DELEUZE. Op. cit., p. 13.

[11] "Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for


passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser
tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de
um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível
de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém,
que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas
empíricas, em sentido negativo; deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema
científico empírico". POPPER, Karl. Op. cit., p. 42. Nos parece tais premissas sejam
plenamente coerentes e aplicáveis ao Direito.

[12] DELEUZE. Op. cit., p. 28.

[13] Idem, p. 33 e 34.

[14] Idem, p. 98 e 99.

[15] DELEUZE. Op. cit., p. 31 e 32.

[16] LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 16-17.

[17] LÉVY, Pierre. Op. cit., p. 71.

[18] "Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento
da 'modernidade fluida' produziu na condição humana. O fato de que a estrutura
sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do
cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer
que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como
zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se
sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível; ou - se não for -
como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz". BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001,
p. 15.

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