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Conferência 4

As emoções e seu desenvolvimento na infância*

Femando R. Cunha Junior


(3S) 9916-2678

o estado atual da doutrina das emoções em psicologia e


seu desenvolvimento teórico apresentam grandes peculiari-
dades em comparação com os outros capítulos da psicologia:
neste capítulo, até hoje domina o puro naturalismo, que era
totalmente alheio aos demais capítulos da psicologia. Estes
capítulos, a que nos referimos anteriormente, só chegam às
teorias naturalistas quando aparecem o behaviorismo e outras
correntes que tratam do comportamento. Nesse sentido, cabe
dizer que o capítulo da velha doutrina das emoções encerra,
no aspecto metodológico, todo o behaviorismo futuro, já que
a corrente behaviorista em psicologia constitui, em certa
medida, um brusco contraste, uma brusca reação à antiga psi-
cologia introspectiva espiritualista. Disso se depreende, é
claro, que o capítulo das emoções, concebido em geral se-
gundo um plano puramente naturalista, fosse a ovelha negra
entre os demais capítulos que integravam a psicologia da
época.
As causas disto eram muitas. Para nós, basta assinalar o
motivo mais próximo, relacionado ao nome de Darwin. Este, ao
levar às últimas conseqüências a extensa e antiga tradição da

* "Emotsii y ij razvitie v detskom vozraste."


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L.S.Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

biologia, no trabalho "A origem dos movimentos expressi- ria dos rudimentos" pela literatura), que figura em quase todos
vos do homem", estabelece uma conexão geral entre as emo- os manuais, inclusive os soviéticos.
ções do homem e as reações afetivas e instintivas correspon- Do ponto de vista desta teoria, os movimentos expressivos
dentes que se observam no reino animal. Em seu estudo que acompanham nosso temor são considerados, segundo uma
sobre a evolução e a origem dos movimentos expressivos conhecida expressão, restos rudimentares de reações animais
humanos, Darwin valorizava, evidentemente, sua idéia evo- na fuga e na defesa, e os movimentos expressivos que acompa-
lutiva fundamental. Para ele, era importante demonstrar, nham nossa ira são considerados restos rudimentares de movi-
como diz em uma de suas cartas, há pouco publicada em mentos que acompanhavam, em outros tempos, a reação de
russo, que os sentimentos do homem, que eram considerados ataque de nossos antepassados animais. Conforme uma conhe-
como o "sancta sanctorum" interior da alma humana, são de cida fórmula, considerou-se o temor uma fuga refreada e a ira
origem animal, 'assim como o homem em sua totalidade. E, Illi uma rixa refreada. Em outras palavras, todos os movimentos
com efeito, a comunidade entre as expressões emocionais do expressivos foram considerados retrospectivamente.Nesse sen-
homem e, de qualquer forma, as dos animais superiores mais 1111,1
tido, são dignas de nota as palavras de Ribot segundo as quais
próximos dele é tão evidente que quase não é objeto de dis- as emoções são o único setor da psique humana, ou, como diz
cussão. ele, "o estado dentro do estado", que só pode ser compreendi-
Como se sabe, a psicologia inglesa, que esteve tempora- do retrospectivamente. A idéia de Ribot consistia em que as
riamente sob o poder do pensamento escolástico com suas emoções são uma "tribo agonizante" ou os "ciganos de nossa
fortes tradições religiosas medievais, tratou com extraordiná- psique". De fato, desse ponto de vista, a única conclusão a que
ria astúcia, como diz um dos historiadores contemporâneos, a chegaram as teorias psicológicas era de que as reações afetivas
idéia de Darwin. Por mais estranho que pareça, esta psicolo- do homem são restos de sua existência animal, restos infmita-
gia impregnada de tradições religiosas acolheu as teses darwi- mente debilitados em sua manifestação exterior e desenvolvi-
nistas desenvolvidas por seus discípulos com grande simpatia, mento interno.
partindo do que Darwin havia demonstrado: as paixões terre- Por conseguinte, dava a impressão de que a curva da evo-
nas do homem, suas inclinações egoístas, suas emoções, rela- I
lução das emoções tendia para baixo. E, se compararmos,
cionadas com as preocupações concernentes ao seu próprio
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como propunha um dos últimos discípulos de Spencer, o ani-
corpo são, na verdade, de origem animal. mal e o homem, a criança e o adulto, e finalmente o homem
Deste modo, subitamente adquirem impulso duas corren- primitivo e o homem culto, veremos que, à medida que avan-
tes, para as quais se orientou o trabalho do pensamento psico- ça o desenvolvimento, as emoções passam a ocupar o último
lógico: por um lado, continuando em sentido positivo as idéias lugar. Disto se depreende, como se sabe, o famoso prognósti-
darwinianas, uma série de psicólogos (em parte Spencerl e co de que o homem do futuro será um homem carente de emo-
seus discípulos, em parte os positivistas franceses, Ribot2e sua ções, que deverá alcançar, de fato, o final lógico e perder os
escola, e em parte a psicologia alemã de orientação biológica) últimos elos que restam da reação que teve um certo sentido
começou a desenvolver as idéias sobre a origem biológica das na etapa primitiva de sua existência.
emoções humanas, a partir das reações afetivas e instintivas Fica evidente que, desse ponto de vista, só um capítulo da
dos animais. Daí surge a teoria das emoções (denominada "teo- psicologiadas emoçõespodia ser desenvolvidono planoadequa-
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do: o capítulo referente à reação emocional dos animais e à evo- primeiro elo é o acontecimento externo ou interno, cuja per-
lução das emoções no mundo animal. Este capítulo é o que a psi- cepção provoca uma emoção (digamos, a presença de um peri-
cologia atual desenvolveu mais a fundo e com mais detalhes. go), depois, a sensação da própria emoção (sentimento de ter-
Quanto à psicologia do homem, pelo contrário, semelhante for- I
ror) e, em seguida, a correspondente expressão corporal, orgâ-
mulação da questão excluía a possibilidade de estudar de forma nica (as palpitações do coração, a palidez, o tremor, a secura de
adequada o que constitui as particularidades específicas das emo- garganta, todos os sintomas que acompanham o medo). Se,
:i!11
ções do homem. Tal formulação da questão, em vez de esclarecer antes, os psicólogos estabeleciam a seguinte sucessão: percep-
como se enriquecem as emoções na infância, mostrava, pelo con- ção, sentimento, expressão, James e Langue propuseram con-
trário, como se reprimem, se debilitam, se eliminam as descargas siderar este processo segundo outra seqüência, ao assinalar que
imediatamente depois da percepção de tal ou qual aconteci-
emocionais imediatas, próprias da infância precoce. No que se
mento surgem mudanças orgânicas provocadas de forma refle-
refere às variações sofridas pela força da emoção desde o homem
primitivo até nossos dias, seu caminho, que era considerado
xa (para Langue, vasomotoras de preferência; para James, vis-
cerais, ou seja, produzidas nos órgãos internos). Estas mudan-
como continuação direta da evolução, consistia no seguinte: na
1 ças, que ocorrem de forma reflexa no medo e em outras emo-
medida em que o desenvolvimento da psique humana foi avan-
Illi ções, são percebidas por nós, e a percepção das reações orgâni-
çando, as emoções retrocederam. Essa foi, segundo Ribot, a glo-
cas próprias é o que constitui a base das emoções.
riosa história da morte de todo um setor da vida psíquica. De acordo com essa doutrina, a clássica fórmula de James,
:1
Enfocada desde o aspecto biológico, a vida emocional
que agora se modifica de várias maneiras, porque cada teoria
dava a sensação da morte paulatina de toda uma esfera da vida tenta demonstrar sua oposição a ela, diz: costumava-se consi-
psíquica, a experiência psicológica imediata, mas, posterior- derar que choramos porque estamos aflitos, trememos porque
mente, as pesquisas experimentais demonstraram claramente estamos assustados, batemos porque estamos irritados; na
o absurdo dessa idéia. verdade, dever-se-ia dizer que estamos aflitos porque chora-
III1
Langue3 e James já se haviam proposto, cada um por seu lado mos, que estamos assustados porque trememos e que estamos
:11
- James mais conscientemente como psicólogo e Langue mais I!i
irritados porque batemos.
inconscientemente como fisiólogo -, a tarefa de encontrar a fonte 'i! Segundo o ponto de vista de James, basta reprimir a ma-
:r
da vitalidade das emoções, como diz James, no próprio organismo I
I: nifestação externa da emoção para que esta desapareça e vice-
do homem, libertando-se assim do enfoque retrospectivo das :1 versa: basta provocar em si mesmo a manifestação de uma
emoções humanas. Langue e James encontraram essa fonte nas determinada emoção para que esta apareça depois da manifes-
reações orgânicas que acompanham nossos processos emocio- tação.
nais. Esta teoria é tão amplamente conhecida, foi tão .citada nos
I' Dois aspectos seduziam nesta teoria, completa no aspecto
manuais, que não há necessidade de expô-Ia. Lembrarei apenas ill, teórico e suficientemente elaborada: por um lado, proporcio-
que o ponto de virada crucial dela é a mudança da sucessão tradi- nava realmente uma aparente fundamentação científico-natu-
cional dos momentos que compõem as reações emocionais. I
ral, biológica, às reações emocionais e, por outro, carecia dos
Sabe-se que, para os psicólogos anteriores a James e Lan- iI I defeitos das teorias incapazes de explicar de algum modo por
gue, o processo emocional desenvolvia-se do seguinte modo: o que emoções que não fazem falta a ninguém, restos da exis-
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tência animal, continuam vivas e se revelam, do ponto de vista tual que antes passara despercebido e que ultimamente se con-
da experiência retrospectiva, sensações tão importantes, tão Imll verteu no centro das pesquisas experimentais. Todas as emo-
consideráveis, que são as que estão mais próximas do núcleo ções, todas as sensações emocionais diretamente entrelaçadas
da personalidade. Vocês mesmos sabem que as sensações em nossos processos de pensamento e que são parte inaliená-
mais emotivas são as sensações pessoais internas. vel do processo integral dos raciocínios, eram diferenciadas
Como se sabe, essas teorias de James e Langue, que logo por ele dos fundamentos orgânicos, e considerava-os como um
se fundiram numa teoria comum, foram objeto de recrimina- processo sui generis, isto é, como um processo de um gênero e
ções por seu "materialismo", porque James e Langue queriam de uma natureza totalmente distintos.
reduzir os sentimentos do homem ao reflexo, em sua cons- James, um pragmático, interessava-se muito pouco pela
ciência, dos processos orgânicos que ocorriam em seu corpo. natureza do fenômeno a estudar, e por isso dizia que para os
No entanto, o próprio James estava muito distante do materia- interesses práticos da sociedade bastava conhecer a diferença
lismo, e em resposta às primeiras recriminações lançou uma que a pesquisa empírica descobre entre as emoções superiores
tese, que figura em seu manual de psicologia: "Minha teoria e inferiores. Do ponto de vista pragmático, o importante era
não pode ser de modo algum denominada 'materialista'." E, salvar as emoções superiores de sua interpretação materialista
na verdade, sua teoria não era, de fato, materialista, embora, ou quase materialista.
em muitos casos, desse lugar à denominação de materialista, Assim, essa teoria levou, por um lado, ao dualismo carac-
porque utilizava o método materialista espontâneo. Não era terístico da psicologia intuitiva e descritiva. Ninguém mais do
materialista e conduziu a resultados contrários aos materialis- que Bergson, ferrenho idealista, que numa série de momentos
tas. Por exemplo, em nenhum outro lugar como na teoria das coincidia com James nas concepções psicológicas e filosófi-
emoções ficam tão divididas as funções superiores e inferio- cas, aceitou sua teoria das emoções e acrescentou idéias pró-
res. Isso ocasionou o desenvolvimento posterior da teoria de prias de caráter teórico e real. Por outro lado, junto com o dua-
James. lismo na doutrina das emoções superiores e inferiores, esta
O próprio James, em resposta às recriminações de mate- teoria não pode ser chamada de materialista, como disse com
rialismo, segue o caminho já traçado por Darwin em resposta razão o próprio James, porque não contém nem um átimo de
às recriminações de que era objeto por parte dos psicólogos materialismo, a não ser na afirmação: ouvimos porque os ter-
escolásticos ingleses. James procura dar a Deus o que é de minais de nosso nervo auricular experimentam uma excitação
Deus e a César o que é de César. Fez isso dizendo que só têm em decorrência das vibrações de ar que agem sobre nosso tím-
origem orgânica as emoções inferiores, herdadas pelo homem pano. Em outras palavras, os espiritualistas e idealistas mais
de seus antepassados animais. Isso pode se referir aos grupos recalcitrantes nunca negaram o simples fato de que nossas
de emoções tais como o terror, a ira, o desespero, a fúria, mas sensações e percepções estão relacionadas com os processos
não é aplicável, naturalmente, a tão "sutis", segundo sua materiais que excitam nossos órgãos dos sentidos.
expressão, emoções, como o sentimento religioso, o sentimen- Por conseguinte, a afirmação de James de que as emoções
to de amor do homem pela mulher, a sensação estética, etc. são percepções internas de mudanças orgânicas não se aproxi-
Portanto, James diferenciava rigorosamente o campo das emo- ma mais do materialismo do que as teses de qualquer partidá-
ções inferiores e superiores, particularmente o campo intelec- rio do paralelismo, que afirma que a onda luminosa, ao provo-
Ili

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car a correspondente excitação do nervo óptico, põe em movi- ça do desenvolvimento, nela examinava-se numa análise re-
mento um processo nervoso, paralelamente ao qual produz a trospectiva as emoções do homem como tendo surgido em
sensação psíquica de uma ou outra cor, forma, tamanho, etc. tempos passados no processo evolutivo. Nela, excluía-se por
Finalmente, o terceiro e mais importante ponto: essas teo- completo a possibilidade de fornecer a gênese das emoções
rias estabeleceram as bases para a criação de toda uma série humanas, do aparecimento de quaisquer emoções novas no
de teorias metafísicas da doutrina das emoções. Nesse senti- processo da vida histórica do homem.
do, a teoria de James e Langue representou um passo para trás illll Portanto, fechando o círculo, James, assim como seus se-
em comparação com os trabalhos de Darwin e com a corrente guidores, retoma à concepção idealista fundamental das emo-
'"11
que se desenvolveu imediatamente a partir dele. Se era neces- ções. É precisamente ele quem diz que durante o período histó-
sário salvar as emoções e mostrar que não se tratava de uma 1111
rico de evolução da humanidade se aperfeiçoaram e desenvol-
tribo agonizante, James não encontrou nada melhor do que veram os sentimentos humanos superiores, que os animais des-
acoplá-Ias aos órgãos mais invariáveis, mais baixos no desen- conheciam. Mas tudo o que o homem havia recebido do animal
volvimento histórico da humanidade, aos órgãos internos, permaneceu invariável, já que é, como se expressa James, uma
que, segundo ele, são os verdadeiros portadores das emoções. illlll simples função de sua atividade orgânica. Isso significa que a
As mais delicadas reações do intestino e do coração, as sensa- teoria proposta, a princípio, para demonstrar (como já disse,
ções que partem das cavidades e dos órgãos internos, o jogo referindo-me a Darwin) a origem animal das emoções termi-
das reações vasomotoras e outras mudanças semelhantes são nou demonstrando 'a falta de conexão no desenvolvimento do
os momentos vegetativos, viscerais, humorais, a partir de cuja que o homem havia recebido do animal e do que surgiu durante
percepção se formam, na opinião de James, as emoções. Por- o período histórico da evolução. Com isso, esses autores
tanto, essa teoria separava as emoções da consciência e colo- deram, com efeito, a Deus o que era de Deus e a César o que
cava um ponto final no realizado anteriormente. era de César, ou seja, procuraram estabelecer, por um lado, a
Eu disse que, segundo as concepções de Ribot e outros au- importância puramente espiritual de uma série de emoções
tores, as emoções são um estado dentro de outro na psique hu- superiores e, por outro, uma série de emoções inferiores, pura-
!IIIII
mana. Isso significa que as emoções eram consideradas de mo- mente orgânicas, de valor fisiológico.
do isolado, separadas do conjunto global, de todo o resto da 1

Os ataques experimentais contra essa teoria se deram em


vida psíquica do homem, e a teoria de James e Langue propor- duas direções: por parte dos laboratórios de fisiologia e por
cionou a justificação anátomo-fisiológica dessa idéia do estado I
parte dos de psicologia. Os laboratórios fisiológicos desempe-
dentro do estado. O próprio James sublinha isso claramente. nharam com respeito à teoria de James e Langue um papel
illll
Dizia que, enquanto o cérebro é o órgão do pensamento huma- traiçoeiro. No princípio, os fisiólogos estavam entusiasmados
no, o das emoções são os órgãos vegetativos internos. Com com essa teoria e ano após ano contribuíam com novos dados
isso, o verdadeiro substrato das emoções se translada do centro que confirmavam a teoria de James. Por certo, a teoria encerra
para a periferia. Nem é preciso dizer que a teoria de James e uma certa verdade indubitável; evidentemente, as mudanças
Langue fechava ainda mais que as precedentes a porta para a orgânicas, específicas da reação emocional, são extraordina-
formulação do desenvolvimento da vida emocional. Nela ha- riamente ricas e variadas. Ao comparar o que James disse so-
via, conforme se expressa o próprio James, uma certa lembran- bre isso com o que sabemos agora, pode-se ver realmente o
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enorme e frutífero caminho que James e Langue abriram para Por mais estranho que pareça, Cannon descreve emoções
as pesquisas empíricas. Nisso consiste seu extraordinário mé- tão distintas como a fúria, o terror, o medo, a ira como tendo a
rito histórico. mesma expressão orgânica. Por isso, Cannon introduz, já nes-
O papel traiçoeiro por parte dos laboratórios de fisiologia se trabalho, uma correção na fórmula de James. Se este dizia:
foi desempenhado pelo conhecido livro de Cannon4.A obra é estamos aflitos porque choramos, na opinião de Cannon isso
completamente contraditória, e se isso não foi notado de ime- teria de ser um pouco modificado para dizer: estamos aflitos,
diato foi porque, em primeiro lugar, refletia a etapa precoce comovidos ou enternecidos, ou, em geral, sentimos as emo-
do desenvolvimento da pesquisa fisiológica e, em segundo, ções mais distintas, porque choramos. Dito de outro modo,
porque foi editada na URSS com um prólogo de ZavadovskP, Cannon nega, baseando-se em seus dados experimentais, a
que a recomenda como demonstração experimental concreta conexão simples existente entre a emoção e sua expressão
da veracidade da teoria de James-Langue. No entanto, basta corporal: mostra que esta não é específica da natureza psíqui-
analisar atentamente o conteúdo dos experimentos de Cannon ca das emoções; o eletrocardiograma, as mudanças humorais
para ver, propriamente falando, que conduzem à negação da e viscerais, a análise química, a análise de sangue dos animais
teoria de James e Langue. não permitem estabelecer se o animal experimenta terror ou
Duas idéias constituem a base dos problemas teóricos que está furioso; em emoções diametralmente opostas do ponto de
mais interessaramLangue e James na criação de sua famosateo- vista psicológico, as mudanças corporais são iguais. No en-
ria: I) examinada a partir do aspectobiológico,a emoção consti- tanto, Cannon, ao negar nesse trabalho a especificidade das
tui o reflexo dos estados fisiológicos na consciência; 2) estes expressões corporais para cada tipo de emoção, ao negar a re-
estados são específicospara as distintasemoções. lação direta entre tal tipo de emoção e a estrutura de sua
Vocêsprovavelmentejá leram uma série de livros sobre os expressão corporal, não colocou em dúvida a tese fundamen-
últimos trabalhos de Cannon e sua escola. Em experimentos tal de James: as emoções são o reflexo em nossa consciência
com gatos, cachorros e outros mamíferos, Cannon conseguiu, de mudanças orgânicas. Ao contrário, Cannon descobriu toda
com a ajuda de métodos de pesquisa muito complicados, de uma série de fatos, demonstrados experimentalmente, que mos-
extirpações, intoxicações artificiais, complexas análises bio- tram que as mudanças orgânicas são muito variadas, e com
químicas, demonstrar experimentalmente que, com efeito, em isso pareceria reforçar a teoria de James e Langue. Mas nas
estado de fúria, ira, terror, produzem-se nos gatos e cachorros pesquisas posteriores, publicadas agora, viu-se obrigado a che-
mudanças humorais profundas, relacionadas com reações das gar à conclusão de que os fatos encontrados sobre a não-espe-
glândulas de secreção interna, concretamente nas cápsulas cificidade da expressão corporal das emoções conduzem, de
supra-renais, que todas essas mudanças implicam profundas fato, à total negação da teoria de James e Langue, ao reconhe-
alterações de todo o sistema visceral, ou seja, que todos os ór- cimento de sua inconsistência. Nestes experimentos, Cannon
gãos internos reagem a isso, e, portanto, que cada emoção está obteve uma série de importantes fatos.
relacionada com sérias mudanças no estado do organismo. No Variando, no experimento psicológico, a situação em fun-
entanto, já em seu primeiro trabalho, que pôde parecer a ção da qual se manifestam no animal diversas emoções inten-
Zavadovski uma confirmação da teoria de James e Langue, sas, encontra manifestações corporais iguais. O novo consiste
Cannon tropeça em um fato de extraordinária importância. somente em que a clareza de tais manifestações dependia não
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tanto da qualidade da própria emoção, mas da força de sua danças orgânicas sem que apareçam determinadas emoções.
manifestação. Depois, Cannon levou a cabo uma série de Observa-se neles uma variação do açúcar no sangue, uma va-
complicados experimentos, nos quais do animal era eliminada riação da circulação sangüínea, etc., como no caso da emoção,
uma grande parte do sistema nervoso simpático, extirpando- mas esta não se faz presente.
lhe o tronco dos nódulos simpáticos, e com isso se evitava Ou seja, o destino da segunda afirmação de James foi o
qualquer reação de caráter orgânico. Foram estudados em ter- mesmo: se provocarmos uma expressão externa, que acompa-
mos comparativos dois animais: uma gata, na qual, devido ao nha uma emoção, esta aparecerá. Esse aspecto também se mos-
fato de ter-lhe sido extirpado o sistema nervoso simpático, trou falso.
nenhum terror nem fúria produziam secreção de adrenalina Os experimentos de Cannon com pessoas tampouco de-
nem outras mudanças humorais, e uma gata de controle, na ram resultados parecidos. Embora na grande maioria das pes-
qual todas estas reações eram provocadas. soas em quem se realizou o teste não se observassem emo-
A principal conclusão foi, não obstante, que as duas gatas ções, em algumas delas as injeções, de fato, as provocaram.
se comportaram exatamente da mesma maneira em situação No entanto, isso aconteceu muito raramente e somente quan-
análoga. Dito de outro modo, a expressão da emoção observa- do a pessoa estava "quase explodindo", preparada, de certa
da na gata de quem tinha sido extirpado o sistema nervoso forma, para a explosão emotiva, para a descarga emotiva. As
simpático foi igual à da outra. Reagiu da mesma maneira quan- explicações subseqüentes deixaram claro que a pessoa em
do o cachorro se aproximou dela e de seus gatinhos e também questão tinha motivos para estar aflita ou alegre, e a injeção
'1
quando, faminta, tiraram sua comida e, identicamente, quan- correspondente serviu de excitante para produzir essas emo-
do, também faminta, olhava a comida através de um estreito ""'1
ções. Outro momento consistia no seguinte: no relato intros-
orifício. Ou seja, todas essas reações foram testadas em ani- pectivo dos submetidos ao teste, notou-se que em nenhum
mais de dois tipos, em decorrência do que um dos principais deles surgiu um sentimento de terror, nem de raiva, nem de
lI!
elementos de James se viu refutado experimentalmente. O timidez, mas todos explicaram seu estado assim: sentia-me
teste desmentiu sua famosa tese sobre a subtração mental dos ;11I11 como se temesse, como se estivesse raivoso ou chateado com
sintomas das emoções. De acordo com James, se retirarmos algo. As tentativas de criar uma sensação interna na pessoa
mentalmente de uma emoção de terror o tremor, o encolhi- que realizava o teste, ou seja, a percepção consciente provoca-
mento de pernas, a paralisação do coração, etc., veremos que da experimentalmente por mudanças orgânicas internas con-
da emoção não resta nada. Cannon procurou efetuar essa sub- duzia apenas a que se produzisse um estado que lembrava a
tração e mostrou que, apesar disso, a emoção persistiu. Por emoção, mas a própria emoção, no sentido verdadeiramente
conseguinte, o momento central da pesquisa de Cannon con- psicológico, não existia.
sistiu em demonstrar a presença de um estado emocional do Portanto, os experimentos realizados com pessoas, com o
animal quando faltam as correspondentes reações vegetativas. emprego da análise introspectiva, introduziram certas corre-
Em outra série de experimentos, foi aplicada em animais e ções nos dados de Cannon. Demonstraram que a expressão
depois em pessoas uma injeção que produzia mudanças orgâ- orgânica das emoções não é tão indiferente para os estados
nicas artificiais, análogas às que se observam numa forte emo- emocionais como supunha este último, partindo dos experi-
ção. Verificou-seque, nos animais, se pode provocar essas mu- mentos com extirpações em animais.
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As conclusões gerais a que chegou Cannon e que são pro- orgânicas são importantes não para a emoção como tal, mas
duto de uma série de pesquisas experimentais nesse terreno para o que a ela se segue. Todas as mudanças - aumento de
consistem em duas teses fundamentais. A primeira conclusão açúcar no sangue, mobilização das forças do egoísmo para a
leva Cannon e todos os fisiólogos e psicofisiólogos dedicados luta, a fuga - são importantes porque, biologicamente, a uma
a essa questão a rejeitar a teoria de James e Langue, que não forte reação segue-se, no animal, uma intensa atividade mus-
dá conta da crítica experimental nem da comprovação dos cular, não importando se se trata de fuga ou de luta, ataque; em
fatos. Por isso, precisamente, um dos principais trabalhos de todos os casos, essa preparação do organismo deverá ocorrer.
Cannon intitula-se "Alternativa à teoria de James e Langue". Nas condições do laboratório, diz Cannon, a gata que ca-
Outra conclusão decorre de que Cannon, como biólogo, rece de sintomas fisiológicos de emoções se comporta da
tinha naturalmente necessidade de explicar pelo menos hipote- mesma maneira que a que os apresenta. Mas isso só acontece
ticamente o paradoxo resultante de seus experimentos. Se é nas circunstâncias de um laboratório experimental, onde a
fato que as profundas mudanças orgânicas que se produzem no questão se limita a mudanças isoladas; numa situação natural,
animal mediante reações emocionais fortes carecem por com- uma gata que carecesse desses sintomas morreria antes de
pleto de importância para as emoções e se a emoção persiste, uma que não carecesse deles. Se a gata tivesse medo e, além
apesar da subtração de todas essas mudanças orgânicas, como disso, tivesse de fugir, é claro que o animal cujos processos
se pode compreender biologicamente para que servem tão pro- viscerais não organizaram, não mobilizaram o organismo para
fundas mudanças? Se, num primeiro trabalho, Cannon mostra a fuga morreria antes do outro.
a importância funcional biológica das mudanças que se produ- O argumento experimental mais importante em favor
zem durante as emoções, precisa explicar agora, de um ponto desta hipótese é o seguinte: Cannon, com animais, e seus
de vista biológico, que a gata, que carece de sistema nervoso discípulos, com pessoas, provocavam uma atividade muscu-
simpático e de todas as reações humorais e viscerais que acom- lar intensa. Por exemplo, obrigavam uma gata a correr por
panham o afeto de terror, reage à ameaça a seus gatinhos da uma calha (como faz Dúrov6) pela qual passava corrente, de
mesma forma que a que conserva essas reações. Porque, do modo que a cada momento a corrente obrigava o animal a
ponto de vista biológico, essas reações tomam-se incompreen- escapar dela, a correr na velocidade máxima. Verificou-se
síveis e antinaturais se não desempenham nenhum papel que o simples trabalho muscular, o intenso movimento, pro-
importante nas mudanças funcionais biológicas que se produ- duzia as mesmas mudanças orgânicas que uma forte emo-
zem durante as emoções. ção. Em outras palavras, todos os sintomas vegetativos reve-
Cannon explica essa contradição do seguinte modo: qual- laram-se, na verdade, fenômenos concomitantes e interpre-
quer reação emocional forte no animal é, por si só, apenas o tações de uma intensa atividade muscular, mais do que de
princípio, mas não o fim da ação, e surge numa situação crítica, emoções em si.
de importância vital para ele. Fica claro, portanto, segundo Pode-se objetar a isso que a gata podia se sentir assustada
expressão de Cannon, que a conclusão lógica das reações emo- pela situação criada. Em resposta, Cannon realiza outra série
cionais fortes do animal será sua atividade aumentada. Assim, de experimentos, que não incluem momentos que assustem o
a conclusão lógica do terror é a fuga do animal, a da fúria ou animal e, no entanto, a intensa atividade muscular provoca as
raiva, a luta ou o ataque. Por conseguinte, todas as reações mudanças que costumavam ser consideradas concomitantes
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de uma reação emocional e que, antes, o próprio Cannon con- constituído por um mecanismo cerebral. Ligou o mecanismo
siderava um momento importante das emoções. Verificou-se das emoções com o cérebro, e esse deslocamento do centro da
que os mencionados sintomas não são tanto fenômenos con- vida emocional dos órgãos da periferia para o cérebro incorpora
comitantes às emoções como complementos dos momentos as reações emocionais ao contexto anátomo-fisiológico geral de
emocionais relacionados com o instinto. todos os conceitos anátomo-fisiológicos, que os relacionam
Desse ponto de vista, diz Cannon, a teoria de Darwin se estreitamente com o resto da psique humana.
vê justificada inesperadamente. Nesta teoria, não há dúvida Isso torna importante e compreensível o que foi descoberto
sobre o fato de que nossos movimentos ~xpressivos podem no aspecto psicológico por outros pesquisadores - a estreitíssi-
ser considerados, na verdade, rudimentares se comparados à ma relação e dependência entre o desenvolvimento das emoções
expressão dessas emoções nos animais. O ponto fraco da e o de outros aspectos da vida psíquica do homem.
mencionada teoria, contudo, é que o autor não foi capaz de Se procurarmos formular brevemente o resumo principal
explicar o desenvolvimento progressivo das emoções, afir- deste trabalho de pesquisa, teremos de dizer: realizou no campo
mando, pelo contrário, que iam se apagando. da psicologia algo parecido com o que Cannon e seus discípulos
Cannon mostrou que não é a própria emoção que morre, levaram a cabo no da psicofisiologia das emoções; concretamen-
mas seus componentes instintivos. Dito de outra forma, o te, deslocou a teoria das emoções da periferia para o centro. Se
papel das emoções na psique humana é outro; isolam-se cada esta considerava o mecanismo das emoções não como extracere-
vez mais do reino dos instintos e se deslocam para um plano bral, mas como cerebral, se esta mostrou que as reações emocio-
totalmente novo. nais dependiam do órgão que dirigia todas as demais reações
Quando se toma a doutrina das emoções no conjunto de relacionadas com a psique do homem, também o trabalho psi-
seu desenvolvimento histórico, vê-se que, partindo de diferen- cológico pôs fim à doutrina da vida emocional do homem como
tes lados, este desenvolvimento histórico seguiu uma única di- "um estado dentro de outro".
reção. As pesquisas psicológicas da vida emocional conduzi- Toda uma série de reações comparativas e dependências se
ram ao mesmo que as pesquisas experimentais no campo da revelou aos pesquisadores nos experimentos quando, ao estudar a
psicofisiologia. A conclusão básica mais importante sobre os vida emocional, começaram a se dar conta da total impossibilida-
trabalhos da corrente a que me referi é o peculiar deslocamento de da situação criada nas teorias de James e Langue, que divi-
do centro da vida emocional. Cannon supunha que o funda- diam as emoções em duas classes que nada tinham em comum
mental que esses trabalhos tinham conseguido era ter desloca- entre si - as emoções superiores e inferiores. Se seguirmos o
do o núcleo da vida emocional da periferia para o centro. caminho cronológico, teremos de nomear em primeiro lugar
Mostrou que o substrato real, os portadores reais dos processos Freud, já que ele foi um dos primeiros pesquisadores a se aproxi-
emocionais não são, de modo algum, os órgãos internos da mar muitíssimo, não experimental, mas clinicamente, de forma
vida vegetativa, nem os mais antigos no aspecto biológico. teórica, do que constituiu o percurso principal das pesquisas pos-
Mostrou que o substrato material das emoções não é um meca- teriores neste campo.
nismo extracerebral, um mecanismo que se acha fora do cére- Como se sabe, ao analisar a psicopatologia da vida emocio-
bro humano, graças ao que se criou a doutrina das emoções nal, Freud interveio negando que o mais importante no estudo da
como um estado à parte dentro de toda a psique, mas que é emoção são os componentes orgânicos que a acompanham. Di-
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L. S. Vigotski 97
o desenvolvimento psicológico na infância

zia, como se sabe, que não conhecia nada mais indiferente São análogas as realizações de Ad1er7e sua escola em
para determinar a natureza psicológica do terror do que o seus trabalhos dedicados à doutrina das emoções. Mediante
conhecimento das mudanças orgânicas que o acompanham. observações demonstraram que, no que se refere à sua impor-
Freud rejeitava a velha psicologia orgânica unilateral de James
tância funcional, a emoção relaciona-se não só com a situação
e Langue, que estuda o córtex e não se ocupa do verdadeiro
instintiva em que se manifesta, como ocorre de fato com os
núcleo psicológico, ou, em outras palavras, que, ao estudar o animais, mas é também um dos momentos que formam o cará-
trabalho dos órgãos nos quais se manifesta a emoção, nada faz
ter. Demonstraram que, por um lado, os conceitos gerais do
para estudar a emoção enquanto tal. Freud mostra a extraordi-
nária dinâmica da vida emocional. homem sobre a vida, a estrutura de seu caráter, se vêem refle-
tidos num determinado círculo da vida emocional e, por outro,
Uma conclusão puramente formal de suas pesquisas é, a
são determinados por estas sensações emocionais.
meu ver, correta, apesar da falsidade, em essência, da afirmação
Como se sabe, tal idéia sobre o caráter e as emoções fez
fundamentalde Freud.Concretamente,o terrorse explica,segun-
do ele, pelo fato de que, numa série de mudanças neuróticas, a com que a doutrina das emoções se transformasse numa parte
atração sexual reprimidase transformaem terror; o terrorse con- inseparável e central da doutrina do caráter humano. Deu-se
vertenum estado neurótico,equivalentea toda uma sériede dese- algo totalmente oposto ao que acontecia anteriormente. Se
jos da criança,que foramdeslocados,reprimidosde formainsufi- antes a emoção era considerada uma surpreendente exceção,
ciente. Freud demonstroucomo é ambivalentea emoção nas pri- uma tribo agonizante, agora passa a ser relacionada com os
meiras etapas do desenvolvimento.E, apesar do caráter equivo- momentos da formação do caráter, ou seja, com os processos
cado da explicação que fornece sobre a emoção ambivalente,o de organização e formação da estrutura psicológica fundamen-
fato em si penetrou firmemente na doutrina de que as emoções tal da personalidade.
não existem desde o princípio, que, primeiro, ocorre uma certa Na teoria de Bühler, que do ponto de vista experimental
diferenciaçãodo núcleo,que encerrasentimentoscontraditórios. fez pela psicologia infantil atual mais do que muitos outros,
Essa tese era importante em outro sentido: desenhou cer- existem avanços muito interessantes na "tópica" psicológica
tas possibilidades simples na interpretação do movimento da das emoções, isto é, no lugar que estas ocupam em relação a
vida emocional. Mas o principal mérito de Freud no mencio- diferentes processos psíquicos. Uma exposição grosseira e
nado campo é ter mostrado que as emoções não foram sempre esquemática das conclusões de Bühler e seus experimentos (e
o que são agora, que em diversos momentos, nas etapas preco- os experimentos são o melhor de seu trabalho) permite apre-
ces do desenvolvimento infantil, foram distintas das do ho- sentar sua teoria da seguinte forma. Partindo da crítica das
mem adulto. Demonstrou que não são "um estado dentro de idéias freudianas sobre a vida emocional, Bühler presta atenção
outro", e que só podem ser compreendidas no contexto de não só ao fato de que na fase primordial do desenvolvimento a
toda a dinâmica da vida humana. É só aí que ganham sentido e vida psíquica e a atividade da criança não estão determinadas
significado os processos emocionais. Todavia, Freud conti- I" exclusivamente pelo princípio do prazer, mas também na infân-
nuava um naturalista, como o era James, que interpretava a cia o próprio prazer, que induz a criança a realizar tal ou qual
psique do homem como um processo puramente natural, e um ato, migra, vaga, muda de lugar dentro do sistemade outrasfun-
pesquisador que enfocava as mudanças dinâmicas das emo- ções psíquicas. Bühler relaciona isto com sua conhecida teo-
ções somente dentro de determinados limites naturalistas.
ria, que divide esquematicamente o desenvolvimento do com-
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o desenvolvimento psicológico na infância
L.S.Vigotski

portamento em três fases: o instinto, o adestramento e o inte- está localizado não no afeto final, mas no próprio processo da
lecto. Com base nessa teoria, procura mostrar,emjogos infantis atividade.
organizados experimentalmente, que o momento do prazer se Finalmente, Bühler distingue do segundo um terceiro
desloca à medida que a criança se desenvolve, modificando estádio, relacionado com a antecipação do prazer, ou seja,
sua atitude diante dos processos com que está relacionado. O com a sensação emocionalmente impregnada, que surge no
primeiro estádio do prazer é o Endlust, isto é, o prazer final. É começo do próprio processo, quando nem o resultado nem
o momento que caracteriza os processos instintivos, relacio- mesmo a execução da ação constituem o ponto central da sen-
nados principalmente com a fome e a sede, que são, em si sação global da criança, mas quando este ponto central se des-
mesmas, desagradáveis. Os primeiros momentos de saciação loca para o começo (Vorlust). Estas particularidades distin-
vêm acompanhados da manifesta expressão dos traços de pra- guem os processos do jogo criativo, das adivinhações, da re-
zer, mas à medida que culmina o ato instintivo chega o solução de algum problema. Neles, a criança encontra com
Endlust, a sensação emocional que se encontra no final da ati- alegria a solução e depois executa o que encontrou; mas a ob-
vidade instintiva. Como se sabe, essa é, em sua forma primitiva tenção daquilo que deve obter como resultado da ação já não
e inicial, a organização da atração sexual do homem: o mo- tem para ela grande importância.
mento central, relacionado com o prazer, consiste no momen- Se enfocarmos estes avanços na atividade da criança do
to final, resolutório, desse ato instintivo. Daí Bühler extrai a ponto de vista de sua importância, veremos que coincidem
conclusão de que, no plano da vida instintiva, pertence à emo- com as três fases do desenvolvimento do comportamento, a
ção e, concretamente, à emoção do prazer esse papel final, que se refere Bühler. No plano da atividade instintiva predo-
resolutório. As emoções são, no sistema da vida psíquica, co- mina uma organização da vida emocional relacionada com o
mo um momento tingido de cores vivas, que proporciona à momento final (Endlust). O prazer que se experimenta duran-
atividade instintiva seu desenvolvimento íntegro até o final do te o processo de atividade constitui o momento biológico ne-
ato instintivo. cessário para formar qualquer hábito, o que exige que a pró-
O segundo estádio é, segundo Bühler, o do prazer funcio- pria atividade, e não seus resultados, encontre em si mesma, o
nal (Funktionslust). Este estádio se manifesta na forma preco- tempo todo, um estímulo de apoio. Finalmente, a atividade,
ce dos jogos infantis, quando o que causa prazer à criança não transformada em intelectual, cuja essência consiste no que
é tanto o resultado quanto o próprio processo da atividade: Bühler chama reação de adivinhação (ou reação de confirma-
aqui, o prazer se deslocou do final do processo para o seu con- ção), caracteriza-se por uma organização da vida emocional
teúdo, para o seu funcionamento. Bühler observa isso também em que a criança manifesta uma sensação emocional no co-
nas refeições da criança. Esta, durante a tenra infância e nos meço dessa atividade; neste caso, o próprio prazer põe em
meses sucessivos, começa a experimentar prazer não só na movimento a atividade da criança, de modo distinto do que
medida em que se sacia e mata a sede, mas também no proces- quando se desenvolveu segundo os dois planos de que fala-
so da alimentação em si; o próprio processo se transforma mos antes.
para ela num possível prazer. Psicologicamente, diz Bühler, o Outra conclusão geral consiste em que os processos emo-
fato de que a criança possa se tomar gulosa expressa a mani- cionais, como mostra a pesquisa de Bühler, não são sedentá-
festação do Funktionslust; o nascimento do prazer imediato rios em nossa vida, mas nômades; não dispõem de um lugar
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L. S. Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

detenninado, fixo para sempre. Meus dados me convencem modelo de vida espiritual, transtornada em decorrência da al-
de que os progressos encontrados desde o prazer final até o teração da atividade emocional. Se for correta a velha tese (as
prazer antecipado são um pálido reflexo da expressão de toda emoções são um mecanismo biologicamente útil), é incom-
a diversidade possível na vida emocional, diversidade que preensível que as emoções sejam causa de tão profundas e
constitui o conteúdo real do desenvolvimento da vida emocio- prolongadas alterações de todo o comportamento, porque
nal da criança. quando estamos preocupados não conseguimos pensar con-
Ao tenninar essa parte relativa ao que há de efetivo em seqüentemente, porque quando nos sentimos transtornados
nosso tema de hoje, poderia talvez referir-me esquematica- não conseguimos agir de fonna conseqüente e sistemática,
mente a alguns dos últimos trabalhos, particulannente ao tra- porque quando estamos muito afetados por algo somos inca-
balho de Claparêde, cuja importância reside em ter combina- pazes de nos dar conta de nosso comportamento, controlar
do a pesquisa de crianças nonnais e anonnais com o estudo nossos atos, em outras palavras, porque os movimentos agu-
experimental de pessoas adultas, e aos trabalhos de Lewin, dos dos processos emocionais originam tais mudanças na
psicólogo alemão, pertencente à escola da psicologia estrutu- consciência que relegam a um segundo plano o desenvolvi-
ral, que realizou, como se sabe, uma série de pesquisas no mento de toda uma série de funções, que asseguram a vida
campo da psicologia afetiva e da vida volitiva. Mencionarei nonnal da consciência. Com efeito, segundo a interpretação
em duas palavras os resultados mais importantes desses traba- biológica primitiva e naturalista das emoções humanas, é to-
lhos, para em seguida passar às conclusões. talmente incompreensível por que estas adaptações biológi-
A importância dos trabalhos de Claparêde consiste em cas, tão antigas como o próprio homem, tão necessárias como
que neles conseguiu separar experimentalmente os conceitos a necessidade de alimentos e água, por que estas mesmas
de emoção e sentimento e sua expressão externa. Claparêde emoções são fonte de perturbações tão complicadas na cons-
diferencia as emoções e os sentimentos como processos nos ciência humana.
quais se tropeça freqüentemente em situações análogas, mas A pergunta inversa, feita por Claparêde, consiste no se-
que são diferentes em essência. Como não podemos nos inte- guinte: se o significado funcional mais importante das emo-
ressar hoje pela classificação das emoções, mas somente pelo ções se reduz a sua utilidade biológica, como explicar que o
problema em si, não nos deteremos nesse aspecto de sua dou- mundo das emoções humanas, que se diversificam cada vez
trina, mas em sublinhar que conseguiu mostrar a estreitíssima mais a cada novo passo dado pelo homem no seu desenvolvi-
relação existente entre as emoções e os demais processos da mento histórico, produz não só alterações na vida psíquica a
vida espiritual e também a diversidade psíquica das próprias que se refere Freud, mas toda a diversidade de conteúdo da
emoções. vida psíquica do homem (que se manifesta pelo menos na
Como se sabe, Freud foi o primeiro a formular a questão arte)? Por que cada passo do desenvolvimento humano provo-
de que a doutrina tradicional da utilidade biológica das emo- ca a atuação desses processos "biológicos", por que as vivên-
ções devia ser posta à prova. Freud, ao observar o estado neu- cias intelectuais do homem se refletem em fonna de fortes
rótico da idade infantil e madura, tropeça a cada passo no sensações emocionais, por que, finalmente, diz Claparêde,
espantoso fato a que não pode se esquivar nenhum psicólogo: cada guinada importante no destino da criança e do homem
constata-se que uma pessoa neurótica e uma criança são um está tão impregnada de elementos emocionais?
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L. S. Vigotski o desenvolvimento
psicológico
nainfância

Ao tentar responder a essas perguntas, Claparede apre- II~II Lewin mostrou como um estado emocional se transforma
senta o exemplo da lebre, que corre assustada, mas é salva do I em outro, como surge a substituição das sensações emocio-
!
perigo não pelo que teme; pelo contrário, o que teme frustra nais, como uma emoção não resolvida, continua existindo,
sua fuga e a leva à morte. Partindo disso, Claparede procura com freqüência, ocultamente. Mostrou como o afeto faz parte
mostrar que, junto com emoções biológicas úteis, existem de qualquer estrutura com que se relacione. A idéia principal
processos que denomina sentimentos. São catástrofes no com- de Lewin consiste em que as reações afetivas, emocionais,
portamento, e surgem quando é impossível a reação biológica não podem aparecer isoladas, como elementos especiais da
adequada à situação. Quando o animal se assusta e foge, essa vida psíquica, que só depois se combinam com outros elemen-
é uma emoção, mas, quando seu susto é tão grande que não tos. A reação emocional é o resultado singular de uma estrutu-
consegue correr, ocorre um processo de outro gênero. ra concreta do processo psíquico. Lewin mostrou que as rea-
O mesmo acontece com o homem; neste caso, encontra- ções emocionais iniciais podem surgir tanto na atividade es-
mo-nos diante de processos que desempenham um papel total- portiva, desenvolvida em movimentos externos, como na que
mente distinto se os considerarmos em seu aspecto interno, transcorre na mente, por exemplo, no xadrez. Mostrou que
embora pareçam semelhantes se o fizermos quanto a seu as- nestes casos surgem diferentes conteúdos, que correspondem
pecto externo. É a diferença entre a pessoa que sabe dos peri- a diferentes reações, mas o lugar estrutural dos processos
gos que a espreitam em um caminho e se arma de antemão e a emocionais permanece o mesmo.
que não sabe e é atacada; a pessoa que pode fugir e aquela a Passarei às conclusões. As duas linhas que procurei exa-
quem o perigo pega desprevenida; dito de outro modo, a pes- minar na conferência: por um lado, as pesquisas anatômicas e
soa que pode encontrar uma saída adequada para a situação e a fisiológicas, que transpuseram o centro da vida emocional do
que não consegue encontrá-Ia; em ambos os casos, ocorrerão mecanismo extracerebral para o cerebral, e, por outro, as pes-
processos distintos quanto à sua natureza psicológica. O expe- quisas psicológicas, que deslocaram as emoções para o pri-
rimento de Claparede estuda reações com diversas soluções, e meiro plano da psique humana e que as tiraram de seu isola-
isso o leva a dividir a vida afetiva em emoções e sentimentos. mento de "um estado dentro do outro", incorporando-as à es-
Esta diferenciação tem uma grande importância precisamente trutura dos demais processos psíquicos - estas duas linhas se
porque na velha psicologia os traços das emoções e os dos sen- encontram na psicopatologia, como sempre ocorre no estudo
timentos se misturavam mecanicamente e eram atribuídos a da vida psíquica.
processos iguais, que na verdade não existem. Em psicopatologia encontramos uma extraordinária ana-
Finalmente convém recordar os trabalhos de Lewin, que logia, que permitiu aos clínicos formularem, de um modo to-
mostraram experimentalmente a complicada dinâmica das talmente independente de Cannon, Claparede e outros, as duas
reações emocionais dentro do sistema de outros processos psí- partes da tese resultante da união desses dois aspectos de uma
quicos. Foi, concretamente, o primeiro a levar a cabo a pes- mesma doutrina. Como nosso curso não inclui os dados da
quisa experimental de um processo, que Freud e Adler, levia- psicopatologia, limitar-me-ei somente a algumas conclusões
namente, consideravam não poder ser estudado de forma ex- sumárias. Por um lado, nas lesões e doenças nervosas, os clí-
perimental e que, de forma expressiva, era denominado "pro- nicos observaram vários casos em que, devido a uma lesão ce-
fundidade psicológica". rebral mórbida, particularmente a do tálamo óptico na zona
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L. S.Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

subcortical, produz-se um riso ou um sorriso forçado, que se mecanismos do subcórtex cerebral, mais exatamente da zona
repete em intervalos de poucos minutos. O que caracteriza do tálamo óptico, relacionado através de numerosos caminhos
esse estado é que não provoca a emoção de alegria, mas cons- com os lóbulos frontais do córtex. Por isso, a localização cór-
titui para o próprio paciente um gesto inoportuno e mortifi- tico-subcortical das emoções é para a neurologia atual tão
cante, que contrasta bruscamente com seu estado real. determinada quanto a localização dos centros motores da lin-
Tive pessoalmente a oportunidade de estudar e descrever guagem na zona de Brocas e os centros sensoriais da lingua-
de modo experimental um dos casos de tão inoportunos movi- gem na zona de Wernike9.
mentos, resultante de uma encefalite, que provocava na enfer- Estas pesquisas referiam-se à psicopatologia, no sentido
ma profundos e dolorosos sofrimentos. Experimentava um estrito da palavra, particularmente à patologia da esquizofre-
terrível contraste entre o que expressava seu rosto e suas sen- nia. A isso se referem os trabalhos de Bleuler, que evidencia-
sações reais. Algo semelhante foi criado imaginariamente por ram que nas alterações patológicas observa-se a seguinte
Victor Hugo em seu romance O homem que ri. mudança da vida emocional: as emoções principais se conser-
Por outro lado, os clínicos, em particular Wilson e Head, vam em si mesmas, mas, se é que podemos nos expressar as-
a quem a psicologia deve grandes contribuições, observaram sim, o lugar normal destas emoções na vida espiritual da pes-
o fenômeno contrário. Nas lesões unilaterais do tálamo ópti- soa está deslocado. O indivíduo, capaz de reagir emocional-
co, foram testemunhas de uma mudança extraordinariamente mente, mostra em seu conjunto um quadro de transtornos da
interessante da vida emocional: a pessoa que experimenta consciência, devido ao fato de que as emoções perderam em
normalmente uma reação emocional, procedente da parte sua vida espiritual o lugar estrutural que tinham anteriormen-
direita do corpo, sofre uma reação dolorosa quando a excita- te. Em conseqüência disso, surge no paciente um sistema
ção procede do lado esquerdo. completamente singular de relações entre as emoções e o pen-
Também tive a oportunidade de ver casos análogos. Se se samento. Em particular, o exemplo mais claro de semelhante
puser numa pessoa como essa uma compressa na parte direita sistema psicológico novo, que tem sua analogia na consciên-
do corpo, ela experimentará uma sensação agradável comum. cia normal, mas que é expressão de um estado psicopatológi-
Mas, se a pusermos no lado esquerdo, observamos nela um co, é o estado de pensamento autista, bem estudado por
entusiasmo exagerado. O sentimento de agrado alcança di- Bleuler e demonstrado experimentalmente por Schneider.
mensões patológicas. O mesmo acontece com o contato de Por pensamento autista se entende o sistema de pensa-
algo escorregadio, frio, etc. Kretschmer descreve um doente mento em que os pensamentos estão dirigidos não por tarefas
que apresentava estados complexos, relacionados concreta- diferentes, propostas ao pensamento, mas por tendências emo-
mente com a sensação que experimentava ao escutar música, cionais; isto é, quando o pensamento está subordinado à lógi-
que variava segundo o ouvido com que a escutasse. ca dos sentimentos. Não obstante, semelhante representação
Essas pesquisas, procedentes em geral de clínicas neuro- do pensamento autista, que já ocorreu antes, é inconsistente:
lógicas, proporcionaram, por um lado, material psicológico nosso pensamento, que é contrário ao pensamento autista,
que mostra a precisão do ponto de vista de Cannon; por outro, tampouco está privado de momentos emocionais. Nosso pen-
material que evidenciou que o substrato anatômico das rea- samento realista provoca com freqüência emoções mais con-
ções emocionais parece estar constituído por determinados sideráveis, mais intensas, que o autista. O pesquisador que
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L.S.Vigotski

busca, no processo do pensamento, algo relacionado com sen- Conferência 5


sações emocionais, e o faz com entusiasmo e interesse de inten- A imaginação e seu desenvolvimento
sidades não inferiores, mas inclusive superriores às do esqui- na infância*
zofrênico, encontra-se dentro do pensamento realista.
A diferença entre o pensamento autista e o realista consis-
te em que, tanto em um quanto em outro, dispomos de uma de-
terminada síntese dos processos intelectual e emocional, mas,
no caso do pensamento realista, o processo emocional desem-
penha um papel mais de acompanhante do que de diretor, mais
subordinado do que condutor, ao passo que no pensamento
autista ele tem o papel de direção; o processo intelectual, ao
contrário, em contraposição a como intervém no sistema de
pensamento realista, não é condutor mas acompanhante.
Resumindo, as pesquisas atuais do pensamento autista Para a velha psicologia, que costumava considerar todos
mostraram que este constitui um sistema psicológico original, os aspectos da atividade psíquica do homem como conheci-
no qual não estão deteriorados os momentos intelectuais e das combinações associativas das impressões acumuladas
emocionais, mas onde ocorre uma mudança patológica de sua anterigrmente, o problema da imaginação constituía um
correlação. A análise desse pensamento autista, que devemos enigma insolúvel. Querendo ou não, a velha psicologia ti-
aproximar da imaginação da criança e do homem normal, nha de reduzir a imaginação a outras funções, porque a prin-
constituirá o tema de nossa próxima conversa. Espero tratar cipal diferença entre a imaginação e as demais formas de
nela, por meio de um material concreto, de um conceito que foi atividade psíquica humana consiste no seguinte: a imagina-
muitas vezes utilizado e que nunca foi descoberto no sistema ção não repete em formas e combinações iguais impressões
psicológico. Veremoscomo, no desenvolvimento da vida emo- isoladas, acumuladas anteriormente, mas constrói novas
cional, a migração sistemática, a mudança de lugar da função séries, a partir das impressões anteriormente acumuladas.
psíquica no sistema, determina também seu significado em Em outras palavras, o novo que interfere no próprio desen-
todo o processo de desenvolvimento da vida emocional. volvimento de nossas impressões e as mudanças destas para
Por conseguinte, teremos a possibilidade de estabelecer que resulte uma nova imagem, inexistente anteriormente,
uma seqüência entre a conversa de hoje e a seguinte, e no constitui, como se sabe, o fundamento básico da atividade
tema da imaginação trabalhar, por meio do exemplo de um que denominamos imaginação. Por conseguinte, para a psi-
sistema psicológico concreto, aquilo que nos ofereceu a análi- cologia associacionista, que considerava qualquer atividade
se do pensamento e das emoções. Com isto dou por terminada uma combinação de elementos e imagens que já existiam na
minha intervenção, deixando para o próximo capítulo as con- consciência, a imaginação devia constituir um enigma inso-
clusões teóricas relativas à doutrina da imaginação. lúvel.

* "Voobrazhenie y yego razvitie v detskom vozraste."


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L. S. Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

Sabe-se que a velha psicologia procurou eludir este enig- No entanto, os psicólogos se deparam, neste caso, com a
ma, reduzindo a imaginação a outras funções psíquicas. Em seguinte circunstância: que me lembre da paisagem anterior
essência, é essa idéia que serve de fundamento para a velha ao olhar a atual ou que lembre dela quando me veio à cabeça o
doutrina psicológica da imaginação que, como expressou nome do lugar da paisagem que vi outrora, não altera de fato a
Ribot em seu conhecido trabalho, a dividia em dois tipos: por questão. A diferença entre a memória e a imaginação não con-
um lado, a imaginação reprodutora e, por outro, a criadora ou siste na atividade em si desta última, mas nos motivos que
reconstrutiva. provocam essa atividade. Em ambos os casos, a própria ativi-
A imaginação reprodutora é a própria memória. Para os dade é muito similar, porque se adotarmos o ponto de vista da
psicólogos, era a atividade da psique com a qual reproduzi- psicologia atomista, que cria complicadas formas de atividade
mos na consciência uma série de imagens que vivemos, mas a partir de elementos, não existe outro caminho para explicar
que reconstruímos sem que existam motivos imediatos para a atividade da imaginação a não ser supor que uma certa exis-
isso. A atividade da memória, que consiste no aparecimento tência de imagens provoca outras associadas a elas. Diante de
na consciência das imagens vividas anteriormente e que não semelhante formulação, o problema da imaginação reproduto-
ra fundia-se totalmente com o da memória: era considerada
se relacionam com um motivo atual imediato para sua re-
uma das funções desta última dentre muitas outras.
produção, era chamada pelos velhos psicólogos de imagi-
O assunto se colocava de forma mais complicada com o
nação.
Ao diferenciar esta forma de imaginação da memória em tipo de atividade que os psicólogos denominavam imaginação
criativa. Nela, salta para primeiro plano a diferença a que já
sentido estrito, os psicólogos assim se expressavam: se ao ver
me referi, particularmente os momentos de criação de novas
agora uma paisagem me lembro de outra parecida, que já vi
imagens, que não existiam na consciência nem na experiência
outra vez, em algum lugar de outro país, tratar-se-á de uma
passada, momentos que são próprios da imaginação.
atividade da memória, porque a imagem presente, a paisagem A psicologia associacionista explicava o surgimento de
presente, desperta em mim a imagem vivida. Trata-se do mo- novas imagens criativas como resultado de combinações sin-
vimento corrente das associações, que constitui o fundamento gulares e casuais de elementos. Na imaginação criativa sur-
das funções da memória. Mas se, mergulhado em meus pró- gem novas combinações desses elementos, que não são novos
prios pensamentos e reflexões, sem estar vendo paisagem ne- em si. Essa é a lei fundamental da imaginação do ponto de
nhuma, reproduzo na memória uma paisagem vista por mim vista da velha psicologia, cujos porta-vozes eram Wundt e
alguma vez, esta atividade se diferenciará da atividade da me- Ribot, os quais diziam que a imaginação é capaz de criar nu-
mória pelo fato de que o impulso imediato para ela não pro- merosas combinações novas de elementos anteriores, mas que
vém da existência das impressões que a provocam, mas de não é capaz de criar nenhum elemento novo.
certos processos distintos. Devo dizer que o trabalho desses psicólogos foi em gran-
Dito de outro modo, esses psicólogos se deram conta, com de parte frutífero, já que mostraram, passo a passo, que os pro-
razão, de que a atividade da imaginação, inclusive quando ope- cessos da imaginação eram condicionados pelos sentimentos.
ra com imagens anteriores, é condicionada psiquicamente de Mostraram, segundo a expressão de um dos psicólogos, que
modo distinto da atividade da memória. nossos sonhos não são produto do acaso, mas estão relaciona-
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L. S. Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

dos com toda a experiência de quem os sonha, que, no fim uma singular distribuição dos processos de excitação, e em
das contas, as idéias mais fantásticas reduzem-se a combina- função disso surge uma série de combinações casuais.
ções desconhecidas de elementos presentes na experiência Por conseguinte, os sonhos são, segundo Wundt, uma
precedente do homem, que nem mesmo em sonhos podemos constelação casual, uma combinação casual de uma série de
ver nada que não tenhamos vivido alguma vez de uma forma impressões fragmentadas, arrancadas do contexto primário.
ou outra quando despertos, e que as idéias mais fantásticas Geralmente, diz ele, ao recordar algo sobre alguém, relaciona-
não o são do ponto de vista dos elementos nelas contidos. Em mos isto com alguma circunstância totalmente distinta, surgi-
outras palavras, esses psicólogos descobriram o substrato da numa cadeia associativa diferente. Em decorrência disto,
real da imaginação, a conexão desta com a experiência ante- diz Wundt, obtém-se um absurdo, ou seja, uma estrutura de
rior, com as impressões acumuladas. Mas o outro aspecto do imagens que parece ser carente de sentido, mas que, do ponto
problema, que consiste em demonstrar o que constitui na de vista da análise, é completamente determinada e serve de
imaginação a base da atividade, que permite representar de base para os sonhos. Como se sabe, Wundt e todos os psicólo-
forma totalmente nova, em uma nova combinação, todas es- gos que defendiam esse ponto de vista consideravam que a
sas impressões acumuladas, não foi resolvido por eles, mas fantasia do homem está limitada, por princípio, pela quantida-
apenas esboçado. de de imagens obtidas por associação e que nenhuma nova
A esta pergunta os psicólogos da velha escola simples- conexão não vivida entre os elementos pode se somar ao pro-
mente respondiam: a nova combinação surge por pura casua- cesso da atividade da imaginação; que o começo criativo não
lidade, porque, como reza uma das leis da velha psicologia, a é próprio dessa atividade e que ela dispõe de um círculo limi-
nova combinação da imaginação surge de novas constelações, tado de combinações, dentro das quais se dá.
ou seja, de novas relações entre elementos isolados. O carac- Os psicólogos apresentavam como um dos momentos o
terístico da teoria wundtiana dos sonhos é que seu autor tenta fato da repetição dos sonhos, quando um mesmo sonho ou
demonstrar que cada elemento dos sonhos é uma impressão combinações de sonhos, que remetem uma à outra, se repetem
vivida pela consciência quando em estado vígil, e a combina- numa mesma pessoa durante toda a vida. A conseqüência
ção fantástica dos elementos dos sonhos deve sua origem a natural deste fato é a tese das limitadas possibilidades de com-
uma constelação completamente singular, isto é, a uma com- binação.
binação singular de elementos. E a constelação completamen- Quando os psicólogos procuravam demonstrar que a ima-
te singular nasce porque nossa consciência "sonhante" (so- ginação é uma atividade determinada, que o vôo da fantasia se
nhadora) encontra-se em condições francamente especiais: é produz de forma regular, tinham razão e encontravam um
surda e cega às impressões do mundo exterior. A pessoa que importante material para confirmar tal crença. Mas, ao mesmo
dorme não vê nem escuta, ou seja, não percebe com os órgãos tempo, esboçavam o problema do aparecimento de novos ele-
dos sentidos as excitações externas, as quais lhe chegam de- mentos da imaginação. A lei de Wundt diz: a impressão, o
formadas, mas a consciência "sonhante" percebe toda uma sé- pensamento ou a contemplação real de um casamento podem
rie de excitações intra-orgânicas. Finalmente, a "ressurreição" levar para a idéia oposta, por exemplo, a idéia da separação
de imagens isoladas por caminhos associativos se produz ca- eterna, da sepultura; uma determinada idéia pode fazer as pes-
sualmente, graças ao fato de que no córtex cerebral ocorre soas lembrarem do contrário, mas não de algo alheio a ela; a
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L.S.Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

impressão do casamento não pode orientar ninguém a pensar rior. Por conseguinte, nas doutrinas idealistas atuais, duas fun-
em dor de dente, porque o casamento e esta última não man- ções psicológicas trocam de lugar. Se a psicologia associacio-
têm relação. Dito de outro modo, a imaginação está muito ar- nista reduzia a imaginação à memória, os intuitivistas procura-
raigada no conteúdo de nossa memória. vam mostrar que a própria memória nada mais é do que um
A imaginação criativa, embora seja de certo modo uma caso particular da imaginação. Por esse caminho, os idealistas
imaginação reprodutora, como forma de atividade não se chegam com freqüência a considerar a percepção como um
funde com a memória. É considerada uma atividade especial, caso particular da imaginação. A percepção, dizem eles, é uma
que constitui um aspecto peculiar da atividade da memória. imagem figurada da realidade, criada pela mente, que toma a
Vemos, portanto, que, assim como ocorre nos problemas impressão exterior como ponto de apoio e que deve sua origem
que examinamos até agora, também nos da imaginação o mais e surgimento à atividade criativa da própria cognição.
importante ficou sem resolver. A psicologia atomista era im- Por conseguinte, a controvérsia entre o idealismo e o ma-
potente para explicar o devir do pensamento, o nascimento da terialismo no problema da imaginação, assim como no do
atividade racional orientada para um fim, assim como para ex- pensamento, reduzia-se à questão de se a imaginação era uma
plicar como surge a imaginação criativa. Sua doutrina encer- propriedade primária da cognição, da qual desenvolvem-se
rava contradições, que constituíram o ponto real de que partiu paulatinamente as demais formas da atividade psíquica, ou se
a decisiva divisão da psicologia em causal e descritiva ou a própria imaginação deve ser interpretada como uma forma
intuitiva. complexa da consciência desenvolvida, como uma forma supe-
Partindo da impossibilidade em que se encontrava a psico- rior de sua atividade, que durante a evolução surge sobre a
logia associacionista para explicar o caráter criativo da imagi- base da anterior. A impotência do ponto de vista atomista,
nação, a psicologia intuitiva fez neste terreno o mesmo que no assim como do idealista, consiste no seguinte: ambos resol-
do pensamento: tanto lá quanto aqui, conforme expressão de viam a questão de um modo igualmente metafísico, no sentido
Goethe, converteu o problema em postulado. Quando era pre- de que, ao tomar como original a atividade reprodutora da
ciso explicar como surge a atividade criativa na consciência, os consciência, fechavam o caminho para explicar como surge a
idealistas respondiam que a imaginação criativa é própria da atividade criativa no processo de desenvolvimento. Na opi-
consciência, que a consciência cria, que são próprias dela for- nião de Wundt, parecia absurdo admitir que na imaginação
mas apriorísticas nas quais se criam todas as impressões da seja possível ligar a impressão ou o pensamento do casamento
realidade exterior. Do ponto de vista dos intuitivistas, o erro da com o pensamento da dor de dente. Com isso, ignorava os evi-
psicologia associacionista consistia em partir da experiência dentes fatos de que nossa imaginação ao se desenvolver dá
do homem, de suas sensações, de suas percepções, consideran- alguns saltos muito mais audazes, liga coisas muito mais dís-
do estas momentos primários da psique, em função do que pares do que aquelas às quais ele se refere; no final de sua
eram incapazes de explicar como surge a atividade criativa em vida, Wundt teve de reconhecer este aspecto em seu trabalho
forma de imaginação. Na verdade, dizem os intuitivistas, toda sobre a fantasia como fundamento da arte.
a atividade da consciência humana está impregnada de um O idealismo, neste caso, mostrou-se impotente no sentido
princípio criativo. Nossa percepção só é possível porque o ho- de que atribuía à consciênciauma propriedade criativa primária,
mem acrescenta algo de seu ao que percebe da realidade exte- incluindo assim a imaginação no círculo das atividades primá-
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rias da consciência que, segundo os comentários de Drish, está completamente emancipado da realidade. É um ser que se
Bergson e outros vitalistas e intuitivistas, são próprias da cons- acha submerso no prazer; por isso a consciência da criança se
ciênciadesde o momentode seu nascimento.Segundoa conheci- desenvolveria como uma consciência visionária, ou seja, como
da fórmula de Bergson,a imaginação é tão própria à nossa cons- uma consciência cuja função principal não consiste em refletir a
ciência, desde o começo, quanto a liberdadede vontade.Trata-se realidade em que vive nem em realizar uma atividade destinada,
da atividade livre que transcorre nas condições do mundo mate- a transformar tais ou quais impressões, mas apenas em servir os
rial e por isso se entrecruza com ele, mas, em si, é autônoma. desejos e as tendências sensoriais da criança. Não possui uma
Próximo deste ponto de vista estavaJames, o qual, ao referir-seà percepção da realidade, sua consciênciaé alucinatória.
vontade que rege a atividade criativa, dizia que cada ato encerra Esta idéia, no que tange o problema que nos interessa,
um "fiat", palavra divinacom que Deus criouo mundo. está desenvolvida nos trabalhos de Piaget. O ponto de partida
Para que a formulação deste problema na psicologia idea- deste último consiste em que o primário é a atividade da ima-
lista atual fique clara falta acrescentar um último aspecto. A ginação ou do pensamento não dirigido para a realidade. Mas,
questão da natureza da imaginação, por ser muito importante, diz ele, entre o pensamento do bebê não orientado em absolu-
foi transposta para o plano genético e reduzida à questão de to para a realidade e o do adulto - pensamento realista - exis-
sua prioridade. tem formas transitórias. Essa forma transitória, ou intermediá-
Na psicologia infantil, esta questão começou a encontrar ria, ou mista, entre a imaginação e o pensamento real é descri-
sua solução. Atualmente, na psicologia geral, é impossível ta por Piaget como o pensamento egocêntrico infantil. O ego-
tratar experimentalmente o problema da imaginação ignoran- centrismo infantil é a escala de transição entre a imaginação e
do o material acumulado na psicologia infantil. o pensamento realista, isto é, do pensamento que lembra um
Vejamos de que novos avanços dispomos na psicologia leve sonho, uma visão, uma ilusão, ou, como diz metaforica-
infantil sobre esta questão. Embora minha tarefa não consista mente Piaget, um certo espelhismo, que vive no campo do
de modo algum em descrever o processo da resolução deste irreal, do desejado, ao pensamento cuja tarefa consiste em se
problema em toda a sua plenitude histórica, devo tratar de sua adaptar à realidade e influenciar esta mesma realidade.
história. Como se sabe, devemos a Piaget uma série de interessan-
O representante da idéia de que a imaginação é primária, tes pesquisas experimentais sobre a infância precoce. A es-
que é uma forma presente desde o princípio na consciência sência das mesmas, em seu aspecto real, consiste no seguinte:
infantil, de onde procede todo o resto da consciência da perso- Piaget demonstrou experimentalmente que o bebê não distin-
nalidade, é a psicanálise e seu criador, Freud. Conforme sua gue com suficiente clareza em sua consciência as impressões
doutrina, dois princípios regulam a atividade psíquica da que recebe do mundo exterior e as que obtém de si mesmo.
criança: o princípio do prazer ou satisfação e o da realidade. Seu "eu" e a realidade exterior não estão experimentalmente
No começo, a criança procura obter prazer ou satisfação; na diferenciados na consciência; com freqüência confunde um e
primeira idade este princípio predomina. outro e em função disto distingue maios atos e formas que
A criança é um ser cujas necessidades biológicas estão procedem dele e os que se dão no exterior. Surgem nele uma
suficientemente cuidadas pelos adultos. Os alimentos, a roupa série de nexos confusos, que Piaget mostrou experimental-
são fornecidos pelos adultos. É o único ser que, segundo Freud, mente de forma recorrente e convincente.
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Assim, se uma criança realiza um movimento, que coin- O que é, no fim das contas, o egocentrismo? Piaget res-
cide no tempo com qualquer outra impressão que lhe resulte ponde dizendo que é puro solipsismo, ou seja, puro estado da
agradável, tenderá a considerar essa impressão externa agra- consciência que não conhece outra realidade a não ser ela
dável, que coincidiu casualmente, como resultado, expressan- mesma, que vive num mundo de criações próprias. O solipsis-
do-nos na língua de um adulto, de seu movimento precedente. mo infantil é um estado que se manifesta nas etapas iniciais do
Isso fica claro no fato de que se a impressão não se repete, a desenvolvimento da consciência da criança em geral; através
criança repetirá algumas vezes seus movimentos com o obje- das formas intermediárias de egocentrismo começa paulatina-
tivo de provocar essa impressão. Piaget levou a cabo um mente a se desenvolver na consciência infantil o pensamento
experimento com uma menina de cinco meses. A menina, que lógico, realista, do adulto.
brincava com um lápis e batia com ele no fundo de uma lata, Para passar do anteriormente exposto à doutrina da ima-
deparava-se com o fato de que ao mesmo tempo em que batia ginação na infância, é necessário enumerar de forma resumida
com o lápis na lata soava uma campainha no cômodo ou o os principais momentos do desenvolvimento da consciência
experimentador, escondido, dava um grito imitando o de um da criança desde a infância precoce e acompanhar sua evolu-
pássaro. A menina bate de novo na lata, mas desta vez de um ção. Estes momentos são vários. Piaget, assim como os de-
mais pesquisadores, é tributário de Freud. Segundo esse ponto
outro jeito: bate uma vez e espera. Soa o grito, a menina repete
de vista, a forma primária de imaginação é constituída pela
seu movimento, com o evidente objetivo de provocar a
atividade subconsciente, distinta do pensamento realista, que
impressão cuja procedência desconhece, mas bate e o grito é uma atividade consciente. Para estes autores, a diferença
não soa. Então, aborrecida, bate várias vezes na lata, tentando
consiste em que no pensamento realista a pessoa se dá conta
fazer com que soe o grito e, descontente, bate na outra parte da
dos objetivos, das tarefas e dos motivos que põe em ação. Em
lata. Em outras palavras, a menina dá mostras, com seu com- contrapartida, o pensamento que rege a fantasia não tem cons-
portamento, de que o que tinha coincidido casualmente com ciência das tarefas, objetivos e motivos principais - tudo isso
seu próprio movimento é considerado por ela resultado ime- permanece na esfera do subconsciente. Por conseguinte, a pri-
diato desse movimento.
meira diferença é que o pensamento realista é consciente, ao
Piaget baseia-se nesta pesquisa da infância precoce, mas, passo que a fantasia é, basicamente, subconsciente. A segunda
compreendendo que não é suficientemente idônea, utiliza diferença consistena atitude diante da realidade. A consciência
outro método, o da interpolação, no qual se considera a crian- realista desenvolvida prepara nossa atividade relacionada com
ça de acordo com os níveis de desenvolvimento. Quanto a realidade. A imaginação é uma atividade que, neste sentido,
menor for, maior é, seu egocentrismo, segundo o psicólogo, manifesta por completo o princípio do prazer, ou seja, sua
mais seu pensamento se centra na satisfação de seus desejos. função é outra.
O egocentrismo de uma criança de sete anos é mais intenso do A terceira diferença consiste para eles em que o pensa-
que o de uma de dez, o de uma de três mais intenso que o de mento realista pode ser comunicado com palavras, é social e
uma de cinco, etc. Seguindo esse caminho teremos de consta- verbal. É social no sentido de que, ao refletir a atividade exter-
tar que nos níveis precoces do desenvolvimento predomina na na, igual para diferentes consciências analogamente estrutura-
criança um egocentrismo absoluto. das, pode ser comunicado, transmitido; como o principal meio
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de comunicação, de transmissão, é a palavra, o pensamento cundante, um reflexo da realidade, de acordo com o nível de
realista é ao mesmo tempo social e verbal. O homem transmite atividade psíquica em que se encontra o animal em questão.
de forma mais ou menos completa o conteúdo e o curso de seu Portanto, seria impossível admitir teoricamente e, depois das
pensamento. Ao contrário, o pensamento autista não é social, pesquisas de Buytendijk, tampouco cabe admiti-Io no aspecto
mas individual, porque está a serviço de desejos que não têm real, que na série filogenética a imaginação e o pensamento
nada em comum com a atividade social da pessoa. É um pensa- estejam orientados para a obtenção de prazer, que a estrutura
mento sem palavras, em imagens, simbólico, que penetra na de espelhismo, a ilusão, seja uma forma mais primária que o
estrutura de uma série de imagens e não é comunicável. pensamento orientado para a realidade.
Poderíamos apresentar toda uma série de diferenças, mas O segundo grupo de fatos consiste na análise de observa-
nos restringiremos a estas. Portanto, esses autores consideram ções de crianças. Os pesquisadores demonstraram que na
a imaginação, em suas formas primárias, como uma atividade idade mais precoce não deparamos com a obtenção alucinató-
subconsciente, como uma atividade que serve não ao conheci- ria do prazer, que a obtenção do prazer na criança está ligada
mento da realidade, mas à obtenção de prazer, como uma ati- não à satisfação alucinatória, mas à satisfação real de necessi-
vidade não-social, de caráter não-comunicável. dades. Bleuler explica isso bem: nunca viu nenhuma criança
Este ponto de vista topou com as primeiras e mais impor- que experimentasse uma satisfação alucinatória da comida que
tantes objeções de caráter real por parte dos psicólogos de men- imagina; em contrapartida, viu que a obtenção de comida real
talidade biológica, embora pudesse parecer que tal ponto de proporciona à criança satisfação e prazer.
vista fosse ditado, em certa medida, por concepções ultrabio- A obtenção de prazer por parte da criança e a satisfação
lógicas, já que considera o homem como um ser que, no prin- primária estão tão ligadas às necessidades reais que se satisfa-
cípio, não se desenvolve socialmente, mas a quem a atividade zem na realidade, que constituem a forma primária de cons-
social se agrega como algo externo, secundário. ciência. A satisfação real, se nos referirmos a suas formas sim-
Os psicólogos de mentalidade biológica estabeleceram ples, relaciona-se com a satisfação das necessidades, e a satis-
dois fatos capitais. O primeiro se refere ao pensamento e à fação destas é uma das principais formas da vida e da ativida-
imaginação nos animais. O experimento realizado com gran- de do ser vivo, na qual a consciência participa desde a fase
de precisão e de forma muito interessante pelo pesquisador mais primordial de seu surgimento. O pensamento orientado
holandês Buytendijk, assim como outros experimentos, mos- para a satisfação de necessidades e para a obtenção de prazer
trou que no reino animal quase não encontramos elementos do não seguem caminhos opostos; como diz Bleuler, o caminho
pensamento autista ou de fantasia no sentido estrito da pala- da satisfação real passa, na primeira idade, pela realidade, sem
vra. Do ponto de vista biológico é difícil admitir que na filo- se desviar dela. Esses momentos relacionam-se e estão condi-
gênese primeiro surja o pensamento como função de satisfa- cionados pelo fato de que a satisfação das necessidades mais
ção, de prazer, e não como função de conhecimento da reali- simples está ligada na primeira infância a um prazer intenso,
dade. Nenhum animal, dizia Bleuler, poderia sobreviver um que salta para primeiro plano e domina sobre os demais mo-
só dia se sua atividade psíquica, muito intimamente ligada a mentos.
toda a sua atividade vital, estivesse emancipada da realidade, Em essência, a tese do caráter primário da imaginação e
ou seja, se não lhe proporcionasse uma idéia da realidade cir- do pensamento autista foi objeto, ponto por ponto, de uma
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série de refutações reais por parte dos pesquisadores, as quais gica das doenças nervosas, prestou-se atenção a um fato de ex-
acabamos de enumerar. Entre elas, devem ocupar o primeiro traordinário interesse, que pela primeira vez foi objeto de uma
lugar as que esclareceram a verdadeira relação entre o desen- interpretação adequada nas pesquisas neurológicas da escola da
volvimento da linguagem da criança e o de sua imaginação. psicologia estrutural, na Alemanha. Verificou-seque os doentes
Dos pontos de vista de Freud e de Piaget, a principal par- que padeciam de afasia, ou seja, aqueles que, em decorrência de
ticularidade da fantasia infantil primária é que deparamos uma ou putra afecção ou lesão cerebral, tinham perdido a facul-
com um pensamento não-verbal e, por conseguinte, não-co- dade de dominar por completo a linguagem (compreensão da
municável.
linguagem ou do aspecto articulatório da mesma), apresen-
Portanto, entre o pensamento através da palavra e o pen- tavam ao mesmo tempo uma forte diminuição da fantasia, da
samento autista existe uma contrariedade, devida ao caráter imaginação; pode-se dizer que sua imaginação se reduzia a
verbal e não-verbal destas duas formas de pensamento. zero. Com muita freqüência, tais doentes são incapazes de
De fato, as pesquisas evidenciaram que, no desenvolvi- repetir, para não dizer de criar, algo que não corresponda de
mento da imaginação infantil, um grande passo está dire- imediato à sua impressão ou à realidade percebida por eles.
tamente relacionado com a assimilação da linguagem, e que No Instituto de Frankfurt, foram descritos pela primeira
as crianças que experimentam um atraso no desenvolvimento vez casos em que um paciente afetado de paralisia do lado di-
desta última ficam extraordinariamente retardadas na evolu- reito, mas que conservava a faculdade de repetir as palavras que
ção da imaginação. As crianças cujo desenvolvimento da lin- escutava, de compreender a linguagem e escrever, era incapaz
guagem segue um caminho deformado (digamos, os surdos, de repetir a frase: "Consigo escrever bem com a mão direita", e
por ficarem total ou parcialmente mudos, carentes de comuni- sempre substituíaa palavra "direita" por "esquerda", porque, na
cação através da linguagem) são ao mesmo tempo crianças verdade, só conseguia escrever com a mão esquerda. Repetir
com formas de imaginação enormemente pobres, escassas e uma frase que incluísse algo que não correspondia ao seu esta-
às vezes realmente rudimentares. No entanto, partindo da tese do era impossível. Como se vê no experimento, não conseguia,
de Freud e outros, dever-se-ia esperar que, quando na criança ao olhar por uma janela quando o tempo estava bom, repetir a
não está desenvolvida a linguagem, quando esta falta ou se frase: "Hoje está chovendo" ou "Hoje o tempo está ruim". Por
atrasa, criam-se condições especialmente favoráveis para o conseguinte, a faculdade de imaginar o que não via no momen-
desenvolvimento de formas de imaginação primária, não-co- to dado era impossível para ele. Mais complicado era quando
municáveis, não-verbais. lhe pediam para utilizar por conta própria uma palavra que não
Por conseguinte, a observação do desenvolvimento da correspondesse à realidade percebida, por exemplo, quando lhe
imaginação evidenciou a dependência entre essa função e o mostravam um lápis amarelo e lhe pediam para dizer que não
desenvolvimento da linguagem. Conforme foi estabelecido, o era amarelo. Isso era difícil. Mas ainda mais difícil para ele
atraso no desenvolvimento da linguagem representa um atraso era dizer que o lápis era verde. Não conseguia nomear um
no da imaginação. objeto se isso não correspondesse a suas propriedades, como,
Talvez seja a patologia que ofereça os fatos mais notáveis, por exemplo, dizer: "Neve preta." Não conseguia pronunciar
dada sua brevidade, mais convincentes e mais eloqüentes. Há uma frase se a combinação de palavras que nela constava fos-
não muito tempo, quando se levou a cabo uma análise psicoló- se falsa. As pesquisas mostram, portanto, que uma séria per-

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turbação da função verbal está relacionada com a redução a cruciais mais importantes em seu desenvolvimento, são ao
zero da atividade imaginativa do sujeito que padece desse mesmo tempo momentos cruciais também no desenvolvimen-
defeito. to da imaginação infantil.
Devemos a Bleuler e sua escola o conhecimento dos Por conseguinte, as pesquisas reais não só não confirmam
fatos que lançam luz sobre esta questão; suas pesquisas mos- que a imaginação infantil seja uma forma de pensamento não-
tram por que o desenvolvimento da linguagem constitui um verbal, autista, não-dirigido, mas, ao contrário, mostram a cada
forte impulso para o da imaginação. A linguagem libera a passo que o processo de desenvolvimento da imaginação in-
criança das impressões imediatas sobre o objeto, oferece-lhe fantil, assim como o processo de desenvolvimento de outras
a possibilidade de representar para si mesma algum objeto funções psíquicas superiores, está seriamente ligado à lingua-
que não tenha visto e pensar nele. Com a ajuda da linguagem, gem da criança, à forma psicológica principal de sua comuni-
a criança obtém a possibilidade de se libertar do poder das cação com aqueles que a rodeiam, isto é, à forma fundamental
impressões imediatas, extrapolando seus limites. A criança de atividade coletiva social da consciência infantil.
pode expressar com palavras também aquilo que não coinci- Sabe-se que Bleuler lançou outra tese, que também se viu
de com a combinação exata de objetos reais ou das corres- ratificada nas pesquisas: a atividade da imaginação pode ser
pondentes idéias. Isso lhe dá a possibilidade de se desenvol- ao mesmo tempo uma atividade dirigida, no sentido de que
ver com extraordinária liberdade na esfera das impressões podemos nos dar perfeitamente conta dos fins e motivos que
designadas mediante palavras. essa atividade persegue.
As pesquisas mostraram que não só a linguagem, mas a Se tomarmos as chamadas utopias, ou seja, idéias notoria-
vida posterior da criança está a serviço do desenvolvimento mente fantásticas- que se distinguemperfeitamentena consciên-
de sua imaginação; tal papel é desempenhado, por exemplo, cia dos planosrealistas,no sentidoexato da palavra-, elas não se
pela escola, onde a criança pode pensar minuciosamente so- realizamem absolutode formasubconsciente,mas sim conscien-
bre algo de forma imaginada, antes de levá-Io a cabo. Isto sem te, com o claro objetivode criar uma imagem fantásticadetermi-
dúvida constitui a base do fato de que, precisamente durante a nada, que se refere ao futuro ou ao passado. Se escolhermos o
idade escolar, se estabeleçam as formas primárias da capaci- campo da criação artística,que logo está ao alcance da criança,e
dade de sonhar no sentido próprio da palavra, ou seja, a possi- tomarmos o aparecimento dos produtos dessa criação, digamos
bilidade e a faculdade de se entregar mais ou menos conscien- no desenho,no relato, veremos que também aí a imaginaçãotem
temente a determinadas elucubrações mentais, independente- caráter dirigido,ou seja, não é uma atividadesubconsciente.
mente da função relacionada com o pensamento realista. Por Se, finalmente, tomarmos a denominada imaginação cons-
fim, a formação de conceitos, que representa o começo da trutiva da criança ou toda a atividade criativa da consciência,
idade de transição, é um fator de extrema importância no de- relacionada com a transformação real, digamos, com a ativi-
senvolvimento das mais diversas, mais complexas combina- dade técnico-construtiva ou de edificação, veremos, onde quer
ções, conexões e relações que, no pensamento conceitual do que seja, que para os verdadeiros inventores a imaginação é
adolescente, podem ser estabelecidas entre diferentes elemen- I uma das principais funções, com a ajuda da qual se trabalha e
tos da experiência. Dito de outro modo, vemos que não só o que, em todos os casos de atividade, a fantasia está extraordi-
aparecimento em si da linguagem, mas também os momentos nariamente dirigida, que, do princípio ao fim, está orientada
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para o objetivo determinado que o indivíduo persegue. O mes- damentalmente e em primeiro lugar pelo fato de que, no pri-
mo se aplica aos planos de comportamento da criança que se meiro, o papel das emoções é insignificante, que ele se move
referem ao futuro, etc. independente do desejo subjetivo, ao passo que o pensamento
Sob a pressão dos fatos, temos de reconhecer que, depois autista o faz sob a influência do afeto. Ocorre, de modo indis-
de uma severa comprovação, todos os momentos principais cutível, que a imagem figurada, obtida por meio do desenvol-
que determinaram a peculiaridade da imaginação infantil e seu vimento autista do pensamento, constitui um momento impor-
caráter primário não resistem à crítica e se revelam errôneos. tante na evolução do processo emocional. É natural, portanto,
Desejaria deter-me numa questão relacionada com este
que se produzam relações tão peculiares entre os processos
campo: o aspecto emocional da imaginação. emocionais e o pensamento da criança, quando seu pensamen-
A psicologia da infância assinalou, na atividade da imagi-
to, expressando-nos em forma pouco acadêmica, passa a estar
nação, um momento importante denominado lei da sensação
a serviço de seus impulsos emocionais. Isso ocorre quando a
real na atividade da fantasia. Sua essência é simples, a obser-
realidade diverge notoriamente, em algum sentido, das possi-
vação real constitui seu fundamento. A atividade da imagina-
bilidades ou das necessidades da criança ou quando, devido a
ção está estreitamente ligada com o movimento de nossos
uma série de circunstâncias, em primeiro lugar em conse-
sentimentos. Com muita freqüência, tal ou qual estrutura
revela-se irreal do ponto de vista dos momentos racionais que qüência das condições da educação, a criança adota uma atitu-
servem de base para as imagens fantásticas, mas é real no sen- de falsa, deformada, com respeito à realidade. Encontramos,
tido emocional. então, aquilo que, sob outras formas, se manifesta em qual-
Recorrendo a um velho e tosco exemplo, poderíamos di- quer pessoa adulta desenvolvida e na criança que evolui nor-
zer: se, ao entrar num cômodo, tomo por um malfeitor um malmente no aspecto social, precisamente essa forma peculiar
paletó pendurado, sei que minha fantasia assustada é errônea, de atividade do pensamento, em que este está subordinado a
mas o sentimento de terror que experimento é uma sensação interesses emocionais. Isso se dá fundamentalmente graças ao
real e não uma fantasia a respeito da sensação real de terror. prazer imediato que se extrai dessa atividade, graças ao fato
Este, com efeito, é um dos momentos fundamentais, que ex- de que, junto com isso, produz-se uma série de sensações agra-
plica muito sobre a peculiaridade do desenvolvimento da ima- dáveis e, por fim, graças a que uma série de interesses e im-
ginação na infância e nas múltiplas formas da fantasia na ida- pulsos emocionais obtêm uma satisfação fictícia evidente, que
de madura. A essência do fato consiste em que a imaginação é é também uma substituição da satisfação real de processos
uma atividade extraordinariamente rica em momentos emo- emocionais.
cionais. Por conseguinte, o pensamento neste sistema psíquico
Aproveitando-se disso e baseando-se neste momento, uma transforma-se numa espécie de servo das paixões, numa espé-
série de psicólogos, que se ocuparam da idéia da imaginação cie de subordinado dos impulsos e interesses emocionais e de-
primária, partem da idéia de que seu motorprincipal é o afeto. paramos, na verdade, com uma atividade psíquica que se ca-
Vocês sabem que na clínica, mediante observações, estu- racteriza por uma relação peculiar entre o processo das emo-
dou-se o papel do pensamento autista. Predominava ali a idéia ções e o do pensamento, e com a fusão que denominamos for-
de que o pensamento realista diferencia-se do fantástico fun- ma visionária da imaginação.
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Mas vale a pena percorrer os outros dois momentos: a tipo, que se repete regularmente. A imaginação deve ser con-
combinação com os momentos emocionais não constitui a base siderada uma forma mais complicada de atividade psíquica, a
exclusiva da imaginação e esta não se esgota nessa forma. união real de várias funções em suas peculiares relações.
O pensamento realista, quando está relacionado com uma Para tão complexas formas de atividade, que superam os
tarefa importante para o indivíduo, situada de alguma maneira limites dos processos que costumamos chamar de funções,
no centro de sua personalidade, provoca e desperta uma série seria correto utilizar a denominação de sistema psicológico,
de sensações emocionais, de caráter muito mais considerável tendo em conta sua complicada estrutura funcional. São
e verdadeiro do que a imaginação e a capacidade de sonhar. Se características desse sistema as conexões e relações interfun-
tomarmos o pensamento realista de um revolucionário, que cionais que predominam dentro dele.
reflete sobre uma complicada situação política ou a estuda, A análise da atividade da imaginação em suas diversas
que penetra nela, em suma, se tomarmos o pensamento orien- formas e a da atividade de pensamento mostram que apenas
tado para a resolução de uma tarefa de importância vital para enfocando estes tipos de atividade como sistemas encontra-
o indivíduo, veremos que as emoções relacionadas com tal pen- mos a possibilidade de descrever as importantíssimas mudan-
samento realista são com muita freqüência incomensuravel- ças que nelas ocorrem, as dependências e os nexos que nelas
mente mais profundas, mais fortes, mais móveis e mais signi- se descobrem.
ficativas no sistema do pensamento do que as emoções rela- Permitam-me, para terminar, deter-me em certas conclu-
cionadas com as visões. O importante aqui é outro procedi- sões sobre o que estudamos até agora. Parece-me que devem,
mento de união dos processos emocionais com o pensamento. antes de mais nada, fazer referência à existência ou não de
Se, na imaginação visionária, o pensamento se manifesta um tão inconciliável antagonismo, uma tal contraposição, en-
numa forma que está a serviço dos interesses emocionais, no tre o pensamento realista e o pensamento visionário, fanta-
pensamento realista não encontramos um domínio específico sioso, autista. Se considerarmos o caráter verbal do pensa-
da lógica dos sentimentos. Nesse pensamento existem rela- mento veremos que este pode ser igualmente próprio da ima-
ções complexas entre funções isoladas. Se tomarmos a forma ginação e do pensamento realista. Se considerarmos o deno-
da imaginação que se relaciona com a invenção e sua influên- minado caráter dirigido ou consciente do pensamento, isto é,
cia na realidade, veremos que nesse caso a atividade da imagi- os motivos e fins, veremos que tanto o pensamento autista
nação não está subordinada aos caprichos subjetivos da lógica quanto o realista podem, em igual medida, ser processos diri-
emocional. gidos; pode-se também demonstrar o contrário: no processo
O inventor, que em sua imaginação cria o desenho ou o do pensamento realista, com freqüência o indivíduo não toma
plano que irá fazer,não se parece com uma pessoa que se move, consciência até o fim de seus verdadeiros motivos, objetivos
em seu pensamento, segundo a lógica subjetiva das emoções. e tarefas.
Em ambos os casos nos encontramos diante de diferentes siste- Se, por fim, analisarmos o vínculo de ambos os proces-
mas e diferentes gêneros de uma complicada atividade. sos, imaginação e pensamento, com a afetividade, a participa-
Se enfocarmos a questão do ponto de vista classificatório, ção dos processos emocionais nos do pensamento, veremos
é incorreto considerar a imaginação uma função especial entre que tanto a imaginação quanto o pensamento realista podem
outras funções, uma forma de atividade cerebral do mesmo ser caracterizados por uma elevadíssima emocionalidade e que
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L. S. Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

entre eles não existe contradição. E, ao contrário: veremos que sem se afastar dela, das impressões isoladas imediatas, concre-
existem certas esferas da imaginação que não estão, em si, su- tas, em que essa realidade está representada nos atos elementa-
bordinadas à lógica das emoções, à lógica das sensações. Dito res de nossa consciência. Tomem, por exemplo, o problema da
de outro modo, todas as contraposições aparentes, metafísicas, invenção, o da criação artística; neles, verão que a resolução
genéticas, que se estabelecem entre o pensamento realista e o das tarefas exige em alto grau a participação do pensamento
autista são, de fato, fictícias, falsas; um estudo mais profundo realista no processo da imaginação, que atuam juntos.
mostra que nos encontramos, neste caso, diante de uma contra- Não obstante, apesar disso seria totalmente incorreto
dição de valor não absoluto, mas apenas relativo. identificar ambos e não ver a contradição real que existe en-
Ao mesmo tempo, observamos outros dois momentos tre eles, e que consiste no seguinte: a imaginação se caracte-
extraordinariamente importantes que caracterizam, do ponto riza não por uma melhor conexão com o aspecto emocional,
de vista positivo e não apenas crítico, as relações entre o pen- não por um grau menor de consciência, não por um grau
samento e a imaginação que nos interessam. menor ou maior de concretude; essas particularidades tam-
Esses momentos são os seguintes: por um lado, assinala- bém se manifestam nas distintas etapas do desenvolvimento
mos a extraordinária afrnidade, a proximidade entre os proces- do pensamento. Para a imaginação é importante a direção da
sos do pensamento e da imaginação. Vemos que ambos mani- consciência, que consiste em se afastar da realidade, em uma
festam seus êxitos fundamentais nos mesmos momentos gené- atividade relativamente autônoma da consciência, que se dife-
ticos. Assim como no desenvolvimento do pensamento infantil, rencia da cognição imediata da realidade. Junto com as ima-
no desenvolvimento da imaginação o momento crítico princi- gens que se criam durante o processo da cognição imediata da
pal coincide com o surgimento da linguagem. A idade escolar é realidade, o indivíduo cria imagens que são reconhecidas
o ponto crucial no desenvolvimento do pensamento infantil rea- como produto da imaginação. Num nível alto de desenvolvi-
lista e autista. Dito de outro modo, vemos que o pensamento mento do pensamento criam-se imagens que não encontramos
lógico e o pensamento autista desenvolvem-se numa excepcio-
preparadas na realidade circundante. A partir disso, toma-se
nal e estreita inter-relação. Uma análise detalhada nos permitirá compreensível a complexa relação existente entre a atividade
do pensamento realista e a da imaginação em suas formas
arriscar uma formulação mais audaz: poderíamos dizer que
superiores e em todas as fases de seu desenvolvimento. Torna-
ambos se desenvolvem unidos, que, em essência, na evolução
se compreensível que, junto com cada passo na conquista de
de cada um não observamos em absoluto uma vida independen-
uma mais profunda penetração na realidade, a criança vai se
te. Mais ainda, ao observar as formas de imaginação relaciona-
libertando, até certo ponto, da forma mais primitiva de conhe-
das com a criatividade, orientadas para a realidade, vemos que a cImento da realidade que antes conhecia.
fronteira entre o pensamento realista e a imaginação se apaga, Toda penetração mais profunda na realidade exige uma
que a imaginação é um momento totalmente necessário, insepa- atitude mais livre da consciência para com os elementos dessa
rável, do pensamento realista.
realidade, um afastamento do aspecto externo aparente da rea-
Aqui surgem contradições, naturais do ponto de vista da lidade dada imediatamente na percepção primária, a possibili-
situação fundamental das coisas: é impossível conhecer corre- dade de processos cada vez mais complexos, com a ajuda dos
tamente a realidade sem um certo elemento de imaginação, quais a cognição da realidade se complica e se enriquece.
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L.S.Vigotski

Desejaria, finalmente, dizer que a conexão interna exis- Conferênâa 6


tente entre a imaginação e o pensamento realista complemen- O problema da vontade e seu desenvolvimento
ta-se com um novo problema, intimamente ligado ao da von-
tade ou liberdade na atividade do homem, na atividade da na infância*
consciência humana. As possibilidades de agir com liberdade,
que surgem na consciência do homem, estão intimamente
ligadas à imaginação, ou seja, à tão pee,:uliardisposição da
consciência para com a realidade, que surge graças à atividade
da imaginação.
Unem-se num conjunto três grandes problemas da psico- Femanflo R. Cunha Juníor
logia atual, particularmente da psicologia infantil atual - o (3S) 9916-2678
problema do pensamento, o problema da imaginação e o pro-
blema da vontade. Ao problema da vontade estará dedicada a
próxima e última conferência. Como fizemos ao analisar todos os problemas, permitam-
me começar com uma breve e esquemática introdução históri-
ca sobre o estado atual deste problema na ciência.
Sabe-se que a tentativa de compreender e desenvolver
teoricamente o problema da vontade e analisar suas manifes-
tações no adulto e na criança segue duas tendências; uma de-
las costuma ser denominada teoria heterônoma e a outra, teo-
ria autônoma.
Por teoria heterônoma subentende-se o grupo de pesqui-
sas teóricas e experimentais que tenta explicar os atos voliti-
vos do homem, reduzindo-os a complexos processos psíqui-
cos de caráter não-volitivo, a processos associativos ou inte-
lectuais. Qualquer teoria que procure buscar a explicação dos
atos volitivos fora da vontade une-se às teorias heterônomas.
As teorias autônomas ou vo/untaristas consideram que a
explicação da vontade baseia-se na unidade e irredutibilidade
dos processos volitivos e das sensações volitivas. Os repre-
sentantes desta escola tentam explicar a vontade partindo de
leis próprias do ato volitivo em si.

* "Problema voli y yeyo razvitie v detskom vozraste."


132 133
L. S. Vigotski o desenvolvimento
psicológico
nainfância

Se olhannos conjuntamente as duas tendências de estudo se nela uma conexão associativa entre estar satisfeita e elos
da vontade, primeiro no aspecto particular e depois no geral, isolados do próprio processo de estar satisfeita; esta conexão é
poderemos apreciar em que consiste o fundamental de seu suficiente para que também surja o processo contrário, ou
conteúdo. seja, que a criança busque conscientemente a comida quando
Ao examinar as teorias heterônomas veremos que se tra- sinta fome. Segundo a definição de Ebbinghaus, a vontade é
ta das mais antigas: as associacionistas e as intelectualistas, um instinto que aparece com base numa associação reversível
que não analisarei em detalhe, já que têm um interesse mais ou, como ele expressa metaforicamente, com base num "ins-
propriamente histórico, e falarei delas apenas de forma es- tinto visual" que toma de seu objetivo.
quemática. Outras teorias, que em essência estavam próximas da in-
Em essência, a,steorias associacionistas enfocavam o.es- telectualista, procuravam mostrar que a ação que aparece co-
tudo do problema da vontade segundo o espírito com que pro- mo volitiva é de fato uma complexa combinação de processos
curam expô-Io a reflexologia e a psicologia do comportamen- psíquicos de tipo não-volitivo, mas intelectual. Representan-
to (behaviorismo). Segundo a mencionada teoria, os momen- tes dessa corrente são os psicólogos franceses, alemães e in-
tos centrais da vontade são os seguintes. Como se sabe, toda gleses. O representante típico desta teoria é Herbart.
associação é reversível. Se eu, digamos, num experimento Segundo o ponto de vista dos intelectualistas, não é a rela-
com a memória estabeleci uma associação entre a primeira sí- ção associativa em si que explica os processos volitivos: tra-
laba carente de sentido, que denominaremos a, e a segunda, balham não com base no conceito de "associação", mas com o
que denominaremos b, é natural que, ao escutar depois a síla- conceito de "processo volitivo", que varia no curso do desenvol-
ba a, eu reproduza também a sílaba b. Mas também é natural o vimento das funções. Consideravam a natureza do processo vo-
contrário. Este simples fenômeno foi denominado, em seu litivo do seguinte modo: no nível inferior do desenvolvimento
tempo, lei da reversibilidade das associações. Em essência, ocorre uma ação instintiva, reativa, impulsiva, em seguida se
resume-se a que tanto o adulto quanto a criança agem no prin- produz uma ação resultante do costume e, por fim, outra rela-
cípio cegamente, de forma espontânea, impulsiva e reativa, cionada com a intervenção da razão, isto é, um ato volitivo.
isto é, determinam sem nenhuma liberdade e de modo irracio- Cada ato, dizem os discípulos de Herbart, é volitivo na medida
nal sua atividade com respeito à situação, dentro da qual se em que é racional.
consegue o objetivo. Tanto a teoria associacionista quanto a intelectualista
No entanto, tal atividade, espontaneamente realista, con- caracterizam-se pela tentativa de reduzir o processo volitivo a
duz a um determinado resultado; portanto, estabelece-se uma outro de caráter mais simples, que está fora da vontade, de
associação entre a própria atividade e seus resultados. Mas explicar esta última não a partir de momentos adequados aos
como esta relação associativa é reversível, é claro que durante processos volitivos,mas de momentos que estão fora dessespro-
o desenvolvimento posterior pode ocorrer uma simples inver- cessos.
são do processo, do final para o princípio. Utilizarei o exem- Este é o defeito essencial dessas teorias, além do fato de a
plo de Ebbinghaus. principal concepção do associacionismo e do intelectualismo
Se, no início, a criança instintivamente volta-se para a co- ser falsa. Mas podemos ficar por aqui no que diz respeito a
mida, no transcurso de uma série de experimentos estabelece- isso. Na minha opinião, é muito mais importante sublinhar o
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134 o desenvolvimento
psicológico
nainfância
L.S.Vigotski

positivo que as mencionadas teorias da vontade continham, o como algo primário, como uma unidade que não podia ser de-
que as elevou a um nível superior com respeito às teorias ante- duzida de outros processos psíquicos.
riores e que foi eliminado por ser contrário às teorias volunta- O elo de transição para estas teorias está constituído pelo
ristas. A parte de verdade que continham, o pathas de que es- segundo grupo de teorias, particularmente as teorias afetivas
tava permeada toda a doutrina da vontade, era o pathas do da vontade. O representante mais notável dessa corrente é
determinismo. Era uma tentativa de fazer frente às teorias es- Wundt, conhecido na história da psicologia como voluntarista,
embora na verdade extraísse a vontade do afeto. O ponto de
piritualistas medievais, que consideravam a vontade como a
vista de Wundt consiste no seguinte: as teorias associacionistas
principal "força espiritual", que não podia ser analisada no
plano do determinismo. Os associacionistas procuravam ex- e intelectualistas explicam os processos volitivos tomando
plicar e fundamentar teoricamente que caminho, que causa, deles o menos importante para a vontade, excluindo o momen-
to da ação e a atualidade; porque no aspecto subjetivo esses
com base em que determinação, pode surgir a ação volitiva,
momentos são vividos de um modo peculiar e no aspecto obje-
racional, livre, do homem.
tivo a vivência psíquica, relacionada com os processos voliti-
Para as teorias intelectualistas é especialmente interes-
vos, manifesta uma conexão muito mais estreita com a ativida-
sante ressaltar o fato de que, para tentar resolver qualquer pro-
de do homem do que as vivências de outro caráter.
blema, o experimento deve figurar em primeiro plano; o que Um associacionista se caracteriza, diz Wundt, por expli-
melhor deve servir de exemplo de análise é a atribuição de
car a vontade por meio da memória; um intelectualista, por
sentido da situação para o próprio indivíduo, a conexão inter- fazê-Io através do intelecto; o verdadeiro caminho para expli-
na entre a compreensão da mesma e a ação em si, assim como car a vontade é o afeto. Este, na verdade, é um estado em pri-
o caráter livre e voluntário da ação. meiro lugar ativo, isto é, que se caracteriza tanto por seu notá-
O que criava dificuldades para estas teorias era não con- vel e intenso conteúdo interno quanto pela ativa ação da pes-
seguirem explicar o mais importante na vontade, precisamen- soa. Wundt diz: se quisermos encontrar o protótipo genético
te o caráter volitivo dos atos, a voluntariedade enquanto tal, da ação numa estrutura típica do protótipo, devemos reviver,
assim como a liberdade interna que o indivíduo experimenta recordar uma pessoa muito enfurecida ou muito assustada e,
ao adotar essa ou aquela decisão, e a variedade estrutural ex- então, veremos que aquele que experimenta um forte afeto
tema da ação que distingue o ato volitivo do não-volitivo. não se encontra em condições de realizar uma atividade men-
Por conseguinte, assim como em relação ao intelecto as tal séria. Vemos, portanto, que o essencial no processo voliti-
velhas teorias eram incapazes de explicar o mais importante - vo é a atividade da ação externa, relacionada de forma ime-
como a atividade irracional toma-se racional -, tampouco diata com as sensações internas. Assim, o protótipo da vonta-
podiam explicar como a ação não-volitiva se transforma em de é o afeto, e com base nesse ato afetivo surge, por meio de
volitiva, o que deu lugar ao surgimento de uma série de teorias uma transformação, o processo volitivo no sentido próprio da
psicológicas, que procuraram resolver essa questão não com a palavra.
ajuda de meios científicos, mas com a ajuda de estruturas me- Não entraremos nos detalhes dessa teoria nem de outras,
tafísicas. Tais foram, concretamente, as teorias autônomas, que que talvez formulem com maior precisão as teorias emocio-
procuravam resolver o problema da vontade interpretando-o nais e afetivas da vontade. O importante para nós é assinalar
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L. S. Vigotski o desenvolvimento
psicológico
nainfância

os elos de desenvolvimento deste problema, já que inclusive o meiro lugar, o reconhecimento da vontade como algo primá-
próprio Wundt estava com um pé nas posições dos voluntaris- rio, como algo que permanece alheio ao aspecto consciente da
tas (sob esse nome se deu a conhecer em psicologia, já que em personalidade humana, que constitui uma determinada força
filosofia adotou abertamente o ponto de vista do voluntaris- inicial, que move em igual medida o aspecto material e espiri-
mo) e com outro na posição precedente da teoria heterônoma. tual da vida. Em segundo, no outro pólo acha-se a teoria dos
Vemos aqui como, historicamente, a teoria da vontade desen- espiritualistas, cujos representantes estão relacionados histo-
volveu-se unilateralmente, seguindo em parte uma corrente ricamente com a filosofia de Descartes e, por meio dele, com
falsa. É precisamente isso que deu lugar à decomposição des- a filosofia medieval cristã. Como se sabe, a teoria cartesiana
sas mesmas teorias e reduziu a zero inclusive os conhecimen- adota como fundamento o princípio espiritual que pareceria
tos positivos que encerravam. estar em condições de dirigir toda a alma humana e, a partir
As teorias da vontade autônoma partem da idéia de que os daí, todo o comportamento do homem.
caminhos para explicar a vontade não passam pela memória, Em essência, trata-se da teoria cartesiana, que renasceu
nem pelo intelecto, nem pelo afeto, mas sim pela própria von- e continuou se desenvolvendo junto com as teorias espiritua-
tade. Para eles, a atividade é o princípio primário. Os repre- listas da vontade, que no último quarto do século passado
sentantes desta teoria, Hartmann e Schopenhauer, considera- predominaram na psicologia idealista. Tal é, por exemplo, a
vam que a vontade é regida por um princípio sobre-humano, teoria de James. Já ligamos o sistema de James às mais di-
por uma certa atividade universal, que atua permanentemente versas teorias e tendências. James, um pragmático, tentou evi-
e subordina todas as forças humanas, independente da razão, tar qualquer explicação espiritualista e metafísica em todos
que está orientada para determinados fms. os problemas, com exceção da vontade. Criou então uma
Junto com essa interpretação da vontade penetrou na psi- teoria da vontade que denominou com a palavra latina fiat,
cologia o conceito do inconsciente. E foi isso o que brecou por tomada da Bíblia, que significa "faça-se!", com a ajuda da
muito tempo o desenvolvimento posterior da vontade. A qual Deus criou o mundo. Na opinião de James, em cada ato
introdução do conceito do inconsciente na psicologia atual volitivo está presente uma certa partícula de uma força voli-
representou a superação do tipo de idealismo contido no inte- tiva que, com freqüência, dá preferência ao mais fraco dos
lectualismo. Quase todos os representantes da doutrina do processos psíquicos. Quando um paciente na mesa de opera-
inconsciente são, em maior ou menor medida, schopenhauria- ções, apesar de experimentar terríveis dores e ter desejos de
nos, ou seja, partem da interpretação voluntarista da natureza gritar, permanece completamente tranqüilo e deixa o médico
da psique humana, à qual, nos últimos tempos, também che- fazer o que for necessário, encontramo-nos, diz James, dian-
gam cientistas como Freud. te de um claro exemplo da vontade, do comportamento vo-
Não nos deteremos em diferentes momentos e variantes luntário.
dessa teoria voluntarista. Para expor de forma esquemática Surge a pergunta: o que representa essa pessoa que age
o curso de nosso pensamento apenas mencionaremos os contra os impulsos imediatos, contra o que a atrai para o modo
pólos opostos entre os quais oscilaram todas as teorias, e oposto de agir? Na opinião de James, nesse exemplo manifes-
depois tentaremos encontrar o comum e o novo com que es- ta-se toda a inconsistência da teoria afetiva de Wundt, porque,
tas teorias contribuíram. Os pólos são os seguintes. Em pri- segundo esta, o afeto, mais forte do que a dor, obriga o indiví-
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L. S. Vigotski o desenvolvimento
psicológico na infância

duo a permanecer inerte. Na verdade, diz James, seria eviden- Por conseguinte, temos dois tipos polarizados de teorias
temente absurdo pensar que seu desejo de não gritar é maior voluntaristas, um em que a vontade é considerada uma força
do que o de gritar. Tem muito mais vontade de gritar do que de universal inicial, encarnada em tal ou qual pessoa, e outros
ficar calado. Esta desconformidade entre a análise introspecti- nos quais é considerada um princípio espiritual, que inclui
va e a objetiva do comportamento humano faz pensar que, processos materiais e nervosos e garante a vitória do mais
neste caso, seu comportamento segue a linha de maior resis- fraco dentre eles. O que têm em comum essas teorias? Ambas
tência, ou seja, que representa uma exceção às leis universais reconhecem que a vontade é algo primário, que não faz parte
da física. Como compreender, então, a relação entre os fenô- da série de processos psíquicos principais, que constitui uma
menos espirituais e físicos? rara exceção a todos os demais processos da psique humana e
Na opinião de James, estes fatos são inexplicáveis, já que não admite explicação determinista, causal.
que se nos mantivermos neste ponto de vista deveríamos re- Em particular, pela primeira vez, no que diz respeito aos
conhecer que, se esta pessoa permanece, não obstante, deita- atos volitivos, junto com a psicologia causal, surge a idéia da
da sobre a mesa, evidentemente sua organização física se psicologia teleológica, que explicava o ato volitivo não com
acha excitada e segue a linha de menor resistência, o que sig- base na identificação das causas, mas do ponto de vista dos
nifica que, em termos físicos, não nos encontramos ante ex- objetivos que movem esse ato.
ceções da física, mas diante de uma confirmação de suas re- Cabe dizer que, geralmente, essas teorias voluntaristas,
gras. No entanto, se tentarmos responder à pergunta de como que eram extraordinariamente retrógradas na história do de-
isso é possível, teremos de admitir que estamos em presença senvolvimento das idéias científicas sobre a vontade, conti-
do fluxo de uma certa energia espiritual que, ao se unir ao nham, no entanto, um momento positivo quando centravam
impulso mais fraco, é capaz de garantir a vitória sobre um fa- a todo instante a atenção dos psicólogos nos fenômenos
tor mais forte. Segundo a metafórica expressão de James nu- peculiares da vontade, quando contrapunham a todo instante
ma carta a Stumpfl, todo ato volitivo lembra a luta de Davi e sua doutrina às concepções que procuravam, em geral, ex-
Golias e a vitória conseguida por Davi diante do gigante Go- cluir os processos volitivos. Desempenharam também um
lias, com a ajuda do Senhor. Aqui intervém, no curso do pro- segundo papel: foram as primeiras a fragmentar a psicologia
cesso, tergiversando-o, uma partícula do princípio criador, a em duas tendências separadas, a causal, científico-natural, e
energia espiritual. a teleológica.
Em outras teorias, particularmente na de Bergson, parte- Tentaremos agora extrair uma conclusão dessa análise e
se do que determina a essência do método intuitivo, a denomi- determinar quais são as principais dificuldades que deparam
nada "análise dos dados imediatos da consciência". A de- todos os pesquisadores atuais na resolução do problema da
monstração da liberdade da vontade, de sua independência, de vontade, qual o enigma proposto aos pesquisadores de nossa
sua origem primária, Bergson extrai da análise das sensações geração, independentemente da corrente a que pertençam. A
imediatas. Assim como James, Bergson consegue demonstrar, principal dificuldade, o principal enigma, consiste, por um
na verdade, o fato bem conhecido de que no sistema das sen- lado, em explicar o curso determinado, causal, condicionado,
sações sabemos distinguir uma ação que sentimos como não- o curso natural, por assim dizer, do processo volitivo, em dar
livre das ações que sentimos como livres ou independentes. um conceito científico a esse processo sem recorrer aumaex-
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L. S. Vigotski o desenvolvimento psicológico na infância

plicação religiosa e, por outro, utilizando semelhante enfoque seguida, Lewin descobre outros fatos, que generaliza da se-
científico para explicar o processo volitivo, conservar na von- guinte maneira. Verifica-se que, em si, as ações afetivas ainda
tade o que lhe é próprio, precisamente o que se costuma deno- não são de modo algum volitivas, que uma série de ações, que
minar voluntariedade, arbitrariedade do ato volitivo, ou seja, em psicologia sempre foram consideradas tipicamente voliti-
aquilo que, em certas condições, converte a ação determinada, vas, na verdade não manifestam a natureza das ações realmen-
causal, condicionada, em ação livre. Dito de outro modo, o te volitivas, mas estão apenas próximas delas.
problema da sensação do processo volitivo livre - o que dis- O primeiro trabalho de pesquisa de Lewin neste sentido
tingue o ato volitivo dos outros - é a questão principal com foi o estudo da modificação dos experimentos de Ach, típi-
que deparam os pesquisadores de diferentes tendências. cos da velha psicologia aplicada à ação elaborada experi-
Mais algumas observações relativas à esfera das atuais mentalmente, ou seja, à resposta a um sinal convencional;
pesquisas experimentais sobre a vontade. Uma tentativa ex- ampliou-o depois ao estudo de uma série de ações, particu-
traordinariamente interessante de separar de forma experi- larmente ações baseadas em intenções. O principal do tra-
mental os atos intelectuais dos volitivos foi levada a cabo por balho de Lewin foi a indicação de que inclusive uma sé-
Koffka, pertencente à escola berlinense. Koffka diz: os atos
rie de ações referidas ao futuro, ações relacionadas com a
racionais não são ainda, por si sós, atos volitivos; nem no
intenção, ocorrem, em essência, segundo o tipo de ações
aspecto teleológico, nem no das sensações, nem no estrutural, afetivas voluntárias; dito de outro modo, estão relacionadas
nem no funcional, estes atos são volitivos, ao passo que antes
com as particularidades do estado que Lewin denomina ten-
se pensava que todos os atos, tanto os impulsivos, automáti-
so (Spannung).
cos, quanto os voluntários, eram volitivos. Repetindo, em par-
De experimentos análogos Lewin também extrai a se-
te, os experimentos de Kõhler e, em parte, realizando outros
guinte conclusão: se escrevi uma carta e depois de colocá-Ia
novos com animais e pessoas, Koffka conseguiu mostrar que
no bolso do casaco tinha a intenção de pô-Ia na caixa do cor-
alguns dos atos que o homem realiza não são, quanto à sua
estrutura, volitivos, no sentido próprio da palavra. Em outro reio, esta ação em si é automática e se realiza involuntaria-
exemplo conseguiu mostrar o contrário, que existem na ver- mente, apesar de remeter, por sua estrutura externa, àquela
dade atos volitivos puros que podem conter momentos inte- que levamos a cabo segundo um plano previamente estabele-
lectuais manifestados de forma extremamente confusa. Por cido, ou seja, o ato volitivo.
conseguinte, o trabalho de Koffka parece ter separado os atos Aqui, da mesma forma que nos experimentos de Koffka,
racionais dos volitivos e permitiu, por um lado, estreitar o cír- alguns atos volitivos são atribuídos a uma série de ações afe-
culo dos atos volitivos e, por outro, ampliar a variedade dos tivas e involuntárias, próximos em sua estrutura aos voliti-
diferentes tipos de ações do homem. vos, mas que não constituem atos volitivos específicos. So-
Um trabalho análogo foi realizado por Lewin em relação mente depois Lewin mostra a variedade de formas de ações
aos processos afetivos volitivos. Como se sabe, este trabalho humanas que apresentam as mesmas regularidades.
consiste em estudar a estrutura dos atos afetivo-volitivos, e Lewin aproxima-se muito dos problemas da vontade, em-
procura demonstrar que as atividades afetiva e volitiva do ho- bora o faça a partir de seu aspecto negativo. Ao realizar expe-
mem baseiam-se fundamentalmente no mesmo. Mas, logo em rimentos análogos com crianças e adultos, detém-se num mo-
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L. S.Vigotski o desenvolvimento
psicológico
nainfância

mento muito curioso: enquanto o adulto pode tentar qualquer de diferentes formas, mas exibiam um traço comum que con-
coisa, inclusive algo sem sentido, a criança é impotente diante sistia em buscar um ponto de apoio para suas ações no exte-
disso. Nas primeiras etapas de desenvolvimento da vontade, a rior. Um exemplo típico disso pode ser o de uma mulher que
criança é incapaz de ter uma intenção. Cada situação determi- determina suas ações em função do ponteiro do relógio.
na o círculo de suas possíveis intenções. Trata-se, como diz Olhando o relógio, pensava: "Quando o ponteiro ficar per-
metaforicamente Lewin, de um germe de intenção, mas não pendicular, vou embora." Não obstante, alterava a situação:
de uma intenção nascida sem sentido. Lewin estudou, em pri- suponhamos que ela espere até as duas e meia e que então vá
meiro lugar, a criação de qualquer intenção, inclusive a sem embora; neste caso, a ação já se desenrola automaticamente:
sentido, e a voluntariedade de sua formação, embora este últi- "vou embora". Com isso, essa pessoa, ao modificar o campo
mo fator deva ser considerado de modo convencional. Os psicológico, como se expressa Lewin, ou criando para si
adultos tampouco podem formar voluntariamente qualquer mesma uma situação nova nesse campo, transformava seu
intenção sem sentido, como as que se opõem a nossas princi- estado, carente de sentido, em um que parecia com sentido.
pais atitudes ou a nossos conceitos morais. Se tomarmos um Durante a estada de Koffk:aem Moscou, tive a oportunidade
amplo grupo de atos que não entram em conflito com nossas de escutar relatos de experimentos análogos, realizados por
atitudes, somente em relação a eles formaremos qualquer in- Demb02 com atos sem sentido. Pede-se à pessoa que realiza
tenção; é isto que distinguirá a vontade desenvolvida do adul- a prova que efetue uma série de atos sem sentido e analisa-se
to da pouco desenvolvida da criança. como reage. É interessante a tendência que se descobre, du-
O segundo fator consiste em Lewin ter esclarecido a es- rante a execução dos mencionados atos, de atribuir-Ihes sen-
trutura do ato volitivo. Demonstrou que, em suas formas tido seja como for, criando uma situação nova, introduzindo
principais, este adquire modos extraordinariamente peculia- mudanças em seu campo psicológico, no qual seria desejá-
res de manifestação, posteriormente estudados por Goldstein vel um ato com sentido e não um sem nenhum sentido.
e Gelb, que tentaram dar a eles a correspondente explicação Permitam-me indicar de forma muito breve, omitindo
neurológica. uma série de detalhes, um mecanismo original, mencionado
Lewin chega à conclusão de que com a ajuda de um me- por Goldstein, de extraordinária importância no desenvolvi-
canismo específico, nos experimentos em que se produz uma mento da função volitiva da criança. Nos experimentos com
situação sem sentido, o indivíduo pareceria buscar um ponto doentes nervosos, Goldstein deteve-se no curioso mecanismo
de apoio externo, através do qual determinar de algum modo que qualquer psicólogo pode deparar: a ação que o paciente
o próprio comportamento. Por exemplo, numa dessas séries, não consegue realizar com a ajuda de algumas instruções ver-
o experimentador demorava muito em voltar até o lugar bais, consegue-o com outras. Propõe-se a ele fechar os olhos,
onde estava a pessoa que realizava o teste, mas de outra sala mas ele não os fecha. Pede-se então a ele: "mostre-me como
observava o que esta fazia. Esta costumava esperar entre dez faz para dormir". O doente mostra e fecha os olhos. E isto é
e vinte minutos até que finalmente parava de compreender o suficiente para que, da próxima vez, ao executar o pedido que
que tinha de fazer e permanecia muito tempo vacilante, per- lhe fizeram de fechar os olhos, seja capaz de cumpri-Io. A
plexa, indecisa. Quase todos os adultos que participavam ação simples toma-se possível com algumas instruções e ir-
dos experimentos de Lewin agiam, em semelhante situação, realizável com outras.
144 o desenvolvimento psicológico na infância
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L.S.Vigorski

Goldstein explica isso recorrendo a momentos puramente unidos entre si. Na opinião de Goldstein, é esse mecanismo
estruturais. Diz que nos doentes que experimentam dificulda- que a pessoa submetida ao teste estabelece quando decide ir
des de movimento em conseqüência de uma encefalite epidê- embora ao sinal do ponteiro do relógio. O novo introduzido
mica manifestam-se mudanças na estrutura da consciência, por Goldstein na análise desse fato é o seguinte: ele dá uma
em decorrência das quais torna-se-Ihes impossível executar extraordinária importância à linguagem externa, consideran-
determinadas ações. Resumindo, na opinião do velho neurolo- do infundado o ponto de vista predominante na velha psicofi-
gista, a excitação "feche os olhos", ao chegar a um certo cen- siologia de que, quanto mais complicado for o controle do
tro cerebral, não encontra os caminhos de transmissão até os desenvolvimento de qualquer atividade, de forma mais ime-
centros de movimento dos olhos. O paciente compreende o diata se produzirá a ação. Ao que tudo indica, deparamos-nos
que significa "feche os olhos" e quer fazê-Io, sabe fechá-los, com essas estruturas quando o homem ao falar se escuta a si
mas em conseqüência da doença foram alteradas as corres- mesmo e executa suas próprias instruções.
pondentes possibilidades e não existe conexão entre estes dois Gostaria de terminar indicando em que medida o desen-
centros. O neuropatologista atual diz que se trata de uma com- volvimento da vontade infantil, começando por movimentos
plicadíssima estrutura surgida a partir de uma determinada si- primitivos voluntários, que se realizam a princípio segundo
tuação, e que se toma impossível criar qualquer estrutura se- instruções verbais e terminam mediante atos volitivos compli-
melhante, realizar uma ação qualquer não provocada peta cados, é função da atividade coletiva da criança. Em que
situação. Quando se pede a um doente que mostre como faz medida as formas primitivas da atividade volitiva infantil
para dormir, este não se encontra diante de uma ação isolada, representam o emprego, por parte da própria criança, com
que deve introduzir numa estrutura nova, mas de uma situação relação a si mesma, dos procedimentos que o adulto com ela
mais ou menos integral. utiliza? Em que medida o comportamento volitivo da criança
Goldstein considera que o típico da estrutura neurológica se manifesta como uma forma peculiar de seu comportamento
de um ato volitivo normal é a presença de tais condições social com respeito a si mesma?
quando, entre dois pontos do córtex, se forma não uma cone- Se obrigarmos uma criança a realizar com freqüência algo
xão direta, mas uma estrutura que só de forma mediata conduz no ritmo do "um, dois, três", depois ela mesma se acostumará a
à conclusão do ato. O ponto inicial deste processo dá lugar a fazer exatamente da mesma maneira, como fazemos, por exem-
uma complicada estrutura interna nova, que pode resolver a plo, ao nos jogarmos na água. Com freqüência, sabemos que
estrutura anterior criando uma auxiliar. Somente nestes casos temos de fazer algo como, recorrendo ao exemplo de James,
estaremos diante de um processo volitivo. Além dos cami- levantar-nos da cama, mas não temos vontade de fazê-Io e não
nhos fixados entre dois pontos cabe uma conexão mediatizada conseguimos encontrar o estímulo que nos sirva de impulso
complexa entre estruturas isoladas. Essa conexão pode ter o para obrigar-nos a fazê-lo. Nesses momentos, a proposição que
caráter de complicadas formações estruturais mediatizantes, fazemos a nós mesmo, de fora, ajuda-nos a levantar e, como diz
que adotam um estado dinâmico nos casos em que dois pontos James, sem nos darmos conta encontramo-nos de pé. Seria de
não podem estabelecer conexão direta entre si. grande importância unir esses dados, segui-Ios segundo as ida-
Graças a isso toma-se possível o aparecimento de uma des e determinar os estádios ou graus específicos, através dos
determinada estrutura nova, na qual os três momentos estejam quais se desenvolve a vontade infantil.
146 L. S. Vigotski

Omitirei isto agora e terminarei indicando que, nesse cam- I"


Segunda Parte
po, tropeçamos em casos relativamente estranhos, em que as
pesquisas da psicologia patológica, interpretadas teoricamen- Vias de desenvolvimento
te no plano tanto da psicologia neurológica quanto genética, do conhecimento psicológico
coincidem uma com a outra e oferecem a possibilidade de en-
focar de um modo novo a resolução das questões mais impor-
tantes da psicologia.

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