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Um jornal no meio do caminho

Os arquitetos da imprensa na Belo Horizonte dos anos 20 e 30

Elton Antunes

Dissertação apresentada ao departamento de

Sociologia da Universidade Federal de Minas

Gerais como requisito parcial para obtenção

do grau de mestre em Sociologia.

Belo Horizonte

1995
2

"Como acontece na província, fez parte da formação deles algum atraso de gosto,

misturado ao interesse ativo pela novidade" (Antônio Cândido)


3

Sumário

Agradecimentos.................................................................................................................4

Capítulo 1

Apresentação: A Marinoni chega à cidade........................................................................5

Capítulo 2

Uma imprensa de rapazes risonhos e homens admiráveis...............................................23

Capítulo 3

Inconvictos escribas de novos senhores..........................................................................56

Capítulo 4

Imprensa e cidade: diários da vida besta.........................................................................90

Capítulo 5

Considerações finais: Sentimentos da infância.............................................................127

Bibliografia....................................................................................................................131

Jornais............................................................................................................................135
4

AGRADECIMENTOS

Aos professores do Mestrado em Sociologia, pacientes com minhas

maneiras nem sempre afeitas aos dialetos da área. Aos colegas e funcionários pelo

estímulo e ambiente de trabalho. À CAPES pela bolsa que permitiu a realização dessa

pesquisa.

Agradeço à professora Maria Céres P.S. Castro, incentivadora de

primeira hora e apoio inestimável em mais esse período dedicado as atividades

acadêmicas.

Minha gratidão à generosidade do professor Fernando Correia Dias,

que nos últimos três anos compartilhou comigo o brilho e a dignidade de uma carreira

intelectual admirável.

Para Beth, companheira que faz a voz vibrar e a mão escrever.


5

1. Apresentação: A Marinoni chega a cidade

A primeira impressora rotativa de um jornal privado em Belo Horizonte

desembarcou na cidade no semestre inicial de 1927. Era uma "Marinoni", que chegava

para a fundação do Diário da Manhã e impressionava os citadinos: eles viam ali um

indicador palpável do fôlego do projeto editorial que brevemente se instalaria na capital.

Conta-se que a impressora - a qual somente a Imprensa Oficial, responsável pela edição

do Minas Gerais, órgão dos poderes do Estado, possuía semelhante - provocou grande

alvoroço na cidade quando do seu desembarque, vinda do Rio de Janeiro, na estação da

Central do Brasil.

A agitação era, sobretudo, dos que militavam na imprensa da capital à

época, segundo eles marcada pela precariedade dos equipamentos gráficos e o

pauperismo nos recursos disponíveis para tocar qualquer empreendimento jornalístico.

A "Marinoni" estacionada na gare da Central custara a significativa importância de 200

contos de réis.

Mas nem só os homens de imprensa acorreram à estação ferroviária.

Junto com a impressora chegavam novos equipamentos gráficos que davam à carga um
volume e peso gigantescos, raramente desembarcados na cidade. A chegada da

"imprensa moderna" a BH era assim, antes mesmo que resultasse num novo jornal,

também um fato que despertava a curiosidade dos habitantes.

Como o guindaste da estação não conseguisse mover a carga, enquanto

se resolvia o que fazer, parte do equipamento mais leve era aos poucos transportada

para as futuras oficinas do Diário da Manhã. A solução foi juntar ao esforço de uma

turba de curiosos transformados em voluntários a força de oito juntas de bois trazidas da

periferia da cidade "para puxar o caixote mais pesado, já que os mais possantes

caminhões da cidade, convocados para a missão, sequer se arriscaram ao vexame de


6

engasgar na subida da Bahia, diante de tanta gente, tão entusiasmados espectadores". (1)

Entusiasmo tão grande que, combinando com a proximidade do carnaval, acabou por

transformar o transporte da impressora num verdadeiro desfile de Momo. Foram oito

horas até que os bois conseguissem puxar o equipamento da estação às oficinas, num

percurso de pouco mais de dez quarteirões. E ao clima de festa desde o início associara-

se um suposto caráter cívico, alimentado pelos estudantes secundaristas e universitários

presentes. Imaginavam eles que o novo empreendimento jornalístico nascia à margem

da ação política da oligarquia ocupante do governo mineiro, chefiado então por Antônio

Carlos. A perspectiva de um grande jornal com um mínimo de independência frente às

diretrizes do Palácio da Liberdade prometia novas cores na discussão política travada na

capital.

A história desse episódio encontra-se dispersa e compõe a memória

coletiva produzida pelos indivíduos que viveram tal acontecimento ou dele tomaram

conhecimento à época. (2) Tais relatos nos chamam a atenção pelas associações e

imagens que os narradores destilam acerca daquilo que apontam como momento ímpar

de um suposto processo de desenvolvimento da imprensa de Belo Horizonte. Nesse

episódio reúnem-se, num mesmo instante, aspectos e elementos, sobre as mudanças que

a prática jornalística experimenta no período compreendido pela segunda metade da


década de 20 e os anos 30, que serão recorrentes no discurso elaborado pelos

protagonistas da imprensa de Belo Horizonte à época. A ligação com a política, as

forças "materiais" e "espirituais" da cidade, como condição e limite para a realização de

um determinado projeto de imprensa, e a forma de entranhamento dos jornais no

cotidiano da capital são problemas inscritos no relato daqueles que estiveram à frente da

iniciativa de "modernizar a imprensa mineira", da forma como eles a entendiam, desde

as "primeiras horas".

(1)
"Antes de mais nada um ato de heroísmo", Estado de Minas. Belo Horizonte, 08 de março de 1977. Caderno
Comemorativo. P.1.
(2)
O relato dessa história encontra-se disperso em diversos artigos e livros de memória de alguns de seus
protagonistas. Uma boa descrição do ocorrido encontra-se na edição comemorativa dos 50 anos do Estado de Minas,
op.cit.
7

Mas como se estrutura essa percepção dos "homens de imprensa" de que

o periodismo diário da capital vive nesse período um momento de modernização? Que

entendimento manifestam acerca desse processo de modernizar a imprensa e em que

noções está ancorado? Estudar esses relatos pode se constituir numa maneira de

entender aspectos da institucionalização de um campo social específico que teve na

edição de jornais diários em Belo Horizonte um componente fundamental de

efetivação. (3) Através do jornalismo pode-se ter gerado mecanismos que asseguraram

um mercado possibilitador da formação de um corpo de profissões propriamente

intelectuais, dotado de legitimidade que se impusesse como autoridade a discursos e

práticas conformes, permitindo assim a estruturação de um campo cultural/intelectual.

De certa forma, buscamos compreender de que maneira e por quais razões um conjunto

de indivíduos constituem relações entre si, agentes que se dispondo, opondo e

compondo conferiram uma estrutura específica num dado momento do tempo de forma

a institucionalizar uma determinada prática cultural na cidade.

Dessa forma, este trabalho se inscreve no campo mais amplo dos estudos

dos mecanismos de organização social da cultura. A percepção dos indivíduos acerca da

dinâmica da imprensa belorizontina no período histórico compreendido entre a segunda

metade da década de 20 até o início do Estado Novo constitui-se no nosso objeto de


estudo. A análise pretende indicar, a partir das representações dos agentes, algumas das

relações variáveis entre os produtores culturais e a instituição da edição de jornais

diários, compreendendo também a forma como esse agrupamento social se organiza. Ao

sondar o papel desempenhado pelas projeções culturais numa sociedade, buscaremos

verificar a hipótese de que a prática social e as relações culturais dos indivíduos

envolvidos com a produção jornalística na capital redundaram em determinadas

construções intelectuais fundamentais à organização e estabilização de um campo

específico para essa prática significativa. Em termos mais específicos, o trabalho

articula como determinadas percepções da experiência urbana, da política e da

(3)
A noção de campo é, em linhas gerais, aquela proposta por Bourdieu. Sobre isso ver Pierre Bourdieu, 0 Campo
intelectual e projeto criador, in: Jean Pouillon et alli, Problemas do estruturalismo, Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
8

identidade intelectual estão no coração de uma perspectiva de vislumbrar a imprensa de

Belo Horizonte nos anos 20 e 30.

É o que se afigura, como podemos constatar numa arqueologia desses

relatos, desde as primeiras referências ao surgimento de um projeto de jornal diário

"diferente" dos que até então se conhecera na cidade. O Correio Mineiro é apontado

como o periódico precursor do novo momento da imprensa de Belo Horizonte. Fundado

a 11 de novembro de 1926 pelo jornalista Victor Silveira, anunciava no editorial de sua

primeira edição que

"esta folha será principalmente uma folha de


informações. Toda a vida da capital e dos municípios mineiros nos seus
múltiplos aspectos aqui se refletirá em seu noticiário abundante. Mas
nem por isso o Correio Mineiro deixará de ser um jornal de opinião
desassombrado e sincero face aos governos". (4)

De que forma essas assertivas tomavam corpo? A observação de

sucessivas edições nos permite ver que o jornal conferia destaque especial à crônica

policial e ao noticiário esportivo. Por ocasião do carnaval, também a festa popular

ganhava projeção. Acontecimentos que causassem sensação na cidade e tivessem

característica de escândalo, como crimes passionais envolvendo indivíduos dos

segmentos econômicos mais altos, mereciam atenção especial do jornal. Problemas

cotidianos referidos às camadas mais pobres e à população em geral também recebiam

acolhida do órgão que, desde a sua fundação, contava com uma coluna - "O povo

reclama" - transcrevendo reclamações feitas pelas pessoas através do telefone ou

diretamente na redação. Os assuntos referentes ao chamado mundo da política - como

visitas de parlamentares e representantes de governos e as intrigas e o debate político

nacional e sua repercussão no estado - também povoam as páginas da publicação.


Todos estes temas (polícia, futebol, política) já eram objeto de atenção

da imprensa de até então e sua presença nas páginas dos jornais não traduzia

necessariamente uma novidade. Mas no Correio Mineiro, segundo relato de Newton

(4)
Correio Mineiro, Correio Mineiro. 11 de novembro de 1926. P.1.
9

Prates, jornalista de renome atuante nesse período, "eram tratados (...) com vivacidade,

num tom novo para a cidade". (5) Opinião compartilhada por um dos principais

protagonistas da experiência do Correio, o cronista Moacir Andrade. Em artigo

publicado em 1932, homenageando a Victor Silveira, ele indica as particularidades e a

importância do jornal para renovação do periodismo local. Primeiro, aponta o contexto

onde emerge a proposta do Correio Mineiro:

"A sua ação jornalística foi, entre nós, um marco


definitivo, separando duas épocas na imprensa diária da Capital. Antes
dele, fora do jornal oficial, quase nada, ou muito pouco - jornais
materialmente deficientes, mesmo quando bem escritos, de ação pouco
profunda na opinião, apenas percebidos pelo ruído de algum escândalo
ou então folhas de natureza partidária, com a vida limitada pelas
campanhas a que se entregavam - todos, porém, efêmeros." (6)

Nessas circunstâncias, as dúvidas em face da viabilidade do projeto

estiveram sempre presentes. Vários amigos, conforme relata Moacir Andrade, tentavam

demover Silveira da sua intenção de fundar o jornal. Argumentavam sobre a

incapacidade material de Belo Horizonte em manter uma folha com aquele formato e da

delicadeza das situações que o jornal teria de enfrentar em uma cidade, segundo diziam-

lhe, desacostumada à atuação da imprensa "francamente informativa e independente".

Mas o jornalista não esmoreceu.

"Coube a Victor Silveira (...) dar a Belo Horizonte aquilo


por que toda cidade ansiava: um jornal seu, uma imprensa livre, que
não pedisse, para os artigos, 'vistos' fora da redação, um jornal
moderno capaz de traduzir as aspirações da cidade moderna que é Belo
Horizonte". (7)

O Correio Mineiro, após a morte de seu fundador, no final dos anos 20,

experimentará diversas fases editoriais e se prolongará como diário belorizontino até

meados da década de 30. Nunca porém com a repercussão adquirida no período em que

(5)
Newton Prates, Minas em retrato de corpo inteiro. Estado de Minas. 08 de março de 1977. Caderno comemorativo,
p.3.
(6)
Moacir Assis Andrade, Victor Silveira: o fundador da imprensa moderna em Minas. Minas Gerais. 21 de abril de
1932. 5ª seção, p.1 e 2.
(7)
Idem.
10

foi dirigido por Victor Silveira. Mas a proposta do Correio Mineiro de um novo

jornalismo não deixou de fincar na sensibilidade manifesta dos homens que atuavam na

imprensa de então a visão de que introduzira os elementos de ruptura necessários para

que se inaugurasse a chamada moderna imprensa belorizontina.

É dessa forma que os passos iniciados pelo Correio Mineiro vão orientar

o percurso de outras experiências editoriais. A 16 de julho de 1927 ia a público o

primeiro número do jornal Diário da Manhã, o da moderna rotativa Marinoni que

provocara alvoroço na cidade ao seu desembarque. O fato de aliar um jornalismo

praticado nos novos moldes preconizados pelo Correio Mineiro (textos curtos, destaque

para temas esportivos, policiais e do cotidiano da cidade, linguagem mais "objetiva",

direta e coloquial etc.) e um parque gráfico considerado muito avançado para a

imprensa privada da época parecem ter conferido à experiência desse diário uma

projeção intelectual de significativa importância sobre os cronistas do período. Na lista

dos nomes de convidados que compareceram à solenidade de bênção das oficinas do

jornal constata-se a presença de vários dos principais personagens que estariam à frente

dos diversos projetos jornalísticos que apareceriam até o final da década de 30. (8) No

mínimo, personagens impactados pela dimensão material que sustentava o novo jornal

e, certamente, simpáticos às inovações editoriais assimiladas pelo periódico.


Nas palavras de alguns dos protagonistas da imprensa desse período

emerge no novo diário uma espécie de radicalização dos princípios que orientaram a

constituição do Correio Mineiro. Mas existe também algo mais: "notáveis na política,

nas letras, na indústria, no comércio, na administração, no clero, na mocidade das

escolas" são enumerados pelo articulista, no editorial de fundação, como os grupos de

leitores que comporiam a opinião pública e orientariam os princípios de atuação do

órgão. Não se trata aqui de ressaltar qual o público alvo do jornal, mas de chamar a

atenção para a importância da sua enunciação. Mais do que apontar a quem se dirige, a

preocupação do artigo é frisar uma nova posição da imprensa frente à sociedade: ela

busca atender a um suposto interesse público manifesto através desses setores sociais,

(8)
Diário da Manhã, 12 de novembro de 1927, p.1.
11

distanciando-se de um corrente atrelamento às instituições e órgãos tradicionais do

poder político. "O desenvolvimento da cidade impunha o aparecimento de órgão de

publicidade afastado da dependência dos governos", frisa o editorial de fundação.

É interessante mesmo registrar a publicação pelo jornal, com um certo

destaque em suas páginas, de um extrato dos estatutos da Sociedade Anônima Diário da

Manhã, proprietária do periódico. Chama-se a atenção para um artigo onde lê-se que

"nenhuma ingerência na direção e orientação do jornal terão os diretores presidente,

tesoureiro e comercial, cujas funções serão de caráter exclusivamente administrativo".

O jornal acena com a idéia de que uma certa autonomia do corpo de redação em relação

à propriedade do órgão asseguraria a independência de seu jornalismo frente às

investidas do poder local.

E, complementando a fala do editorial, anuncia-se também a máquina

impressora própria - a cara, pesada e festejada "Marinoni" - como que a sinalizar para o

público que o jornal fazia parte de um empreendimento sólido, um negócio que, ao

contrário das inúmeras gazetas já fundadas na cidade, permaneceria. Não vingou. O

Diário da Manhã deixaria de circular menos de um ano após sua criação e cederia, em

seguida, seus equipamentos e boa parte do pessoal para fundação do Estado de Minas.

E é essa moldura que definia os contornos editoriais dos diários que


vinham à luz no final dos anos 20 que se manteria, cinqüenta anos mais tarde, na voz do

poeta Carlos Drummond de Andrade, jornalista e figura de proa no interior desse

movimento.

"O Estado de Minas, rememora, foi seguramente o


primeiro esforço válido e frutificante para dotar Belo Horizonte de um
jornal jornalístico, em linha de independência e compostura, já bem
distinto da pobre imprensa de visão e meios limitados". (9)

Certamente, pesa na perspectiva do poeta a projeção e permanência

adquirida por este jornal, único diário de Belo Horizonte criado nos anos 20 e ainda em

circulação quando deste comentário. Contudo, esse olhar como que vindo do futuro se
(9)
Carlos Drummond de Andrade, Um parente que faz cinqüenta anos. Estado de Minas. 08 de março de 1977.
Caderno especial, p.1, 8 de março de 1977, caderno especial pág. 1.
12

ancora numa atmosfera intelectual já decantada no passado da imprensa local. A

novidade representada pelos projetos do Correio e Diário e a continuidade, logo na

seqüência do fechamento do segundo, conferida pelo Estado de Minas, parecem indicar,

historicamente, uma cunha no interior de determinada forma de perceber a evolução da

imprensa diária em Belo Horizonte. Drummond destaca, na segunda metade da década

de 70, algumas idéias-força já emergentes na perspectiva dos protagonistas da imprensa

dos anos 20 e 30 acerca das condições oferecidas pelo meio para geração e manutenção

de jornais ditos noticiosos.

Assim, nos parece que narrativas como a de Drummond ou a da história

da chegada da impressora "Marinoni" à capital não são meros recursos para construção

de um testemunho, uma forma dos indivíduos interpretarem e salvaguardarem o

passado. A percepção de que a imprensa da capital adentra um novo patamar da

produção editorial na virada dos anos 20/30 parece obedecer a um movimento oposto.

Emergiu com força tal que se projetou e se fixou na sensibilidade dos agentes,

permanecendo no tempo. Não se trata somente de lembranças mas de elementos de um

discurso, de uma certa maneira com a qual as pessoas viram, processaram e

construíram, responderam mental e emocionalmente ao que ocorria no espaço da

imprensa ali e naquele momento, ou seja na Belo Horizonte da terceira e quarta décadas

desse século. Não é, pois, um olhar que se projeta sobre o passado para adorná-lo, ou

uma simples imagem da realidade, algo que apareça como "forma" ideal que indique um

"conteúdo" social. São, na verdade, formas de registro de atitudes, idéias e imagens

acerca da realidade do periodismo local que foram parte e evidência de uma

experiência, de um vivido produzido através da prática social daqueles indivíduos.

Os relatos registram, assim, inovações e mudanças experienciadas pelos

protagonistas da imprensa na prática do jornalismo. Álvaro Mendes Pimentel, um dos

fundadores do Estado de Minas, alinha, numa edição comemorativa do jornal em 1936,

as dificuldades para o desenvolvimento da imprensa na capital:

"os obstáculos que seus [do "Estado de Minas"]


fundadores tiveram de superar não foram só de ordem econômica. Mais
13

difícil foi quebrar a hostilidade do meio para com o feitio moderno do


jornal. Leitores assíduos e forçados do 'Minas Gerais', os mineiros de há
muito estavam habituados ao estilo oficial". (10)

De início, o próprio contexto e expectativas sócio-culturais do público

leitor de jornais mostrava-se como um dos entraves à nova imprensa. As dificuldades

financeiras apareciam, na seqüência do artigo, não como mero resultado de uma

precária atividade econômica existente na capital, mas a partir do questionamento da

viabilidade da imprensa como negócio permanente dotado de uma racionalidade

econômica própria:

"E para mantermos um noticiário de 12 páginas? Que


luta! Anúncios, não os havia, não só porque o comerciante ainda era
refratário a semelhante coisa, como porque reinava desconfiança sobre
o êxito da empresa jornalística. Um 'sururu' no cabaré da Avenida do
Comércio ou um 'fecha' entre soldados do 12º Regimento e da Polícia,
era um dia de satisfação para mim e o Pedro Aleixo." (11)

Note-se a interessante sugestão de que o preenchimento das 12 páginas mencionadas

gerava um trabalho hercúleo, por um lado pela falta do material publicitário, e, por

outro, pela ausência de notícias a publicar.

Mendes Pimentel já assinalava então um aspecto que seria dos mais

marcantes na imagem construída acerca desse processo chamado de "modernização da

imprensa" em Belo Horizonte. É o que narraria Carlos Drummond de Andrade, na

crônica do cinqüentenário:

"a imprensa em Belo Horizonte, nas décadas de 20 e 30,


era pelo menos alegre. Se lhe faltavam recursos técnicos, que só uns
poucos jornais no Rio e em São Paulo poderiam manipular, sobrava-lhe,
em compensação, uma faculdade inapreciável, posta a funcionar sempre
que escasseavam notícias locais - e notícias locais quase sempre
teimavam em não acontecer. Então, inventava-se". (12)

(10)
Álvaro Mendes Pimentel. Que Luta! Estado de Minas. 8 de março de 1936. P.1
(11)
Idem
(12)
Carlos Drummond de Andrade, op. cit.
14

O tom da narrativa desfia-se por outras histórias. O escritor Cyro dos

Anjos, militante dessa imprensa da virada dos 30, corrobora com tal perspectiva. No

livro de memórias A menina do sobrado, diz que

"a imprensa carioca não deixava prosperar a local, já


anemiada pela concorrência das folhas do governo. Pela manhã -
abrindo-se o compulsório `Minas Gerais`, que, a par de atos e decretos,
oferecia noticiário comum, ou do `Diário de Minas`, porta-voz do PRM,
mais lido nas entrelinhas que no texto - sabia-se o que sucedia no País e
no mundo, e se podia imprimir sem detrimento da ordem e das
instituições. E à noite, pela Central, as gazetas do Rio traziam às
conversas do Bar do Ponto os condimentos que as insossas publicações
oficiais não ofereciam: sal, pimenta e vinagre dos comentaristas,
arranca-rabos do Congresso, caricaturas, piadas, anedotas.
Acossado, assim, de dois lados, o periodismo
independente não conseguia firmar-se naquela Capital de população
rala, reduzida massa leitora, comércio pobre, indústria quase nenhuma.
Anos após ano, jornais nasciam e, com poucos meses, morriam de
inanição. Nem só por falta de dinheiro: também de assunto e de
público". (13)

Assim, enumerar as dificuldades para o desenvolvimento de um novo

modelo de imprensa é traço característico das narrativas dos jornalistas da época sobre

esse fenômeno. E elas não se detinham na "falta de notícia e dinheiro" reclamada. Pedro

Aleixo, outro dos fundadores do Estado de Minas, lembra esse reposicionamento da

imprensa de Belo Horizonte em termos muito semelhantes ao relato de seu citado

associado na empreitada.

"É preciso que se rememorem as contingências daquela


época para que bem se compreenda o que representou, em arrojo e
temeridade, o lançamento de um jornal que não vinha lastreado pela
proteção do oficialismo. Até então, os jornais surgiam ao influxo das
campanhas políticas e, salvo iniciativas temerárias de alguns jornalistas
bem intencionados, viviam enquanto eram alimentados pelo fogo
abrasador das paixões partidárias. Encerradas as lutas eleitorais,
dentro em pouco os prelos cessavam de bater e passavam a constituir o
acervo desvalorizado de empresas em liquidação". (14)

(13)
Cyro dos Anjos, A menina do sobrado. Rio de Janeiro, José Olympio/MEC, 1979. P.322
(14)
Pedro Aleixo, Página de evocação, Estado de Minas. 07 de março de 1935. P.3, 2ª Seção.
15

A comporta principal que aqui aparece barrando o fluir da imprensa local

é a relação estreita com as práticas político-partidárias, sobretudo na sua dimensão de

disputa eleitoral. A política era o detonador dos empreendimentos jornalísticos,

justificando sua existência e determinando sua conduta editorial.

Já na outra ponta do processo jornalístico, o da constituição de um

público leitor, é a figura do Estado que aparece como justificativa para a atrofia do

desenvolvimento da imprensa moderna. É o que indica Pedro Aleixo na seqüência de

suas rememorações.

"Naquele tempo o Órgão dos Poderes do Estado


satisfazia plenamente o desejo de informações de um público formado
em grande parte pelo funcionalismo que acompanhava nas entrelinhas e
nas omissões os acontecimentos que a sobriedade do jornal do Governo
não permitia fossem explicitamente comentados e sequer laconicamente
narrados: a imprensa carioca era abastecedora do noticiário mais vivo,
e somente através dela as notícias de fatos sensacionais se tornavam
conhecidas e divulgadas."

O artigo chega finalmente ao momento de relembrar o problema da falta

de dinheiro para manter um jornal.

"Recursos para a manutenção de jornal eram de fato


exíguos. A venda avulsa, aparentemente animadora nos primeiros dias,
não excedia, normalmente, de meio milhar de exemplares. A publicidade
era feita por obséquio, como especial favor do anunciante generoso com
o corretor necessitado. As assinaturas eram obtidas mediante
empenhadas recomendações junto a pessoas amigas do interior do
Estado. E avultavam as dificuldades da expansão de modestas tiragens
quando se tinha que defrontar a vitoriosa concorrência dos jornais do
Rio e de São Paulo nas mais adiantadas zonas mineiras". (15)

Reitera-se, como já sugerira o cronista Moacir de Andrade a respeito das

dificuldades para implantação da "imprensa moderna" em BH, a idéia de um público

incipiente e de um mercado anunciante de pouco potencial para a sustentação

econômica de um periódico. É uma imagem que se fixa no próprio processo de tentativa

(15)
Idem.
16

de consolidação dessa imprensa de novo tipo, como se verifica através dos editoriais do

Estado de Minas saudando mais um aniversário do jornal anos mais tarde. Em 1936,

expiando os fantasmas que até há pouco assombravam o desenvolvimento dessa

imprensa, as dificuldades vão se tornando passado no discurso e cristalizando uma

determinada sensibilidade acerca das dificuldades do fazer jornalístico naquele período.

"Ontem, nosso clima era pouco adequado a uma crítica


livre e isenta, e o que hoje é coisa comum horrorizava nossos estreitos
meios provincianos.
Ontem a publicidade era uma indústria por explorar, e as
classes conservadoras (...) não tinham a nítida compreensão do que
representa o anúncio como fator essencial para a prosperidade de
qualquer negócio." (16)

Conjuntamente, eram rarefeitas as condições espirituais e materiais que

permitiriam vingar o desenvolvimento de um novo regime jornalístico. Nesse "antes" da

chamada imprensa moderna definitivamente "as folhas eram lançadas, pirilampejavam e

desapareciam". (17)

Tais aspectos que constróem essa idéia de condições adversas ao

desenvolvimento da imprensa não se resumem, como pode parecer, a percepções de

protagonistas que trabalharam em torno dos veículos com maior continuidade temporal.

Os casos do Estado de Minas e do Diário da Tarde não são focalizados como

exemplares exclusivos dessa experiência. Esta imagem, na verdade, organiza o conjunto

das reflexões em torno do fenômeno das modificações que se verificam no âmbito da

imprensa da capital mineira no primeiro terço deste século. O jornal que deu

continuidade, ao menos no nome, ao popular Correio Mineiro de 1926, assevera em

editorial, quase dez anos depois, após sucessivas interrupções e retomadas na

publicação do diário, que "antes de nós, isto não passava de uma vasta acomodação em

que eram parte saliente as folhas que acabavam vendendo o seu material ao governo

(16)
Estado de Minas, Estado de Minas. 07 de março de 1936. P.2.
(17)
Diário da Tarde, Diário da Tarde. 14 de fevereiro de 1939. P.1
17

esgotadas, rapidamente, as magras reservas com que se afoitavam a fazer

jornalismo". (19)

E esta é uma sensibilidade manifesta até mesmo no discurso do órgão

oficial dos poderes públicos, o Minas Gerais - apontado como um dos fatores inibidores

do desenvolvimento do periodismo local. Seus redatores não deixam de reconhecer que

nos demais órgãos de imprensa "um ano vencido é particularmente festejado, porque

exprime verdadeira conquista, dadas as dificuldades que assaltam a manutenção de um

jornal qualquer." (20)

A reflexão central, contudo, se insinua mesmo através das páginas dos

jornais privados. É lapidar como Pedro Aleixo sintetiza quais as condições de produção

da imprensa feita em 1936 ao comemorar mais um ano de permanência do Estado de

Minas:

"o dia festivo da inauguração de um jornal sempre fora,


em Belo Horizonte, a véspera de seu melancólico desaparecimento. Seja
porque os periódicos os lançassem com objetivos imediatistas, criados
que eram como elemento de campanhas políticas transitórias, seja
porque desprovidos de aparelhamento adequado à concorrência
industrial, o certo é que não vingaram, em nosso ambiente, as
iniciativas, muitas vezes generosas, de ilustres conterrâneos nossos." (21)

O tom de "lamentação" ante essa realidade das gazetas locais sugere,

contudo, tratar-se de uma situação já superada. Mas seriam essas dificuldades da

crônica jornalística local elementos de um passado próximo, já condenadas a um relato

memorialístico? Essa seria uma avaliação apressada, a julgar pelo parecer, em 1935, do

cronista Jair Silva, da Folha de Minas, jornal considerado de grande repercussão

política e intelectual na Belo Horizonte nos anos 30. Lembra ele das ainda precárias

condições enfrentadas pelos jornais locais dizendo que

"basta citar um episódio recente. Há poucos dias, em


conseqüência da tempestade, desabou uma casa em Nova Lima. E o
nosso jornal publicou a fotografia de um burro, com o repórter
(19)
Editorial, Correio Mineiro. 02 de março de 1934. P.1, 2ª Seção.
(20)
43 Anos, Minas Gerais. 21 de abril de 1935. P.1, Suplemento.
(21)
Pedro Aleixo, Uma data Mineira, Estado de Minas. 08 de março de 1936. P.1.
18

Atalibinha em cima, e esta legenda: 'Folha de Minas' a caminho do local


do desastre." (22)

A imprensa moderna, que subiu a Bahia na força do carro de boi,

marchava ainda, alguns anos depois, em lombo de burro.

Um outro protagonista da imprensa da época confessa que a manutenção

do jornal Diário Mineiro, criado em 1929 após a campanha da Aliança Liberal, estava

"a braços com tremendas aperturas. Jornais sem capital,


vivendo au jour le jour, tinham de contar, só e só, com a venda avulsa e
a matéria paga. Esta, como se sabe, só podia ser minguada; quanto a
venda avulsa, não obstante o favor do público, não podia bastar. Para a
publicidade, exige-se jornal bem impresso, com bom material. (...) Não
raro, a solução que nos parecia restar a única era fechar os jornais". (23)

Solução, ou melhor dizendo, desfecho natural para um problema que já

então era assim percebido:

"Minas nunca teve uma imprensa importante. Os grandes


jornais só são possíveis nos grandes centros urbanos, e Minas, Estado
rural, não conta senão algumas pequenas cidades perdidas numa
vastíssima área rarefeita. A indigência de elementos materiais, o
acanhamento do meio, as enormes distâncias que separam uns dos
outros os centros mais povoados, são fatores negativos que reduzem de
muito a projeção dos jornais mineiros". (24)

Faltavam, reafirma-se por mais uma vez, condições materiais para a

modernização da imprensa mineira, especialmente a da capital. Mas há nessa fala uma

nuance importante, talvez já matizando uma outra leitura para a imprensa da época. As

ditas condições materiais não se fazem acompanhar ou não incluem as chamadas

condições espirituais, sempre desfiadas também para demonstrar o ambiente hostil que

enfrentam os jornais fundados em Belo Horizonte. Estas, na verdade, são agora

invocadas como saída para o impasse do jornalismo belorizontino. Como alude o

editorialista de um periódico da capital "a experiência tem demonstrado que é

(22)
Jair Silva, O repórter no Brasil e nos Estados Unidos, Folha de Minas. 09 de janeiro de 1935. P. 2.
(23)
J. Guimarães Menegale, A imprensa de Minas Gerais na campanha da Aliança Liberal, Minas Gerais. 21 de abril
de 1932. P.15, 4ª seção.
(24)
Eduardo Frieiro, Imprensa política em Minas, Minas Gerais. 21 de abril de 1932. P.11, 4ª seção.
19

impossível fazer jornalismo em Minas com outras armas que não seja as do mais puro
(25)
idealismo, e as tentativas baldadas em sentido contrário robustecem essa afirmação."

Havia algo de diferente no ar.

É essa atmosfera "diferente" que este estudo pretende captar. Não se

deve entender, com isso, que buscamos um suposto "lado espiritual" que tenha

presidido uma reorganização da prática do jornalismo, inclusive como dimensão

econômica, em Belo Horizonte nas décadas de 20 e 30. O suposto adotado nesse

trabalho é diverso. Acompanhando a perspectiva de autores como Williams (26), , não se

apontará aqui um plano da cultura enquanto esfera própria e particular de ação social.

Deve-se descartar a possibilidade de discutir a noção de cultura como atividade de

representação de um grupo social ou como determinação e projeção de uma outra esfera

da realidade (política, econômica etc.). Nossa expectativa é (re)produzir uma

representação do mundo tal como os homens o vivenciavam/significavam e que

ordenava sua prática social, suas obras e seu modo de ser. Em suma, investigamos uma

"estrutura de sentimentos", num sentido tal como proposto por Raymond Williams.

A recuperação de uma interpretação que esses homens produziram sobre

sua vivência é vista aqui como parte e evidência de uma experiência, de um vivido

produzido através da prática social de indivíduos e grupos; uma ação que é, pois,
significativa. Dessa forma, não se trata de rever a importância das diversas

manifestações específicas da dimensão simbólica da ação como expressão de um dado

processo verificado numa esfera supostamente objetiva da vida social. A rigor, porque

elas não aparecem como fenômenos distintos ou agregados ao comportamento social.

Na verdade, o compõem em sua própria manifestação. A ordem do significado não pode

ser vista, pois, como uma qualidade das práticas sociais; é a própria forma de

organização dessas práticas.

Essa perspectiva ajusta também o marco metodológico desse trabalho.

De saída, vale esclarecer que a ausência de uma revisão da literatura sobre a imprensa

(25)
Diário de Minas, Diário de Minas. 03 de agosto de 1927. P.1.
(26)
Raymond Williams, Cultura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992 e O campo e a cidade. São Paulo, Companhia das
Letras, 1989, entre outros.
20

brasileira, em particular a de Minas Gerais/Belo Horizonte, se deve fundamentalmente a

inexistência de trabalhos de maior fôlego analítico nesse seara. Em que pese a presença

de nortes teóricos explícitos, trabalhos como o de Nelson Werneck Sodré e Juarez

Bahia (27) destacam-se mais pelo estabelecimento de periodizações e de levantamento da

súmula de inúmeras publicações em todo o país. No caso belorizontino, estudos como o

de José Mendonça (28) caminham na mesma direção. Não se pode esquecer também que o

tema da imprensa aparece com força em inúmeros trabalhos de abordagem jornalística

e/ou memorialística. (29)

Nesse sentido, este trabalho tem a pretensão de contribuir para diminuir

essa lacuna. Mas, ao mesmo tempo, toma caminho diverso ao proceder a uma análise

cultural de um período histórico recente através de categorias e instrumental

sociológico, seguindo o rastro de várias obras existentes na literatura sociológica

nacional. (30) Em torno da reflexão sobre a relação cultura e modernização na sociedade

brasileira, esses trabalhos delineiam quadros e cronologias que conferem concretude

histórica aos processos sociais enfocados. Em geral, distinguem momentos de ruptura

histórica e, por isso mesmo, cruciais para o estudo da emergência de novas formas de

organização social da cultura. A limitação temporal está, pois, ligada à possibilidade de

sondar determinados processos naqueles momentos que parecem ser o da sua gênese.
Isto faz deste trabalho uma pesquisa limítrofe de história e sociologia

cultural, uma área de convergência em pelo menos dois sentidos. Por um lado, pela

importância conferida às chamadas "redes históricas" na definição do objeto de estudo,

não se podendo mais ignorar que os processos sociais estão historicamente

fudamentados. (31) Por outro lado, este estudo recorre a categorias sociológicas não no

(27)
Nelson Werneck Sodré, História de Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966; e Juarez
Bahia, Jornal: história e técnica. Rio de Janeiro, Ática, 1986;
(28)
José Mendonça, A imprensa de Belo Horizonte na fase revolucionária (1925-1937), in: VI Seminário de estudos
mineiros. Belo Horizonte, UFMG/PROED, 1987.
(29)
Alguns desses trabalhos estão bem reunidos na crônica de Humberto Werneck, O desatino da rapaziada, São
Paulo, Companhia das Letras, 1992.
(30)
Conforme Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole. São Paulo, Companhia das Letras, 1992; Renato
Ortiz, A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988; Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no
Brasil. São Paulo, DIFEL, 1979; dentre outras obras.
(31)
Sobre a aproximação entre as abordagens históricas e sociológicas ver Lynn Hunt, Apresentação: história, cultura
e texto em A nova história cultural. São Paulo, Martins Fontes, 1992
21

sentido de recortar um sub-campo no interior das problemáticas do pensamento social,

mas pretendendo entabular, através da análise das práticas culturais, uma reflexão com a

sociologia geral. Os chamados "estudos culturais" são um ramo da análise sociológica

"mais no sentido de um modo característico de entrada em questões sociológicas gerais

do que no sentido de área reservada ou especializada". (32) É dessa forma que esse

trabalho, a nosso ver, se junta à discussão de temas como sociologia da vida intelectual

e do campo cultural.

O levantamento empírico que sustenta tal reflexão consistiu na

organização das representações que os homens atuantes na imprensa de Belo Horizonte

na época estudada tinham da dinâmica desse incipiente campo cultural. Recorrendo a

documentos escritos, artigos de jornal, relatos diversos, fragmentados e produzidos em

função dessa percepção de uma imprensa em mudança, mapeamos uma sensibilidade,

uma lógica particular de juntar vida intelectual e a prática do jornalismo.

Para captar essa representação coletiva e díspar adotamos variados

procedimentos. Um deles consistiu na pesquisa e catalogação de reportagens, artigos e

crônicas que tratam da imprensa de Belo Horizonte no período sugerido e que foram

publicados nos jornais de Belo Horizonte. Encontramos, na pesquisa de coleções de

jornais já existentes em Belo Horizonte, quase uma centena de textos que versam sobre
o assunto. (33) Além disso, realizamos uma levantamento e leitura de textos

autobiográficos e conexos (memórias, diários íntimos, confissões) envolvendo

personagens ligados diretamente à atividade da imprensa na cidade. Destaque-se, nesse

particular, os chamados romances urbanos da década de 30 em Belo Horizonte. Como

mostrou Fernando Correia Dias (34) , são textos excepcionalmente sociográficos capazes

de sugerir os traços marcantes da realidade social e mostrar as mudanças em cursos no

ambiente urbano. É uma literatura que não buscava tratar documentalmente o ambiente

social da cidade mas "apesar de tudo - talvez paradoxalmente por não ser de intenção

(32)
Williams, Cultura, op.cit. p.14.
(33)
A pesquisa foi feita nas coleções de jornais do Arquivo Público Mineiro, da coleção Mineiriana da Biblioteca
Pública Estadual, na Coleção Linhares da Universidade Federal de Minas Gerais e nos arquivos do jornal Estado de
Minas.
(34)
Fernando Correia Dias, Romances da vida urbana, Líricos e profetas. Brasília, Thesaurus, 1984.
22

documental - o romance consegue recriar uma atmosfera muito viva e autêntica da

realidade comunitária". Por fim, empreendemos também uma observação e leitura

assistemática de periódicos produzidos na capital mineira no período proposto pela

pesquisa. Buscamos, nesse momento, estabelecer uma visão geral e comparativa das

características editoriais dos jornais em questão. Julgamos, dessa forma, ter levantado o

material mais extenso possível para ver a imprensa de dentro, (re) construir a

perspectiva dos "homens de imprensa" acerca de sua prática social.

Chegamos então a um desenho do trabalho que envolveu, além desta

introdução, três capítulos e alguns apontamentos finais. No primeiro deles buscamos

indicar de que maneira diferentes indivíduos agrupam-se em torno de uma prática social

emergente, o jornalismo. A noção de intelectuais e o papel que desempenham para

tornar a imprensa um mercado de trabalho específico enquanto parte das instituições

culturais é o caminho estruturante da reflexão ali desenvolvida. Na parte seguinte,

buscamos articular uma reflexão em torno das mudanças na relação da instituição da

imprensa com a política, nesse momento detectado pelos agentes como de

modernização do periodismo local. Discutimos como a idéia de "independência" dos

diários em relação à prática política corrente, reafirmada pelos protagonistas da

imprensa da época, não implica uma suposta noção de fim da dimensão política do

periodismo, mas sua ressignificação. Por fim, no terceiro capítulo, o vetor estruturante é

a percepção dos agentes de que a imprensa local modernizava-se ao tornar-se

"noticiosa" ou "informativa" e que esse processo relacionava-se com condicionantes

impostos pela cidade. Faz-se uma reflexão acerca do tipo de experiência urbana

patrocinada pela Belo Horizonte da época aos seus habitantes, em particular os

produtores culturais. Busca-se relacionar como as percepções dos agentes acerca da

imprensa local se plasmam também através de um vasto universo de manifestações e

reflexões em torno da particularidade do habitar a cidade e buscar representar seu ritmo.

A parte final alinhava rapidamente aspectos desenvolvidos no trabalho e que a nosso

ver ensaiam a importância do estudo da imprensa de Belo Horizonte para entendimento

da organização social da cultura.


23

2. Uma imprensa de rapazes risonhos e homens admiráveis

"Garotas de Cachoeiro civilizam


nosso mineiro burgo relaxado.
No salão todo luz chega o perfume
das roseiras da Praça. Burburinho.
Aqui, a se sorrirem, vejo os máximos
escritores da nova geração.
São jornalistas esta noite.(...)"
(Carlos Drummond de Andrade, Jornal falado
no salão dos Vivacqua)

O jornal é ponto de encontro na Belo Horizonte dos anos 20 e 30.

Encontro de amigos, de interesses, de projetos. Essa efervescência põe em movimento

um processo de gestação de novas perspectivas do que seja fazer imprensa na capital no

qual um elemento chave diz respeito ao papel dos atores que estão à frente dessa

empreitada. São dois os pilares que alavancam essas supostas mudanças na imprensa, de

acordo com os relatos e textos dos jornalistas que acompanharam e protagonizaram a

movimentação e modificações que a produção de jornais em Belo Horizonte

experimentou na interseção das duas décadas: a capacidade empreendedora destes

indivíduos e o voluntarismo com que enfrentam as adversidades do meio. Certamente

há no discurso desses atores um caráter de nostalgia, na medida em que os textos dizem

respeito à rememoração de experiências da vida de cada um. E existe mesmo uma

exacerbação do papel da figura individual na ação desenvolvida, marca de uma certa

paixão e ardor inextirpável de escritos que relatam acontecimentos, muitas vezes de

carga afetiva e pessoal intensos, onde os narradores são os próprios protagonistas

envolvidos nas mudanças que ocorrem no mundo da imprensa belorizontina. Tais

aspectos, contudo, não elidem a possibilidade de compreender como um conjunto de

pessoas - jornalistas, cronistas, literatos, políticos, editores, advogados etc. - oriundas de

diferentes atividades sociais, vê sua convergência para o trabalho no jornalismo diário

na capital mineira do primeiro quarto de século, estruturando nesse movimento um novo

modo de se fazer imprensa na cidade. Ao invés disso, esses elementos que dizem
24

respeito à sensibilidade dos atores são exatamente os recursos iniciais que nos permitem

indicar um caminho de (re)construção daquilo que poderia ser chamado de estrutura de

sentimentos desses "homens da imprensa". Ou seja, significados e valores tal como

vividos e sentidos ativamente e que compõem a realidade social mesma dessa prática

em transformação, construindo e conformando a ação dos atores sociais em questão e

ordenando sua prática coletiva. (1)

Dessa forma, a voluntariedade e a capacidade de iniciativa, "categorias"

com as quais são vistas a atuação dos protagonistas das mudanças no jornalismo,

constituem-se em elementos essenciais para entendimento da natureza do processo que

se verifica no âmbito da imprensa das terceira e quarta décadas do século.

De início, elas nos permitem perceber diferenças naquilo que, numa

primeira aproximação, pareceu-nos um conjunto indistinto de indivíduos quanto à

natureza da motivação de sua ação no âmbito da imprensa. Essas "categorias" sugerem

uma diferenciação de posições, um esboço de hierarquia no interior dessa atividade

social. Os discursos dos "homens da imprensa" realçam, em geral, dois aspectos

distintos que podem ancorar a explicitação de recortes internos a essa reunião de

pessoas vista inicialmente como um grupo social homogêneo quanto a valores,

interesses e posições políticas e culturais. Vejamos, inicialmente, como é posta em cena


a idéia de que os atores que operam e constituem esse novo espaço editorial são dotados

de extraordinária capacidade volitiva.

Em face de condições sócio-econômicas invariavelmente descritas como

adversas ao desenvolvimento de uma imprensa diária, a iniciativa empreendedora dos

indivíduos que assumem a condução e o trabalho, nos periódicos que então se

multiplicam na capital, aparece com expressiva ênfase. Os textos pesquisados

(1)
A noção de estrutura de sentimentos aqui sugerida acompanha a perspectiva delineada pelo historiador inglês
Raymond Williams no estudo que promove sobre imagens do campo e da cidade produzidas na história literária
inglesa. Ver Raymond Williams, O campo e a cidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. e também, do mesmo
autor, Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. Esta noção se aproxima bastante da idéia de experiência,
"resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos ou a muitas
repetições de um mesmo acontecimento", cunhada pelo também inglês E.P. Thompson, A miséria da teoria ou um
planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. p.15.
25

mostraram este traço como recorrente na caracterização dos homens que fazem essa

nova imprensa.

"Para vencer tantos obstáculos, para superar tão numerosas dificuldades

havia que se contar com a dedicação de um grupo admirável de homens" (2), , aponta

Pedro Aleixo em artigo comemorativo do oitavo aniversário de fundação do jornal

Estado de Minas. Ele exalta o papel desempenhado pelos chamados membros

fundadores do periódico, entre os quais o articulista se incluía.

A cidade, dizia-se, era carente das "condições materiais" - mercado

anunciante, ampliação do público leitor, desenvolvimento urbano etc - para o

desenvolvimento do moderno periodismo. A mudança no sentido de uma situação

favorável já vigorava pelo menos nas duas principais capitais brasileiras nos anos 20 -

Rio de Janeiro e São Paulo. Tal precariedade impunha à imprensa local ancoragem na

capacidade volitiva dos homens que articulavam o então incipiente campo cultural e

viam no florescimento de uma nova imprensa um indicador de modernização social e

desenvolvimento intelectual. Sigamos um pouco mais na caracterização feita por Pedro

Aleixo do papel desempenhado pelos fundadores do jornal:

"Juscelino Barbosa trazia para o jornal que se fundava o


prestígio de um nome que se fizera reputado nas altas cogitações da
administração pública, na cátedra universitária, na política, nas letras.
Álvaro Mendes Pimentel conseguia dominar os
arrebatamentos de um temperamento impetuoso e absorvente para fazer
de sua pena e de sua conduta o instrumento de defesa das causas
coletivas. Era a primeira vez que ele assumia a responsabilidade de
orientar a opinião pública por intermédio da imprensa (...) (3)

A polidez, a reverência intelectual e a revelação de uma memória afetiva

pelo autor indicam um movimento importante para nossa análise. Essa sensibilidade

diante da lembrança de um momento e atitudes compartilhadas com companheiros de

uma determinada empreitada auxiliam o protagonista na reconstrução de traços para ele

fundamentais na organização de sua prática no âmbito da imprensa. Aleixo focaliza o

(2)
Pedro Aleixo, Página de evocação, Estado de Minas. 07/03/53, p.3, 2ª Seção.
(3)
Aleixo, Pedro, Página de evocação. Op.cit.
26

que a nosso ver poderá ser identificado como um traço onipresente das auto-

representações construídas pelos "homens de imprensa" acerca do processo de

mudanças verificado no periodismo belorizontino dos anos 20 e 30: a nova "era" que se

abria para a imprensa local resultava, sobretudo, da virtude, de um ato de vontade dos

indivíduos que discutiam, conduziam e faziam o periodismo da época.

Valores e condutas cuja legitimidade, derivada de outros campos de

atuação distintos do incipiente espaço do jornalismo na sociedade, transforma-se em

impulso fundamental para articular uma nova esfera de ação social que se verifica agora

no âmbito da imprensa. Sem tais referências para habilitar a nova prática social que

estes indivíduos promovem, Pedro Aleixo assegura que dificilmente a proposta de se

fazer um jornal como o Estado de Minas teria tomado o escopo inicial e, menos

provável ainda, se mantido no decorrer dos anos.

A anotação de como o articulista percebe o processo de estruturação de

uma imprensa de novo tipo em Belo Horizonte - introdução de renovações gráficas e de

narrativa jornalística que privilegiam textos curtos, diretos e propostas editoriais que

reorganizam institucionalmente o meio e seu papel social - importa-nos aqui não como

mera evidência de mudanças numa dada realidade histórico-social que engolfa e é

também estruturada pelo fenômeno do jornalismo. A fala do jornalista é retida por


tratar-se, também, de parte instituinte, junto a outros discursos, de uma representação

que articula a experiência dos indivíduos acerca do momento de transformação da

imprensa da capital mineira na terceira e quarta décadas do século. Isso nos impõe,

como parte de uma elaboração coletiva e díspar que é tal representação, a indicação de

traços e referências similares em textos de outros protagonistas das modificações da

imprensa.

Há vários registros que operam nesse mesmo universo significativo. Em

geral destacam valores e atitudes dos indivíduos que conduzem a imprensa em Belo

Horizonte como veio seminal das mudanças que ocorrem. É o caso das idéias que

traspassam a fina crônica de Carlos Drummond de Andrade. Meio século depois da

criação do principal jornal mineiro, o poeta relembra sua passagem pela imprensa da
27

cidade e reafirma o entendimento demonstrado por Pedro Aleixo sobre o papel

desempenhado pelos fundadores do periodismo moderno em Belo Horizonte.

"Na parte moral, só a relação dos sócios fundadores da


empresa faz a gente exclamar: Que grandeza! Lá está Milton Campos,
comentarista político de `O Jornal` em Minas, lá está o Pedro Aleixo,
alma política por excelência, campeão do voto secreto, que até então era
utopia. Cito apenas dois nomes incomparáveis. Davam prestígio e
autoridade ao novo jornal". (4)

Prestígio, autoridade moral, dedicação vão aparecendo como parte de um

sistema de disposições, um habitus (5) , que induz à ação os indivíduos condutores do

processo de implantação e consolidação da imprensa diária em Belo Horizonte.

E não se trata de um discurso localizado ou episódico, referente a um

grupo composto apenas pelos fundadores e figuras que gravitaram em torno daquele que

viria a se tornar o principal jornal de Belo Horizonte. O cronista Moacir Andrade foi um

jornalista presente à maioria das iniciativas editoriais levadas a cabo em Belo Horizonte

entre 1920 e 1940. Sua crônica torna objeto de reverência a figura de Victor Silveira,

criador do Correio Mineiro em 1926, e, segundo Andrade, também o "fundador da

imprensa moderna em Minas".

"A sua ação jornalística foi, entre nós, um marco


definitivo, separando duas épocas na imprensa diária da Capital (...)
reunindo em torno dele elementos como Lauro Santos, Alberto Deodato,
Guimarães Menegale, e dando a mim também a honra de figurar a seu
lado, Victor Silveira lançava, no dia 11 de novembro de 1926, o
primeiro número do seu jornal - do `nosso jornal`, como dizia ele, e
como tínhamos todos nós, seus companheiros, orgulho de repetir,
entusiasmados pela extensão do inédito sucesso que provocamos e pela
bravura e destreza do nosso grande chefe". (6)

(4)
Carlos Drummond de Andrade, Um parente que faz cinqüenta anos, Estado de Minas. 09/03/77, p.1. Caderno
comemorativo.
(5)
Segundo Bourdieu, a noção de habitus diz respeito a um sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível
prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação". Pierre Bourdieu, Coisas
Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990. p.26.
(6)
Moacir Assis Andrade, Victor Silveira, O fundador da imprensa moderna em Minas, Minas Gerais. 21/04/32. 5ª
seção, p.1 e 2.
28

Desprendimento, inatacável autoridade moral e, nos diz o cronista,

exemplar bravura eram aspectos estruturantes da vontade empreendedora desses

homens. Tais traços os induziam à ação, ao cumprimento da tarefa de desbravamento do

inóspito terreno que até então não favorecia o florescimento da chamada moderna

imprensa. Não à toa, nos diz Moacir Andrade, Victor Silveira, ante o argumento dos que

conheciam o mundo do jornalismo da época e aconselhavam ao jornalista não seguir

com a empreitada de fundar um diário em Belo Horizonte, tinha uma única resposta:

"Estejam tranqüilos, o meu jornal vencerá". Não venceu. Minguaram recursos e leitores

até falir anos mais tarde, em 1928, e o jornal ter o nome por diversas vezes invocado

para sustentar outros projetos editoriais ainda mais passageiros. A fugacidade do

empreendimento, todavia, não desqualifica sua relevância para interpretação de um

possível novo momento pelo qual passava a imprensa produzida na capital. Importa-

nos, mais do que esquadrinhar supostas conexões causais, sejam elas de ordem política,

econômica ou cultural, que eventualmente expliquem a falência de uma determinada

iniciativa editorial, atentar para as expectativas e perspectivas que se tornarão

recorrentes em novas tentativas de viabilização de uma imprensa de novo tipo na

cidade. Dessa forma, é sugestivo retornar ao Correio Mineiro. Não aquele mesmo jornal

que causara sensação entre os leitores da cidade em 1926, mas outra iniciativa que ali

buscara referências "morais e intelectuais". Um "novo" periódico que, em março de

1933, agregando antigos figurantes da primeira e mais importante empreitada que levou

a chancela do Correio Mineiro, passou a ser publicado diariamente em Belo Horizonte.

Noutro contexto e momento histórico da imprensa e da cidade, certamente não se trata

do mesmo jornal ponteiro da modificada imprensa diária belorizontina.

Todavia, aqui o importante para nós é que, na tentativa de "recomeço",

também retorna a idéia de que os encabeçadores do jornal operam com uma capacidade

empreendedora soberba, crucial para a existência do projeto. Como rememora o

jornalista Alberto Deodato em 1934, na comemoração do primeiro aniversário do

Correio na sua nova fase:


29

"Quis o destino que, quem o secretariou nos primeiros


números, quem foi seu redator chefe após a morte do Vítor, se tornasse
seu primeiro diretor na segunda fase.
(...) Sabia, porém, que não daria conta da tarefa de
equipará-lo ao que foi, adaptando-o à atualidade. Faltavam-me já
forças; não as físicas que ainda conservo nesse mais tarde que noite que
vou palmilhando, mas a força solar dos vinte anos, a força maravilhosa
da audácia, da irresponsabilidade criadora, da bravura inconsciente e
irrestrita". (7)

Mudaram-se os nomes mas manteve-se a perspectiva:

"As glórias desta segunda campanha, ainda mais difícil,


por circunstâncias diversas, são de Isidoro Cordeiro, antes de todos.
(...) Tem sido seu incansável animador. Num ambiente em
que o jornalismo é, naturalmente, uma função de sacrifício, de
compensações mesquinhas, sem um homem dessa fibra, para quem a
luta não constitui um pesadelo, mas é, antes, motivo de prazer, porque
lhe experimenta o ânimo robusto, muitas vezes teríamos, talvez, ficado
pelo caminho, se não fosse Isidoro Cordeiro a vanguarda desta
iniciativa." (8)

Os projetos jornalísticos tinham na capacidade estruturadora da figura do

seu fundador e dos indivíduos, em cuja volta se reuniam, um indicador da importância

daquela iniciativa e sua conseqüente repercussão social. Mesmo jornais de natureza

ainda mais efêmera e que não gozaram de maior influência e repercussão entre o

público leitor, como a Gazeta Mineira, de 1936, tiveram destacados em seus

lançamentos a ação e figura dos referidos protagonistas centrais:

"Possui a Gazeta Mineira um corpo redatorial colhido


entre os elementos mais expressivos e experimentados da nossa
imprensa. A sua frente se acham duas figuras brilhantes do jornalismo
mineiro: J. S. Maciel e Theódulo Pereira, que às credenciais de um
passado digno ajuntam ainda as energias de uma mocidade vigorosa e
construtiva". (9)

(7)
Alberto Deodato, Correio Mineiro, Correio Mineiro. 02/03/34, p.1.
(8)
O VII aniversário do jornal de Victor Silveira, Correio Mineiro. 02/03/33, p.1. 2ª seção.
(9)
Gazeta Mineira, para servir aos interesses impessoais da coletividade. Gazeta Mineira. 27/09/38, p.1.
30

Sem a capacidade empreendedora desses verdadeiros founding fathers

da imprensa mineira, não haveria modernização do jornalismo da capital. Esta é uma

das idéias postas em cena pelos discursos que se voltam para o registro do nascedouro

de uma nova etapa da produção editorial em Belo Horizonte nos anos 20 e 30. Todavia,

como dissemos anteriormente, esta é uma idéia que se manifesta necessariamente

articulada a uma outra imagem acerca dos "homens de imprensa" da época: a de que,

sem uma certa voluntariedade, uma disposição para enfrentar o trabalho na imprensa,

como um tipo de sacerdócio, não seria possível promover uma alteração nos padrões

editoriais do jornalismo praticado na cidade.

É interessante notar que essa outra "categoria" presente nos discursos

sobre as mudanças que ocorrem na produção editorial evidenciam um deslocamento de

ênfase no papel dos indivíduos que processam a reestruturação na imprensa de Belo

Horizonte. Na perspectiva anterior, ressaltam-se as figuras dos que dirigem o jornal,

coadjuvados por um importante grupo de pessoas. Agora, veremos a seguir, o foco

destina-se aos coadjuvantes, que viabilizariam quotidianamente as diretrizes de uma

nova imprensa. Passamos dos proprietários, ou pessoas por esses indicadas, para

aqueles que fazem o jornal, atuam na chamada "cozinha", exercem as atividades

práticas e rotineiras da produção diária de jornais em sua parte redacional. (10)

O relato do então ex-promotor público e militante político Afonso Arinos

de Mello Franco, diretor da Folha de Minas na passagem do primeiro aniversário do

jornal em 1934, é sugestivo para continuar nossa discussão. "Os vitoriosos", nome do

artigo editado em coluna diariamente publicada por Mello Franco à primeira página do

jornal, reputa aos jornalistas que produziam a Folha a façanha de manter em

funcionamento o periódico.

"Percebo confusamente que existe um secreto prazer, um


misterioso encontro para esses rapazes, nos cigarros chupados à pressa,
entre dois tópicos, nas marcações de última hora diante do ruído

(10)
Relembramos aqui que o trabalho se atém aos indivíduos que "escrevem" o jornal, não alcançando os que
desempenham atividades gráficas. Um estudo sobre esta relação, ou diferenciação das duas categorias, ainda está por
ser feito e poderia revelar processos importantes como o avanço da divisão do trabalho e as mudanças de perfis
profissionais relacionadas à dinâmica social, cultural e as transformações tecnológicas.
31

enervante dos linotipos, nos telefonemas ansiosos, para as notícias de


última hora, quando se `fecham` as páginas, nos cafés e chopps sorvidos
de madrugada, quando os garis e os bêbados, heróis líricos, barões
anônimos da treva urbana, dão às avenidas desertas uma lembrança de
vida e uma nota de melancolia.
(...) São uns monstros risonhos os rapazes de jornal. (...)
Sou o `foca` permanente confesso. Se `Folha de Minas`, que hoje entra
no segundo ano de luta, representa uma vitória, um avanço no
jornalismo mineiro, esse episódio é para mim tão impressionante como
para o leitor.
Lutamos durante este ano com as maiores dificuldades.
Várias vezes estivemos a ponto de desanimar. Mas sempre encontramos
elementos de reação, que nos deram alento.
Hoje, já posso dizer que tenho a impressão de que
vencemos. Não graças a mim, nem a ti, leitor incerto e vago, que exiges
sempre um esforço cada vez maior e que mal chegas a compreender esse
esforço que exiges.
Mas graças aos rapazes de jornal, como Luiz de Bessa,
Newton Prates, Dante Saccheto, Pedro Aguinaldo, João Albuquerque e
vários outros no mesmo gênero, que tu não conheces, porque só
aparecem os nomes como o meu ou de outros que não têm a menor
importância para vida do jornal". (11)

Extensa, porém seminal, a referência do articulista. A imprensa, sugere

Mello Franco, não contava apenas com a capacidade empreendedora de seus

patrocinadores/diretores. Para a subversão de um meio em tudo adverso ao

desenvolvimento dos jornais diários, nos moldes dos principais centros editoriais do

país, as gazetas tinham que deitar raízes na voluntariedade da "redação". As

adversidades políticas, econômicas e culturais tinham traduções próprias bem

específicas no cotidiano da imprensa, transportavam-se e erigiam-se no interior mesmo

da prática jornalística diária. Com isso, realçavam também, na perspectiva do diretor da

Folha de Minas, a importância de quem quotidianamente era responsável pela

realização da cobertura jornalística, pela elaboração prática dos periódicos.

Mas Afonso Arinos fala do ponto de vista da posição de um diretor de

jornal. O que faz com que articule seu discurso em torno da lógica de homenagear

aqueles que, para ele, enfrentam as dificuldades do fazer jornal em Belo Horizonte.
(11)
Afonso Arinos de Mello Franco, Os Vitoriosos, Folha de Minas. 15/10/35, p.1.
32

Estes, porém, revelam de maneira bem mais aguda, em sua avaliação sobre o trabalho

com atividades jornalísticas em Belo Horizonte, uma sensibilidade marcada pela idéia

do sacrifício que a atividade da imprensa impunha aos que com ela lidavam.

Diante do meio inóspito, o fazer jornalismo nesse período não poderia

ser identificado como empreitada das mais tranqüilas. Cyro dos Anjos relembra assim o

convite que recebeu para participar da redação de um jornal na segunda metade da

década de 20.

"As coisas melhoraram. O jornal vai, mesmo, sair.


Preciso de um secretário de redação. Acho que posso confiar-lhe essa
tarefa. Será a única remunerada. Os demais redatores trabalharão de
graça, até que o jornal consiga manter-se". (12)

Recursos para manutenção e sobrevivência dos cronistas eram precários.

Não se podia esperar por eles vindos das sociedades que editavam os periódicos. O

trabalho, nem sempre remunerado, fazia com que o jornal fosse um "bico", uma

atividade que, do ponto de vista financeiro, era secundária para sustentação dessas

pessoas. Servia, é certo, diz Cyro dos Anjos, para levantar alguns "trocados" mas,

sobretudo, funcionava como espaço para que jovens intelectuais e estudantes

interessados em projeção social e espaços para produção literária obtivessem divulgação

e algum contato junto a um público leitor mais amplo que o do então precaríssimo

"mercado" da literatura. A Belo Horizonte da época, pode-se dizer, cumpria à risca o

diagnóstico traçado por Wright Mills, para quem "nos países subdesenvolvidos, o

equipamento cultural se limita geralmente a círculos muito pequenos e classes médias

rudimentares. Com freqüência consiste em apenas alguns poucos difusores e

consumidores, ligados pela educação aos mecanismos culturais de nações mais

desenvolvidas. Esses desventurados eleitos formam o único público disponível para os

produtos e serviços culturais". (13) Convém lembrar também que, por essa época o jornal

(12)
Cyro dos Anjos, A menina do sobrado, Rio de Janeiro, José Olympio/MEC, 1979. p.320
(13)
Citado por Antônio Cândido, A revolução de 1930 e a cultura, Novos Estudos Cebrap, nº4, abril de 1984. Sobre o
processo de convergência dos escritores em geral para o âmbito da imprensa periódica pela precariedade de um
mercado consumidor ver Angel Rama, A cidade das letras. São Paulo, Brasiliense, 1985. e Sérgio Miceli, Intelectuais
e classe dirigente no Brasil (1920-1945), São Paulo, DIFEL, 1979, p.210.
33

se constituía num primeiro refúgio para pessoas em geral vindas de outras cidades:

ninguém é natural de Belo Horizonte. Cyro dos Anjos dá cor a essa tese ao "refletir"

sobre a origem política do projeto do jornal Diário da Manhã, quando convidado para

trabalhar no periódico:

"Não procurei indagar. Pouco ou nenhum interesse tinha


pela política. O que me atraía era o exercício jornalístico em si mesmo,
e só até ao ponto em que satisfazia meu impulso de escrever". (14)

A imprensa aparece como forma de dar vazão aos "impulsos literários"

dos escritores ("vagidos literários", diria Drummond), era este um dos interesses básicos

que conduzia tais indivíduos para o trabalho nos periódicos. Os próprios cronistas

relatam que a década de 20 é caracterizada como de proliferação de revistas ilustradas,

que não vão adiante dos números iniciais e estimulam uma migração intensa dos

escritores para os jornais, veículos que estendiam suas edições por um tempo maior

antes de também encerrarem as atividades.

Mas dar vazão a esse impulso, mantendo-se no jornalismo com precária

ou nenhuma remuneração, só poderia se dar às expensas de um emprego principal ou

outra forma de sustentação. A maioria dos cronistas possuía ocupação de funcionário

público (15) que lhes possibilitava exercer a mal remunerada atividade jornalística. (16)

A dupla ocupação fazia da prática jornalística um "lugar" sitiado por dois

terrenos movediços. Mal remunerada, a "profissão" se resguardava com o auxílio do

emprego público. Mas, convém lembrar, o que possibilitava muitas vezes a manutenção

(14)
Idem, p.328
(15)
O diário oficial Minas Gerais, de 21 de abril de 1932, lista como membros de sua equipe uma redação com os
seguintes jornalistas, também "praticantes" nas redações de outros jornais: Moacir Andrade, Eduardo Frieiro, Álvaro
Benício de Paiva, Carlos Drummond de Andrade, Ramos Arantes, Javert de Souza Lima, Emílio Moura, Jair Silva,
Edgard de Faria Soares, Antônio Silva, Gualter Gontijo Maciel, White Lírio Silva, Edson Silveira, José Ranulfo,
Mário Scotti e Jairo de Almeida. O jornal informa também que a redação possuía outros auxiliares contratados ou
comissionados de acordo com a necessidade do serviço. Há ainda as figuras que, ligadas ao mundo da imprensa,
estiveram no serviço público em outras repartições, como o caso do escritor João Alphonsus.
(16)
José Nilo Tavares, num levantamento acerca da imprensa do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, na primeira
metade da década de 20, estima que um chefe de redação e o secretário do jornal recebessem em média 700$, o
repórter político 250$ e um redator comum 150$. O salário médio de funcionário público alcançava 600$. Não se
pode esquecer que estes são valores correspondentes a principal cidade do país à época e que, mais a crise econômica
dos anos subsequentes, não é difícil supor que valores menores fossem praticados na imprensa de Belo Horizonte.
José Nilo Tavares, Imprensa na década de 20: sociedade, política e ideologia. Revista Brasileira de Estudos Políticos.
nº54, Belo Horizonte, janeiro, 1982.p.133-166.
34

e o exercício da atividade jornalística era, ao mesmo tempo, um dos empecilhos mais

mencionados para a considerada atuação provinciana da imprensa até então: a

subordinação às diretrizes dos ocupantes da máquina estatal.

Podemos recorrer de novo a Drummond para indicar o dilema enfrentado

pelos "homens de imprensa":

"Belo Horizonte, me lembro principalmente de 20 e


primeiros anos de 30, era de morte. As novidades trancavam-se no
escuro, e a proverbial ronha mineira dos políticos e empresários
despistava lindamente o repórter que ambicionasse desvendar segredos
de cúpula. De resto, grande parte do pessoal das redações era
constituída de funcionários públicos, que não podiam arriscar-se a dizer
mais do que convinha. E, aberta ou furtivamente, os jornais dependiam
muito do governo". (17)

Os funcionários públicos alimentavam, assim, a imprensa em dois planos

cruciais: produziam seus principais cronistas ao garantir uma fonte regular, e muitas

vezes principal, de sustentação. De quebra, certamente formava um dos núcleos centrais

de leitores, imaginando-se estes ávidos por uma leitura menos oficial do que a

provocada pelo trabalho e assinatura compulsória do Minas Gerais. (18) E o Estado,

através do vínculo empregatício dos jornalistas e da condição de provedor direto da

imprensa com anúncios e matérias pagas, condicionava o tipo de cobertura realizada e

mantinha uma regulação institucional sobre os jornais.

Dessa forma, por um lado, o discurso mais institucional da imprensa,

representado na figura do proprietário/fundador/diretor, destacava a capacidade

empreendedora como condição para ultrapassagem da barreira imposta pelo meio sócio-

econômico adverso da capital. Por outro lado, os responsáveis pelo fazer jornalístico

cotidiano enfatizam o seu confronto com a precária realidade material da imprensa e as

dificuldades políticas que se impunham à modernização dos jornais de Belo Horizonte.

(17)
Carlos Drummond de Andrade, Op.cit.
(18)
O Minas Gerais, de 21 de abril de 1932, informa que desde 1923 sua tiragem era em torno dos 20 mil exemplares
enquanto os próprios jornalistas que trabalhavam na imprensa da cidade afirmam que os principais diários da cidade
tinham edições que não ultrapassavam a casa de um mil exemplares.
35

Os jornalistas trazem muito presente no seu discurso essa percepção da

dimensão precária da sua prática. O ingresso no mercado de trabalho fazia-se sobretudo

através do círculo das relações de amizade e indicações. O fazer jornal, é certo,

frustrava os sonhos de ascensão econômica dos que trabalhavam no setor e exigia

bastante esforço para que se desse conta da atividade. As instalações dos jornais em

geral eram de pobreza franciscana, com a inexistência de arquivos, raras máquinas

datilográficas e o disseminado hábito de escrever a tinta ou lápis em tiras de papel. O

horário de trabalho contava com um dia de descanso semanal e a jornada diária podia

variar de seis horas para repórteres políticos até dez ou doze horas para os repórteres de

polícia. (19) Apontado como o precursor da imprensa moderna, o Correio Mineiro, relata

um dos jornalistas envolvidos na primeira fase do periódico de Victor Silveira, era

"composto a mão, o jornal impresso em velha Alauzetti


que (...) até acertar a tiragem, eu via, semanas seguidas, o sol deitar e
nascer de novo, vigilante nas modestas oficinas, com vinte e dois
tipógrafos" (20)

Dificuldades que se irão presentificar também na referência ao espaço

urbano. Cyro dos Anjos, por exemplo, mostra os obstáculos para o exercício do

jornalismo na capital ao narrar um episódio por ele vivenciado logo nos primeiros dias

de sua atuação na redação do jornal Diário da Manhã, criado em 1927. Com a

incumbência de escrever uma reportagem sobre supostos fatos estranhos que estariam

ocorrendo numa casa abandonada da cidade, Cyro dos Anjos redige uma matéria onde

"carrega nas tintas" de um depoimento de um zelador que fizera alusão a coro de vozes,

correntes se arrastando e abrir e fechar de portas todas as noites no local.

(Além disso), "inventei episódios suplementares,


imprimindo-lhes todo o macabro e o tétrico de que fui capaz. Por três
números consecutivos, o jornal exibiu essas reportagens, que
encontraram, no público, não apenas credulidade, mas alvoroçada
aceitação." (21)

(19)
José Nilo Tavares, Op.cit.
(20)
Alberto Deodato, Duas Datas, Correio Mineiro. 02/03/34, p.1
(21)
Ciro dos Anjos, Op.cit. p.327
36

Logo descoberto o logro, o jornalista escapou de um linchamento da

multidão que, segundo ele, acorreu a redação do jornal. Voltaremos mais à frente ao

problema da relação imprensa/política e das repercussões do espaço urbano na

organização de uma nova modalidade de imprensa em Belo Horizonte. O importante

aqui era apenas indicar como a percepção que os jornalistas apresentam de sua prática

fixa, com destaque às privações de toda ordem para o desempenho de sua atividade, a

ponto de o trabalho necessitar das "invencionices" do redator.

O político, jornalista e diretor de O Debate, Paulo Pinheiro Chagas,

descreve também as dificuldades com que se deparavam os que militavam na imprensa,

segundo ele,

"época do 'jornalismo heróico', conhecendo de perto este


drama cotidiano: haveria numerário para comprar papel, adquirir tintas
e pagar as oficinas no dia seguinte? 'O Debate' tinha certos
compromissos fatais. A folha da oficina, paga semanalmente, se
atrasasse um dia, dava motivo à greve. O papel só nos era fornecido
com pagamento à vista: bobina pra cá, dinheiro pra lá. A redação não
criava problema: mal remunerada e sempre em atraso, era
compreensiva e tolerante." (22)

É um relato que tem pontos de contato com a percepção de Afonso

Arinos, diretor da Folha de Minas em 1935. Perplexo diante da capacidade de trabalho

dos empregados do jornal ele diz que "o leitor bem dormido, despreocupado e

tranqüilo", ao receber pela manhã o exemplar do seu jornal,

"(...) não se lembra de uma porção de rapazes, em via de


regra muito mal pagos - porque, no Brasil, a indústria jornalística não
dá margem a lucros, senão em casos excepcionais - que levaram a noite
preparando aquilo tudo para satisfazê-lo, não se sabe porque.
`A imprensa pode conduzir a todos os altos postos`, diz
André Tardieu, que é um homem de imprensa. Mas, ajunta logo: `a
questão é a pessoa abandoná-la no momento oportuno`.
Talvez seja isso uma verdade. Mas o certo é que o rapaz
de jornal raramente abandona as agruras e incertezas de sua vida por
qualquer outra posição mais cômoda. Até hoje, eu que pela imprensa

(22)
Paulo Pinheiro Chagas, Esse velho vento da aventura, Belo Horizonte, Itatiaia, 1977. p.243.
37

passei e passo por acaso, confesso que ainda não entendi a razão
disso. (23)

Dinheiro é notícia rara na imprensa. A precariedade da situação

funcional e econômica dos jornalistas é tão presente na sensibilidade dos que trabalham

nos jornais nessa época, que não escapa sequer da atenção de uma crônica

comemorativa do aniversário de um dos periódicos, o Diário de Minas. Ao mencionar a

união dos cronistas em torno do objetivo de fazer o jornal, mostrando que "isto é que

vale", o articulista aproveita a deixa para um trocadilho ilustrativo:

"Por falar em vale... Esta é uma palavra que tem para


nós, proletários tuberculosos da pena, uma significação toda especial. O
Eduardo Barbosa que o diga, ele que é diariamente vítima dessa
literatura rápida e frutuosa, feita à margem do obscuro trabalho
jornalístico. Vítima a tal ponto freqüente que eu chego mesmo a
desconfiar que nesta vida de jornal a única coisa que não vale... a pena
é ser gerente.
O trocadilho é dos piores que já se fizeram neste vale de
lágrimas e trocadilhos que é a vida. Mas palavra que é um gosto a gente
acabar de escrever uma crônica como esta, e alvejar logo o `homem dos
dinheiros` com uma tirinha de papel contendo estas palavras enérgicas:
`vale este 20$000`.
Valerá mesmo?" (24)

O dinheiro, a remuneração, o retorno financeiro imediato,


definitivamente não eram o móvel fundamental para a presença destes jornalistas na

imprensa da década de 20 e 30.

Vemos, pois, que as noções de "espírito" empreendedor e do

voluntarismo organizam as imagens que os "homens de imprensa" de Belo Horizonte

têm acerca da sua própria ação nas mudanças ocorridas no âmbito da produção editorial.

A forma como aparecem no discurso dos protagonistas nos permite mesmo estabelecer

uma clivagem entre aqueles que se apresentam como mentores dos projetos de jornais e

os que, principalmente, conduzem a maioria das atividades jornalísticas quotidianas. Os

primeiros, enfatizando a conjunção de valores e sentimentos indutores de uma

(23)
Afonso Arinos, Op.cit.
(24)
Meus parabéns, Diário de Minas. 03/08/28, p.2
38

determinada ação capaz de gerar transformações na esfera da imprensa local. Os outros,

realçando os dispositivos que, ao imporem restrições de ordem econômica e

organizativa aos jornais da época, requeriam grande voluntarismo dos indivíduos que

buscavam nos periódicos desde a realização de uma "vocação" até mesmo uma

atividade razoavelmente remunerada.

Todavia, sugerir esta nuance não significa identificar a existência de

duas perspectivas excludentes. A nosso ver, são "respostas" mentais, sentimentais,

discursivas que constituem uma mesma disposição desses indivíduos em face de uma

tarefa que matriza ambos os pontos de vista: trata-se de engendrar novas práticas no

espaço da imprensa da cidade. O que não quer dizer que a presença dessas pessoas no

trabalho da imprensa responda a intenções idênticas. Há aspectos das mais diversas

ordens, política, profissional, econômica, intelectual, moral, todo um repertório de

motivações que balizam a ação dos atores sociais e a direciona, no nosso caso

específico, no sentido da produção de jornais. Mas essa ação ganha efetividade na

medida em que se constitui e estabelece em torno determinadas posições sociais que se

relacionam mutuamente construindo uma rede de interdependências em torno de uma

proposta para a imprensa. As duas perspectivas acerca do papel desempenhado pelos

indivíduos na reestruturação da imprensa servem, assim, como pontos de articulação,

uma espécie de "porta de entrada" para a criação de padrões de conduta desses agentes

no campo da prática jornalística.

Dessa forma, demanda-se investigar alguns elementos que possam

ajudar-nos a compreender as razões pelas quais estes indivíduos estabeleceram, no

âmbito da imprensa, um espaço privilegiado para sua atuação nos idos da década de 20

e 30. Entender porque iniciativas descritas como causadoras de ônus financeiro e

sacrifícios individuais, e ancoradas "apenas" num comportamento supostamente moral,

têm sua razão de ser para os indivíduos que as protagonizaram.

De onde vem toda essa tolerância de uma "redação" mal remunerada e

permanentemente com o salário em atraso? Que "caráter" é esse que "impõe" ações

voltadas para a reestruturação do campo da imprensa?


39

Classe, Intelligentsia e produção cultural

Uma perspectiva possível na tentativa de compreensão desse fenômeno

seria a articulação do comportamento dos atores com a identificação de sua origem

social. Uma das maneiras de realizar esse tipo de análise é tomar a repercussão da

organização da esfera produtiva da sociedade na explicação do comportamento

individual e coletivo dos agentes que protagonizaram ações no campo da imprensa.

Noutras palavras, construir uma explicação que gravitaria em torno de uma certa noção

de classe social.

Uma rápida verificação da biografia de cada um dos nossos protagonistas

indica que o agrupamento dos "homens de imprensa" da década de 20 e 30 é formado

desde estudantes secundaristas recém-saídos do ginásio até aspirantes ao título de

bacharel; médicos, advogados, farmacêuticos, "doutores" em geral egressos das poucas

escolas superiores existentes; uma profusão de praticantes do cobiçado emprego de

funcionário público; e homens atirados às atividades e compromissos da administração

pública e da política partidária. Além da característica interpenetração de diversas

dessas condições, as pessoas que lidavam com a produção de jornais em Belo Horizonte
possuíam a raiz comum de detentores de um certo aporte cultural, fruto de um

investimento em educação formal bem acima das possibilidades do conjunto da

população. Experimentavam todos uma época de rápidas e profundas mudanças

marcadas por uma atmosfera de "inquietude intelectual, volta para a realidade nacional;

ascensão da classe média e sua tomada de consciência política, especialmente a partir

do 'tenentismo', que iria eclodir na Revolução de 30; início da decadência do domínio

rígido das oligarquias regionais." (25)

Em alguma medida podemos dizer que eles faziam parte do que se

convencionou denominar, numa terminologia algo imprecisa, de "novas classes

(25)
Fernando Correia Dias, João Alphonsus: tempo e modo, Belo Horizonte, UFMG, 1965, p.167. Sobre a atmosfera
intelectual da época ver também Antônio Cândido, op. cit.
40

médias". Tratava-se de um segmento emergente durante a Primeira República e

constituído "pelos trabalhadores assalariados ligados à esfera de circulação do capital e

por aqueles que contribuem para a realização da mais-valia: empregados assalariados do

comércio, dos bancos, das agências de venda, assim como os empregados de 'serviços'.

Também é o caso dos funcionários do Estado, do aparelho do Estado (serviços

públicos) e dos aparelhos ideológicos do Estado (comunicações, imprensa, educação

etc.)" (grifo nosso) (26)

O sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro chama a atenção para o fato de que a

identificação desse setor social, ao contrário de um corte horizontal que aponte a

composição interna das classes médias, deve ser feita através de uma distinção em torno

de processos que possam explicar a aglutinação dos diferentes conjuntos que compõem

a pequena burguesia e as classes médias. Processos nucleadores tais como imigração,

urbanização, burocratização e industrialização. O autor está preocupado em tornar

evidente, a partir desse método, a performance política desses setores sociais. Parece-

nos que podemos reter um aspecto dessa perspectiva para problematizar o

comportamento dos "homens de imprensa" da capital mineira a partir do primeiro

quartel deste século. Ou seja, talvez possamos indicar que um processo aglutinador

desses diferentes setores internos a essa fluída camada social definida por "classe

média" poderiam ter sido as mutações experimentadas no universo dito cultural das

práticas sociais.

Pinheiro indica que a expansão dessas classes médias estará ligada ao

aparecimento de um mercado de trabalho não manual urbano. Esse processo tem início

no final do século XIX com a crise da economia agrário-exportadora e o

desenvolvimento do setor público que favoreceram a absorção de grupos ligados à

exploração rural na burocracia civil e militar. Verifica-se um crescente desenvolvimento

urbano que sustenta a expansão do pequeno comércio e de pequenas indústrias nos

centros e o crescimento da intervenção do Estado na economia, ampliando a burocracia

(26)
Paulo Sérgio Pinheiro, Classes médias urbanas: formação, natureza, intervenção na vida política, In: Bóris
Fausto, História Geral da Civilização Brasileira, Brasil Republicano, 2º volume. Rio De Janeiro, Bertrand Brasil,
1990, p.12
41

pública. "A categoria dos intelectuais, dos profissionais liberais - advogados, médicos,

engenheiros, professores, jornalistas - também se expande. Para isso terá contribuído a

criação de novas faculdades e a expansão do ensino secundário." (27)

Essa classe média se mostra efetiva na estratificação social de Belo

Horizonte das décadas de 20 e 30 e revela presença ocupacional numerosa do grupo

burocrático, o que certamente inflou a presença dos setores médios proporcionalmente

ao conjunto da população. (28) E é mesmo generalizada em crônicas, ensaios e obras

literárias a idéia de que a Belo Horizonte da época era uma "cidade de funcionários".

Sede administrativa e política, a cidade evidenciava o processo vivido de incremento

dos serviços públicos e da presença do Estado na vida social provocados pela

introdução da república e o sistema federativo. Esta imagem, todavia, que se insinuou e

acabou por fixar-se na imagem destilada pelo discurso intelectual, não contempla todas

as faces da realidade de Belo Horizonte. A cidade, ainda que não se ignore o peso de ser

um centro de administração, é predominantemente marcada pelo operariado. Estes,

contudo, adquiriam menor visibilidade ante o discurso letrado. (29)

Ainda assim, nos parece limitada a perspectiva de explicar a

complexidade da atuação desses setores médios no espaço da imprensa pensando apenas

em motivações oriundas de um interesse de classe, interesse este baseado na posição


que as classes médias ocupariam na esfera de produção econômica. Teríamos então,

caso fosse este o escopo da análise, que intervir numa espinhosa discussão, corrente nas

(27)
Idem p.16. Trata-se de um fenômeno mais geral que se verificou na modernização dos centros urbanos latino-
americanos, como pode ser constatado na reflexão de Cláudio Véliz: "Essas cidades foram concebidas inicialmente
como centros burocráticos; o comércio e a indústria quase não interferiram em seu período de formação (seus
habitantes) eram empregados em serviços, ou setor terciário da economia, e abrangiam tanto empregados domésticos
como advogados, professores, dentistas, funcionários públicos, vendedores, políticos, soldados, zeladores, contadores
e cozinheiros". Citado por Angel Rama, A cidade das letras, São Paulo, Brasiliense, 1985.
(28)
Sobre a participação do segmento burocrático na estrutura social da cidade ver Fernando Correia Dias, op. cit.,
Paul Singer, Desenvolvimento econômico e evolução urbana, São Paulo, Companhia Editora nacional, 1974 e
Francisco Iglésias e João Antônio de Paula, Memória da economia da cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte,
BMG, 1987.
(29)
O historiador Francisco Iglesias explica que "se havia mais operários que funcionários, estes apareciam, aqueles
não, pela modéstia de suas funções. Desde o princípio há uma projeção concedida ao servidor público. Como as
atividades agrícolas e industriais fossem reduzidas, não atraíam o homem da classe média, formado ou
intelectualizado. Só podia trabalhar em alguma repartição, ser professor ou jornalista. O comércio dava menos
prestígio, embora pudesse dar mais rendas". Francisco Iglésias, Op.cit. p.14. Sobre esse fosso entre a "cidade
sensível" e a "cidade narrada" é interessante ver a discussão de Angel Rama sobre a noção de cidade letrada.
42

interpretações historiográficas e sociológicas, sobre o papel desempenhado pelas classes

e frações de classe na luta política do final da Primeira República e a ruptura dos anos

30. Assim seria, sobretudo, pela perspectiva de considerarmos as manifestações dos

atores que se movem no espaço da imprensa como derivadas de relações econômicas e

sociais anteriores a sua experiência com o jornalismo. Ancoradas na ênfase dada à

esfera econômica da sociedade para explicar o comportamento individual e coletivo,

tanto a teoria de classe assentada na tradição marxista quanto a de corte weberiano se

mostrariam insuficientes para dar conta da ação perpetrada pelos "homens de imprensa"

enquanto componentes de um determinada estrato social. No marxismo teríamos sempre

a classe como categoria analítica central para análise das relações entre os campos

econômico, político, social e cultural e pelo menos três aspectos de difícil tratamento: o

primeiro, a construção de relações causais simplificadas entre base produtiva e

superestrutura política e ideológica. Em segundo lugar o pressuposto de que os

interesses de classe, vistos enquanto tal, se transformem naturalmente em ação coletiva.

E por último, que estes mesmos interesses se definam sempre pelo viés da exploração

econômica. Já o enfoque weberiano também se constitui em noção limitada para a

análise na medida em que nos restringíssemos à definição de classe como um agregado

social baseado em situação comum em relação ao mercado e cuja situação não

determina a formação de grupos sociais efetivos e, portanto, orientador de ações

coletivas.

Menos do que a raiz sócio-econômica ou aspectos da estrutura social,

apontados como substrato para emergência do segmento denominado classes médias, é

interessante, no nosso caso de análise da ação de diferentes indivíduos para maturação

de um novo conceito da imprensa em Belo Horizonte, indicar como a amplitude da

faixa social abarcada pelos setores médios da população compartilha uma variável

combinação de atividades e práticas através de uma determinada experiência cultural.

Nesse sentido talvez fosse mais adequada a aproximação com o conceito weberiano de

grupo de status ou com uma noção renovada de classe. No primeiro caso porque

engloba indivíduos que compartilham certo prestígio social e um estilo de vida,


43

comportamento, padrões de consumo, habitação, profissão, relações sociais que

mantêm, instrução recebida e outros costumes muito assemelhados. "Diversamente das

classes, os grupos de status constituem sempre comunidade, porquanto se definem, não

com base numa característica objetiva e formal (situação de mercado), mas num agir

específico, no modo de se entenderem a si mesmos e serem entendidos pelos outros". (30)

Já, mantendo-se a idéia de classe social para análise do agrupamento dos "homens de

imprensa", esta deveria ser concebida como uma espécie de "formação social (uma

coletividade cuja ação deve ser explicada em seus motivos, eficácia, sentido e resultado)

e são também, quando não agentes, constelações de sentido que fornecem parâmetros

simbólicos estruturais à ação individual e grupal". (31) Por essa via, os componentes das

chamadas classes médias, encarnados nos homens de imprensa na Belo Horizonte do

início do século, parecem conformar um grupo que intercambia experiências políticas e

culturais comuns concretizando-as em idéias e naquilo que chamam de novo padrão

jornalístico ou de imprensa.

Assim, a insuficiência derivada da análise baseada na noção tradicional

de classe social, para explicar a ação de determinados agrupamentos vinculados aos

segmentos médios na sociedade dos anos 20 e 30, torna atrativa a idéia de se lidar com

o problema do comportamento dos atores ligados ao incipiente campo cultural,


particularmente aquele que abarca a imprensa, a partir de categorias analíticas

aparentemente mais flexíveis ou menos redutoras da complexidade desse fenômeno.

Uma delas poderia ser a dos intelectuais.

O termo intelectuais, todavia, será aqui referido num sentido que merece,

de início, esclarecimentos. Como informa Raymond Williams, um dos problemas

teóricos recorrentes no trabalho com esta categoria é considerá-la "em primeiro lugar,

(30)
Norberto Bobbio et alii. Dicionário de política. Brasília, Edunb, 1992. p.173.
(31)
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, Classes, interesses e exploração; comentários a um debate anglo-americano,
BIB, Rio de Janeiro, nº31, p.50/62, realiza interessante análise sobre limites e possibilidades do trabalho com a
categoria de classe social. A formulação tem pontos de contato com a conceituação de Thompson que entende classe
não como uma coisa, mas uma relação definida pelos homens enquanto vivem sua própria história como resultado de
experiências comums, herdadas ou partilhadas. Para uma discussão sobre o conceito de classe no marxismo ver
também E.P. Thompson, Op.cit. e Adam Przeworski. Capitalismo e social democracia. São Paulo, Companhia das
Letras, 1991.
44

uma enganosa especialização de um conjunto mais geral de produtores culturais e, em

segundo lugar, uma enganosa ampliação de um tipo de formação cultural para uma

categoria social geral". (32) Quando referida a tipos sociais específicos, como escritores e

pensadores sociais, e sua relação com a ordem social e suas classes, se trata de uma

definição muito particular que não dá conta do conjunto da organização social dos

produtores culturais. No nosso caso, poderíamos perder de vista uma gama de funções

nascentes desempenhadas no interior da imprensa dos anos 20 e 30 que não se

enquadrariam numa tipologia mais rigorosa da categoria dos "intelectuais". Nesse

sentido, a noção de intelectual pretende dar conta do que Williams define como

produtores culturais, agentes das práticas significativas e relações sociais que, em nosso

caso, constituem a instituição denominada imprensa, no período histórico pesquisado.

Em certo sentido, orientaríamos nossa análise para uma perspectiva de contornos

gramscianos, que distingue os intelectuais a partir de sua função social imediata como

categoria profissional no contexto da divisão técnica do trabalho político e ideológico.

Mas agruparíamos, na definição baseada em produtores culturais, tanto os "criadores"

quanto os "administradores/divulgadores" da produção cultural, distinção com a qual

opera o pensador italiano. (33)

Em parte sob este prisma, o sociólogo Sérgio Miceli elaborou uma


rigorosa análise sobre o relacionamento entre a intelectualidade e a classe dirigente no

Brasil nos anos 20, 30 e 40 desse século. (34) Miceli busca explicitar como a partir da

década de 20, que assinala transformações decisivas no plano econômico, social,

político e cultural da sociedade brasileira, se organiza uma nova pactuação no

relacionamento entre intelectuais e a elite dirigente do país. O objetivo do autor é

indicar as estratégias produzidas pela chamada intelectualidade para galgar postos de

trabalho no setor público e privado. Nesse movimento de conquista de espaço

(32)
Raymond Williams, Cultura, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p.212.
(33)
Ver Antônio Gramsci, Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982;
Alfredo Bosi, O trabalho dos intelectuais segundo Gramsci, im Céu, Inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica.
São Paulo, Ática, 1988; e Sérgio Miceli, Ideologia, aparelhos do Estado e intelectuais em Gramsci. Sào Pauli, 1974.
(mimeo)
(34)
Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), São Paulo, Difel, 1979, p.210.
45

profissional os intelectuais se dirigiram a três setores principais: partidos políticos,

literatura e Estado. Segundo o autor, "o desenvolvimento das instituições culturais, das

organizações políticas e da máquina burocrática traduz, em ampla medida, as

transformações por que passavam então as relações entre os diversos grupos dirigentes

e, de outro lado, reflete as demandas dos produtores e consumidores de bens culturais

cujo mercado estava em vias de se consolidar". (35)

Um aspecto importante para nossa reflexão, a ser recuperado do trabalho

de Miceli diz respeito às mudanças que se verificam na relação entre os intelectuais e a

produção cultural. "Os mesmos grupos sociais em expansão nos grandes centros

industriais e administrativos do país (os funcionários públicos, os trabalhadores etc.), e

de cujo apoio passou a depender a nova coalizão de forças que detinha o controle do

Estado, favoreceram a constituição de um mercado de bens culturais relativamente

autônomo tanto em relação aos antigos grupos dirigentes e aos seus mecenas privados

como em relação às instâncias políticas e religiosas interessadas em impor suas


(36)
diretrizes à produção cultural". O que se verifica na produção cultural a partir da

chamada Revolução de 30 é, para tomar uma idéia desenvolvida por Antônio Cândido,

um processo catalisador. Elementos que já se presentificavam de forma dispersa no

plano cultural apresentam-se agora articulados, fruto sobretudo de uma nova correlação
entre o intelectual, de um lado, a sociedade e o Estado, de outro, motivada por

condições econômico-sociais alteradas. (37)

A atitude dos intelectuais na sua relação com a classe dirigente apoia-se

também nas alterações que se processam no mercado de trabalho intelectual, que assiste

a uma expansão do campo editorial, em especial o mercado de livros, e a ampliação de

oportunidades de ingresso no serviço público. Tais mudanças, porém, não respondem

prioritariamente pelas novidades nas condições de trabalho intelectual. As

possibilidades de acesso às profissões intelectuais continuam a depender do que o autor

chama, em linguagem "bourdieusiana", de estratégias de reconversão das famílias que

(35)
Idem, p.XVI.
(36)
Idem, p.210.
(37)
Antônio Cândido, op. cit.
46

podem transmitir aos filhos um certo montante de capital social e cultural variável

conforme o grau de proximidade dessas famílias da fração culta da classe dominante.

Na perspectiva de Miceli, mantém-se indissolúvel o laço que amarra as trajetórias e

carreiras dos diferentes tipos de intelectuais à história social de suas famílias. Daí,

sugere, a distribuição dos agentes propensos a uma carreira intelectual pelas diferentes

carreiras possíveis nessa conjuntura vai depender da correlação entre a posição do

grupo familiar desses futuros intelectuais e o pólo dominante da classe dirigente e do

montante e dos tipos de capital escolar e cultural a que terão acesso conforme o setor da

classe dirigente a que pertencem. É nessa situação que o autor aponta dois parâmetros

de atuação desses intelectuais que se aproximariam das duas posições por nós indicadas

no trabalho com o discurso dos "homens de imprensa" acerca do seu próprio papel na

instauração de uma nova modalidade de periodismo na capital mineira: o lugar daqueles

que dirigem os empreendimentos jornalísticos e aqueles que atuam quotidianamente no

ato de fazer os jornais.

Um dos padrões de comportamento dos intelectuais toma como

referência aqueles que, situados mais à margem do núcleo central da elite dirigente,

tendem a negociar seu parco capital social e cultural em troca de refúgios profissionais.

São os "parentes pobres", diz Miceli. Poderíamos aqui aproximar a biografia dos
jornalistas que em seu discurso enfatizaram as condições precárias que enfrentam os

indivíduos na implementação de mudanças na imprensa de Belo Horizonte. Assentados

em pequenas funções nas repartições públicas, buscam um certo prestígio social no

trabalho nas redações da cidade. Estarão aí comandados pelos "herdeiros", aqueles que

deverão dar continuidade às posições de suas famílias no interior da própria fração

intelectual. Emparelharíamos, fazendo coro à análise de Miceli, biografias como a do

fundador do jornal O Debate, Paulo Pinheiro Chagas, e a do escritor e jornalista

militante de diversos jornais de Belo Horizonte, Cyro Versiani dos Anjos. O primeiro,

acompanhando a linhagem familiar, obteve sólida formação educacional e formou-se

em medicina e direito. Mas, sobretudo, incorporou-se na longa tradição de atuação

política do "clã", onde pontilhavam deputados federais e secretários de Estado. Já Cyro


47

dos Anjos, oriundo da pequena burguesia agrária e interiorana, muda-se na adolescência

para Belo Horizonte para concluir os estudos secundários e graduar-se em Direito. Tem

suas atividades marcadas pela rotatividade ocupacional que marca a vida dos "primos

pobres" e estabiliza-se no jornalismo e como funcionário público. A caracterização que

Sérgio Miceli faz dos "primos pobres" é precisa. "As famílias dos 'primos pobres'

encontravam-se relativamente afastadas, tanto social como geograficamente, da fração

política e intelectual da classe dirigente (...) Os 'primos pobres' cresceram e foram

educados em cidades do interior e só vieram para a capital ao final da adolescência. Não

dispondo das vantagens resultantes de posições privilegiadas no espaço da linhagem e

da frátria, ao que muitas vezes vem se aliar a presença de estigmas, esses futuros

intelectuais encontram-se praticamente impossibilitados de acionar a seu favor as

últimas reservas familiares do capital de relações sociais a exemplo do que puderam

fazer seus irmãos mais velhos". (38) Esta "baixa" intelectualidade, na busca do renome

literário ou do status da carreira de pensador ou ensaísta, se espremia entre as servidões

do funcionalismo público e as atividades no jornalismo.

Assim, podemos constituir uma rede mais complexa de indutores da

atitude e comportamento dos intelectuais que se tornavam homens de imprensa na

década de 20 e 30 em Belo Horizonte. A convergência dos indivíduos para o espaço da


produção de jornais revelaria a percepção, nesse espaço, de um ponto estruturador de

um rudimentar mercado para o trabalho intelectual. Era um tempo, segundo os relatos

dos "homens de imprensa", em que jornalismo se apresentava, sobretudo, como um

lugar de fascínio e construção de uma identidade social, um posto para dar vazão a um

impulso de escrever, que eles muitas vezes entendiam como vocação. "Havia realmente

vocação naquele tempo. E também uma certa vaidade em considerar a profissão como

algo intelectual, criativa, muito além da atividade profissional de outros setores. Ser

jornalista eqüivalia a assumir uma aura diferente, (...) e para eles o que importava era

apurar, escrever, entrevistar, houvesse ou não dinheiro certo - sem dúvida não lhes

(38)
Idem.
48

faltava, pela mesada providencial dos pais de classe média." (39) A gratuidade de

serviços, reconhece Pedro Aleixo, era a regra dentro das redações. (40)

A emergência de elementos que viriam a ser fundamentais na

constituição de um mercado de trabalho intelectual, a história familiar, a configuração

de uma nova relação política entre intelectuais e classe dirigente aparecem como

condicionantes sociais centrais para o entendimento da ação de um estrato social

caracterizado como intelectualidade. A eficácia dessa linha de análise, devemos nos

precaver, pode dar guarida também a uma leitura algo restritiva da ação desses

produtores culturais, como afirma Antônio Cândido. "O papel social, a situação de

classe, a dependência burocrática, a tonalidade política - tudo entra de modo decisivo na

constituição do ato e do texto de um intelectual. Mas nem por isso vale como critério

absoluto para os avaliar". (41)

Assim, aqui nos parece mais apropriado apontar para o trabalho dos

intelectuais na cidade como parte do desenvolvimento do que Angel Rama caracterizou

como cidade letrada. Ao estudar a tradição intelectual latino-americana e sua função no

planejamento, evolução e desenvolvimento dos centros urbanos como núcleos de poder

na América Latina, Rama mostra a importância da constituição de um grupo de

múltiplos servidores intelectuais que forma um anel em torno do poder e que cumpre os
"encargos civilizadores". Por ora, importa-nos ressaltar que o autor discute a margem de

funcionamento autônomo de que é capaz a equipe intelectual, argumentando com base

em autores como Karl Mannheim e Avin Gouldner. Rebate a noção marxista que reduz

os intelectuais a meros executores dos mandatos das instituições ou classes, pois tal

pressuposto perde de vista sua função peculiar de produtores - enquanto consciências

que elaboram mensagens - e, sobretudo, sua especificidade como desenhistas de

modelos culturais, destinados à constituição de ideologias públicas. A longa citação é

esclarecedora:

(39)
Tempo de fato e mito. Estado de Minas. 08/03/77, p.4. Caderno comemorativo.
(40)
Pedro Aleixo, Uma data mineira. Estado de Minas. 08/03/36, p.1.
(41)
Sérgio Miceli, op.cit.p.11.
49

"Creio indispensável manejar uma relação mais fluida e

complexa entre as instituições ou classes e os grupos intelectuais.

Inclusive por sua condição de servidores de poderes, estão em contato

imediato com o forçoso princípio institucionalizador que caracteriza

qualquer poder, sendo portanto os que melhor conhecem seus

mecanismos, os que mais estão treinados em suas vicissitudes e,

também, os que melhor aprendem a conveniência de outro tipo de

institucionalização, o do restrito grupo que exerce as funções

intelectuais. Pois também por sua experiência sabem que se pode

modificar o tipo de mensagens que emitem sem que se altere sua

condição de funcionário, e esta deriva de uma intransferível capacidade

que procede de um campo que lhe é próprio e que dominam, pelo qual se

lhes reclama serviços, que consiste no exercício das linguagens

simbólicas da cultura. Não somente servem a um poder, como também

são donos de um poder." (42)

Nesse sentido, a nosso ver, para construirmos uma interpretação da ação

dos "homens de imprensa" no processo de mudanças que marcaria o periodismo em

Belo Horizonte nos anos 20 e 30, não se trataria simplesmente de combinar um número
maior de variáveis que permitissem a construção de um quadro "mais complexo" de

condicionamentos sociais sobre o comportamento dos agentes. A dinâmica social e

histórica que produz e é produzida pelos atores sociais escaparia a um processo tal de

encapsulamento.

Daniel Pécaut sustenta uma crítica sugestiva à perspectiva de Miceli,

possibilitando captar elementos para a construção do que, nos parece, poderia ser uma

interpretação mais abrangente da prática e produção cultural no período, naquilo que

concerne à imprensa de Belo Horizonte. O pensador francês verifica como uma dada

geração de intelectuais brasileiros perpetrou a construção de uma cultura política pela

qual se responsabilizou e de onde derivou sua própria legitimidade no campo cultural. A

(42)
Angel Rama, A cidade das letras, São Paulo, Brasiliense, 1985, p.48. 156p.
50

noção de cultura política é seminal para seu trabalho e diz respeito não ao "conjunto dos

membros da sociedade, mas é antes constitutiva da identidade de um grupo". (43) Pécaut

trata de três dos múltiplos aspectos do que entende por cultura política: posição social

dos intelectuais ("os critérios de classe ou de estratificação social mostram-se

insuficientes para a análise. Convém considerar o lugar que os intelectuais atribuem a si

próprios, e àqueles que lhes reconhecem o poder"); representação do fenômeno político;

articulações entre o campo intelectual e a esfera política.

Pécaut afirma que Miceli observa os intelectuais com o intuito de

identificar suas orientações, em face das classes dirigentes, como derivadas dos

interesses que compartilham e não como expressão de sua conversão à ação política. O

autor não descarta a noção de interesse para perceber uma categoria social cuja tarefa

concerne à elaboração ideológica. "Contudo, na falta de um campo cultural autônomo,

capaz de reproduzir uma hierarquia institucionalizada de posições, esses interesses só

podem ter uma consistência limitada. Não se revelam senão após as tentativas de

redefinir a questão da legitimidade política" (44).

Para Pécaut, no Brasil dos anos 20, os projetos intelectuais eram

inseparáveis da vontade de contribuir para fundamentar o cultural e o político de uma

forma diferente. "Tudo estava em jogo ao mesmo tempo". (45) E, nessa perspectiva de que
os planos se mostram indissociáveis, a referência de análise pode se deslocar da

identificação de dimensões mais ou menos explicativas do comportamento individual e

coletivo dos "homens de imprensa" para a construção de um sistema de significações - a

cultura política de Pécaut - que pode ser postulada como provável orientadora da prática

social dos agentes.

Essa indistinguibilidade dos planos cultural e político transforma

necessariamente a atuação dos intelectuais nos anos 20, 30 e 40 no processo de

emergência de um ator político, na gênese de uma intelligentsia, conforme analisa

(43)
Daniel Pécaut, Os intelectuais e a política no Brasil, São Paulo, Ática, 1990. p.17.
(44)
Idem, p.335
(45)
Por outro caminho, esta reflexão é realizada por Renato Ortiz quando analisa o que chama de incapacidade de
autonomização do campo cultural no início do desenvolvimento capitalista no país. Ver Renato Ortiz, A moderna
tradição brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1988.
51

Luciano Martins. Em torno dessa categoria talvez possamos indicar outras dimensões

que dêem conta da ação empreendida no âmbito da imprensa de Belo Horizonte.

A origem do termo intelligentsia, segundo Martins, é controversa,

remetendo sempre à identificação de intelectuais em contextos políticos diferentes, e

sua utilização comum para designar coisas diferentes. (46) O autor indica as balizas

fundamentais para tratamento do tema e compreensão da ação dos intelectuais no início

do século. Numa crítica e refinamento da concepção de intelligentsia formulada por

Gella, o autor afirma ser correto apontar a existência "na intelligentsia de um

sentimento de não identificação com a sociedade tal como esta se apresenta, o que pode

traduzir-se por uma rejeição ao status quo e constituiu a fonte do desejo de transformar

tal sociedade". (47) Seria, pois, uma forma de alienação situada no domínio do subjetivo e

não um fenômeno objetivo como sugere Gella. "Quer dizer: não ditada por qualquer

posição objetivamente ocupada na escala social, mas pela decalagem pressentida ou

vivida entre, de um lado, a sociedade desejada a partir de uma certa visão de mundo e,

outro, a sociedade tal como se apresenta, a sociedade 'real'". A formação dessa visão de

mundo pode envolver a vontade de mudança na escala social ou o desejo de

reconhecimento pela sociedade da condição de intelectual. Mas não pode ser explicada

apenas por estas motivações já que, em geral, os membros da intelligentsia vêm de


camadas superiores e possuem uma espécie de imperativo ético, um sentido de missão

que normalmente atribuem à sua ação. Sua visão de mundo, baseada num sistema de

valores onde há uma deontologia do ofício intelectual, é que provocaria sua não

conformidade com as regras sociais estabelecidas não sendo, pois, adequado explicar a

ação da intelligentsia a partir da idéia de discriminação social, posto que isto implicaria

restringir valores a interesses.

Martins compartilha da idéia de que a intelectualidade não se constitui

necessariamente em um estrato social particular distinto de outros setores.

(46)
Luciano Martins, A gênese de uma intelligentsia - os intelectuais e a política no Brasil (1920-1940), RBCS, nº4,
volume 2, São Paulo, junho/1987. A concepção de Luciano Martins, embora com terminologia semelhante, afasta-se
da noção de intelligentsia desenvolvida por Mannheim, aproximando-se mais da própria idéia de produtores culturais
de Williams.
(47)
Idem, p.68.
52

Competências específicas e uma socialização comum tendem a criar afinidades entre os

membros de uma intelectualidade que se sobrepõem mesmo às suas divergências.

"Normalmente, esses laços comuns, esse sentimento de pertencer a um certo 'nós', se

traduzem em símbolos próprios, numa linguagem e em hábitos mais ou menos

compartilhados, por intermédio dos quais os membros da intelligentsia se reconhecem e

são reconhecidos enquanto tais". (48) Esses princípios de auto-identificação podem criar

uma espécie de "clã", mas não configuram condição suficiente para a existência de um

estrato social. Tal aspecto não impede, porém, a abordagem da intelligentsia sob a

perspectiva de um sujeito coletivo.

Numa reanálise do caso russo de formação de uma intelligentsia, Martins

infere alguns traços gerais para dar conta do fenômeno dos intelectuais: conteúdo

utópico do seu pensamento; auto-atribuição da liderança moral e/ou da representação

dos direitos de camadas politicamente afônicas; visibilidade devida mais à posição

única de seus membros do que propriamente sua constituição em estrato social,

incompatível com seu número restrito; sentimento de impotência, só suplantado por um

ato de vontade, pelo sentimento de missão, de fundamento ético.

A elite cultural brasileira desde a virada do século, marcada pela

ausência de um projeto próprio, possui dois tipos sociologicamente distintos de


intelectuais. Em primeiro lugar, o bacharel, doutor, expressão de uma boa condição

social e um tipo de "cultura ornamental". Foram os primeiros a denunciarem uma ordem

social excludente em nome de uma ética intelectual. E, em segundo, os que se queixam

da sua condição, "são os precursores de, ou já pertencem a, um outro tipo sociológico e

experimentam as transformações de um capitalismo nascente. São os que não se limitam

mais a mirar-se apenas no espelho do 'mundo civilizado', se bem que ainda sejam

seduzidos por ele. São também os que se consagram à criação literária, às primeiras

experiências científicas, ao jornalismo literário mais sofisticado (...) e à busca de

explicação da especificidade da sociedade nacional".

(48)
Idem, p.68.
53

O isolamento vivenciado por esta elite intelectual não tem a ver com

discriminação social dos intelectuais (havia certa porosidade entre as camadas urbanas

dominantes) nem a um vazio social. Para o autor, o sentimento de isolamento origina-se

no fato de que a intelectualidade a) vivia num país de analfabetos, sem um público e um

mercado, justamente num momento em que os valores capitalistas começavam a

penetrar fortemente o mundo urbano e b) operava num campo cultural ainda dominando

pela cultura ornamental, com pouco espaço seja para o pensamento abstrato, seja para o

conhecimento instrumental. O período dos anos 20 e 30 marca exatamente uma

intervenção clara do chamado setor intelectual na reestruturação dessa realidade.

"Durante os anos 20, o Brasil, como se sabe, passa por transformações culturais,

políticas, econômicas e sociais cuja importância é unanimemente reconhecida. Os

centros urbanos, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo, conhecem nessa época uma

efervescência cultural e política sem precedente. É no eixo das relações ambíguas entre

esses dois domínios (o cultural e o político) que a intelligentsia buscará não mais seu

status, mas sua identidade social". (49)

Poderíamos, corroborando e particularizando a tese de Luciano Martins,

indicar que a movimentação no espaço da imprensa de Belo Horizonte nesse período é

resultado de um processo de construção de uma identidade social por parte da


intelectualidade. As iniciativas de criação de periódicos diários, a colaboração e o

trabalho nos jornais da cidade, ajudam a criar um sentimento de pertença aos indivíduos

e grupos que buscam o reconhecimento como intelectuais. A auto-atribuição de

liderança moral e o sentimento de agir em função de imperativos éticos, manifestos

pelos "homens de imprensa" da cidade, respondem por esse processo de instituição de

uma identidade social. Assim como também as manifestações queixosas acerca da

atividade profissional na imprensa, por um lado, complementam essa mesma dinâmica

e, por outro lado, revelam a sensibilidade desses indivíduos impactada pelas mudanças

que se verificam no plano cultural da sociedade, onde a crescente expressão de valores

(49)
Idem, p.75.
54

capitalistas de organização social não se faz acompanhar de desenvolvimento material

que assegure sua plena realização.

Dessa forma, apesar da participação política notória dos intelectuais, sua

presença mais marcante inicialmente tem a forma de ação cultural. A preocupação

inicial da intelectualidade jovem é a constituição de sua identidade, social e cultural. A

renovação cultural empreendida é o momento de construção dessa identidade, na sua

ligação com a modernização do país. É o que nos diz Fernando Correia Dias tomando

como referência os modernistas mineiros. Ele indica como sua ação cultural e política é

característica de um movimento abrangente de renovação ocorrido na década de 20

onde a atmosfera intelectual marcante era o anseio de participar e criar inovadoramente

em todas as áreas. (50) A nosso ver, aspectos que ajudam a explicar o processo de coesão

do grupo modernista - atividade comum do jornalismo e emprego público; interação via

atualização de influências recíprocas nos bares, cafés e livrarias - podem ser, de certa

forma, generalizadas para os "homens de imprensa".

De toda forma, as disjunções da utopia com a realidade social do país,

segundo Martins, vão marcar o pensamento intelectual da época com a idéia de atraso,

estreiteza dos espíritos. "Daí certamente seu sentimento de impotência e também a

ambivalência de sua atitude, feita de esperança e desespero, em face desse país cujo
potencial para a mudança eles saúdam, ao mesmo tempo em que deploram as

dificuldades para realizá-la". (51) Veremos em que medida ocorre a explicitação dessa

dinâmica no espaço da imprensa belo-horizontina mais à frente, quando discutirmos as

guias mestras que orientam as práticas dos "homens de imprensa" da cidade. O que nos

importa neste momento é indicar a relação que, política por excelência, os intelectuais

estabelecem com o plano cultural da sociedade. Martins conclui que "para a

intelligentsia, estruturar o espaço cultural significava a possibilidade de criar

instituições modernas, abertas ao espírito de renovação e de pesquisa; e, num outro

registro, instituições capazes também de tirá-la do isolamento, de difundir sua

(50)
Fernando Correia Dias, Os modernistas e a cultura regional, mimeo, s/d.
(51)
Luciano Martins, op.cit.p.80
55

mensagem e de criar um 'mercado', não necessária ou exclusivamente no sentido

econômico do termo, mas também no sentido de um lugar onde se intercambiam idéias.

Em suma, os loci para a fundação, reconhecimento e a expansão de sua identidade

social, e mesmo de sua "missão" na sociedade". (52)

Poderíamos ver na (re) articulação da imprensa na cidade, na dinâmica

instaurada pelo surgimento de jornais diários na Belo Horizonte dos anos 20 e 30, a

busca de definição deste "lugar"? Para isto teremos que buscar os traços balizadores

fundantes deste sistema de significações que impregna os produtores culturais e tornam

a experiência do fazer imprensa um desejo, uma "fantasia" de que eram possuídos seus

protagonistas.

(52)
Idem
56

3. Inconvictos escribas de novos senhores

"O fraque do diretor,


a bengala do diretor,
a paixão atleticana do diretor,
a importância amável do diretor
surgem infalíveis às 8 e meia,
indagam protocolarmente:
- Alguma novidade?
Deu destaque ao aniversário do Presidente?
Sai o retrato dele em três colunas
no alto da primeira página?
No centro da página, é claro?
Não precisa noticiar a partida do Deputado Leleco.
Não está em boas graças no Palácio.
Bem, até amanhã.
Veja lá, Drummond, eu confio em você."
(O Senhor Diretor, Carlos Drummond de Andrade)

Diz-se que na Belo Horizonte dos anos 20 a Rua da Bahia, espelho do

desenvolvimento urbano e coração intelectual da cidade, era o caminho que conduzia ao

governo e ao poder. (1) E com a imprensa não seria diferente. As redações dos jornais,

sempre em torno desse centro nervoso da capital, também marchavam de acordo com a

orientação política que subia Bahia rumo ao Palácio da Liberdade ou engrossava o coro

dos que, de fora desse cortejo, sonhavam com ele. Além disso, junto com a discussão

literária ou a conversa dos cafés, a rua da Bahia dos periódicos da capital significava,

também, uma conexão entre cultura e política que alimentava o debate sobre a

participação mineira na construção do ideal da nação.

Os interesses políticos eram, pois, o mote, mostravam-se inegavelmente

como detonadores do processo de reorganização e criação de empreendimentos

jornalísticos na Belo Horizonte dos anos 20 e 30. O jornalista e escritor modernista

(1)
"Voltemos à Rua da Bahia dos anos 20. Era lá o caminho do Governo, que ficava no alto, na Praça da Liberdade,
dominando a cidade dos estudantes e burocratas, tão diversa da de hoje", relembra Carlos Drummond de Andrade em
Tempo, vida, poesia., Rio de Janeiro, Record, 1986, p.61. O registro literário é pródigo na construção dessa imagem
e vale citar pelo menos o envolvente relato memorialístico de Pedro Nava, Beira-Mar. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1985. Para uma análise da atmosfera intelectual e política que envolvia a rua da Bahia na década de 20 ver
a tese de doutorado de Helena Bomeny, Mineiridade dos Modernistas. A república dos mineiros. Rio de Janeiro,
Iuperj, 1991.
57

Guilhermino César, que aportou na cidade no fim de 1927, vindo de Cataguases, e logo

despontou dentre os literatos e, o que era quase a mesma coisa, no grupo do jornalismo

local, relembra sua experiência no Estado de Minas, pouco depois de sua chegada.

César anota que o novo jornalismo do período não deixa de irromper de uma "crisálida

política". Demonstra-o o privilégio que a cobertura dos fatos da política usufrui em

todos os jornais: nacional ou local, a movimentação dos políticos é, sem exceção, tema

de primeira página na produção jornalística dos diários da cidade. Pronunciamentos,

polêmicas, decisões e discussões na Câmara dos Deputados, ações e acontecimentos em

torno do executivo estadual eram objeto da atenção dos jornais, merecendo acolhida

generosa nas páginas principais de todas as edições.

Obviamente, contemporâneos da dinâmica político-social daquele

período histórico, todos os periódicos se apresentam aos leitores destacando qual o seu

posicionamento em face da movimentação política vivida pelo país no declinar da

chamada República Velha e da deflagração da Revolução de 1930 e seus

desdobramentos nos anos subsequentes. Em Minas, particularmente, a situação

marcava-se na segunda metade dos anos 20 por um governo com "ares" liberais um

pouco diferentes do estilo político das oligarquias então no poder. O presidente Antônio

Carlos, que esteve à frente do executivo estadual no período 1926-30, dá um tom


"moderno" à sua administração, instituindo inovações como o voto secreto. (2) Não são

somente as circunstâncias políticas e sociais do momento, porém, que nos oferecem os

quadros de referência para compreensão da situação de efervescência vivida pela

imprensa local.

Nossos protagonistas, em nenhum instante de seu discurso, negarão estas

relações estabelecidas entre o fazer da imprensa e a atividade política. Sua enunciação

será mesmo fundamental para justificar o aparecimento de jornais ou as mudanças nos

diários de Belo Horizonte no período em foco. A interface imprensa/política, todavia,

aparecerá em suas falas não mais como uma condição natural, e sim um problema a ser

(2)
Sobre o significado do governo Antônio Carlos e algumas das mudanças implementadas no estado ver John Wirth.
Minas: o fiel da balança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982 e As constituintes mineiras de 1891, 1935 e 1947; uma
análise histórica. Belo Horizonte, Assembléias Legislativa do Estado de Minas Gerais, 1989.
58

equacionado. Sempre reivindicando condições ou exigindo requisitos que assegurem a

combinação adequada das duas atividades, os "homens de imprensa" expressam uma

preocupação latente com as relações do campo político e o espaço do jornalismo diário

na capital.

Tal fato nos permite, pois, indagar sobre a natureza da metamorfose

experimentada pela imprensa ao ganhar o mundo para além do casulo da política que

abriga seu desenvolvimento inicial, conforme sugeriu Guilhermino César. Com isso,

pretendemos verificar não o vôo efetivamente alçado pelo periodismo da época mas que

asas lhe sustentam o sonho de abandonar a morada original. Ou seja, interrogar os

"homens de imprensa", através de seu discurso, acerca da experiência de mudança e

instituição do que percebem como uma prática renovada no âmbito da imprensa nos

seus laços com o campo político. Nesse sentido, aspectos e traços da realidade da

política local e nacional, naquele momento, aparecem como recurso, uma espécie de

pano de fundo contra o qual se projetam e onde também refletem-se representações dos

agentes acerca da evolução vivida pela imprensa belorizontina.

Como dissemos, o processo político em curso e a experiência política

vivida pelos indivíduos naqueles anos funcionam como o combustível, o detonador das

mutações ocorridas na esfera da imprensa. Pode-se dizer que do final da Primeira


República ao início do Estado Novo, Minas vive uma espécie de transição na sua

estrutura de poder político. De um sistema baseado na dominação unipartidária, que

chancela o controle dos mecanismos de mediação e das agências de poder público pelas

oligarquias, passa-se a um novo contexto onde diversas questões impõem uma

redefinição da situação política local. Um dos pontos importantes que convém ressaltar

é o período de atuação de Antônio Carlos Andrada à frente do governo estadual. A

administração carlista representou, em alguma medida, uma oxigenação na tradicional

política mineira. A grande presença de uma jovem intelectualidade, sobretudo os

chamados modernistas, na órbita do executivo conferiu a este uma faceta liberal e abriu

portas para uma certa modernização institucional. O período Antônio Carlos é, em

geral, apontado como reformista e intervencionista em suas políticas públicas, com


59

destaque para o setor de educação, de certa forma antecipando-se às pressões sociais por

mudanças da época. (3) Vale destacar também importantes repercussões sócio-políticas

resultantes do movimento revolucionário de 30. A criação de um sistema

multipartidário, readequação necessária para que se conduzam os complexos interesses

e problemas estaduais frente à nova realidade federal, pode, em princípio, ter

respondido por algum estímulo às movimentações no plano editorial. Assim como a

emergência de novos pólos de agregação ideológica, resultado de processos tais como a

urbanização e industrialização, engendram outros agentes políticos que, certamente,

podem ter procurado na imprensa um canal de defesa pública de seu ideário.

O exame da trajetória singular de alguns dos personagens estruturadores

de iniciativas no campo editorial é ponto de apoio para elucidação da dinâmica que

assume o periodismo da capital mineira na sua relação com a política. Afonso Arinos de

Melo Franco, já atuante na política estadual, após passagem pelo jornal Diário de

Minas, órgão do Partido Republicano Mineiro, em 1927, assume um cargo de direção

na empresa editora dos Diários Associados, à frente do Diário da Tarde e do Estado de

Minas. E o faz na condição de representante de um grupo político, como ele mesmo

caracteriza em seu livro de memórias A Alma do Tempo: ocupava posição no jornal

para defender a candidatura de Virgílio Melo Franco como interventor do governo


Vargas em Minas. (4) Em 1934, Arinos deixa os Diários Associados por divergências

políticas e monta um jornal de oposição, a Folha de Minas, ao governo estadual, cujo

interventor indicado havia sido Benedito Valadares.

O objetivo de intervir na política também aparece como a mola

propulsora da fundação do Diário do Comércio em 1927. Cyro dos Anjos é quem

rememora:

"logo veio, como oferta de novembro, um lugar de


repórter no `Diário do Comércio`, fundado pela Associação Comercial,

(3)
Uma das poucas exceções a um balanço geral positivo do governo Antônio Carlos é de Barbosa Lima Sobrinho, A
verdade sobre a Revolução de Outubro de 1930. São Paulo, Alfa ômega, 1975.
(4)
Afonso Arinos de Melo Franco. A alma do tempo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975. p.301
60

que, bem sucedida em recentes arremetidas na política, parecia cobiçar


maior fatia de poder." (5)

O diário ponteiro da chamada imprensa moderna em Belo Horizonte, o

Correio Mineiro, de 1926, participou ativamente da campanha a deputado em 1927,

como vimos no capítulo segundo deste relato, apoiando candidatos de forma declarada.

Também cerrou fileiras em torno do então presidente de Minas, Antônio Carlos, já nas

primeiras rusgas e entreveros da oligarquia política mineira com o executivo federal no

processo que seria um dos afluentes a desembocar no movimento revolucionário de

30. (6)

As evidências da presença de motivações políticas na movimentação

vivida pela imprensa da cidade nas terceira e quarta décadas deste século poderiam se

estender à história de vários outros periódicos da época e não constituem efetivamente

novidade na seara das relações imprensa/política. José Mendonça, em uma das raras

reflexões que põem em tela a imprensa da capital nesse período, oferece-nos um painel

acerca dessa realidade. (7) Já numa análise de contexto mais amplo, estudos clássicos da
historiografia nacional situam esta fase do periodismo local como momento de

transição. Migra-se de uma imprensa dependente diretamente da práxis política de

diferentes grupos para aquela de publicação de periódicos com característica


predominantes de negócios empresariais lucrativos. É o que afirma Nelson Werneck

Sodré, para quem desde a virada do século XIX a imprensa nacional vive um momento

de evolução da chamada pequena à grande imprensa.

"Os pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas


tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com estrutura
específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de
sua função. Se é assim afetado o plano da produção, o da circulação
também o é, alterando-se as relações do jornal com o anunciante, com a
política, com os leitores. Essa transição começara antes do fim do
(5)
Cyro dos Anjos. A menina do sobrado. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. p.330
(6)
Sobre as raízes da Revolução de 30 ver, entre outros, Boris Fausto. A revolução de 30: história e historiografia.
São Paulo, Brasiliense, 1972.
(7)
José Mendonça. A imprensa de Belo Horizonte na fase revolucionária (1925-1937). VI Seminário de Estudos
Mineiros. Belo Horizonte, UFMG, 1987. p.45-82. Humberto Werneck em O desatino da rapaziada. São Paulo,
Companhia das Letras, 1992. nos oferece também um crônica desse período expondo informações diversas acerca
das origens políticas de diferentes empreendimentos editoriais.
61

século, naturalmente, quando se esboçara, mas fica bem marcada


quando se abre a nova centúria. Está naturalmente ligada às
transformações do país, em seu conjunto, e, nele, à ascensão burguesa,
ao avanço das relações capitalistas: a transformação na imprensa é um
dos aspectos desse avanço; o jornal será, daí por diante, empresa
capitalista, de maior ou menor porte. O jornal, como empreendimento
individual, como aventura isolada, desaparece, nas grandes cidades." (8)

Essa tese é, nos seus fundamentos, um desdobramento de uma

interpretação da história da imprensa no Brasil que a vê como objetivação de uma

totalidade maior. Tal modelo teórico identifica o desenvolvimento do jornalismo

nacional pari passu com a evolução de uma sociedade de tipo capitalista, ainda que

obedecendo obviamente a ritmos e dinâmicas específicos de acordo com o grau de

desenvolvimento sócio-econômico de cada região do país e com a particularidade da

inserção da sociedade nacional na ordem capitalista mundial. (9) Essa perspectiva é

tributária de uma matriz explicativa escorada em um certo modelo histórico de

desenvolvimento do jornalismo. O fenômeno da imprensa teria experimentado três fases

distintas, combinadas diferentemente de acordo com as particularidades histórico-

sociais de cada sociedade: 1) num primeiro momento uma imprensa de informação,

subordinada às necessidades de expansão do sistema de troca de mercadorias; 2) evolui

para a chamada imprensa de opinião, também nomeada de fase do "jornalismo

literário"; seria quando os jornais deixam de ser apenas instituições publicadoras de

avisos para se tornarem porta-vozes e condutores da chamada opinião pública, meios de

luta política partidária e de construção de uma esfera pública burguesa; e, por fim, 3) a

imprensa se assume como empresa comercial voltada para o lucro, um empreendimento

baseado nos interesses econômicos privados. (10)


(8)
Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, pp.315. Essa
concepção encontra outro expoente em Juarez Bahia. Jornal, história e técnica - história da imprensa brasileira. São
Paulo, Ática, 1990. Uma visão mais matizada, porém caudatária dessa perspectiva teórica pode ser encontrada em
Francisco Rudiger. Tendências do jornalismo. Porto Alegre, Editora da Universidade, 1993.
(9)
Alguns elementos dessa discussão estão em Renato Ortiz. A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense,
1985.
(10)
Tal modelo que enquadra o desenvolvimento da imprensa em três fases é compartilhado, com diferentes ênfases
analíticas, por diversas correntes teóricas de análise do fenômeno do jornalismo. Nos quadros de referência de uma
análise que combina elementos de concepção histórica marxista e weberiana ver o trabalho de Jurgen Habermas.
Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984; e numa perspectiva caracterizada
como de matiz funcionalista o trabalho do americano Robert E. Park. The natural history of the newspaper, in:
Robert E. Park e Ernest W. Burgess, The City, Chicago, Chicago Press, 1967, p.80-98.
62

A simples adaptação desse esquema teórico ao nosso caso nos induziria a

olhar para a então imprensa da cidade como que volteando no interior de um momento

de transição, entre a primeira e segunda República. Momento este que prepararia seu

ingresso definitivo na era dos chamados empreendimentos empresariais. Buscar-se-ia,

dessa forma, verificar na capital mineira um processo de abandono paulatino de uma

imprensa produzida em termos "artesanais" e voltada para dar divulgação às disputas

políticas entre grupos locais/nacionais rumo a uma, ainda que incipiente, fase

"industrial". As características principais dessa etapa seriam a organização da atividade

jornalística sob a forma de empresa com estrutura comercial, destinada a vender

informação, marcada pela crescente divisão do trabalho, atraindo capitais e alterando

suas relações com o anunciante, leitor e a atividade política, até então motor

fundamental para a manutenção dos jornais. Tais mudanças que se insinuam na

imprensa mineira estariam, retardatariamente, devido às condições sócio-culturais e

econômicas de Belo Horizonte, em consonância a um movimento ocorrido em centros

como Rio de Janeiro e São Paulo já na virada do século: se a preocupação central dos

jornais ainda é o fato político, eles agora não se voltam tão incisivamente para as

disputas políticas imediatas. Estruturados como empreendimentos comerciais,

buscariam transitar de uma base de sustentação alicerçada em subsídios provindos dos

grupos que conduzem a política e, em geral, dirigem o Estado no sentido do capital que

se apresenta através do crescimento de um mercado publicitário, da ampliação paulatina

do público leitor e do alargamento da margem de lucro obtida pelos incrementos

tecnológicos. A imprensa da capital, mesclando características das segunda e terceira

fase desse modelo de desenvolvimento, poder-se-ia dizer, caminhava rumo a sua

modernização como prática econômica, cultural e social.

Contudo, nossa orientação aqui é diversa. Não pretendemos interpretar a

movimentação que ocorre na prática do jornalismo na capital como mera derivação de

interesses extra-imprensa, pertinentes tão somente a um campo político daquela

sociedade. Interesses estes que a partir de um dado momento resultam insuficientes para

conduzir a prática do periodismo em consonância com um desenvolvimento sócio-


63

econômico verificado na cidade. Tampouco olhamos para essas mudanças que ocorrem

na esfera da imprensa apenas como resultado de determinações das relações políticas

protagonizadas pelos atores sociais, e que se desagregavam em face do robustecimento

de uma lógica mercantil na operação dos negócios do jornalismo. A nosso ver essa

perspectiva aparenta uma desqualificação prévia de elementos outros, que não fatos

"econômicos" ou "políticos", constitutivos da experiência dos indivíduos na atividade

jornalística na cidade. Será que não poderíamos tomar a atividade da imprensa também

como instituinte de novas realidades almejadas pelos projetos intelectuais em gestação

no Brasil nos anos 20 e, nesse sentido, como nos mostra Daniel Pécaut, inseparável da

vontade de contribuir para fundamentar de forma diferente o espaço do cultural e do

político?

"Tudo estava em jogo ao mesmo tempo. Instituição


alguma escapou à necessidade de assumir uma nova legitimidade: tanto
a Igreja como o Exército, tanto o Estado como os estabelecimentos de
ensino superior. A intervenção política dos intelectuais inseriu-se numa
conjuntura de recriação institucional". (11)

Talvez esta possa ser uma "picada" que abra caminho para um

entendimento mais largo das mudanças na relação imprensa/política desencadeada na

Belo Horizonte da década de 20. Tentaríamos fugir assim de uma causalidade estreita

para situar as movimentações editoriais que ocorrem também como parte de uma

experiência que, apesar de comparável com a de outras sociedades e assentada numa

determinada tradição do fazer imprensa, não é a mera reiteração ou simples identidade

de um modelo já constituído e possui um ineditismo efetivo na sua manifestação no

cenário social.
Nesse sentido, seria interessante retornarmos aos breves trajetos,

relacionados há pouco, de diários da capital mineira que se constituem e reorganizam

"movidos por interesses políticos". Podemos, em alguma medida, tentar verificar se um

algo mais não transborda da idéia de que o fato político é o condutor fundamental

(11)
Daniel Pécault. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo, Ática, 1990. p.22
64

desses processos. Afonso Arinos Melo Franco, dizíamos, galgava posto de direção no

Estado de Minas por acertos entre os indivíduos que operavam na política local e

nacional após o desfecho do movimento constitucionalista de 1932, capitaneado pelas

elites de São Paulo. O acordo feito com a direção da empresa editora, pertencente a

Assis Chateaubriand, (12) permitia, como forma de esta fugir às represálias do governo

federal pelo seu apoio aos paulistas, que os seus jornais mineiros servissem à política

adotada por Virgílio de Melo Franco no Estado. Em resposta, o governador Olegário

Maciel, mobilizando os intelectuais do governo, organizou o diário A Tribuna. (13)

Entretanto, nos diz Afonso Arinos em suas memórias, Chateaubriand lhe determinara

que sua participação nos jornais se restringisse à orientação editorial do material que

abordava os fatos do mundo político. A atuação de Arinos não poderia implicar nenhum

tipo de ingerência financeira na vida dos periódicos. O registro do autor pode parecer, à

primeira vista, de menor importância: presença na orientação política sim, os negócios

do jornal ficam de fora. Ora, a direção do Estado de Minas admite, ao negociar

mudanças de orientação política do jornal alterando sua direção, que o diário tem sua

atividade organizada pelos interesses do sistema político, com este ainda mantém

ligações orgânicas. Todavia há uma esfera dos negócios - que neste caso diz respeito a

toda a dinâmica e atividade jornalística que não aquela ligada aos compromissos

políticos previamente acertados - que parece independer em algum grau dessa

orientação. Poderia supor-se, acompanhando a análise histórica corrente acerca da

imprensa nacional, tratar-se de um momento de mescla onde, de um lado, prevaleciam

os contornos de um novo regime jornalístico em ascensão. Marcado pela prevalência de

matérias noticiosas acerca do cotidiano sobre artigos políticos, novos padrões de

acabamento gráfico e peso do departamento comercial que angariava os anúncios

publicitários, convencionou-se qualificar esse patamar editorial como o do processo de

modernização da imprensa brasileira e expressão tendencial da chamada "terceira fase

do jornalismo". De outro lado, evidenciavam os estertores de uma imprensa

(12)
Os jornais de Belo Horizonte formaram o terceiro pilar do que viria a ser conhecido como império jornalístico de
Assis Chateaubriand. Ver Renato Ortiz op.cit.
(13)
Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. p.435
65

abertamente político-partidária, calcada na ação organizada de grupos e indivíduos.

Contribuiria para acelerar tal "transição" o próprio fato de os jornais Estado de Minas e

Diário da Tarde fazerem parte, em Minas, de uma incipiente cadeia jornalística que se

constituía nacionalmente, os Diários Associados. Com isso, ao menos das disputas

políticas regionais, os periódicos poderiam guardar certa autonomia.

Rüdiger trabalha nessa linha de análise ao afirmar, referenciado na

história do jornalismo do Rio Grande do Sul, que o novo regime jornalístico que se

afirma a partir dos anos 30 naquele estado, seguindo o processo que já se presentificara

nos dois principais centros do país, Rio de Janeiro e São Paulo, não perde seu caráter

político.

"Essa metamorfose verificada no jornalismo não lhe tirou


o aspecto político; a conquista da autonomia frente o campo político
não significou sua perda, mas uma mudança de forma. A nova empresa
jornalística é uma agência política que apenas não expõe seu nome". (14)

A política, na conversão do jornalismo, dentro dessa visão, parece

manter intacta sua natureza, sua integridade enquanto prática social específica. Agora

apenas resta também dissimulada no interior das novas formas de existência e atuação

da imprensa. Por seu turno, as mutações no fazer jornalístico, se alteram profundamente

sua dinâmica e prática, aparecem como insuficientes para redefinir sua legitimidade

social, que permanece derivada de um outro campo de ação. No caso em tela, a

distinção, no jornal Estado de Minas dos anos 20, de uma esfera "política" e outra de

"negócios" seriam representação desse fenômeno. Enquanto locus de práticas

diferenciadas, "política" e "negócios de imprensa" manteriam entre si, por um lado, uma

autonomia quanto à lógica de funcionamento e objetivos a cumprir e, por outro,

reafirmariam a subordinação da atividade jornalística à práxis política. Há uma ação

eminentemente política conduzindo a linha do periódico e outra voltada para reproduzir

os padrões de produção previstos pela chamada renovação jornalística.

(14)
Rüdiger, op. cit. p.64
66

Mas, a nosso ver, não parece ser apenas esta a perspectiva produzida e

organizada pela sensibilidade dos "homens de imprensa" de Belo Horizonte e a ser

inferida de seu discurso. A menção feita por Afonso Arinos, de que sua presença na

direção do jornal Estado de Minas estaria circunscrita a uma determinada atividade, não

significa somente o detalhamento de seu relato memorialístico acerca daquele

acontecimento. É certo que o autor não faz nenhuma reflexão específica sobre a

questão. Mas seu "silêncio" acerca de um fato seminal para a atividade política à época

pode ser considerado revelador - afinal as mudanças na relação política/imprensa

evidenciavam que a práxis política não controlava mais na totalidade o sentido da

prática do periodismo. Ao invés de um apego nostálgico a uma situação que mudava

rapidamente, ou mesmo a suposta "denúncia" de que a política tornava-se atividade

menor em face da imprensa, a indiferença de nosso protagonista pode significar uma

percepção original. Talvez a separação entre a "política" e o "negócio" no jornal não

implicasse, na visão deles, nem uma dissociação entre imprensa e política, como

aparece à nossa primeira observação, mas nem tampouco uma subordinação, em nova

forma, da primeira à segunda atividade. Seu silêncio pode indicar que, nos quadros de

referência simbólica da época, os novos nexos que ligam imprensa e política emergem

juntamente com uma nova imaginação que organiza a percepção dessa porção da

realidade. "Negócios" e "política", práticas que o pensamento social costuma indicar

como de crescente distinção a partir desse processo, aparecem sim como diferentes,

redefinem sua natureza e redefinem-se uma a outra. Permanecem, porém, inseparáveis

para os "homens de imprensa". Em que termos eles perceberiam a "porosidade" entre

ambas nessa relação?

Falar de imprensa, ali e naquele momento, tem, sim, novo enfoque.

Afonso Arinos constrói sua lembrança da imprensa da capital em torno de pelo menos

dois pilares. Ao deixar os jornais dos Diários Associados, o político e jurista, rememora,

resolveu investir sua experiência editorial na criação do que chamou de "jornal

moderno" para a capital de Minas Gerais. Fundada em 1934, a Folha de Minas, apesar

da clara motivação política, é vista por ele como um jornal que, antes de tudo, renovou
67

a técnica da imprensa mineira. "A 'Folha de Minas' foi, sem dúvida, um sucesso

intelectual e, até certo ponto, um êxito jornalístico", garante. (15). Um jornal, fundado em

função da atividade política, parece ter como critério central de avaliação seu

desempenho jornalístico. Não se trataria, pois, de uma redução do espaço da política

mas talvez da percepção de uma ampliação do que concerne à ação do jornalismo.

Mesmo com a inevitável proclamação de princípios e o destaque da

cobertura de política nos jornais, as falas dos jornalistas da época parecem não referir-se

mais à mesma "realidade" da imprensa até então conhecida ou convencionada. De que

se trata, afinal, quando o assunto é imprensa e política? Vejamos as palavras dos nossos

protagonistas.

O Estado de Minas, em editorial de fundação já no ano de 1928,

proclama que a cidade carecia de um jornal "afastado da dependência do governo". (16)

Governo aqui representa a política em geral já que nesta época não havia como fazer

menção à ordem política sem voltar-se para o poder central de Estado. (17) Reivindica-se,

no caso, o afastamento da dependência dos jornais da vida política no sentido de que o

periodismo não se apresente subordinado ao campo do poder político. Não subalterna,

porém sem romper os liames que a fazem política, a imprensa tem que legitimar novos

sentidos de "político" à sua atividade.

"De há muito se reconhece a necessidade de uma grande


folha diária que na capital e no Estado defenda os interesses legítimos
das classes que trabalham e produzem - a lavoura, a indústria e o
comércio.
O valor que já têm na vida econômica do Estado essas
três manifestações da atividade mineira estava em flagrante contraste
com o silêncio em que viviam, sem um órgão que fizesse ouvir, nos
momentos decisivos, a sua voz indispensável na resolução dos grandes
problemas". (18)

(15)
Afonso Arinos, op.cit. p.339.
(16)
Editorial. Estado de Minas. 16 de julho de 1927. p.1
(17)
Para uma discussão sobre os enfoques que privilegiam ora a primazia da sociedade na estruturação do poder
político, ora a prevalência do Estado em sua capacidade de plasmar a sociedade e os interesses políticos, ver Eli
Diniz e Renato Boschi. O corporativismo na construção do espaço público. In: Renato Boschi (org.). Corporativismo
e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Fundo/Iuperj, 1991.p.11-30.
(18)
O Estado de Minas. Estado de Minas. 7 de março de 1928. p.1.
68

Mas não significa, à primeira vista, tratarem-se os jornais de meras

correias de transmissão de opções político-partidárias como era tradicional na imprensa

periódica de até então. Afinal, ao menos do ponto de vista da enunciação, há um novo

"sujeito" patrocinando a fabricação de jornais. Antes os grupos políticos afirmavam-se

em público via imprensa e agora, ainda que obviamente vinculados a grupos e interesses

políticos, são, a princípio, os representantes da "lavoura", "comércio" e "indústria" que

anunciam a importância de sua manifestação pública, para o restante da sociedade. (19)

Aqui registra-se já uma nuance ante a idéia tradicional da imprensa político-partidária,

já que esta tinha como referência projetar a opinião tornada pública de atores que

atuavam com vistas a uma esfera eminentemente política, de trânsito de sujeitos

políticos. A defesa desses interesses parece requerer não só algumas mediações como a

da imprensa, como estes mesmos interesses se afirmam dotados de uma outra natureza.

Uma certa duplicidade do papel da imprensa pode ser inferida. Há agentes que

reivindicam, por um lado, um "portador" do seu ponto de vista para torná-lo público. Da

mesma forma existe o reconhecimento tácito de um outro interlocutor, não

necessariamente presente à esfera pública tradicional, que necessita conhecer essa

opinião e o jornal, nesse caso, é também um espaço que viabiliza esse contato.

Não é, contudo, qualquer periódico que pode cumprir tal função:

"Para defender com altivez os interesses gerais, o jornal


não pode ser partidário, nem mesmo político no sentido usual dessa
palavra entre nós, pois que política é sinônimo de personalismo, e não
de idéias.
Não teremos ligações nem dependência com os governos
mas encararemos sem prevenções injustas os homens incumbidos da
administração. Procuraremos julgar os fatos e as pessoas de um ponto
de vista elevado, sereno, principalmente justo". (20)

Era necessário, pois, romper com o tratamento tradicional dispensado à

política, segundo proclama o articulista. Partidária a imprensa que se inaugura não


(19)
Uma análise interessante a se fazer seria verificar em que medida podemos tomar essa "ampliação" dos atores que
conduzem o negócio da imprensa como expressão de uma ação política da burguesia mineira organizada, nos termos
propostos por Otávio Soares Dulci em Empresariado e política em Minas Gerais, Revista do Departamento de
História/Cadernos DCP. nº 10/8, 1990. Belo Ho Horizonte, FAFICH/UFMG.
(20)
Idem.
69

poderia sê-lo sob nenhuma hipótese. O partidarismo político renegado diz respeito a

formas de atuação concernentes a um espaço próprio da atividade política. E a imprensa

que se moderniza afirma necessitar exatamente daquilo que não se possa dizer exclusivo

do mundo da política.

Nunca partidária, tampouco política na acepção corrente na época, que se

traduzia pela sujeição a posturas "individuais" e não à defesa de idéias como os

jornalistas agora reivindicam. Essa distinção é que permitirá aos homens vinculados à

imprensa em ascensão no período afirmar que os jornais devem defender "interesses

sociais gerais". Até então mero suporte de uma "palavra", conformada em processos de

ação que lhe eram anteriores ou que se constituíam através da imprensa, o periodismo

flutua para outro ponto onde afirma se descolar de interesses específicos que norteiam

sua constituição e atuação. Na imprensa ligada organicamente à atividade política há

sujeitos claramente constituídos que têm nos jornais porta-vozes de sua opinião. Dessa

situação transita-se para outra onde a imprensa não se vincula exclusivamente à

projeção da opinião tornada pública de atores voltados para o espaço da política. E

culmina agora, segundo a fala dos homens de imprensa, numa instituição que não deve

se referir a perspectivas particulares, mas gerais de toda a sociedade. Para afirmar a

recente condição essa nova imprensa volta-se para perscrutar o espaço de seu antigo

sujeito, a ação política. Essa inflexão é que aparece reafirmando o caráter político da

imprensa, não mais como instrumento de um agrupamento ou servindo a um interesse

exógeno, mas como juízo, como consciência avaliadora de atividades que digam

respeito aos tais interesses gerais. Enfim, uma imprensa chamada independente.

"Oposicionistas ou governistas: detratores violentos dos


homens do poder, ou incensadores desavergonhados dos que dispõem
dos dinheiros públicos, assim são na sua quase totalidade, os jornais
brasileiros. Traçou-se uma linha divisória que separa em duas porções
distintas a imprensa do país: de um lado, a que combate e insulta os
governo e a política dominante; de outro, a que idolatra
incondicionalmente os poderosos. (...) Falta-nos, afinal, o que se possa
chamar jornalismo desse ponto de vista: isto é, independência e espírito
70

consciencioso de crítica na imprensa, honestidade de processos e


escrúpulo rigoroso." (21)

Dizendo-se crítica das posturas eminentemente subordinadas às disputas

e interesses políticos, a imprensa que surge em Belo Horizonte no primeiro quartel do

século não se pretende nem contra, nem a favor. Acende uma vela para o "muito antes

pelo contrário". É nessa zona de fronteira que ela quer desenhar o lugar do novo

jornalismo na cidade. Pode-se inclusive sugerir que se expressam, na percepção dos

homens de imprensa acerca do seu papel, alguns elementos do discurso moraliste,

marcado pela não dissociação de uma intenção de reformar o mundo e a descrição da

realidade. (22) De todo modo, o que definirá e diferenciará o periodismo local, segundo os

jornalistas, em contraponto às práticas até então correntes no mundo da imprensa? Do

que se trata a partir de agora quando a chave de acesso para a imprensa na sua relação

com a política é o termo "independente"?

"Já o nosso periodismo pode contar no passado com


grandes vultos; e no presente estão a servi-lo alguns nomes de
responsabilidade e prestígio. Muitas vezes, mesmo na república
anarquizada sob que vivemos, os nossos jornais atuaram junto ao
governo como aquela `pressure from without` que é a opinião pública
britânica, para levar os dirigentes a desistir de um propósito que
contrariava as aspirações coletivas, ou para fazê-los adotar uma medida
de conveniência geral. Várias campanhas da imprensa brasileira
trouxeram fortes benefícios à nação." (23)

A imprensa é expressão da opinião pública. Todavia não o faz no sentido

corriqueiro que se conhecia, de tornar público o discurso de diferenciados segmentos

políticos e/ou sociais. A opinião pública agora não se reconhece em agrupamentos mas

num suposto interesse geral do qual a imprensa seria expressão. É a opinião comum,

compartilhada, de toda a comunidade. São as aspirações coletivas, aquilo que é de

(21)
Pra que serve o jornal? Estado de Minas. 7 de março de 1929. p.1
(22)
Segundo Renato Janine Ribeiro, para os moralistes ""Moral" significava a fusão, ou em linguagem de hoje a
confusão, de duas acepções - da prescrição ditada à conduta humana, e do campo que se distingue do físico,
remetendo à atividade mental humana enquanto nos afasta da mera determinação natural. Ora, o estudo das paixões e
a prescrição às ações se engatavam intrinsecamente". Renato Janine Ribeiro. A última razão dos reis. São Paulo,
Companhia das Letras, 1993.p.93.
(23)
Pra que serve o jornal, op.cit.
71

conveniência geral, a "nação". Lembremos que os anos 20 e 30 marcam a intensificação

do debate e o desdobramento prático de vários projetos e idéias que diagnosticavam as

dificuldades sociais, econômicas, políticas e culturais do país na ausência de uma

identidade nacional. A intelectualidade de Belo Horizonte é partícipe dessa discussão.

De alguma forma, a ação em torno da imprensa belorizontina poderia ser tomada como

uma das expressões do processo de construção de uma matriz de pensamento, que

articulou projetos intelectuais e políticas que se institucionalizaram nacionalmente,

conforme hipótese de Bomeny. (24) Sua tradução no âmbito da imprensa é em torno da

defesa dos interesses gerais, tal como se batia um periódico do grupo Diários

Associados em Belo Horizonte.

"Ele [Diário da Tarde] queria também cooperar, com


energia, para o progresso da cidade e em todas as causas que
interessassem à população. Teria ouvidos para escutar os reclamos da
coletividade e espírito para examinar e julgar as reclamações, com o
objetivo de orientar a realização de medidas pleiteadas. Seria a voz do
povo falando às administrações". (25)

Sua independência se liga a uma defesa de um interesse do público, à

expressão de seus anseios. Em editorial, ao completar dois anos de existência, o jornal

reafirma tal perspectiva ao informar que "este vespertino foi lançado para servir o

público, sem dependências outras que não fossem as da sua responsabilidade de ser

informativo, com lealdade". (26)

Com as novas práticas que se instituem na imprensa local afirma-se a

idéia de um jornalismo "independente", uma lente que transforma o carbonizado

periodismo local num fazer resplandecente. E ofusca os olhos dos jornalistas de tal

maneira que uma das expressões mais eloqüentes do novo patamar que os atores vêem

os jornais da cidade alcançarem é dado por um jornal político, naquele sentido que eles

consideravam o mais tradicional. O Diário de Minas, órgão da direção do Partido

(24)
Conforme Helena Bomeny, A mineiridade dos modernistas. Rio de Janeiro, Iuperj, 1991. Tese de doutorado.
(25)
Nosso aniversário. Diário da Tarde. 14 de fevereiro de 1939. p.1
(26)
O que falta, op. cit.
72

Republicano Mineiro até o início dos anos 30, põe em evidência a alteração que se

processa nas relações imprensa/política percebidas pelos jornalistas.

"Jornal político por excelência, o Diário jamais deu à


expressão o sentido vulgar que se lhe empresta. Sempre se afigurou
incomportável com a nossa índole o feitio delirante das folhas que batem
a moeda do escândalo e do personalismo, constituindo um triste e feio
tipo de gazeta, em que a idéias cedem lugar às paixões, e às notícias se
preferem os boatos". (27)

Ora, o Diário de Minas, que evidenciava de maneira exemplar a forma

de condução da política em Minas no final da Primeira República, renega também o

veio político característico que alimentava a experiência editorial na cidade? O porta-

voz da Tarasca, comissão executiva do Partido Republicano Mineiro, servia como

sinalizador, roteiro e espelho das redes políticas em torno do governo estadual e das

oligarquias políticas atuantes através do PRM. Mudou o Diário, mudou o PRM, mudou

a imprensa da cidade, mudou a cidade, mudaram os jornalistas? Mudaram todos, mas

sobretudo a imaginação que cimentava a cosmovisão dos que conduziam os

empreendimentos da imprensa na Belo Horizonte da época. A imprensa político-

partidária por excelência anunciava a mudança dos tempos. Quem insistisse nos vetores

anteriores da relação imprensa/política assistiria a uma redução progressiva do seu

espaço de atividade e, consequentemente, de sua repercussão social. O Diário de Minas

deixaria de existir logo no primeiro ano da década de 30.

O nascimento e continuidade de qualquer jornal na capital mineira

estaria, de agora em diante, preso a essa "simbologia da independência" destilada pelos

produtores culturais que convergiam para o espaço da imprensa local. Surpreenderemos

tal perspectiva de novo na Folha de Minas, que em editorial reclama da incompreensão,

dos que detêm as responsabilidades do poder, para com a atuação da imprensa

independente.

(27)
O jornal - Como o imaginamos e como o fazemos. Diário de Minas. 3 de agosto de 1929. p.1. Sobre a história e
mudanças no DM ver
73

"Preferem estes o elogio interesseiro, o aplauso fácil, o


apoio incondicional. E não sofrem a crítica dos seus atos, acreditando-
se infalíveis e superiores as contingências humanas. Na crítica aos erros
da administração, no comentário das atitudes que contradizem
princípios, na advertência severa aos deslizes, encontram apenas motivo
para irritação, quando não para a represália direta ou disfarçada. Isso,
porém, não nos perturba no cumprimento de um dever, porque só nos
sentimos na obrigação de prestar contas ao povo que nos honra com a
sua confiança." (28)

Essa perspectiva é mesmo fundamental para que a cidade dê sua

contribuição à gestação da nação, construindo uma postura renovada da sociedade ante

a cultura, economia e política nacional. Tal compreensão se ampara fundamentalmente

na idéia de interesses coletivos gerais que balizem a conduta da imprensa. Não é de

outra forma, podemos agora sugerir, que a Gazeta Mineira afirma não mais sua relação

enquanto jornal com a política, mas a própria condição e natureza política do seu fazer.

"A Gazeta Mineira não representa apenas uma iniciativa


destinada a colaborar para obra de levantamento do nível cultural,
social e econômico de Minas. Ela será, pelas afirmações de sua
atividade, pela honestidade de seu programa, pelo seu contato íntimo
com todos os problemas humanos e sociais, o órgão que faltava à defesa
impessoal, sincera e vigilante dos interesses da população de Minas". (29)

É, de novo, elucidativa, do que está em jogo nessa nova dimensão


política da imprensa, a fala dos jornalistas publicada através do Correio Mineiro, diário

primogênito nesse recente balizamento editorial da imprensa da cidade. Ao descrever a

dificuldade que a ruptura com o tradicional relacionamento imprensa/política implicava,

os articulistas do jornal metaforizaram esplendidamente o que, para nós, é um caminho

rico para compreensão nas mudanças de referência do jornalismo que se processavam

em Belo Horizonte no ocaso da República Velha.

"Nesta fase, este jornal teve de lutar com dificuldades


inúmeras, persistindo como persiste, em não comer na gamela onde se
engordam porcos conhecidos.

(28)
Caminho percorrido. Folha de Minas. 15 de outubro de 1935. p.3
(29)
Para servir aos interesses impessoais da coletividade. Gazeta Mineira. 27 de setembro de 1938. p.1
74

Vai, assim, vencendo as suas dificuldades, afastando os


tropeços que lhe criam, desviando das ciladas que lhe armam, evitando
as amizades que o possam macular e rejeitando as ofertas com que o
tentam..." (30)

Os "porcos" em questão dirigem, trabalham em outros jornais e são todos

parceiros da "nova" imprensa da cidade. Inevitavelmente noticiam, ao lançarem ou

reerguerem um determinado periódico, as características agora legitimadoras da

atividade jornalística belorizontina. Independência em face do poder político, defesa dos

interesses gerais da coletividade. É certo que estas noções ganham força no interior de

um movimento efetivo de reestruturação da imprensa de Belo Horizonte. Mas o que nos

tem importado ressaltar não é o grau efetivo de mudanças que se verificam, mas como

elas ganham presença na cena social quando a circunstância da imaginação dos atores

articula um discurso capaz de colocá-las em relevo e, em alguns casos, fazer crer que as

coisas realmente mudavam.

Afinal, numa fase ainda de incipiente organização dos jornais como

empresas que vendem um determinado produto e constituem rudimentos de um

mercado, o Correio Mineiro também tem que justificar um lugar para o patrocinador do

jornal. A fonte de recursos não seria mais um duto ligado diretamente à atividade

política autônoma, mas ainda assim com vínculos com atividades de natureza política.

O jornal tem, enfim, que arrumar uma "gamela" própria onde também possa se

alimentar. O novo lugar do campo da política no jornal, quando ela ultrapassar o espaço

da cobertura jornalística, é assim exemplificado pelo diário ao falar do seu patrocínio.

O Correio Mineiro, comemorando seu aniversário, não


pode deixar de externar gratidão a esse vulto da política estadual que,
como homem público, se caracteriza por uma visão superior dos homens
e das coisas, índice inconteste de superioridade moral.
Contribuindo pecuniariamente para a fundação do
Correio Mineiro, é o seu protetor em todos os momentos difíceis, sem,
contudo, influir na orientação que nos traçamos.
Compreende a imprensa como ela deve ser. Cega à
afeição e ao ódio. Devotada, só e só, ao bem público. Colaboradora da

(30)
A gerência do Correio Mineiro ao público. Correio Mineiro. 2 de março de 1934. p.1
75

administração honesta. E combatente resoluta dos que se servem do


cargo para a satisfação de interesses inconfessáveis. (31)

A política partidária, seus interesses e movimentações podem e muitas

vezes mantêm ligações com os empreendimentos editoriais. Contudo, afirmam os

jornalistas, elas se circunscrevem a atividades extra-cobertura jornalística. O jornal

pode ter na figura de um político ou agrupamento referência para sua atuação e

cobertura do mundo da política, mas não deverá estabelecer nenhum grau de

subordinação e constituirá padrões e regras de atuação autônomas a essa atividade.

Em editorial de nova fase, em março de 1933, tal perspectiva é

reafirmada.

Jornal do povo e para o povo, sem preocupações


partidárias nem altos desígnios de regeneração.
Queremos é noticiar, dizer, com independência, o que o
povo quer, o que sente, os seus anseios, o que precisa. Nada mais.
Não nos interessam os nomes. Da República Velha ou da
Nova, desta ou daquela facção analisaremos os atos dos
administradores. Se bons não lhes regatearemos elogios, que é o
estímulo da opinião pública aos que cumprem o dever. Se maus, não nos
atemorizarão as posições porque o jornalismo, como o entendemos, não
é fonte de riqueza, fácil e abundante: é sacrifício, é missão nobilitante, é
evangelização. (32)

O órgão da "Tarasca" nos foi representativo das mudanças que operam

no campo da imprensa e que impuseram alterações no discurso mesmo dos jornais de

vínculo partidário oficial. Na tentativa de dar continuidade a sua tradição, no novo

contexto onde transita e se constitui o periodismo local, o 3 de Outubro - criado em

1933 e novo porta-voz do PRM - será um jornal que, tipicamente organizado em torno

de um conjunto de aspirações políticas, não se eximirá em afirmar que a prioridade são

os ideais. Na tradução concreta para o fazer da imprensa, isto implicará na afirmação de

uma característica agora essencial: independência.

(31)
Otacílio Negrão. Correio Mineiro. 2 de março de 1934. p.1.
(32)
Cometário. Correio Mineiro. 2 de março de 1933. p.2
76

"Animados pois desses propósitos elevados, assumimos


hoje, confiantes, o nosso modesto posto no panorama sadio da imprensa
mineira, com o desejo sincero e decidido de nos tornarmos dignos das
finalidades superiores traçadas ao bom jornal.
Estas, sabemos, só podem ser alcançadas com muito
desprendimento, muita altivez e absoluta independência.
Na prática rigorosa, constante e sincera destas virtudes
que resumem os imperativos da verdadeira ética jornalística está um
programa que cumpriremos à risca e que é menos nosso do que do
público, para quem vimos e de quem viveremos.
Sem ligações de espécie alguma, reunidos à custa de
sacrifícios ingentes em torno do ideal puríssimo de bem servir
exclusivamente aos interesses da coletividade, queremos praticar com
intransigência e desassombro a boa e sã imprensa, dignificando-a e
dignificando-nos à sombra dos seus postulados magníficos, certos de
que só assim seremos vitoriosos e merecedores do acolhimento a que
aspiramos". (33)

De novo a citação longa aqui é importante exatamente por revelar um

aparente paradoxo na nova imprensa da capital. Político partidário na sua raiz, mesmo

esse tipo de empreendimento editorial que surge no final dos anos 20 e década de 30

tem que dar conta das categorias que organizam a experiência jornalística da época. Ou

seja, há valores e todo um universo simbólico que conferem parâmetros e são condição

para a atividade da imprensa. São significados e sentimentos que reverberam na

experiência dos "nossos" atores e constituem os limites e possibilidades da sua ação

nesse campo.

É impregnado dessas referências culturais que o fundador e articulista

maior de O Debate, Paulo Pinheiro Chagas, personagem de destaque na imprensa da

capital em meados dos 30, enaltece a nova orientação da atividade periodística.

"Conquanto ainda viva no sentimento público a


lembrança dos dias lutuosos da tragédia ditatorial, `O Debate` se
conservará, não obstante, imunizado contra os ódios e ressentimentos
que ela provocou, mantendo-se fiel ao seu programa de jornal

(33)
O nosso ideal. 3 de outubro. 20 de abril de 1931. p.1
77

independente, sem paixões e sem preferências pessoais ou


partidárias." (34)

Repete-as quando proclama que

"esta folha (...) vem com ânimo de servir. Inacessível ao interesse, plena
de espírito público, será uma permanente consulta à legítima opinião de
Minas. (...) O mais é conseqüência. Não tem ódios, nem rancores. Não se
preocupa com os nomes, sim com as causas; não lhe interessam os
indivíduos, sim as idéias; não o empolga o facciosismo partidário, sim o
programa do bem coletivo." (35)

Essa perspectiva não conflita com a condição de atividade política de

que se reveste a imprensa. Sua opinião política não parte mais, dizem os jornalistas, de

um lugar externo ao jornal referente à atuação de um segmento social qualquer. O

jornal, representante da coletividade, tem a legitimidade para olhar para a política com

isenção e dotada de um "espírito público". Paulo Pinheiro Chagas não precisa esconder

que o O Debate tem um posicionamento político claro de oposição aos governo

municipal, estadual e federal, estampada diariamente em artigo assinado à primeira

página. Ela só não é, diz ele, fruto de uma opção político-partidária, mas de vontade da

opinião pública.

É lapidar, nesse mesmo sentido, uma passagem de suas memórias na

qual o fundador de O Debate relembra a situação do Partido Republicano Mineiro ao

renovar suas lideranças políticas em 1932. Ele nos diz que o Diretório Central do PRM

de Belo Horizonte era o segundo órgão em importância da velha agremiação, logo

abaixo da Comissão Executiva. Mas as circunstâncias políticas o transformariam na

força aglutinadora da política perremista no confuso período seguinte à Revolução de

30.

"Para tanto, contribuíam duas razões: estar sediado na


Capital de Minas e ter a seu lado uma imprensa livre e sem

(34)
Artur Bernardes Filho. O Debate. O Debate. 26 de fevereiro de 1935. p.1
(35)
Paulo Pinheiro Chagas. Esta folha. O Debate. 14 de março de 1934. p.1
78

compromissos, representada pelos Diários Associados (Estado de Minas


e Diário da Tarde)." (36)

Antes extensão da política, a imprensa agora é reconhecida como

parceira desta. No ambiente mental da época, sua eficácia se traduz exatamente por

expressar, da maneira como os homens ali e naquele momento o entendiam,

independência ante as correntes políticas partidárias. Esta imprensa era, agora, a

condição da política.

Essa verdadeira "estrutura de sentimentos" marca o conjunto dos

indivíduos que atuam na imprensa no período. Fora do grande conserto da Aliança

Liberal que conduziu o movimento revolucionário de 30, os jornais que perfilaram a

candidatura situacionista de Washington Luiz também compartilham das teses que se

afirmam na imprensa dos "liberais". Não é outra a postura sugerida pelo articulista de O

Dia, breve diário que atuou em Belo Horizonte, em editorial de fundação:

"Procuraremos, tanto quanto as circunstâncias nos


permitirem, seguir a larga estrada da independência. Não nos
prenderemos a homens e a partidos. Seremos veiculadores de idéias". (37)

Mas o tão apregoado caminho da necessária independência dos jornais

não é, no discurso dos protagonistas da imprensa, retilíneo e sem ambigüidades. Toda

essa explanação em torno da de uma imprensa "livre e sem compromissos" aparece,

numa primeira visada, como contraditória às próprias análises também empreendidas

por este mesmo segmento social acerca da atuação do jornalismo. Ainda que feita de

material e substância semelhante, diríamos que os porcos parecem não aceitar comer na

mesma gamela.
O cronista Jair Silva, por exemplo, dedica sua coluna, na Folha de Minas

do dia 28 de novembro de 1934, para avaliar a discriminação promovida pelo então

governador do estado a setores da imprensa. Benedito Valadares, privilegiando o

(36)
Paulo Pinheiro Chagas. Esse velho vento da aventura. Belo Horizonte, Itatiaia, 1977. p.216.
(37)
Nosso aparecimento. O Dia. 21 de abril de 1936. p.1
79

Estado de Minas no repasse de informações, não atende aos demais jornais sequer para

uma entrevista.

Paulo Pinheiro Chagas, que momentos antes mostramos exaltando a

independência dos jornais mineiros vinculados à cadeia dos Diários Associados, já na

condição de editor de O Debate, desanca o Estado de Minas, pondo em dúvida

exatamente a suposta independência daquele jornal:

"Por que cargas d'água se teria posto em brios o 'Estado


de Minas', com a nota que 'O Debate' publicou na sua edição de
sábado? Ela não lhe dizia respeito, mas ao governo. Se o 'Minas Gerais',
órgão oficial, viesse a campo fazer a defesa, vá lá. Mas, não. Solícito,
denunciando uma antiga ligação amorosa, que tinha ainda alguns
descrentes, foi o 'Estado de Minas' o espadachim que veio à arena. Por
que? Conhece-se o seu feitio prático e comercial de encarar a vida e os
seus problemas. Daí uma pergunta lógica: estará o 'Estado de Minas'
ligado pelo cordão umbilical aos cofres públicos de Minas? É de
acreditar-se que sim. Ora, o 'Estado de Minas', órgão oficioso do
governo, que se edita nesta capital, disfarçado de madalena
arrependida, tem a coragem de falar em falta de escrúpulo. Mas falta de
escrúpulo é rastejar servilmente aos pés de todos os governos. É
ludibriar a opinião pública, com atitudes escusas, fingindo de
independente e estando preso a interesses inconfessáveis". (38)

E numa análise da campanha da Aliança Liberal nas eleições de 1930, o


jornalista Guimarães Menegale destaca sobretudo a participação política da imprensa no

movimento.

"Como ocorreu em todo o país, a imprensa de Minas


Gerais deu à campanha da Aliança Liberal e da Revolução a eficiência
da sua cooperação, sem a qual é certo que não se arregimentariam os
elementos da soberania popular para a hostilidade ao poder central,
faccioso e turbulento". (39)

Um bom exemplo ele recupera do período em que ainda trabalhava no

Correio Mineiro. O jornalista afirma que o grupo atuante no jornal percebia na figura

(38)
Paulo Pinheiro Chagas. Esse velho vento.op. cit. p.242.
(39)
Guimarães Menegale. A imprensa de Minas Gerais na campanha da Aliança Liberal. Minas Gerais. 21 de abril de
1932. p.15 (4ª seção)
80

do presidente Antônio Carlos um ponto isolado de "resistência liberal, no país, pelo que,

sem embargo do desembaraço com que a redação apreciava, dia por dia, a sua obra

governamental", o jornal estimulava a figura do político junto à opinião pública.

Em maio de 1929, esse mesmo grupo que formara em torno de Victor

Silveira na experiência do Correio Mineiro, abria nova frente de atuação no Diário

Mineiro. Para Menegale o periódico estava predestinado a ter pelo sucesso em

campanhas vindouras, "atuação de inquestionável relevância na fase eleitoral e na

pregação revolucionária, no Estado". O editorial do jornal, em sua primeira edição,

exemplifica a idéia exposta por um de seus fundadores.

"Sentimos no público o desejo de que não o privássemos


de um órgão de opinião independente, que continue a espelhar, com
fidelidade, o seu pensamento, a defender as suas aspirações, a pugnar
decididamente pelos seus interesses, a falar claro e sem paixão, com
atitudes quer não tragam covardia, dubiedade ou comodismo, mas
também não envenenem de ódio, despeito ou interesses inconfessáveis.
(...) Não aprovamos as oposições incondicionantes, que
se nutrem de escândalo e má fé. Não concordamos com o elogio
sistematizado, que banha em água morna a consciência dos
governantes". (40)

Para Menegale, os jornais em circulação naquele momento cumpriram

todos um papel importante na luta política. Não foi diferente pelo lado da chamada

"Concentração Conservadora", que reunia as forças políticas simpáticas e aliadas aos

ocupantes do governo federal. Os jornais Folha do Dia e Folha da Noite, em Belo

Horizonte, também desempenharam, em benefício dessas posições, papel semelhante ao

do restante da imprensa belorizontina em favor da Aliança Liberal. Estes, em geral,

estiveram alinhados desde o primeiro momento com a orientação política aliancista.

Mas caberia destacar, como ponto relevante para entendimento das mudanças na relação

que passa a envolver imprensa/política em Belo Horizonte nessa época, a avaliação que

o cronista faz da atuação do Estado de Minas, já então jornal de maior prestígio e

repercussão na cidade.

(40)
Guimarães Menegale, op.cit.
81

"Dispondo de bom aparelhamento, foi sobretudo na parte


informativa que prestou serviços à campanha presidencial. Por ele,
tinha Belo Horizonte notícia do que se estava passando, em Minas
Gerais e nos demais estados, em relação à luta da soberania popular
com o Governo Federal. Dava-lhe eficiência a venda avulsa, auspiciosa,
e a circulação nos municípios". (41)

A informação, nos diz Menegale, foi a grande contribuição política do

jornal ao movimento de 30. Sugestiva idéia. A informação, o noticiário por si só, sem as

emulações da atuação partidária, conferem uma natureza política ao fazer da imprensa.

Essa é a percepção daqueles homens e, ao menos para a conquista de legitimidade e

credibilidade junto aos olhos da sociedade, será a idéia de independência elemento

vigoroso de organização dessa imagem.

A imagem de uma liberdade ou independência da imprensa, dessa forma,

não se choca com a opção política e muitas vezes partidária dos jornais. É mesmo a

virtual condição para que o mundo da política possa se robustecer em torno das idéias

em voga nos discursos políticos:

"Se alguma experiência nos sobrasse desses sacrifícios


(...) a glória obscura, temperada de amargor, dessa batalha, que
pelejamos disfarçando arfar da fadiga com o alarido do triunfo, nos
ensina que só a imprensa vitalizada nos estos da liberdade é capaz de
apoiar decisivamente e prestigiar até o êxito final, nas democracias, os
planos de ação coletiva, como o da Aliança Liberal, como a da
Revolução". (42)

Política havia, e muita. Não há contradição entre independência e

perspectiva política. De que independência trata-se afinal? Ou, para maior precisão,

qual é, segundo a experiência dos jornalistas, a referência, o elemento organizador do

noticiário, o objetivo da divulgação de informação para que esta seja seiva fundamental

da atividade política?

Talvez esteja, curiosamente, fora da fala dos "homens de imprensa" uma

das passagens mais estimulantes para se refletir sobre a nova condição do periodismo na

(41)
Guimarães Menegale, op.cit.
(42)
Guimarães Menegale. op.cit.
82

cidade. E, ironicamente, a encontramos na voz de um político, ainda que no registro do

jornal.

O Diário da Tarde, comemorando seu segundo ano de fundação em

1934, produz uma matéria, baseada numa enquete, onde busca a opinião sobre o jornal

de várias pessoas representantes dos diferentes segmentos sociais existentes na capital

mineira. Antes do parecer do funcionário público, do negociante, da mulher das altas

rodas sociais, do operário, do chauffer de praça e do boêmio, é solicitada a intervenção

de um político local, tratada quase em tom de zombaria. Vale a sua citação:

"Para iniciar o nosso inquérito procuramos um político.


Não foi longa a procura. Belo Horizonte é o paraíso dos políticos,
mesmo dos `carcomidos`. São bons os ares da capital para os que
labutam nas atividades estafantes da política.
- Qual a sua opinião sobre o `Diário da Tarde`?...
Encarando com sorrisos o repórter, foi o homem falando
com prontidão, numa loquacidade estranha, com que nunca falam à
imprensa os iniciados nos mistérios indecifráveis da política:
- Responderei sem reservas à sua pergunta. O amigo
desculpar-me-á, entretanto, a franqueza da minha resposta. Serei
sincero.
Agradável esse intróito. Pela primeira vez o repórter
ouviria uma resposta franca e sincera de um homem do partido.
Deixamo-lo falar:
- É boa a minha opinião sobre o `Diário da Tarde`. O seu
jornal é uma folha moderna e leve, como desejava a capital. Para que os
políticos, porém, mais o estimassem necessário seria que fossem vocês
menos indiscretos. A sua folha nos causa, às vezes, sérias dificuldades.
Nos bastidores, mal ensaiamos um `passo` e já `Diário da Tarde` o leva
ao conhecimento do público, em reportagem minuciosa. O segredo é a
melhor arma de combate do político. Sem reservas, nada se consegue.
`Diário da Tarde`, com o seu noticiário, é para nós, portanto, um
inimigo implacável. Os seus repórteres são implacáveis. Agarram-nos e,
numa intolerável insistência, não nos abandonam mais. Procuram ouvir,
indiscretamente, as nossas conversas íntimas. Estudam os nossos gestos.
Fazem-nos perguntas. Respondemos com evasivas. Partem, finalmente...
À tarde, pegamos o jornal. E logo na primeira página traz o `Diário da
Tarde` noticiário completo das nossas atividades diárias. Lemos
83

contristados e, em falta de outro recurso, coçamos, pacientemente, a


cabeça, esperando as complicações que não tardam a surgir..." (43)

Ora, a borboleta estaria renegando seu casulo? A imprensa, queixa-se o

político, atende uma demanda social de um jornalismo mais dinâmico que constrói um

olhar ágil e objetivo sobre o cotidiano da cidade. Mas traz consigo o "inconveniente" de

também observar, "devassar" o que ele chama de espaço próprio da política. Eis que a

condição política da imprensa parece se afirmar contra a própria política, ou, mais

corretamente, contra uma das suas formas de manifestação. Aquela onde a política

opera com base no segredo, numa esfera onde a não publicidade é um de seus

fundamentos e requisitos. A imprensa reivindica-se, então, uma atividade voltada para

uma esfera pública, onde "tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e

tem a maior divulgação possível". (44) E nesse sentido, não restringe o conceito de
público apenas ao não secreto, mas o identifica também com aquilo que deve ser

acessível a todos. Alarga, pois, a esfera pública.

É o que parece dizer o proprietário do jornal Correio Mineiro, quando

recebeu solicitação para que não publicasse fatos envolvendo certo nome de pessoa

ligada à high society belorizontina:

"Eu sinto muito, mas este fato é público. O 'Correio


Mineiro' não olha pelas frestas de janelas, nem pelos buracos das
fechaduras. O lar para nós é inviolável, é um sacrário. Expulsaria
qualquer um dos meus companheiros que infamasse com a pena um lar
ou trouxesse para as colunas do jornal um caso doméstico. Mas também,
em compensação, os acontecimentos da rua, que a nossa reportagem
segura nos traz, os pugilatos, as desordens, os crimes, as contravenções,
essas eu publicarei sempre, quer envolvam o malandro da Pedreira
Prado Lopes, ou esse moço, aliás muito distinto, pelo qual você se
interessa". (45)

(43)
O que falta a Diário da Tarde. Diário da Tarde. 14 de fevereiro de 1933. p.1
(44)
Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991.p.59. Segundo a autora a noção
de público indica dois fenômenos correlatos: público como o não secreto, aquilo que na política vigora como visível
a todos; e público como mundo comum, vivência compartilhada
(45)
Moacyr Assis Andrade, Victor Silveira. O fundador da imprensa moderna em Minas, Minas Gerais. 21/04/32. 5ª
seção, p.1 e 2.
84

O problema aqui não é apenas da separação entre o espaço físico da casa

e o da rua, mas da disputa sobre aquilo que concerne ou não a uma dimensão comum da

vivência social e o papel do jornal nesse processo. Esse parece ser o propósito sugerido

quando se destaca a necessidade de a imprensa atender aos requisitos do seu suposto

público.

A independência preconizada para a imprensa assenta-se, pois, por um

lado, na idéia de desvelamento dos segredos da política. E, por outro lado, num sentido

de público que organiza as referências dos jornalistas e reestrutura a imprensa da cidade

a partir da idéia de uma visibilidade a um mundo compartilhado, comum. Ora, tal

perspectiva implica a dessacralização de um mundo próprio da política. Admite que ela

se espraie pela sociedade, não mais enquanto uma prática específica, mas como um

trânsito instituinte de todas as práticas, e que possa embrenhar-se nos recantos mais

diferentes da vida social. Ela não é apenas uma atividade privativa de um segmento e

não tem locus exclusivo onde deve manifestar-se.

A quebra do segredo e a ampliação da esfera pública vai implicar, pois,

um deslocamento daquele que se apresentava como sujeito do discurso do jornal. Do

agrupamento ou dos indivíduos que encarnam determinado interesse político, a

"moderna imprensa" da cidade elege como seu "sujeito virtual" o seu público. O que vai
significar de fato a passagem do público sujeito ao público objeto de discurso.

"Deste modo, a imprensa, de veículo da opinião


publicamente produzida nos espaços de debate e de convívio, torna-se, a
pouco e pouco, produção de opinião, substituindo-se, assim, ao trabalho
de elaboração coletiva que orientava o projeto iluminista, reservando
esse trabalho a uma nova classe profissional, aos profissionais da
mediação". (46)

A noção de público objeto do discurso situa-se no interior de uma

perspectiva, esposada por autores como Habermas e Sennett (47) , na qual verifica-se na

sociedade contemporânea uma decadência da esfera pública. À medida que esta se

(46)
Adriano Duarte Rodrigues. Estratégias da comunicação. Lisboa, Presença, 1990. p 41. Essa concepção é
trabalhada também por Jurgen Habermas em Mudança Estrutural da esfera pública. op.cit.
(47)
Richard Sennett, O declínio do homem público. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
85

alarga sua função de instância crítica perde força. O sentido de público, nessa "viragem"

da imprensa, refere-se mais a um agregado difuso de leitores, ao destinatário em

potencial dos jornais.

É nessa linha que podemos fazer a leitura de uma figura que habita e

organiza a simbologia do mundo da imprensa da cidade à época: a imaginação, pelos

jornalistas, desse público pretensamente portador da opinião que agora governa a

imprensa. Uma imagem que pode ser mais bem vislumbrada na sua corporificação em

uma personagem como João Ventura, criado pelo Diário da Tarde no ano de 1931, a

partir da sua quinta edição. Ela é, ao mesmo tempo, uma espécie de recurso editorial

para o tratamento de temas até então envoltos nos segredos da política e, sobretudo,

uma construção imaginária da figura que aparecerá na construção jornalística como

justificativa da nova condição dessa prática social. Quem é João Ventura? Segundo o

jornal, "o Diário da Tarde vai mostrar aos seus leitores, através das palavras do homem-

multidão, as nossas infelicidades comuns". (48) João Ventura é um personagem, como o

jornal assevera, que não se constitui numa mera figura de ficção. Os jornalistas, através

desse tipo, querem reconstruir as ações quotidianas daqueles que eles acreditam ser o

tipo médio característico do leitor do jornal em sua relação com o mundo da política e a

vida social.

"João Ventura, com esse nome breve e despretensioso, é


você, leitor amigo, eterna vítima de todas as situações, símbolo de uma
massa imensa, sempre esquecida, que reclama, grita e até mesmo
esbraveja, para se acalmar, logo depois, com uma vaga promessa, com
um simples aceno de que será atendida (...) Exemplo vivo da resignação,
perdoando a todas as ofensas com a mesma beatitude e esquecendo, com
um novo pedido de votos, a ingratidão do político que você mandou à
Câmara, nada lhe assenta tão bem como esse nome de João Ventura.
Presente a todos os comícios, sempre esperançado na
`regeneração dos costumes`, ninguém aprecia tanto como você um
discurso patriótico, repleto de sensação, que enternece e comove.
O boato político faz você perder de vista as obrigações da
vida prática, e o Bar do Ponto rouba a maior parte do tempo que Deus
lhe dá todos os dias, para `cavar` o amargo pão brasileiro.

(48)
João Ventura. Diário da Tarde. 20 de fevereiro de 1931. p.1
86

João Ventura é a multidão de espíritos inquietos que as


promissórias fazem errar o bonde. É o inquilino em atraso, o militar sem
galões, o homem sem amor, o almofadinha sem dinheiro. Somos nós,
estranho ajuntamento de paixões, quebradeiras e falta de iniciativa." (49)

João Ventura é a representação da vida comum, do homem comum cuja

vivência social quotidiana se põe como uma das ancoragens da imprensa

"independente". Representa um espaço público anônimo onde transitam as pessoas

objeto do discurso da imprensa e onde se estabelecem novas modalidades de

convivência que constituem a sociabilidade. Os João Ventura nascem, se encontram e

reconhecem na escrita jornalística. Pode-se dizer, pois, que o jornal, os diários que se

fazem presente na capital, é que estruturam o "campo de leitores". Um pretenso público

da imprensa, a que o periodismo renovado serve ou deveria servir, é uma construção

ideal dos agentes acionada como instrumento de legitimação, frente à sociedade local,

em especial ao mundo da política, das mudanças que se processam no espaço editorial.

Mais do que falar para um público, a idéia era produzir esse público identificado com a

figura do leitor moderno, mundano, urbano. O "interesse do público" e o interesse

público são, para utilizar termos de Habermans, os elementos justificadores para dar

início à passagem de uma imprensa de pessoas privadas enquanto público a uma

imprensa de determinados membros do público enquanto pessoas privadas.

A menção que o jornalista Moacir Andrade faz do suposto público que se

interessara pela publicação do Correio Mineiro, sucesso desde o primeiro número em

1926, substantiva tal idéia.

"O jornal conquistara todos os circuitos, ganhara os


bairros e penetrara em todas as casas. E nas casas todos o liam: o
patrão, a patroa, a ama, a cozinheira e o garotinho do grupo escolar.
Atendendo ao povo na redação, desde o alto funcionário, tímido, que nos
levava a última injustiça praticada em sua repartição, até a mulher que,
para alimentar seus filhos, ao sol da Barroca, lavara, num córrego,
durante um mês, a roupa de um cavalheiro e que depois fora
miseravelmente 'caloteada' pelo freguês, a todos ouvíamos com o mesmo
carinho.

(49)
João Ventura. op.cit.
87

E no jornal, no dia imediato, todo o pot-pourri humano -


que escorrera na véspera pelo elevador e pelas escadas que conduziam
ao sobrado do 'Correio Mineiro' - funcionários, comerciantes,
chauffeurs, soldados pedreiros, barbeiros, engraxates, lavadeiras,
cozinheiras, - todos corriam a ler o jornal e lá nunca houve um só que
não encontrasse a sua queixa, muito honestamente traduzida". (50)

Não são eles os sujeitos da narrativa da imprensa, mas sua passagem

pelos pontos de contato e convívio na cidade se converte em objeto dessa fala. Por isso,

se o Bar do Ponto, como diz o artigo, rouba a maior parte do tempo cotidiano, não o faz

por deter a prioridade do debate político na cidade. Essa dimensão pública do café,

como de qualquer outro lugar da cidade, aos poucos se esvazia, deixa de ser o ponto

fixo e o barômetro da política local. A movimentação política de 30 gerava condições

na cidade para que a política fosse se aninhar com destaque noutro "lugar". Como atesta

Milton Campos,

"o meio já reclamava uma grande folha e, sobretudo,


entrávamos num período de vibrante agitação cívica. Estreava-se o voto
secreto. Um modesto cargo de conselheiro municipal já punha em
movimento o eleitorado. A política mineira, com algumas intermitências
e hesitações, começava a tomar rumos contrários à tradicional aliança
com o governo federal. Havia, enfim, inquietação e interesse". (51)

A imprensa não é mais instrumento de propagação de uma opinião que lhe é exterior; é

lugar de formação da opinião pública, forma emergente de produção da política. E mais:

emerge também como lugar da conversação pública antes atribuída a espaços e fóruns

restritos. Dessa forma, conclui-se, independência pode ser lida como uma categoria que

articula uma visão de mundo onde o desenvolvimento do jornalismo é uma prática

necessariamente política. E por esse veio a independência se combinará com o outro

eixo que dará sustentação à imprensa em Belo Horizonte. Um jornalismo independente

e noticioso.

Assim, a fala dos "homens de imprensa", individuais ou em

manifestações grupais como os editoriais dos jornais, constróem e explicitam um

(50)
Moacyr Andrade, op. cit.
(51)
Milton Campos. A imprensa de ontem e a de hoje. Estado de Minas. 8 de março de 1936. p.1
88

pensamento coletivo, um certo consenso, são repositório de um ideário dos

protagonistas do fazer jornalístico que toma os periodismo não mais como ponto de

encontro e reunião de facções políticas, de jornais definidos pela práxis política dos

diversos grupos. A movimentação que se verifica no espaço da imprensa de Belo

Horizonte substitui referências culturais onde o periodismo mostrava-se como mera

forma de difusão ideológica organicamente pertencente ao campo político. Muda-se o

conceito de jornalismo, agora necessariamente dotado de uma conotação política

enquanto fazer específico, e redimensiona-se sua relação com a esfera política

tradicional.

Assim, se a rua da Bahia nos anos 20, como imagem, era caminho do

movimento ascendente rumo ao poder e ressoava as lutas políticas que tinham como

alvo o Palácio da Liberdade e a construção da identidade nacional, convém lembrar que

ela não levava diretamente ao centro do poder. Não do ponto de vista do traçado

urbanístico da cidade, ainda que efetivamente a Rua da Bahia não vá ao encontro e sim

passe às margens do Palácio. Mas também como imagem, onde podemos dizer que a

imprensa seguia a direção da política, o que não implica que estivesse rumando

certeiramente no mesmo caminho.

Ao falar de "independência" da imprensa, os agentes acionavam


diferentes percepções da interface entre jornalismo e política. Os novos diários que

surgem em Belo Horizonte são vistos como expressão de um movimento de mudança na

natureza das práticas jornalística e política, sem que isso tenha necessariamente uma

conotação negativa para qualquer uma das atividades. Pode significar, como alguns

indivíduos sugerem, a requalificação de ambas. As mudanças editoriais poderiam

implicar também redução do espaço da política, enquanto esfera pública, na proporção

em que a outra prática se amplia, como pode ser inferido de uma outra visão. De toda

forma, nas ambigüidades que sustentam as várias perspectivas, transparece o significado

político do fazer imprensa.

Relembremos, finalizando, outra episódio, na tentativa de elucidar o

argumento. Nas eleições de 1927 o Correio Mineiro resolveu apresentar e defender um


89

candidato a deputado federal, em oposição a chapa majoritária apresentada pelo Partido

Republicano Mineiro. Questionado pelo jornalistas do órgão frente a iminência da

derrota para a máquina do partido "oficial", como então era reconhecido o PRM, o

proprietário Victor Silveira teria respondido:

"Vocês, parece-me, não conhecem a sua terra, nem os


seus patrícios e muito menos sabem o poder da arma que manejam. A
pena que vocês têm na munheca não é apenas para noticiar
aniversários, censurar a polícia, criticar o prefeito, ou o presidente.
Nem foi para isso que pusemos aqui o jornal. Que diabo de jornal seria
o nosso, que apita a polícia ao ver uma rameira estapeada e cala ao ver
a República ultrajada, pois não sei de maior escárnio ao regime que
essa apresentação de chapa completa de deputado". (52)

Insinua-se aqui um ponto de vista que busca vislumbrar não só a relação

imprensa/política como também a própria dimensão política do fazer jornalismo. Dois

meses de campanha pelo jornal e o candidato apresentado pelo Correio Mineiro foi

vitorioso. A significação deste fato o cronista aponta com exatidão:

"a vitória formidável de Lauro Jacques nas urnas, fato há


muito desconhecido em Minas, não foi apenas a vitória de sua classe,
mas, como honestamente declarou o próprio candidato, foi a vitória do
Correio Mineiro".

Contra o que talvez parecesse a princípio, independência jornalística,

para eles, não significava em nenhum momento o abandono da política. "Independente"

é o novo enlace entre imprensa e política.

(52)
Moacyr Andrade, op.cit.
90

4. Imprensa e cidade: diários da vida besta

"- Cidade besta, Belo Horizonte! exclamou Redelvim,


consultando o relógio. A gente não tem para onde ir...
- Não acho! retrucou Silviano. Em Paris é a mesma
coisa.
- Em Paris? perguntou Florêncio. Não sabia que você
andou por Paris... É boa!
- Ó parvo, quero dizer que o problema é puramente
interior, entende? Não está fora de nós, no espaço!"
(Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro)

Um cronista de O Diário, em 1936, saúda a passagem do primeiro


aniversário do jornal descrevendo o que, para ele, expressava o dilema central do fazer
imprensa na Belo Horizonte dos anos 30.

"O Edgar Matta Machado arranca os cabelos. Falta de


matéria. O dia decorreu morto, honestamente, sem reportagens. Nem
uma homenagem a político evidente, nem um discurso, nem um ladrão
de galinhas.
- Belo Horizonte é mesmo uma aldeia.
(...) Dia de excesso de matéria. A Itália ganhou uma
batalha, Hauptmann não será eletrocutado, um bonde pegou um
automóvel, o Sr. Fulano fez uma conferência, houve um assalto a
importante estabelecimento comercial, o Macedo da publicidade encheu
as páginas de anúncios. O Indiano quer por um clichê de Chico Preto
em três colunas... Como é que no jornal pode caber tudo isso? E o Edgar
arranca os cabelos, sem saber o que fazer. Um dia acaba careca." (1)

A cidade é como um suporte, o palco de ação da imprensa local que, de

forma análoga a um pêndulo, oscila da profusão de acontecimentos e anúncios

publicitários a publicar à carência absoluta do que noticiar diariamente. Os jornais,

sugere-nos o cronista, caminham de acordo com o ritmo da cidade. E a Belo Horizonte

da época, ao mesmo tempo em que reluta em oferecer-se como objeto da visada

particular do jornalismo, parece experimentar ocasiões em que transborda mesmo, não

cabe nas páginas dos periódicos. Afinal, a cidade aparece como limite ou torna-se a

melhor possibilidade para engendrar a chamada imprensa de corte moderno? Quais as

(1)
Lucilio Mariano, Vida de Jornal, O Diário. 06/02/36, p.3
91

articulações que o ambiente urbano estabelece com as movimentações no espaço da

imprensa local?

O propósito desta seção do trabalho é delinear, a partir das falas dos

próprios protagonistas do fazer jornalístico, as imagens de relação imprensa e cidade

que a movimentação editorial em Belo Horizonte nos anos 20 e 30 suscitou. O quadro

efetivo da situação da imprensa e da cidade não é o foco da análise, que poderá se servir

de indicadores dessa realidade na medida em que ajudarem a dimensionar a forma como

a questão da produção jornalística é percebida naquele momento pelos agentes. Em

suma, o interesse gira em torno de quais noções e associações simbólicas em torno do

"urbano" e do jornalismo organizavam as referências da prática dos grupos e indivíduos

que atuavam no espaço da imprensa.

Nas representações dos "homens de imprensa" belorizontinos da terceira

e quarta décadas do século, a cidade evidencia-se como par inseparável na reflexão que

envolve a prática jornalística. Tais falas nos sugerem dois eixos temáticos que

permitiriam discutir a relação imprensa/cidade da forma como era percebida pelos

nossos protagonistas: o primeiro diz respeito àquilo que se constitui ou deve se

constituir em objeto de atenção do novo periodismo praticado na capital; o outro ponto

salienta a percepção dos jornalistas do modo como essas mudanças na imprensa


implicam uma nova forma de reportar os acontecimentos e as notícias nas páginas dos

jornais. A nosso ver, esses dois vértices organizam uma imagem de cidade que orienta a

prática dos agentes nas movimentações verificadas na imprensa de Belo Horizonte das

décadas de 20 e 30. Permitir-nos-iam, pois, entabular uma reflexão em torno de uma

proposta de jornalismo em discussão, ali e naquele momento, e sua interface com o

ambiente urbano.

Em alguma medida, pode-se dizer que as mudanças que se operam na

prática do jornalismo na capital mineira acompanham movimentações mais gerais que

se fazem presentes nas diversas dimensões da vida social naquele momento. Não sem

razão, em várias passagens os discursos em tela ressaltarão a ocorrência de um relativo

desenvolvimento do jornalismo local como um dos resultados de um progresso sócio-


92

econômico da cidade. Pedro Aleixo sustenta a idéia de que a cidade já organizava as

condições materiais necessárias para o êxito de uma empresa jornalística como o Estado

de Minas. A presença do periódico na primeira metade dos anos 30 valia como

"demonstração de vigor e de pujança da Capital mineira,


em cuja vida o órgão de imprensa, lançado em 7 de março de 1928,
integrou-se definitivamente, passando a ser, de então para cá, o registro
exato dos mais variados acontecimentos que marcaram as boas e más
vicissitudes da terra montanhesa". (2)

De fato, a historiografia da cidade situa o momento de passagem à

República Nova como o da deflagração de um acentuado desenvolvimento urbano, que

transforma a cidade no efetivo pólo econômico planejado quando de sua fundação. (3) As

evidências de tal processo são várias: o crescimento físico-espacial da cidade,

escapando para além dos limites do traçado original; o aumento significativo da

instalação de estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços; a quebra do

isolamento da cidade em relação a outras regiões do estado e com outros estados através

da inauguração de linhas telefônicas, construção de rodovias e ampliação do sistema

ferroviário; a expansão da rede educacional e do acesso dos habitantes à educação

básica, além do investimento na formação superior, com destaque para a criação em

1927 da Universidade de Minas Gerais; o grande aumento no número de habitantes.

O crescimento da população é dos dados mais representativos da

"pujança" que adquire a capital. Eram cerca de 55 mil habitantes em 1920, 80 mil em

1925, 140 mil em 1930 e quase 215 mil seriam contabilizados pelo censo de 1940.

Correia Dias identifica nesse período um processo de diversificação ocupacional que

alcança também as chamadas profissões intelectuais. Tal processo permite o início de

uma profissionalização, ainda que incipiente, dentro do jornalismo da cidade. Além

disso, a diversificação das atividades produtivas da cidade e do Estado, a expansão

(2)
Pedro Aleixo, Página de evocação, Estado de Minas. 07/03/53, p3. 2ª Seção.
(3)
Sobre isso ver Maria Auxiliadora Faria, Belo Horizonte: espaço urbano e dominação política. Revista do
Departamento de História, nº1, Belo Horizonte, novembro de 1985, p.26-43, e Manifestações político-sociais da
população belorizontina: 1930-1937. VI Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte, UFMG/PROED, 1987,
p.199-227; Paul Singer, Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1974; e Francisco Iglésias e João Antônio de Paula, Memória da economia da cidade de Belo Horizonte. Belo
Horizonte, BMG, 1987.
93

industrial que induz algum incremento no mercado publicitário e a preeminência do

debate político no período, marcado por forte polarização ideológica, criam condições

que predispõem a um certo fervilhamento organizacional e ideológico no espaço da

imprensa. Não se pode esquecer também que, combinado a estes fatores, o período

colhe os primeiros resultados de um esforço de educação popular produzido durante o

governo Antônio Carlos. Ainda que deva ser lida com alguma reserva, essa ação produz

conseqüências para uma possível ampliação dos públicos leitores. O número de pessoas

consideradas alfabetizadas vai, num crescendo permanente desde meados da década de

20, atingir 66,5% da população da capital em 1940, contra o índice de 27% relativo ao

conjunto do estado. Nesse contexto, o período assiste a uma certa estabilidade no

desenvolvimento da imprensa da capital, marcado sobretudo por uma perenidade maior

dos jornais frente à fugacidade dos empreendimentos editoriais até então surgidos na

cidade. (4) Por fim, a expansão do periodismo por esta época não deve ser tomada como

característica exclusiva de Belo Horizonte. Além do Rio de Janeiro e São Paulo, os dois

pólos econômico-culturais mais importantes, outros centros do país, como Porto Alegre,

Recife e Bahia, experimentam também, num processo que se prolonga através das

quatro primeiras décadas do século, o crescimento da chamada imprensa "noticiosa". (5)

A dinâmica da imprensa local no período poderia ser apreciada como


resultado de mudanças na configuração social e econômica da capital. Tal perspectiva,

em alguma medida, estaria corroborando teses clássicas da sociologia urbana que

vislumbram a cidade e produtos considerados típicos do ambiente urbano - tais como,

ciência, arte, literatura, liberdade pessoal, ampliação dos horizontes individuais - como

(4)
Alguns do principais diários do período foram o Correio Mineiro, fundado em 11 de novembro de 1926 encerrou
suas atividades em 8 de agosto de 1936; o Diário da Manhã, de 16 de julho de 1927 a fevereiro de 1928; Estado de
Minas, de 7 de março de 1928, e o Diário da Tarde, de 14 de fevereiro de 1931, que circulam ainda hoje; Diário
Mineiro circulou de junho de 1929 até pouco depois do final do movimento revolucionário de 1930; Folha da Noite,
de 1º de abril de 1929 a 6 de setembro de 1930; Jornal da Manhã, de 27 de outubro de 1931 a 27 de setembro de
1932; Correio do Povo, de 26 de janeiro de 1932 a 20 de novembro de 1933; O Debate, de março de 1934 a março
de 1937; Folha de Minas, de 14 de outubro de 1934 até 1965; O Diário, de fevereiro de 1935 até janeiro de 1965.
(5)
Segundo levantamento do Departamento Nacional de Estatísticas, publicado no Minas Gerais de 21/04/32), a
imprensa noticiosa, considerada como aquela voltada para serviços informativos de caráter amplo e público leitor
diversificado, em comparação a segmentos especializados como a imprensa científica, operária, religiosa e literária, é
a que mais cresce em termos absolutos numa comparação entre os anos de 1912 e 1930. Desde a época da
monarquia, de 1825 até 1929, foram fundados 2.953 periódicos, sendo que entre 1920 e 1929, ocorre a maior
concentração (2.105) de publicações criadas.
94

motor do desenvolvimento humano. O conjunto dessas elaborações teve seu principal

expoente na chamada Escola de Chicago. Os processos de industrialização e a

urbanização acelerados, calçados em variáveis como tamanho físico, concentração

demográfica, evolução tecnológica e tipo de organização social, seriam os móveis

característicos responsáveis pelo fato do desenvolvimento da imprensa. A cidade é

apontada como variável explicativa independente que gera efeitos profundos na vida

social, com destaque para novos tipos de comportamento humano. (6)

Preocupados com a expansão das cidades norte-americanas no início

deste século, os teóricos principais dessa abordagem privilegiam enfoques que avaliam

a influência do ambiente urbano como base de integração/desintegração social.

Verifica-se uma nostalgia de uma comunidade original de pertença, diante de uma certa

impossibilidade de, nas condições urbanas de vida, manter uma solidariedade de tipo

comunitária e territorial, existentes numa situação anterior. Tal enquadramento faz com

que essa perspectiva analítica aponte o jornalismo como instrumento para construção de

novos laços de associação entre indivíduos e grupos. O objetivo do jornalismo é

reproduzir na cidade as condições de vida na vila, diz Park, acrescentando que o

desenvolvimento das grandes cidades incrementa o número de leitores de jornais. O

jornal diário, assegura Burgess, é uma das manifestações da vida moderna

peculiarmente urbana. E Wirth assevera que "numa comunidade composta de grande

número de indivíduos que não se conhecem intimamente e cujo número é excessivo

para se reunirem num só lugar, torna-se necessário efetuar a comunicação por meios

indiretos". (7)

As críticas a essa escola são por demais conhecidas: proposições válidas

para cidades industriais típicas são generalizadas para o conjunto do fenômeno urbano;

a distinção entre rural e urbano não está nitidamente ligada à diferença entre grupos

(6)
Para um contato com textos seminais dessa escola ver Robert Park e Ernest Burgess, The City. Chicago, Chicago
Press, 1968 e os artigos de Robert Park e Louis Wirth em Otávio Guilherme Velho (org.), O fenômeno urbano. Rio
de Janeiro, Zahar, 1979. Um bom levantamento das principais referências conceituais dessa corrente dos estudos
urbanos está em Gideon Sjoberg, Teoria e pesquisa em sociologia urbana, in: Philip M. Hauser e Leo F. Shonore,
Estudos de Urbanização. São Paulo, Pioneira, 1976. p.145-174.
(7)
Louis Wirth, O urbanismo como modo de vida, in: Velho op. cit. p.102.
95

primários e secundários como sugerirá esta análise, já que os primeiros têm persistência

e também integram a vida urbana; dentre outras questões. (8) Todavia, essa idéia de

causalidade, na qual a cidade torna-se uma potência indutora de efeitos diversos na vida

social e gera uma "cultura" específica de tipo urbano, parece ter pontos importantes de

contato com a percepção corrente acerca da imprensa belorizontina no início do

segundo quartel do século.

Um conjunto de indicadores de desenvolvimento da cidade são

"escolhidos" pelos jornalistas para colocar em tela a nova situação da imprensa. Tais

referências de progresso do meio urbano sugerem o privilegiamento de uma ordem de

fenômenos muito próxima da idéia de formação de uma "cultura urbana" específica. De

certa forma, apoiados em impressões acerca de variáveis da evolução demográfica e

sócio-econômica de Belo Horizonte, nossos protagonistas procuram relacionar as

movimentações no espaço da imprensa a fatores representativos de modificações na

vida quotidiana e cultural. Alguns cronistas, por exemplo, vão sugerir que a imprensa

moderna é uma imposição do patamar alcançado pela cidade do ponto de vista do seu

"desenvolvimento cultural". O editorial de fundação do Diário da Manhã, em 1927,

afirma que "o desenvolvimento da cidade impunha o aparecimento de órgão de

publicidade afastado da dependência do governo". (9) Os responsáveis pelo jornal O

Debate, em 1934, permanecem nesse viés acentuando que a idéia de editar um

vespertino, "à altura do desenvolvimento cultural de Belo Horizonte", levou a mudanças

no jornal. Quais seriam, então, as evidências de desenvolvimento cultural citadino

organizadoras, para os "homens de imprensa", de uma realidade social a qual exige e

garante as mudanças que se processam no campo da imprensa diária da capital?

Belo Horizonte, ao abandonar o primeiro quartel do século, começava a

superar um certo bucolismo de sua paisagem. Esse traço urbano, combinado com o

moralismo e o convencionalismo ritualista das práticas coletivas dos habitantes dos

segmentos médios e de elite da cidade, e somado a uma organização marcantemente

(8)
Sobre as limitações da análise do fenômeno urbano pela Escola de Chicago ver as críticas de Ruben George
Oliven, Urbanização e mudança social no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1980.
(9)
Diário da Manhã, Diário da manhã. 16/07/27, p.1
96

patrimonialista da política, conformava um sufocante ambiente para o convívio e

desenvolvimento intelectual. (10) O mosaico das representações dos jornalistas da

imprensa local esboça um quadro que confere visibilidade significativa a um conjunto

de hábitos e costumes sociais. Aponta-se com ênfase a emergência de práticas que,

organizadoras da vida quotidiana e cultural dos habitantes da cidade, atuam como

pressuposto e resultado dessa oxigenação do ambiente urbano.

É o caso do crescente e disseminado hábito de ir ao cinema.

Contemporânea da criação do cinematógrafo, Belo Horizonte tinha na assistência de

filmes, na década de 20, atividade regular dentre os segmentos médios e da elite local-

"o bonde conduz freqüentadores de cinema," (11) diz a crônica. O costume de freqüentar

as salas de exibição da cidade era programa cotidiano obrigatório e distintivo da vida

cultural desses segmentos sociais. O negócio do cinema, por sua vez, encontrava-se em

franca expansão no final dos anos 20 e anos iniciais da nova fase republicana, com a

inauguração de novos espaços sendo acontecimento periódico. Salas tradicionais, mas

que não ofereciam mais condições de atender satisfatoriamente ao público devido ao

acanhamento de suas acomodações, eram rapidamente substituídas. O Cine Odeon da

rua da Bahia, elemento permanente no registro dos cronistas e poetas que retrataram a

época, veio abaixo em 1927. Novos "templos" eram construídos, não apenas para culto

à arte cinematográfica, mas sobretudo para a peregrinação dos citadinos na produção da

sua vida cultural e quotidiana em Belo Horizonte. (12)

"(...) Se sabe que o cinema constitui, aqui, como alhures,


a diversão predileta. (...) Belo Horizonte acompanhou sem nenhum
atraso os progressos marcantes da cinematografia, dos quais os 'talkie'
foi, sem dúvida alguma, o principal. (...) O Cine Brasil por exemplo, é
uma casa esplêndida e não só está de acordo com o progresso e a

(10)
"Foi em confronto com esse ambiente que se articulou a nova geração intelectual dos anos 20" conforme
argumenta Fernando Correia dias, Literatura e(m) mudança: tentativa de periodização, Revista do Conselho Estadual
de Cultura de Minas Gerais. II Seminário sobre a cultura mineira (período contemporâneo). Belo Horizonte, 1980.
p.123-147.
(11)
Carlos Drummond de Andrade, Vamos ver a cidade, Minas Gerais. 16/05/30, In: Revista do Arquivo Público
Mineiro. Ano XXXV, Belo Horizonte, 1984, p.65-66.
(12)
Este foi um momento, inclusive, de expansão das salas para o bairros limítrofes ou de periferia da cidade. Sobre o
cinema em Belo Horizonte ver o informativo trabalho de Márcio da Rocha Galdino, O cinéfilo anarquista; Carlos
Drummond de Andrade e o cinema. Belo Horizonte, BDMG, 1991.
97

civilização da cidade, como poderá acompanhá-la daqui até muito


tempo". (13)

O cinema será fonte inesgotável para a imprensa da época. Do ponto de

vista econômico, as exibidoras patrocinam boa parte dos anúncios publicitários nos

jornais, destacando a programação, horários e lançamentos. Constituem-se num dos

primeiros segmentos publicitários organizados e cativos. Já como uma espécie de

"pauta", colunas e, com grande freqüência, páginas diárias inteiras são dedicadas a

críticas e informes cinematográficos. Eventualmente, o hábito de ir ao cinema podia

fornecer até mesmo material para as páginas policiais: o acúmulo de gente, por

exemplo, em frente ao Cine Odeon, na Rua da Bahia, na "sessão da Fox" às 8 da noite,

no fim dos anos 20, bloqueava o tráfego e obrigava a intervenção da polícia.

"Cenas de vandalismo. A rua da Bahia esteve ontem


agitada por tropelias da polícia. Estudantes espancados covardemente a
bengalão e cassetete" (14).

O cinematógrafo aparece como objeto de atenção dos jornais por se

constituir num costume de um conjunto expressivo dos citadinos das camadas de elite e

médias urbanas.

Além de alimentar a crônica jornalística, a recém aclamada "sétima arte"

fornecia também uma perspectiva de enquadramento e abordagem discursiva. O cinema,

na prática do jornalismo, produzia uma espécie de "grade" simbólica (temáticas, figuras

sociais típicas etc.), que era recurso freqüente na construção dos textos dos jornais.

"Os filmes de Joan Crawford, que são sempre bons de se


ver, porque mostram alegres e bonitas meninas com bonitos vestidos,
estão educando a mocidade feminina no sentido do horror ao homem
rico e civilizado, que quer divertir-se e escolhe para isso as mais doces
companhias". (15)

escrevia Drummond em sua crônica diária.

(13)
Visões do passado e do presente cinematográfico da cidade, Folha de Minas. 14/10/34. P.14.
(14)
Diário da Manhã, 21/07/27, conforme referência de Márcio da Rocha Galdino, op cit.
(15)
Carlos Drummond. Garotas modernas e noivas ingênuas. Minas Gerais, 08/07/31, p.15. In: Revista do Arquivo
Público Mineiro, op. cit. p.138-39.
98

Mas o cinema rivalizava com o futebol dentre as paixões que

arrebatavam os hábitos dos habitantes da capital. No período em questão, os registros

apontam para uma mudança importante no contexto do futebol. Perdia força o esporte

cultivado pela juventude das camadas sócio-econômicas privilegiadas nos clubes

tradicionais. A própria transformação da definição do esporte de "ludopédio" para

futebol, na escrita da imprensa, sugere a incorporação do esporte nas hostes das

preferências populares. (16) O esporte focalizado pelos diários rivaliza com o futebol de

rua e dos campinhos de periferia, talvez a principal atividade de lazer das camadas

pobres da sociedade local. A atenção dos diários é, no final dos anos 20, pela ascensão

do esporte na cidade como um espetáculo de massas. (17) É nessa condição que tal

modalidade esportiva parece ganhar nova dimensão no rol das práticas objeto de

atenção privilegiada dos jornais. Por essa época, praticar e, sobretudo, assistir ao futebol

vai consagrando-se, segundo os cronistas, como um dos costumes mais generalizados

em Belo Horizonte.

Um correr de olhos nos diários do período permite a constatação de que

o novo jornalismo, com olhos voltados para temas locais e do cotidiano, acompanha

com grande destaque os eventos relacionados ao futebol. O escritor e jornalista João

Alphonsus atenta para o fenômeno em várias passagens de sua obra literária - pródiga
no registro do ambiente social de Belo Horizonte dos anos 30. É recorrente a presença

desse esporte na organização da cotidianidade da população. O futebol foi, por

exemplo, para indivíduos das camadas mais pobres, uma forma de adquirir status social.

Os jornais alimentam essa nova condição.

"Ah, o Leôncio. Está bem, agora; ganhando a vida com o


pé. De amador de futebol suburbano passou a profissional, comandante
da linha dianteira do Lusitano F.C. Veja só, coronel: aquele rapaz
estava se perdendo como simples servente de pedreiro! Um centro-
avante de primeira, com aquele corpo fino, aquelas pernas compridas...

(16)
Carlos Drummond de Andrade registra tal situação no poema A língua e o fato, Poesia e prosa. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1988. p.738.
(17)
Uma interessante introdução a uma abordagem sociológica do fenômeno do futebol no país, com a indicação de
uma série de aspectos que alcançam a realidade belorizontina do esporte pode ser encontrada em Anatol Rosenfeld,
O futebol no Brasil, Argumento. Ano 1, nº4, fev.74. Paz e Terra, Rio de Janeiro.
99

Quando os jornais falarem nas escapadas sensacionais de Leon na porta


do gol, o senhor já sabe: é ele! Me admira que o senhor ainda não tenha
visto o retrato dele nos jornais. É o homem do dia. Leon!" (18)

As páginas ou suplementos esportivos são dos recursos mais utilizados

pelos periódicos para atrair a atenção dos leitores. No caso do futebol, a cobertura das

partidas e do cotidiano desse esporte na capital merecem um destaque nas páginas dos

jornais só comparável à crônica política. Um match entre Atlético e Palestra, duas das

principais agremiações da cidade, provocava uma semana de crônicas e reportagens nos

periódicos com manchetes diárias. Segundo rememora o jornalista, Plínio Barreto,

relembrando sua infância,

"foi nesta época, já tão distante, que o nosso futebol


começou a ganhar impulso maior, surgindo para a crônica esportiva da
cidade o clássico Palestra x Atlético. Até então a coisa se resumia em
Atlético x América. A ascensão do `time verde do Barro Preto` era a
causa do entusiasmo diferente que então passou a envolver o chamado
'balípodo' ou 'ludopédio'". (19)

É certo que o futebol vai ganhando na cidade a projeção de uma das mais

populares práticas sociais. Afinal, "o futebol não impunha exigências. A bola e as onze

camisas adquiriam-se mediante rateio. Era esporte de pobre, daí sua popularidade". (20)

Mas a atenção que a "nova" imprensa passa a dispensar ao fenômeno, e a repercussão

que constrói nas páginas diárias de cobertura esportiva, parece ter menos a ver com a

ascensão da prática do esporte, já popular como forma de diversão entre o conjunto da

população, do que com um novo enfoque construído sobre os eventos que expressavam

a vida e os costumes dos citadinos. A prática e a assistência do futebol - o futebol

espetáculo de massas - eram das mais concorridas atividades em Belo Horizonte, à

semelhança do que ocorria também noutras capitais. Todavia, essa prática só passa a

constituir "fato jornalístico", ou se tornar objeto da cobertura sistemática do periodismo,

quando o futebol é visto como um acontecimento que marca o ritmo da capital, adentra

(18)
João Alphonsus, Totônio Pacheco. Rio de Janeiro, Imago/MEC, 1976.p.170
(19)
Plínio Barreto, Renhida luta no field do Barro Preto. Estado de Minas. 08/03/77, p.5.
(20)
Delso Renault. Chão e alma de Minas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988. p.165
100

a hierarquia da vida quotidiana e ganha preeminência na organização dos hábitos das

pessoas. A expansão da figura do "torcedor" e a incipiente profissionalização dos

jogadores são fenômenos característicos desse processo.

É nesse período, fim dos anos 20, que se tornam populares os chamados

"placards" (21), afixados à porta dos jornais. Neles a redação informava, em forma

telegráfica, novidades no transcurso de partidas de futebol disputadas noutras cidades e

que chegavam pelo rádio ou telefone. Há uma, como de hábito, cativante crônica de

Drummond evidenciando a importância do futebol na cidade, e o papel da imprensa

para que ele comece a se tornar um espetáculo ritualizado de massas.


"Domingo, à tarde, na forma do antigo costume, eu ia ver
os bichos do Parque Municipal (cansado de lidar com gente nos outros
dias da semana), quando avistei grande multidão parada na Avenida
Afonso Pena. Meu primeiro pensamento foi continuar no bonde; o
segundo foi descer e perguntar as causas da aglomeração. Desci, e
soube que toda aquela gente estava acompanhando, pelo telefone, o jogo
dos mineiros na Capital do país. Onze mineiros batiam bola no Rio de
Janeiro; dois mil mineiros escutavam, em Belo Horizonte, o eco
longínquo dessa bola e experimentavam uma patriótica emoção.
(...)"Para mim, o melhor jogador do mundo, chutando
fora do meu campo de vista, deixa-me frio e silencioso.
Os meus patrícios, porém, rasgaram-se anteontem de
gozo, imaginando os tiros de Nariz, e sentiram na espinha o frio clássico
da emoção, quando o telefone anunciou que Carlos Brant, machucando-
se no joelho, deixara o combate. Alguns pensaram em comprar iodo
para o herói e outros gritavam para Carazzo que não chutasse fora. A
centenas de quilômetros, eles assistiam ao jogo sem pagar entrada. E
havia quem reclamasse contra o juiz, acusando-o de venal. Um sujeito
puxou-me pelo paletó, indignado, e declarou-me. 'o Sr. está vendo que
pouca vergonha. Aquela penalidade de Evaristo não foi marcada'. Eu
olhei para os lados, à procura de Evaristo e da penalidade; vi apenas a
multidão de cabeças e de entusiasmo; e fugi." (22)

(21)
Tudo indica que os "placards" foram criação do paulistano O Estado de São Paulo em 1919, quando a redação
enviou um correspondente à capital federal para cobrir uma partida da selecionado brasileiro. O repórter enviava,
através do telefone, informações que eram expostas na fachada do prédio a cada minuto ou de acordo com o
desenrolar da partida: um ataque perigoso, escanteio, gol etc. A referência é de Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na
metrópole. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. P.66.
(22)
Carlos Drummond de Andrade. Enquanto os mineiros jogavam. Minas Gerais. 21/07/31. In: Revista, op.cit. p.
155.
101

Vale acenar também para o fenômeno do carnaval como costume

citadino que desperta a atenção dos periódicos. Apesar de ser uma festa popular de

momento bem delimitado no ano, nem por isso possui menor impacto na cobertura

realizada pela imprensa à época. Desde alguns meses que antecediam a festa e durante o

período que envolvia o chamado "reinado de Momo", os jornais voltavam-se com

particular atenção para o acontecimento. Além de artigos em profusão, os diários

promoviam inclusive uma série de atividades carnavalescas, como "batalhas de confete"

e encontro de blocos, vinculando essa ação à presença e inserção de cada periódico no

cotidiano da cidade. O destaque dos jornais é, obviamente, para as manifestações

festivas que envolvem a pequena burguesia urbana, com rara menção a comemoração

patrocinada por segmentos mais pobres da população. A organização de blocos, os

tradicionais corsos e os bailes recebem acolhida e divulgação generosa dos diários. Em

alguns momentos a dinâmica da festa carnavalesca serve até mesmo para justificar as

mudanças que ocorrem na imprensa. É o que sugere o articulista do Diário da Tarde em

crônica da primeira edição do jornal.

"Diário da Tarde, jornal essencialmente brasileiro,


aguardou o sábado-gordo para se apresentar a amável população da
capital. Ele veio de mãos dadas com El Rey Momo, e ambos foram
recebidos com as mesmas manifestações alegres de encorajamento e de
aplauso.
Não se pode estranhar, em absoluto, o caráter de
acontecimento sensacional que se emprestou à chegada das duas ilustres
personalidades. Ao contrário, nada mais lógico e natural: - Belo
Horizonte, cidade tradicionalmente pacata e burguesa, já muito que se
ressentia da falta de um vespertino que tivesse realmente essa feição -
leve, ágil, noticioso - e de um carnaval que fosse verdadeiramente
carnaval." (23)

Carnaval, cinema, futebol. São práticas significativas que se fazem

presente na capital desde os anos iniciais de sua fundação. O que parece acontecer de

novidade agora é que estas atividades começam a adquirir traços - como o alargamento

da participação de setores que têm acesso à fruição dessas atividades e uma certa

(23)
A cidade em pleno reinado da folia. Diário da Tarde. 14/02/31, p.1
102

integração cultural dos diferentes setores - fundamentais à emergência posterior do que

se convencionou chamar cultura popular de massa. (24). Tais práticas parecem representar,

na capital mineira, a introdução dos primeiros passos de "um movimento de unificação

cultural, projetando na escala da nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões"

e, com isso, possibilitando "o surgimento de condições para realizar, difundir e

'normalizar' uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de

1920". (25) Assim como ocorria com a imprensa local, também o futebol, cinema e

carnaval tinham como contraponto permanente a dinâmica e atenção dispensada às

mesmas atividades nas cidades do Rio de Janeiro e, em menor grau, São Paulo. Através

dessas "pontes", a vida cultural da cidade adquiria ares menos intimistas e estabelecia

contatos e rede de relações com outros ambientes distantes e mais cosmopolitas.

A vida social em Belo Horizonte, na visão expressa nos jornais, ganhava

novos ares através da ritualização e performance pública dessas práticas culturais. A

entrada da cidade no concerto nacional da modernização não se dava, todavia, somente

nas referências aos hábitos relacionados ao cinema, carnaval e futebol. Ao que parece,

também não procedia mais a reclamação de Drummond, por ocasião da semana

modernista de 1922, segundo a qual o que era escândalo na capital paulista não chegava

a atingir a capital mineira. Belo Horizonte agora tinha seu próprio estoque de
escândalos.

É que outro aspecto estruturante da "nova realidade social" da cidade,

para os "homens de imprensa", é o relato dos fenômenos relacionados ao conflito social

e à criminalidade. A movimentação no periodismo local inicia por essa época a

construção de sua idéia de marginalidade social, traduzida nas abundantes matérias

dedicadas à cobertura policial.

As diversas manifestações de conflito social têm participação expressiva

na constituição do cotidiano da cidade desde a sua fundação. Afinal, já dessa época um

(24)
Segundo Renato Ortiz, uma série de processos culturais verificados nas quatro primeiras décadas do século
deixam antever elementos que, rearticulados a partir dos anos 40, responderão pela emergência de uma cultura
popular de massa no Brasil. A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988.
(25)
Antônio Cândido, A revolução de 1930 e a cultura, Novos Estudos Cebrap. São Paulo, v2,4,p.27-36, abril 84.
103

amplo "mundo da desordem", experimentado pela população mais pobre, choca-se com

a ordem que o planejamento da cidade tenta impor. (26) Prostitutas, "desocupados",

moradores das cafuas, os pobres em geral ganham visibilidade e passam a ocupar

espaço destacado nos jornais com o redirecionamento editorial das publicações. A

crônica da marginalidade social segue de perto, como atesta o simples folhear dos

jornais do período, o volume de material dedicado à política e ao futebol, e obtém

atenção e repercussão entusiasmada junto aos leitores.

Estrela nas páginas dos jornais, o destaque dado ao noticiário policial

para consolidação da nova fase da imprensa local, é, entretanto, mais dissimulado,

marginal como seu tema. A idéia da força da crônica policial no periodismo transparece

nas entrelinhas da memória de uma vida boêmia da capital. Sugere-se ali o lugar que "o

mundo da desordem" ocupava nos acontecimentos que seriam objeto das notícias.

"A vida boêmia de todas as cidades sempre foi o habitar


de tipos singulares. Prostitutas, cafetinas, gigolôs e gente endinheirada
sempre serviram de fonte inspiradora de escritores e artistas. Uma vez
ou outra corria pela cidade a notícia de um caso pitoresco. Ficávamos
sabendo dos atritos e desavenças, das brigas entre amantes, que
costumavam ocorrer na madrugada. Se não se alastravam na letra de
forma do jornal, corriam de boca em boca até o comentário chegar ao
Bar do Ponto". (27)

Mapear esse setor da vida urbana tornava-se atividade do noticiário de

polícia através de "visitas à 2ª Delegacia, conversas com lunfas ou mulheres da Zona,

através das grades, a cara do delegado, antipática, secarrona, desdenhosa,

desconfiada". (28)

Algumas passagens do romance "Rola Moça", de João Alphonsus, são

também elucidativas da realidade que o olhar dos jornais passa a construir no seu

encontro com a temática da marginalidade social. O personagem Anfrísio, bacharel em

direito e funcionário público, observa de sua casa, a única "burguesa" nas imediações da
(26)
Sobre os conflitos entre as chamadas "classes perigosas" e a ordem urbana imposta pelo poder público nas
primeiras décadas da cidade ver o trabalho de Luciana Andrade, Ordem pública e desviantes sociais em Belo
Horizonte (1897-1930). Belo Horizonte, Fafich/UFMG, 1987. Tese de Mestrado.
(27)
Delso Renault, op.cit, p.34.
(28)
Cyro dos Anjos. A menina do sobrado. Rio de Janeiro, José Olympio/MEC, 1979.p.331-32.
104

favela do "Rola Moça", morro na zona sul da cidade, os eventos cotidianos que se

desenvolvem no local. Um deles, a morte de um dos habitantes da vila, é pródiga no

insinuar essa nova perspectiva adotada pelos emergentes jornais noticiosos da capital.

Ao narrar os acontecimentos a um amigo,

"Anfrísio abriu um jornal que conservara na mão durante


o enterro:
- Leia esta notícia do falecimento. Se já leu, repita
atentamente a leitura.
O outro leu:
SR. ANTÔNIO PIO DA COSTA CÂNDIDO
'Faleceu ontem repentinamente nesta capital o Sr.
Antônio Pio da Costa Cândido, chefe de tradicional família da cidade de
Montanha. Natural daquela cidade, para essa Capital veio ao tempo do
antigo Curral del-Rey, tendo participado da construção da nova cidade,
então nascente.
Passando a exercer funções na repartição dos Correios
de Belo Horizonte, no desempenho do cargo que lhe coube, fê-lo dando
sempre provas de seu caráter probo, enérgico e independente (...)
Falecendo na avançada idade de oitenta anos, pai dos
saudosos mineiros Drs. João Cândido e Antônio Cândido Filho, deixa os
seguinte filhos vivos: (...)
Seu enterramento realizar-se-á hoje às 16 horas, saindo
da rua Montanha, 17, para o Cemitério do Bom-Fim.
(...) Agora, vire a página do jornal e procure o DIA
POLICIAL. Olhe aí.
FALECEU NA VIA PÚBLICA - Populares encontraram
na manhã de hoje, nas imediações do Sanatório Montanhês, no Rola-
Moça, o cadáver de um homem. Comunicado o fato à polícia, esta fez
remover o cadáver para o necrotério. A necrópsia revelou tratar-se de
morte por insuficiência cardíaca. Entrando em diligência, pode a
Delegacia de Segurança Pessoal identificar o morto. Trata-se do
operário Antônio Cândido, de oitenta anos de idade, residente num
barracão daquelas imediações.
O corpo será enterrado hoje.
(...) O homem que depois de morto virou dois. Bom título
para uma novela. Se eu quisesse escrever novelas. Os elementos estão
aí, oferecidos pela realidade. A família enlutada forneceu os dados, para
a notícia solene, da seção social, ocultando porém o humilde cargo
posto que exerceu: carteiro. O repórter foi na delegacia e apanhou na
vala comum do livro de pequenos incidentes anônimos o falecimento
105

chapa: na via pública. O terreiro foi transformado em via pública, já


que é assim que os cadáveres humildes são encontrados pelos populares.
Ninguém morre dentro de sua moradia para ser encontrado por
populares. Note que, apesar de identificado, o repórter do DIA
POLICIAL não lhe deu maior importância: o corpo será enterrado hoje.
Corpo anônimo e humilde, literalmente corpo: lama". (29)

O acontecimento e a visada do jornalismo. A interseção de ambos

produzindo a notícia policial é esplendidamente mostrada pelo autor de Rola Moça.

Noutro momento da estória Anfrísio, ao deparar com o relato no jornal de um ritual de

macumba ocorrido na favela, constata que "a maior parte da notícia é imaginação do

repórter". Mas o caso lhe provoca a lembrança de outro episódio, onde um jornalista, no

afã de realizar uma reportagem sobre os terreiros de macumba, se meteu numa "trágica

aventura", que lhe causou a morte. Camilo, o repórter do jornal, buscava reportagens

sensacionais, "cada vez mais palpitantes e pitorescas". Mergulha no ambiente da

macumba em busca de uma série de artigos de grande repercussão.

O repórter envolve-se com uma Mãe de Santo, a mulata Josefa, com

quem se casa. Ambos morrem três anos depois. O narrador conta então a reavaliação do

ocorrido que Anfrísio faz em suas reminiscências:

"falavam de uma atração doentia pelas excentricidades,


marca de sua psicologia e revelada na própria vivacidade jornalística,
uma assombrosa facilidade de apreender estranhos pedaços de
realidade para a fome inestancável do noticiário. Entretanto Anfrísio,
com a memória provocada para todas as circunstâncias, sentia que
havia naquilo mais do que o de que se falava. Sim, a vingança da
macumba contra quem a penetrara com intuito de sensacionalismo de
imprensa. Vingança dentro da pura realidade. Sem literatura. Ou a
literatura estaria na maneira do bacharel encarar o fenômeno." (30)

Ao que podemos complementar: ou a crônica policial residia na maneira

do novo jornalismo olhar a "marginalidade"?

Cinema, futebol, carnaval e faits-divers. Na sua "nova" realidade,

aparecem como efeitos da urbanização sobre a vida quotidiana e cultural. Constituintes

(29)
João Alphonsus, Rola Moça. Rio de Janeiro, Imago/MEC, 1976. p.123-25.
(30)
Idem, p.146-151.
106

do ambiente urbano, são invocados pelos "homens de imprensa" para justificar as

movimentações que se processam no jornalismo da capital. Tal perspectiva se evidencia

em ações como a da estratégia adotada pela Folha de Minas que, logo após seu

lançamento em 1934, para ampliar seu público na disputa com outros diários da capital,

passa a dedicar todos os dias uma página com informações dirigidas a bairros

específicos de Belo Horizonte. Indicador dessa aproximação do jornal com o cotidiano

local é também a expansão do espaço dedicado aos pequenos anúncios feitos pelos

próprios leitores nos principais jornais. Fonte de receita para os periódicos, era

sobretudo uma forma de capitalizar o interesse específico de indivíduos por informações

variadas de serviços prestados na cidade para a ampliação do público leitor do jornal.

A cidade, pois, numa primeira aproximação, seria responsável pela

emergência de uma nova forma de cultura. Como amálgama de características tais como

tamanho, densidade, permanência e heterogeneidade social, e essa nova forma de

cultura, a cidade patrocinaria a emergência do que Wirth chamou de modo de vida

urbano. Tal processo social seria caracterizado pela disseminação de papéis sociais

altamente fragmentados, predominância de contatos secundários sobre os primários,

isolamento, superficialidade, anonimato, relações sociais transitórias e com fins

instrumentais, inexistência de um controle social direto, diversidade e fugacidade dos


envolvimentos sociais, afrouxamento dos laços familiais e competição individualista. (31)

Esses traços presentes no modo de vida urbano explicariam a existência de uma

propensão dos citadinos para instituírem novos mecanismos de comunicação. Tais

instrumentos, como a imprensa diária, é que tornariam possível a revitalização do

contato social restringido, tonificando laços de associação entre indivíduos e grupos.

Haveria, nas condições de existência urbana, mudanças significativas no

modo de vida, nas estratégias de sobrevivência, nos comportamentos, representações

simbólicas e nas práticas dos diferentes grupos e classes sociais. A cidade seria um fator

causal importante para o entendimento das relações sociais. A recuperação dessa

orientação analítica clássica da sociologia, e as elaborações que avança na sua

(31)
Louis Wirth, op. cit.
107

abordagem do fenômeno da cidade, são importantes, sobretudo, porque realçam o

significado de alterações na sociabilidade, na vida quotidiana e cultural. Essa visão

"mais demográfica" da cidade aponta para as conseqüências que o "modo de vida

urbano" traz ao plano das relações sociais e da sociabilidade, oferecendo pistas teóricas

importantes para entendimento do fenômeno da imprensa.

É necessário, porém, verificar como a realidade em tela, a do ambiente

urbano em sua interação com a prática jornalística, confere fôlego ou aponta limitações

a essa perspectiva. Nesse sentido, retomamos o outro ponto de ancoragem que sustenta

a interface imprensa/cidade na visão dos jornalistas da capital nas décadas de 20 e 30.

Passamos agora a indicar não mais os elementos que evidenciam os novos objetos de

atenção do periodismo local, instituídos numa suposta relação entre imprensa e vida

quotidiana e cultural da cidade, mas quais os novos olhares indicados pelos jornalistas

para que o jornalismo lide com os acontecimentos da cidade. Noutros termos, nos

discursos acerca da disseminação e assimilação de novas técnicas e procedimentos

editoriais, já incorporadas, segundo os jornalistas, em outros centros do país, também se

projeta uma imagem da relação imprensa/cidade.

Drummond é sempre um bom ponto de partida. Podemos iniciar esse

rápido percurso com a percepção que o poeta tem das mudanças que ocorrem à volta da
sua mesa no jornal. No relato de sua experiência na redação do Estado de Minas, ele faz

esta caracterização:

"Servi vagamente na redação, nos primeiros dias, sob o


comando do meu amigo Antônio Leal da Costa, correspondente de `O
Jornal` e homem verdadeiramente encantador, que fora chamado a
arrumar as coisas no matutino, dada a sua grande experiência no
ofício". (32)

A imprensa local organiza seu novo modus vivendi a partir da orientação

dos protagonistas de um fazer jornalístico considerado modelo do periodismo moderno

à época. E uma categoria importante para o fazer jornalístico de agora em diante parece

(32)
Carlos Drummond de Andrade, Um parente que faz cinqüenta anos, Estado de Minas. 09/07/77, p.1. Caderno
comemorativo.
108

ser a idéia de um necessário planejamento das atividades. Talvez os rudimentos de um

"mentalidade gerencial" e de uma racionalização, a partir daí crescente, da atividade

jornalística. (33) Um bilhete deixado pelo jornalista Antônio Leal Costa, que chefia a

redação do Estado de Minas, para o redator Carlos Drummond de Andrade, sugere as

transformações que ocorrem nessa esfera.

"Você poderia fazer para hoje uma nota para a 1ª página,


sobre a inauguração das conferências pedagógicas, mostrando a
influência que devem ter sobre a formação da nova mentalidade do
professorado, indispensável à execução prática da reforma? Não
precisa ser coisa muito grande: apenas um pouco maior do que os
tópicos. Poderá também fazer considerações sobre a complexidade da
reforma, acentuando que os seus resultados integrais só poderão se
manifestar mais tarde, isto, porém, se algum reformador futuro não
desmantelar a obra que agora se inicia. Muito afetuosamente, Leal." (34)

Não se pode mais aguardar que a cidade espontaneamente gere as

notícias. É preciso perscrutar a realidade produzindo os fatos jornalísticos. O próprio

Drummond, em seu retorno ao Diários Associados, em 1934, arrisca-se a apresentar

coordenadas para o efetivar o "bom" periodismo.

O poeta assume o papel de um cronista com o olhar voltado para o

cotidiano da cidade. Através de colunas como "Bar do Ponto" - ponto nevrálgico na

construção da sociabilidade da boêmia da capital que, sugestivamente, expandiu-se para

as páginas dos jornais - e com pseudônimos, Drummond propõe-se a ser um

comentarista que, com rapidez e sensibilidade, observará o desenrolar da vida da

cidade. É o que assegura seu "programa" na coluna "Um minuto apenas".

"Nesta seção se falará de moda, de sentimentos que


passam com ela, de atrizes bonitas de cinema, de poetas que não usam
entorpecentes nem os fabricam, e de mil outros assuntos terrestres. A
senha será: Frivolidade, que, às vezes se confunde com Espírito, outras
vezes (sem parecer) é mais grave que um tratado de Finanças. A seção

(33)
Só se pode falar efetivamente do desenvolvimento de uma mentalidade gerencial e da racionalidade capitalista na
esfera cultural a partir dos anos 60, quando começa a se conformar uma efetiva indústria cultural e um mercado de
bens simbólicos. Até então, talvez a expressão mais adequada para os "empresários" da imprensa seja a de "capitães
da indústria". Sobre isso ver a discussão de Renato Ortiz, op. cit.
(34)
Carlos Drummond de Andrade, Um parente, op. cit.
109

será curta, como a vida, mas sem as complicações da vida, como o


telefone não-automático, o calo pisado na rua (...)" (35)

Frivolidade e planejamento são senhas para entendimento do sentido

almejado para o periodismo da capital. Tais aspectos do fazer da imprensa renovada na

Belo Horizonte dos anos 20 e 30 têm como escora, no discurso dos "homens de

imprensa", uma pretensa "nova realidade" da cidade. Transformações acentuadas no

ambiente urbano teriam como tradução, no espaço específico da imprensa, a introdução

de novas técnicas de trabalho jornalístico até então incipientes na cidade.

O Estado de Minas vem a público em 1928 apostando em referências de

ruptura com o quadro tradicional do jornalismo.

"Tudo evoluiu. E o velho artigo de fundo, puxado a


adjetivos sonoros, recheado de idéias gerais - evidentemente já passou
de moda. Não o tolerariam os leitores de hoje; nem nós seríamos
capazes de escrevê-lo." (36)

O que vale agora é o entendimento de que "the ordinary man is more

interested in news than he is in political doctrines or abstract ideas" (37). Qual a razão

desse novo sentido? Um ano depois, como que a justificar o projeto em andamento, o

jornal busca responder qual o papel que almeja cumprir na sociedade da época e o

modelo buscado para o periodismo local.

"Na época do `sensacionismo americano`, nos dias febris


em que vivemos, a função precípua da imprensa é informar. O melhor
jornal é aquele que possui maior cópia de notícias certas e reais, aquele
que mais completamente pode satisfazer à curiosidade dos leitores. A
investigação da reportagem deve ser elevada ao extremo: a sua única
barreira será a consciência limpa do jornalista, o seu escrúpulo, a sua
disciplina profissional.
(...) O máximo de publicidade, pela forma mais
comunicativa, eis o objetivo da imprensa moderna. Os jornais mais
típicos da época são os norte-americanos, lançando edições completas

(35)
Carlos Drummond de Andrade, Um minuto apenas. Minas Gerais. 9 de junho de 1931. p.13. In: Revista, op.cit.
p.99
(36)
O Estado de Minas, Estado de Minas. 07/03/28. p.1
(37)
Robert Park, The natural history of newspaper. In: Robert Park e Ernest Burgess, op. cit. p.91.
110

de duas em duas horas, com o noticiário integral de tudo o que se


passou de importante no mundo, nos últimos momentos.
As seções dos diários se multiplicam ao extremo, com a
máxima perfeição, para que neles se contenha, afinal, noticiário que
possa interessar à totalidade das classes sociais, e que satisfaça a todos
os paladares e desejos.
Informar implica esclarecer. A primeira função abrange
metade, pelo menos, da segunda. De modo que a tarefa do jornalista se
reduz sensivelmente
Passaram-se os tempos dos terríveis e massudos artigos
de fundo, cuidadosamente construídos com aspectos de edificação de
cimento armado. Hoje o público pede é nota ligeira, o comentário
rápido e incisivo, que apenas complete a notícia, com os dados e
conhecimentos que ao homem de imprensa devem assistir melhor por
força do 'metier'. As exigências da vida agitada de hoje são muitas para
que possa alguém recostar-se descansadamente por 4 colunas pesadas
de jornal para ler, no fim das contas, uma coisa morna e sem sabor, que
melhor ficaria se condensada em meio palmo de coluna. O artigalhão
espanta como um troglodita. Qualquer pessoa preferirá atingir o último
andar de um 'sky scrapper' a pé, do que engolir um desses monstros
diariamente. Os editoriais para serem lidos devem resumir-se o mais
possível; e assim mesmo é quase certo que só despertarão a curiosidade
e o ânimo de uma minoria selecionada. A obra jornalística há de ser
viva, rápida, impressionante e leve. Nada de confundir livro ou
enciclopédia com jornal." (38)

Dias febris, nota ligeira. Vida agitada, comentário rápido. As alterações


que se presentificam na imprensa local teriam a ver com ritmo da vida urbana, com as

sensações e experiências que provoca em seu habitante. A imprensa, pois, deveria

acompanhar e estimular no citadino a formação de uma nova sensibilidade para a vida

da cidade. Já em 1927 o fundador do Diário da Manhã, Augusto de Lima Júnior,

recomenda a Cyro dos Anjos:

"Escreva com fogo! disse - Quero movimento, ação,


sensacionalismo! Precisamos sacudir Belo Horizonte! (...) O `Diário da
Manhã` saiu em julho daquele ano, fez sucesso, pela novidade da
paginação e pela vivacidade do serviço telegráfico e do noticiário. E
principalmente pela malícia dos sueltos, das notas, das charges". (39)

(38)
Pra que serve o jornal?, Estado de Minas. 07/03/29. p.1
(39)
Ciro dos Anjos, op. cit. p.327
111

Não há jornal da cidade que, a partir de então, não reafirme uma nova

lógica de operação. Trata-se de informar e distrair um leitor cada vez mais curioso. O

abandono de técnicas jornalísticas marcadas pelo gênero opinativo, em face da ascensão

de procedimentos que iriam se convencionar com o nome de "jornalismo informativo",

marcam o discurso da imprensa. O Estado de Minas, em 1930, é quem enfatiza:

"(...) Batalhamos para formar no maior estado do país um


órgão de imprensa moderno, vibrante, informativo, de acordo com as
novas regras do jornalismo, em que o noticiário ocupa primeiro
lugar." (40)

Era necessário impor mudanças ao tradicional fazer jornalístico para que

ele pudesse acompanhar e descrever para os habitantes da cidade novas condições de

vida material e de representação, marcadas pela contingência e fragmentação dos

contatos sociais. Belo Horizonte, aposta-se, vivia sua modernização, com todos os

elementos de estranhamento da experiência quotidiana que tal processo propicia a seus

habitantes. Daí, um novo padrão para o jornalismo se mostra necessário.

"Ontem a reportagem, bisonha, mal descia as ruas à


busca de notícias, deixando-se, o mais das vezes, ficar na redação à
espera da espontaneidade dos interessados." (41)

Na multiplicidade de ocorrências diariamente produzidas no espaço

urbano, o jornalismo cumpriria para o citadino o papel de recolher os episódios, os

fragmentos e lançá-los numa nova ordem, a ordem do jornal. É dessa maneira que se

alterariam tanto o objeto de atenção dos jornais quanto a forma de reportar eventos para

as páginas dos periódicos.

"`O Debate`, como jornal moderno, leve e completo, dará


informações abundantes sobre os principais acontecimentos, colhidos à
última hora na capital do país e transmitidas imediatamente para a
nossa redação". (42)

(40)
Estado de Minas, Estado de Minas. 07/03/30. p.1
(41)
O Estado de Minas, Estado de Minas. 07/03/36. p.1
(42)
O nosso aparecimento, O Debate. 16/03/34. p.2
112

Aceleração do ritmo social, velocidade, eis alguns aspectos marcantes

nessa percepção da imprensa na capital. São processos que se distinguem no próprio

fluxo imposto à produção dos periódicos e do equipamento social que em torno dele

gravita: as linhas férreas, que aceleram a distribuição das folhas para outros centros; a

rotativa, que incrementa fantasticamente a impressão das gazetas; a fotografia e a

possibilidade de registro instantâneo de eventos; o telégrafo e o telefone permitindo a

transmissão veloz e imediata de informes sobre acontecimentos recém ocorridos à

grande distância. O progresso técnico permite, enfim, acelerar o processo de produção

jornalístico para que os jornais pulem das impressoras às mãos dos leitores com

informações colhidas em lapsos de tempo cada vez menores, se comparados aos padrões

até então vigentes. As empresas editoras destacam o serviço de entrega na casa do

assinante, em geral até as 7 horas da manhã, servindo como mais um instrumento de

marcação do novo ritmo social adotado pela imprensa. O garoto vendedor de jornais

exemplifica o novo ritmo da imprensa e vira matéria de jornal.

"Antes do sol nascer, quando a cidade ainda ostenta


vestígios do dia anterior, já vai ele, mãos nos bolsos, olhos cosendo ao
chão, gorro meio ao lado, a caminho do jornal da manhã que deverá
sair antes dos trens se porem em marcha para o interior do Estado" (43)

Nessa renovação da produção jornalística inevitavelmente altera-se o

papel e importância do repórter. Este deve constituir como eixo de sua ação o apreço

pela observação efêmera e ligeira, em compasso com a aceleração do fluxo do tempo.

Deve, enfim, vivenciar a cidade sob nova percepção. Tal perspectiva é atestada em

artigo que discutia as tarefas dessa função em 1932, no Minas Gerais.

"Em nossa terra, os rapazes que principiam no


jornalismo como noticiaristas - os 'focas' - têm vergonha de que se lhes
dê o nome de 'repórteres'. Julgam que a reportagem é uma função
subalterna, sem mérito e sem importância, feita unicamente das
pequenas informações diárias e do noticiário trivial".

(43)
O pequeno vendedor de jornais, Diário de Minas. 6/8/30
113

"(...) O jornalista moderno não disserta nem julga: vê,


informa-se, descreve, pinta ao vivo, surpreende os fatos, revela os
acontecimentos."
(...) "Mas logo se vê que o bom repórter dum grande
jornal não pode ser qualquer borrador de papel. Ser repórter é viver
dentro da vida tumultuosa e multiforme duma grande cidade."
"(...) Na reportagem consiste a essência e a força da
imprensa moderna." (44)

A reportagem mostra-se o eixo desse periodismo renovado. Tal

concepção parece revelar tamanha força entre os "homens de imprensa" que nem

mesmo um jornal que funciona como órgão de agremiação política, como o Diário de

Minas, deixa de, ainda que com ponderações, saudar e buscar assimilar as novas

tendências.

"Tendo em conta a inegável americanização de métodos e


processos que vai influindo na imprensa do mundo inteiro, procuramos
dar, na elaboração deste matutino, um lugar de relevo à coleta de
informações locais, do país e do estrangeiro." (45)

Para uma cotidianidade marcada pela vida "nervosa", "agitada", por dias

"febris" onde passam uma procissão de homens e eventos, em processos cujo tempo é

cada vez mais "acelerado", exige-se, pois, uma nova imprensa. Sua base será um

jornalismo no qual a produção do seu olhar/narrativa específicos deverão se adequar a

esse ritmo e feição da cidade. Fortuito, rápido, observações breves, colado aos

acontecimentos que se sucedem na cena urbana, o jornalismo buscará ser imagem e

semelhança de uma nova sensibilidade e percepção dos homens. Uma referência, longa

porém elucidativa, às reflexões promovidas por articulistas dos jornais Diário da Tarde

e Estado de Minas, acerta com precisão as novas maneiras de atuar que se impõe à

imprensa na sua interface com uma cidade em "tempo de progresso". O jornal, para

eles, faz parte e dá forma ao

(44)
O repórter, Minas Gerais. 21/04/32.
(45)
O jornal - Como o imaginamos, Estado de Minas. 07/03/36.
114

"quotidianismo de uma agitação intensa, procurando resumir os fatos,


exprimir aspirações, surpreender os acontecimentos na sua
simultaneidade e na sua trepidação.
A atualidade, o informe, a notícia, o comentário, dentro
do conceito oportuno e próprio, traçados com a leveza que não exclui a
seriedade, eis o feitio adequado a um jornal vespertino que visa
sobretudo bem informar e bem orientar. Para isso, recorreremos a todas
as inovações informativas - o rádio e o telefone, o telégrafo e a
correspondência - ativando o quanto possível as informações dessa
procedência, de modo que o belorizontino, todas as tardes, saberá o que
de sensacional e novo, curioso ou importante, ocorre no Brasil e no
mundo.
Mas, a reportagem é a movimentação de um jornal
moderno. E o `Diário da Tarde` desenvolverá, pela atividade dos seus
repórteres, os serviços informativos, destacando e singularizando a
notícia de sensação ou o fato novo e palpitante." (46)
"Faltava o jornal moderno que servisse à curiosidade
inquieta do leitor, que desse ao público, cada manhã, as últimas notícias
da cidade, do país e do mundo, colhidas através de uma reportagem
ágil, vigilante e segura". (47)
"Quando as notícias não podem mais se transmitir de
vizinho a vizinho, como nos bons tempos de vida plácida, o jornal fica
sendo a fonte de informações. E todos têm o seu jornal, que lhes dá pela
manhã o primeiro contato diário com o mundo.
O 'Estado de Minas' adaptou-se prontamente a essa
indeclinável feição da imprensa moderna - a informação. A vertigem do
tempo não comporta mais os órgãos doutrinários, serenos e solenes na
pregação de sua fé ou agressivos e vibrantes na polêmica. A tendência
imperiosa é da objetividade, muitas vezes fria e sem nervos, mas, ao
cabo, sempre uma exigência do público. Pelo menos, estará nisso a
única conciliação possível entre as inúmeras inclinações da multidão de
leitores de que o jornal precisa e que é a multidão apressada, sem tempo
para deter-se num artigo de fundo com a mesma pachorra de quem
medita um capítulo da `Imitação de Cristo`. Há hoje uma íntima relação
entre o jornal e o bonde, entre o jornal e a sala de espera.
(...) Neles os homens de negócio e os operários, os
curiosos e os políticos recolhem os dados de que precisam para orientar
sua atividade.
(...) O repórter ágil e vivaz substituiu o ensaísta da
câmara lenta. O acontecimento obscureceu a prédica. Alguns poderão
não gostar da transformação mas a esses se deverá dizer que o que a

(46)
Palavras simples e sinceras, Diário da Tarde. 14/02/31. p.1
(47)
Dario de Almeida Magalhães, Órgão de Informação, Estado de Minas. 08/03/36. p.1
115

determinou não foi o gosto, e sim o tempo. Enfim adquiriu o jornalismo


uma técnica própria e autônoma, criando-se também para ele uma
categoria das mais nobres nos quadros da atividade intelectual." (48)

Parece evidente que os elementos que delineiam uma imagem de cidade,

na percepção dos indivíduos que fazem a imprensa de Belo Horizonte, se aproximam,

em larga medida, da idéia de que a prática periodística tem que acompanhar um

processo de reeducação dos sentidos do citadino. Tal noção permite-nos fazer uma

analogia com as perspectivas analíticas que Bresciani agrupou e chamou de "quarta

porta de entrada" dos estudos sobre a questão urbana. É uma perspectiva que reúne

reflexões sobre o fenômeno da cidade atentas à formação de uma nova sensibilidade do

habitante do meio urbano. (49)

As perspectivas analíticas enfeixadas nessa "porta de entrada" tem como

solo comum o entendimento de que o ambiente urbano produz um contexto propício à

emergência de novas formas de experiências. Essas experiências são marcadas por

características como fragmentação, contingência, descontinuidade e de instituição do

individualismo como um valor fundamental da vida social. Simmel e Benjamim são

vistos como autores recorrentes nesse olhar que percebe a cidade como campo por

excelência da experiência moderna.

Nesse viés, a cidade, por um lado, é apresentada como corporificação de

um processo de aceleração do ritmo de vida responsável por mutações avassaladoras

sobre o conjunto das disposições mentais dos indivíduos. A readequação psicossocial do

ser metropolitano exige a mobilização crescente de energias ou, na incapacidade dessa

resposta, redunda em mecanismos como a atitude blasé. (50) De toda forma, essa visão de
cidade destaca o isolamento e uma perda de conexão que passam a ser condições

básicas de uma nova forma de percepção dos citadinos. Face ao adensamento urbano, ao

(48)
Milton Campos, A imprensa de ontem e a de hoje. Estado de Minas. 08/03/36. p.1
(49)
Maria Stella Bresciani, As sete portas da cidade, Espaço e Debates. nº 34. São Paulo, 1991. Sobre a formação de
uma sensibilidade do indivíduo com a expansão das cidades ver, também da mesma autora, Metrópoles: as faces do
monstro urbano (as cidades no século XIX), Revista Brasileira de História. SP, v.5, nº8/9, set.1984/abr.1985.
(50)
Conforme Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, in Otávio Velho, op. cit.
116

crescimento demográfico acelerado, o indivíduo dentro da "multidão" própria do

ambiente citadino, torna-se parceiro da solidão, de um isolamento essencial.

Por outro lado, o ambiente metropolitano permite a liberação do

indivíduo do controle e supervisão por outras pessoas, gerando aversão à sujeição de

seu comportamento na intimidade por códigos morais diferentes do seu parâmetro

pessoal. Nesse quadro de referência, o homem da cidade é aquele que desenvolve um

processo permanente de individualização, em busca da identificação progressiva de

interesses próprios. "Simmel está desde o primeiro momento associando a cidade

moderna, a metrópole, à possibilidade intelectual de libertação e realização do

indivíduo no sentido pleno da amplitude do pensamento, do 'cultivo' interior,

aprimoramento da subjetividade. Trata-se da libertação, pelo pensamento, traduzida na

reserva e no estranhamento ao controle provinciano". (51)

Assim, novos objetos e um novo olhar na imprensa da capital são

processos que andam lado a lado com o desenvolvimento urbano, segundo a visão dos

cronistas. A cidade, seja no crescimento de seus indicadores demográficos ou na

expansão de sua topografia, seja por mudanças no campo político e econômico, impõe

nova configuração aos contatos físico e sociais de seus habitantes. E, no mesmo

movimento, o fenômeno urbano engendra novas formas culturais responsáveis pela


remodelação do comportamento citadino.

Não podemos nos esquecer, contudo, que a fala do jornalista que abriu

essa parte do trabalho, se apontava Belo Horizonte como um terreno fértil para germinar

e crescer uma imprensa renovada, também imputava à cidade a condição de dique

fundamental para o exercício de uma prática editorial "mais moderna". Dessa forma, as

possibilidades abertas à ação dos diários no desenvolvimento material e espiritual da

capital constituem apenas um dos sentidos de movimento do pêndulo. Não há como

compreender o que se verifica na cidade, na perspectiva dos "homens de imprensa",

desconsiderando o vaivém desses discursos. Como contraponto à perspectiva da cidade

exemplo de progresso surge a dúvida: será mesmo a capital capaz de propiciar uma vida

(51)
Helena Bomeny, Mineiridade dos modernista. Tese de doutorado, Iuperj, 1991. p.39.
117

vertiginosa nos anos 30? Belo Horizonte do Diário da Manhã, do Correio Mineiro, do

Estado de Minas, da Folha de Minas com estilo e ares de metrópole?

Lembremos que os indivíduos que povoam os hábitos de freqüentar

futebol, cinema, bailes de carnaval, registrados como novos temas dos jornais, dizem

respeito majoritariamente ao grupo social formado pelos estratos médios urbanos. São,

sobretudo, os citadinos ligados a profissões liberais de formação superior e muitas vezes

vinculados à burocracia estatal, apesar de todos estes costumes terem relação também

com as práticas culturais e de lazer das camadas populares. Em suma, os protagonistas

centrais dessas práticas visadas pela imprensa diária são também os leitores em

potencial dos jornais.

E é exatamente no registro da experiência citadina do "seu leitor" que a

"moderna", "febril", "inebriante" Belo Horizonte parece claudicar como uma realidade

inquestionável. O Diário da Tarde, nesse sentido, dá como que um depoimento dessa

ambigüidade através de uma crônica publicada em 1931. O jornal relata as dificuldades

para que a pequena burguesia urbana tivesse acesso a uma vida cultural ativa numa

cidade como a Belo Horizonte da época.

Reclamando da falta de opções para lazer na cidade, o narrador inicia o

relato identificando exatamente a ocupação social típica dos setores médios da


sociedade da capital: o funcionário público. O ritmo do seu trabalho é o ritmo da cidade.

"Belo Horizonte é, toda ela, um grande livro de ponto.


Com os indefectíveis minutos de atraso. (...) Ninguém se liberta do
contágio alarmante do funcionário público. E os amanuenses somos eu,
você, e as meninas bonitas que olhamos, furtivamente, nos bondes que
levam às secretarias a grande fauna de estômagos mal alimentados.
Quando não é pior: a maior parte, leitor imaginário, pertence ao
número dos `contratados`.
Quando não amanuense e contratados de uma secretaria,
pelo menos funcionário público da vida sem dinheiro. O que não deixa
de ser o mesmo". (52)

(52)
À sombra das secretarias, Belo Horizonte aprendeu a esconder-se da vida ao ar livre, Diário da Tarde. 20/02/31,
p.1
118

A ocupação burocrática se confunde com a necessidade de administração

da rala vida cultural na cidade. O amanuense/leitor imaginário prossegue seu itinerário.

Depois de aventar a possibilidade de passar pelo parque municipal, intenção logo

abandonada já que lá nada acontece e a vida apenas "escorre", retorna para

"um itinerário certo, de segunda a sábado: o trabalho e depois do


trabalho, se há dinheiro, cinema, e se não há, o doce lar e uma viagem
ao Bar do Ponto, onde se comentam as novidades políticas do último
mês. E no domingo, doce lar outra vez.
E a vida, incerta, caminha devagar pelas ladeiras
enormes. (Até parece literatura)." (53)

O jornalista segue seu desfiar do entediante cotidiano da cidade que,

apesar de "grande cidade", em nada se assemelha às opções oferecidas por metrópoles

como Rio de Janeiro e São Paulo. Os dois principais centros urbanos do país,

certamente já visitados e muito percorridos imaginariamente através da imprensa destes

estados, como que lembravam de um estilo e ritmo de vida do qual os belorizontinos se

viam privados.

O contraste é feito, por exemplo, com a figura dos esportes náuticos, ou

mesmo a mais "inofensiva" natação, que na capital mineira não se constituíam em

opções. (54)

"Os banhos de sol, que dão alegria e até saúde, segundo


os clínicos, jamais foram praticados em Belo Horizonte. E a natação é
um esporte proibido. Só há dois recursos: a fazenda do Acaba Mundo e
o córrego do Arrudas. Mas, naquela, a iniciativa é particular e no
córrego do Arrudas a Polícia não consente que os meninos pobres de
arrabalde se banhem nas suas águas barrentas. Resultado: as meninas
da Praça tem uma cor doentia e os rapazes também.
O América anunciou que iria construir uma piscina para
os sócios. Falou-se em fazer o mesmo no Parque Municipal. Mas os
projetos foram esquecidos. E essa coisa tão vulgar em outras cidades,
continua a ser, para nós, um problema de metafísica. O Prado Mineiro
não comporta uma pista de corridas. Mas na Pampulha, oh! na
Pampulha vai haver uma do outro mundo.
(53)
Idem.
(54)
Sobre a discussão acerca do papel dos esportes na redefinição da vida urbana e a percepção do citadino ver
Nicolau Sevcenko, op. cit.
119

Projetos, projetos, projetos". (55)

Não se percebe, pois, a cidade de vida vertiginosa aventada

anteriormente. No máximo, um sonho de urbe. O ritmo acelerado, as mudanças nos

costumes, a efervescência do mundo urbano escapam ao relato do cronista. E, da

melancolia que brota da imagem dos passeios impossíveis trilhados na cidade projetada,

resta o que a cidade vivida parece oferecer como consolo: cinema e futebol.

"Uma coisa, porém, ainda consola boa parte do povo: o


futebol. Mas a maioria não conhece outra diversão que fuja do cinema.
Mário, Ninão e Canhoto enchem nossas tardes mais bonitas de gritos,
torcedores e vitórias esportivas. Pic-nics, passeios ao campo, nada
disso. O futebol é rei." (56)

Futebol, cinema, carnaval, o próprio acontecimento sensacional e

escandaloso da crônica policial, parecem ser, ao mesmo tempo, prova do

desenvolvimento cultural da cidade, que impõe a imprensa moderna, mas também

evidência de que somente a realidade dessas práticas na capital não sustentam um

jornalismo inovador. A cidade, reclamam agora os jornalistas, não gerava o elemento

básico dessa nova imprensa: notícia.

"As notícias eram escassas há 50 anos, em uma


cidadezinha despretensiosa, onde só existiam duas indústrias (...) o
comércio não se arriscava aos grandes empreendimentos, por medo da
falência, e o povo se referia à Praça Raul Soares como um lugar
longínquo, onde existia até morro, no local onde hoje fica a fonte
luminosa. Tudo se resumia à burocracia estatal e ao seu bairro, o dos
Funcionários, pequenas áreas da Floresta, o centro com seus bondes no
Bar do Ponto e os estudantes". (57)

Quase nada de metrópole, tudo que lembrava província. Belo Horizonte,

ao abrir e adentrar o segundo quartel do século, marcava, assim, uma certa ambigüidade

na sensibilidade dos protagonistas da imprensa. Afinal, a progressista Belo Horizonte

ainda guardava dentro de si um "cidadezinha qualquer", como diria o poeta. Uma

(55)
Idem.
(56)
Idem.
(57)
Tempo de fato e mito, Estado de Minas. 08/03/77, p.4. Caderno comemorativo.
120

cidadezinha onde as atividades quotidianas seguem num ritmo cadenciado, marcando o

passo da "vida besta".

Nesse sentido, a Belo Horizonte do progresso ladeia e se confunde com a

capital provinciana. Analogamente, podemos dizer que são representações polarizadas

pelo que Hardman chamou de perspectivas eufórico-diurno-iluminista e melancólico-

noturno-romântica, configurações típico-ideais no interior de um mesmo continuum

mental feito de múltiplas e contraditórias combinações. (58) Pois, se não se trata de

cotejar a "grande cidade" narrada anteriormente com uma pretensa cidade real,

tampouco nos propomos a tomar como descrição da realidade a capital meio ronceira

agora apresentada. De fato, a historiografia da cidade, como já apontáramos

anteriormente, indica que, na conjunção dos anos 20 e 30, Belo Horizonte experimenta

uma aceleração no seu processo de urbanização e industrialização. Processo esse que

resulta em novas condições de vida material e cultural, embora ainda muito aquém da

cidade desejada pelos jornalistas. A dimensão provinciana da capital sugerida nos

discursos não deixa de ser, em alguma medida, também realidade efetiva desse meio

urbano. Todavia, tais condições não podem ser traduzidas como a de uma situação de

insulamento da cidade. Belo Horizonte, desde o momento mesmo de sua fundação, não

estava à margem da ordem histórico-cultural que se impunha no país, articulada à

expansão mundial do sistema capitalista. Tal processo, e todas as suas decorrências,

como alterações significativas na percepção espaço-temporal das pessoas, tinham

incidência também sobre a cotidianidade dos habitantes da capital. Não era estranho ao

belorizontino dos segmentos médios, por exemplo, o contato com inovações

tecnológicas que estavam no centro dessas transformações: a eletricidade é equipamento

(58)
"Esse continuum apresentaria duas polaridades básicas, remetidas, à maneira de tipos ideais, a concepções de
mundo que se desenvolveram como verdadeiras tradições fundantes do processo de modernidade: formas culturais
híbridas e combinadas movimentavam-se - por aproximação ou por oposição - entre, de um lado, o que poderíamos
nomear como sendo um pólo eufórico-diurno-iluminista, lugar de adesão plena e incontida aos valores próprias da
civilização técnica e industrial, numa configuração que lembra determinada sorte de deslumbramento reificado,
responsável pela produção, em alguns casos, de certas utopias tecnológicas futuristas; e, de outro lado, na
extremidade oposta, o que chamaríamos de pólo melancólico-noturno-romântico, lugar por excelência da rejeição, às
vezes sob o signo da revolta, mas, de todo modo, agônica e desesperada, do mundo fabricado nas fornalhas da
revolução industrial, figurando, assim, imagens emblemáticas de máquinas satânicas e criaturas monstruosas, em
todas as suas possíveis variantes, herdadas, na origem, de tradição anticapitalista e anticivilização moderna própria
do romantismo". Francisco Foot Hardman, Antigos Modernistas, in Adauto Novaes (org.), Tempo e história. São
Paulo, Companhia das Letras. 1993. p.292.
121

urbano desde os primórdios da capital; a intensificação das trocas materiais e simbólicas

tem na expansão de linhas férreas um poderoso aliado; o telégrafo, o linotipo, a rotativa,

o aperfeiçoamento da fotografia, o cinema influenciavam e organizavam sobremaneira o

ritmo da vida urbana. O traçado e a concepção urbanística da capital, por sua vez,

calcados num ideal de engenharia pública que traduzia uma perspectiva de progresso e

modernização industrial, impunha efetivamente formatos e condições materiais de vida

à população distintos das cidades construídas sem o ideal do planejamento. Tais

fenômenos se dão articulados e no interior do processo de construção de fato do Estado

Nacional, deflagrado com a República no século XIX, e que implica ações de

homogeneização e padronização vistos como necessário à edificação de uma identidade

nacional. Além disso, não se pode esquecer, Belo Horizonte convive e se produz

também, desde as primeiras horas, através da ação de dois personagens emblemáticos

dessa "vida moderna" em expansão: o imigrante e o movimento operário. (59) Pode-se,

certamente, discutir se esses elementos estão configurados no interior de um processo

de formação de uma sociedade urbano/industrial ou se restringem, nesse momento, à

difusão cultural de um gênero de vida, o burguês ocidental, tipicamente citadino. (60)

Todavia, não buscamos contrapor cidade física/cidade imaginada. Nosso

objetivo foi o de revolver um conjunto de idéias que, no ato de plasmar imagens de


cidade, produz coordenadas simbólicas poderosas para desencadear e possibilitar uma

prática cultural específica. Em suma, trata-se de perceber aspectos da lógica de um

sistema de significações que organiza a prática do jornalismo e, a nosso ver, se constitui

em elemento essencial para o entendimento da movimentação ocorrida no mundo da

imprensa local.

Nesse sentido, seria importante juntar novamente aquilo que a ligeira

análise feita até aqui separou: Belo Horizonte, traduzida simultaneamente em

(59)
Sobre a presença da classe operária em Belo Horizonte nas três primeiras décadas da cidade ver Maria
Auxiliadora Faria e Yonne de Souza Grossi, A classe operária em Belo Horizonte (1897-1920), V Seminário de
estudos mineiros. Belo Horizonte, PROED, 1982.
(60)
O novo gênero de vida diferencia a população urbana em níveis econômicos, "porém muito mais culturalmente,
sendo que as camadas superiores adotam como sinal distintivo o requinte e um arremedo de cultura intelectual. Sobre
isso ver Maria Isaura Pereira de Queiroz, Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo,
LTC/EDUSP, 1978.
122

cosmopolita e provinciana. Uma cidade que se materializa na aspiração de espaço

propício ao desenvolvimento cultural e na percepção de um ambiente provinciano. A

capital é, pois, uma espécie de solução onde restam dissolvidas essas duas perspectivas

de vislumbrar a relação imprensa/cidade.

Conforme Bomeny, Belo Horizonte é o palco e cenário da construção de

identidades dos intelectuais, luta empreendida desde a sua inauguração. (61) Planejada

para se tornar centro de unificação política, indutor de desenvolvimento econômico e

irradiador de cultura, a capital ainda se mostrava profundamente provinciana nos

twenties. Até então, a intelectualidade da capital ainda "sofria do insulamento, do

isolamento do 'cosmos'. A atividade intelectual se alimenta do mundo, dos grandes

centros, do acesso à informação, do diálogo, do convívio estreito com a produção

universal. Ser intelectual na Belo Horizonte pequena, interiorana e distante era estar

condenado ao isolamento da 'corte' que interessava. O Rio de Janeiro e São Paulo, mais

do que exercer fascínio, lembravam aos mineiros aquilo a que estavam condenados: ao

provincianismo tão distante de tudo que as obras universais traziam aos olhos e sentidos

do homem de letras. Condenados estavam ainda à convivência com o limite que a

formação interiorana impõe, e ao drama de, sendo provincianos, sentirem e pulsarem

intelectualmente pelo mundo". (62)

A tensão entre o isolamento e o impulso ao cosmopolitismo é caminho

inescapável para explicação de como é produzido o mundo da "Rua da Bahia".

Pedacinho de metrópole, fragmento de vida cosmopolita, ponto nevrálgico da cidade, a

rua metaforiza o coração e cérebro de Belo Horizonte. Reproduzia para a

intelectualidade, como forma de amenizar o isolamento, a sensação cosmopolita negada

por aquele meio urbano. Assim, não passaria de uma espécie de miragem a idéia de que

Belo Horizonte era capaz de garantir a emergência da individualidade do cidadão

urbano, no sentido proposto por Simmel, ou mesmo das formas culturais urbanas,

pensadas pela Escola de Chicago. A lógica do "mundo rural", com tudo que tem de

(61)
Helena Bomeny, Cidade, República, Mineiridade, Dados - Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol.30, nº
2, 1987, p187-206.
(62)
Idem p.192
123

personalismo, tradicional na conformação das relações sociais, transfere-se para

relações que permeiam o espaço urbano da capital. Para esse segmento social existia, na

realidade, a convivência entre o universo urbano como valor face a uma situação ainda

com a marca do provinciano, numa polaridade que é própria ao fenômeno urbano em

suas variantes latino-americanas. (63)

Por esse caminho, talvez possamos ver na imprensa um dos mecanismos

acionados para diluir a realidade de isolamento que a capital impunha à vida intelectual.

Um artifício, uma forma de ampliar uma experiência que, a rigor, se chocava com os

limites sociais, culturais e institucionais impostos pela cidade. A imprensa tornava-se

uma das formas de pulsar intelectualmente o mundo.

Ocorre, todavia, que a visão da Belo Horizonte provinciana carrega

também suas convenções. Na impossibilidade de significar desenvolvimento, progresso,

a cidade pode não ser percebida somente como obstáculo a formas modernas de

experiência. A Belo Horizonte que falta, a metrópole que poderia desenvolver um tipo

de imprensa "moderna" não é, necessariamente, mais desejada do que a cidade vivida

pelos "homens de imprensa".

Cyro dos Anjos, expoente do periodismo local, parece nos alertar para tal

questão. Quando de sua mudança para Belo Horizonte, em 1923, vindo do interior após
concluir o colegial, ele constata que "embasbacado não fiquei, mas entusiasmo sentia.

Uma coisa era ter estado em Belo Horizonte passageiramente, e outra, habitá-la, gozá-

la". (64) E sentir a cidade é experimentá-la em toda a ambigüidade que promove na

sensibilidade dos indivíduos.

"Largas e vazias eram as ruas de Belo Horizonte em


1923, mas tudo me parecia trepidação, formigamento, em contraste com
o paradeiro que Santana me deixara na retina. (...) Desapontamentos
viriam. O mundo que me esperava não conferia com o imaginado". (65)

(63)
Conforme hipótese desenvolvida por Richard Morse e citada por Helena Bomeny, Guardiães da razão. Rio de
Janeiro, UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994. p.65.
(64)
Cyro dos Anjos, op. cit., p.199
(65)
Idem, p.199
124

Vendo Santana no contraluz, não duvida: Belo Horizonte servia-lhe

como metrópole. Ansioso pelo footing na Praça da Liberdade, gozando imaginariamente

as sessões possíveis no cinema da capital, apossando-se, enfim, de um status de cidadão

metropolitano, o protagonista perceberia, em seguida, outra face da cidade. A Belo

Horizonte com a qual se deparava produzia também um distanciamento nas relações

afetivas com os amigos, que na capital não mantinham o mesmo entusiasmo da amizade

cultivada no interior. Além disso, a capital parecia perpetrar uma sensação de

impotência e estranhamento ante a lógica de funcionamento das relações nessa

sociedade. Vazios também pareciam os contatos naquela cidade em face do espaço

coletivamente apropriado da comunidade perdida.

"A pequena metrópole crescia, avolumava-se, esmagava-


me. (...) Imersos no seu mundo novo, que nada tinha de comum com o
meu, os amigos deixavam-me outra vez tão solitário como dois anos
antes, ao partirem de Santana."
"Em Santana, o Largo de Cima, o de Baixo, a Rua do
Bispo - velha estrutura emoldurada pelo hábito - infundia-me confiança,
apaziguava-me. Penduravam-se das coisas o mormaço e o tédio, mas o
mundo físico sustinha de certo modo o mundo moral. Na álgida Belo
Horizonte, não havia escoras. Se me via só, a cidade avultava dentro de
mim, ensoberbava-se, negando o afeto que eu, mendigo orgulhoso, pedia
sem estender a mão". (66)

Se Belo Horizonte não era o Rio de Janeiro almejado em muitos

momentos, não se assemelhava à melancolicamente lembrada Santana de outrora. Mas

podia ser vivida como metrópole, no sentido de produzir algum tipo de estranhamento

para a vida dos habitantes. Uma cidade superficial, "a 'cidade racionalista' que liquida as

referências individuais e coletivas. O individual, o qualitativo, o heterogêneo são

excluídos do espaço urbano". (67)

Para os protagonistas da imprensa o que importaria, nesse caso, seria que

os jornais lhes possibilitassem estabelecer contatos sociais que o mundo de pessoas

aparentemente estranhas da cidade impedia. Em alguma medida, a imprensa poderia,

(66)
Idem, p.275
(67)
Olgária Matos, Os arcanos do inteiramente outro. São Paulo, Brasiliense, 1989. p.79
125

pois, ser vista também como um instrumento para desenvolver alguma forma de senso

comunitário dentre aquele agrupamento de jornalistas. Ela permitiria aos seus

praticantes instituir ligações com o ambiente urbano de forma que o processo de

diferenciação e "anonimato" fosse contrabalançado pela emergência de novas formas de

reciprocidade social. A esse restrito núcleo intelectual a imprensa possibilitaria

resguardar uma cidade onde os habitantes se auto-reconheçam e sejam reconhecidos

pelos outros. Em suma, ajudaria a estabelecer espaços de convivência e sociabilidade

em tese perdidos. Subtraídos não somente pelo crescimento espacial da cidade, mas pela

emergência de novos ritmos de vida e formas de experiência social.

A relação imprensa/cidade poderia estar, pois, sendo definida também

pela referência a uma percepção dos jornalistas de planos variados de convivência.

Fazer imprensa na Belo Horizonte dos anos 20 e 30 seria, por um lado, a possibilidade

de alcançar ares cosmopolitas e, por outro lado, a reconstituição de alguma sorte de

senso comunitário. A renovação da imprensa coloca em perspectiva a possibilidade de

progressiva liberação dos indivíduos de laços de dependência pessoal mas pode também

servir de anteparo para a condição de estrangeiro no mundo urbano, de solitário num

"mundo de estranhos". Diante de uma virtual impossibilidade de manutenção de antigos

modos de solidariedade comunitária e territorial, o fazer imprensa poderia representar

novos laços de associação.

Assim, o jornal é para os "homens de imprensa" uma maneira de possuir

e exprimir a cidade. O dilema dos jornalistas, que se traduzirá nas suas representações

em dilema do espaço da imprensa local, é se confrontar com uma espécie de fome que

têm da cidade e um certo paradoxo do "olho maior que a barriga". A imprensa renovada

que se presentifica por esta ocasião em Belo Horizonte percebe a cidade como sua

parceira indeclinável na instalação da modernidade editorial. Mas, talvez até por verem

essa modernização da imprensa pelas lentes da imprensa dita "nacional" - a de Rio e

São Paulo - acreditam que a sua prática aspira a mais do que pode a sua cidade.

Talvez, percebendo o virtual processo de nacionalização da imprensa dos

centros principais, os homens da imprensa de Minas estejam começando a se debater


126

com o problema de buscar o espaço particular da imprensa da capital mineira. E, nesse

processo, a representação que fazem os jornalistas da relação imprensa/cidade não se

baseia numa percepção uniformizadora da sua experiência. A ambigüidade e a variação

são modulações mais evidentes dessas mudanças, vistas de dentro, no periodismo da

capital. E a cidade, aos invés de simples realidade espacial ou demográfica, mero

contexto de ação ou responsável por um estado de espírito específico, torna-se uma das

formas de se pensar a questão da renovação da imprensa. A partir do seu dilema

particular os "homens de imprensa" de Belo Horizonte deixam um rastro, uma pegada: a

experiência da cidade aparece como a lógica das novas práticas jornalísticas.


127

5. Considerações finais: os sentimentos da infância

Informativa e independente. Tal binômio passaria a ser a chave para os

jornalistas qualificarem a imprensa que emerge em Belo Horizonte no entremeio dos

anos 20 e 30. O cronista Jair Silva sintetiza com argúcia o novo quadro de referência do

periodismo local. Em crônica que inaugura coluna assinada no número inicial do jornal

"Folha de Minas", ele apresenta o contexto em que surge o diário - o momento

imediatamente posterior a um processo eleitoral - e assegura que a "Folha de Minas",

"não tendo compromissos, poderá dar aos


acontecimentos o devido destaque. (...) Qualquer jornal, ao nascer,
adota este programa impreciso e vulgar: independente e noticioso.
Período que corresponde ao da infância. Depois a experiência e os fatos
se encarregarão de colocá-lo junto do governo ou do povo. O jornal
mais lido é aquele que descreve com brilho e com minúcia o
descontentamento popular. Em todo caso, a reflexão agora tem pouca
importância. Neste momento parece que o povo está com o governo. A
oportunidade é boa para o aparecimento de um jornal". (1)

Um jornalismo diário independente e noticioso. Esse par de referências

constitui a simbologia primordial de uma estrutura de sentimentos que organiza e

orienta a prática dos agentes no âmbito da imprensa de Belo Horizonte. Não se trata,

vale lembrar, de noções que atuem como formas de descrição sintéticas de uma dada

realidade social do momento, aquela que se estrutura em torno da prática do jornalismo

na capital. "Independente" e "noticiosa" são criações e traduções de valores e

perspectivas que informam a conduta dos "homens de imprensa" e (re)significam a ação

dos diferentes agentes, de forma a constituir um campo próprio e específico no âmbito

da imprensa local na interseção dos anos 20 e 30 na cidade.

Este compósito de imagens mostra-se fundamental para que a prática do

jornalismo em Belo Horizonte possa se orientar não mais em relação ao problema da

fundação de diários, que apareciam em profusão na cidade das primeiras décadas. A

questão que se articula em torno desse sistema de significações é o de valores que

(1)
SILVA, Jair. Cinco minutos de intervalo. Folha de Minas. 14 de outubro de 1934. p.2
128

orientem a conduta dos agentes e legitime a permanência de projetos editoriais. É dessa

forma que o mundo da imprensa se transforma em espaço, não só aglutinador, mas que

funde trajetórias e perspectivas oriundas de diferentes setores sociais. Na imprensa da

época encontra-se uma das soluções onde se misturam literatura/história/política. E é

esse processo que torna a noção de produtores culturais mais adequada e abrangente

para o trato com os atores em cena do que, por exemplo, o conceito de intelligentsia.

Não se propôs aqui uma terminologia calçada numa aparente neutralidade axiológica

para organizar e descrever uma prática social. Supôs-se, na verdade, que os agentes que

gravitavam em torno do mundo da imprensa naquele momento promoviam, de fato, a

produção de um campo cultural, com valores, hierarquias e que postulava certa

legitimidade frente a outros campos sociais.

Não se pode ignorar que o jornalismo local vivia um momento no qual,

espelhando-se na imagem da imprensa dos centros principais - Rio de Janeiro e São

Paulo -, busca remodelar-se e aderir aos movimentos mais gerais que o periodismo

nacional engendrava. Nesse mesmo processo, todavia, a imprensa local também recorta

seu espaço particular.

Através da imagem de "independente" moldam-se diferentes

entendimentos e perspectivas, como se o termo designasse uma única realidade da


imprensa local. Contudo, não se trata propriamente de um novo conceito, mas de uma

outra maneira de tratar a questão que permite "empurrar" o periodismo local para um

novo patamar. Um patamar que distingue e ao mesmo tempo borra as fronteiras entre

ação política e jornalismo. Ambos se requalificam nesse movimento. O jornalismo

assumindo-se como uma forma de ação política e a política percebendo a instituição de

novos espaços públicos e da necessidade de equacionar o problema da visibilidade

social posto pela disseminação dos diários.

Da mesma forma, uma emergente imprensa "noticiosa" na capital, como

destacou o discurso dos atores, implicava o equacionamento dos novos padrões de

experiência urbana promovidos pelas modificações espaço/temporais no processo de

crescimento da cidade. Os temas dos jornais, majoritariamente, se organizavam em


129

torno da política, crônica policial, cinema, futebol, curiosidades do cotidiano da cidade.

Outras temáticas também pululam. Parece-nos, entretanto, que os novos traços

conteudísticos das publicações talvez mereçam maior atenção não tanto pelos seus

elementos temáticos, e sim pela lógica e perspectiva de tratamento da realidade e pela

construção discursiva que é adotada na imprensa de então. As "novas temáticas" surgem

frente à complexificação da sociabilidade urbana, com sua diversificação de práticas

sociais, na qual segmentos e classes sociais emergentes reivindicam sua chancela como

agentes na cena pública. A experiência da cidade, pois, redunda na própria lógica da

imprensa. E a possibilidade de organização de uma imprensa nos termos apregoados -

atenta a diversidade, ligeira, objetiva, voltada ao cotidiano - requer uma certa

imaginação de metrópole.

Assim, a imprensa, para aqueles homens, parece se constituir numa

possibilidade de captar a cidade. Não no sentido de uma uniformidade repressiva

característica do jornalismo contemporâneo. Mas fazendo da heterogeneidade, da

movimentação aleatória, da variedade do mundo urbano, a forma e conteúdo, o tipo de

narrativa e caracterização daquele periodismo que eles acreditavam renovar-se. Algo

como a estratégia da ficção dickensiana, observada por Williams, onde a experiência da

cidade é o método da ficção e o método da ficção torna-se a experiência da cidade. "O


importante é que a visão - e não se trata de uma visão única, e sim de uma dramatização

contínua - é a forma da escritura." (2)

Podemos então entender com maior amplitude e reencontrar agora a

Marinoni que abriu este texto. Não como uma simples máquina, mas muito mais.

Emblema de uma nova forma de produzir o social, os acontecimentos em torno da

chegada da impressora a Belo Horizonte adquirem também nova luminosidade aos

nossos olhos. Na verdade, os "homens de imprensa", naquele momento, talvez não se

importassem tanto com os caminhos que o jornalismo local iria trilhar. O importante é

que, ali e naquele momento, encontravam mais um elemento a dar força a uma imagem

(2)
Raymond Williams, O Campo e a cidade, op. cit. P.216
130

de imprensa que eles cunhavam e que permitia romper uma certa banalidade do

cotidiano e pulsar a vida de outra maneira. Tecnologia, mudanças nas relações sociais,

nova percepção de tempo e espaço, nova formatação do tecido urbano, reconfiguração

da política. "A Marinoni, na sua prodigiosa multiplicação, renova todos os dias, num

momento, a visão da vida universal, na notícia local, no telegrama, no sem fio". (3)

(3)
Diário da Manhã. 12 de novembro de 1927. p.4
131

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